Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
Descritores: | SIGILO DE COMUNICAÇÕES DADOS PESSOAIS CONSENTIMENTO ACESSO AO DIREITO COLISÃO DE DIREITOS PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 05/12/2022 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | - As empresas de telecomunicações estão sujeitas a deveres de confidencialidade (artº48 Lei n.º 5/2004, de 10-02 “Lei das Comunicações Eletrónicas” e art. 4º nº 1 da Lei n.º 41/2004, de 18-08 “Lei da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações”) - Os clientes das empresas de telecomunicações ao expressarem a sua vontade em não autorizar a divulgação dos seus dados pessoais, apostos no contrato do serviço de telecomunicações, exercem um direito com proteção constitucional (art. 35º,4 CRP) e com enquadramento no direito da proteção de dados pessoais (art. 5º, 1 alª f do RGPD). - Não podendo, em princípio, as empresas de telecomunicações (responsáveis pelo tratamento de tais dados) fazer um tratamento não consentido pelo titular. - Mas o consentimento não constitui a única causa de legitimidade e de licitude no tratamento de dados pessoais. - O consentimento será dispensável, se o tratamento for necessário para efetivar interesses legítimos prosseguidos por terceiros (art. 6º alª f) do RGPD) e se, recorrendo a um princípio de proporcionalidade, sugerido na mesma norma, se não imponha a prevalência dos interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular dos dados. - Está nessa situação o direito de terceiro a uma tutela jurisdicional efetiva, para a qual necessita de informação de morada do cliente da empresa de telecomunicações de modo a viabilizar a citação deste, como réu, uma vez esgotadas todas as possibilidades de obter a mesma informação por uma via menos intrusiva. - A recusa de informação por parte da empresa de telecomunicações não é, no caso, legítima. (Sumário pela Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora: I NOS Comunicações, S.A apresentou requerimento de injunção contra Maria (…), residente em (…) Odivelas, para dela haver a quantia global de 1.514,79€, relativa a um contrato celebrado em 3.1.17, incumprido a partir de 1.3.17.A carta registada e com aviso de receção remetida para a requerida foi devolvida, por não ter sido reclamada. Consultadas as bases de dados da segurança social, da autoridade tributária e aduaneira e dos serviços de identificação civil, obteve-se a morada Rua (…) Almodôvar. A carta registada e com aviso de receção remetida para a requerida foi devolvida, por não ter sido reclamada. Tentada a citação da requerida através de agente de execução, o mesmo informou que se deslocara à referida morada em 21.6.21, não tendo conseguido apurar se a requerida aí vivia. Havia deixado aviso pedindo contacto telefónico urgente, mas ninguém o contactara. Deslocara-se de novo à morada em causa no dia 26.7.21, tendo sido atendido por José (…), que dissera desconhecer a citanda. Consultadas as bases de dados da requerente, foi obtida a morada (…) Leiria. A carta registada e com aviso de receção remetida para a requerida foi devolvida, por ser desconhecida nessa morada. Foi solicitada informação à EDP Comercial – Comercialização de Energia, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a mesma não titulava, atualmente, qualquer contrato de fornecimento de energia. Foi solicitada informação à SU Eletricidade, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a mesma não havia celebrado qualquer contrato de fornecimento de energia. Foi solicitada informação à Altice Meo – Serviço de Comunicações e Multimédia, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a mesma era cliente e tinha fornecido a morada de Almodôvar. Foi solicitada informação aos Serviços Municipalizados de Água de Leiria sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido não existir qualquer contrato de água em nome daquela. Foi solicitada informação à Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a requerida solicitou a confidencialidade dos seus dados aquando da subscrição do serviço telefónico, pelo que tais informações estão cobertas pelo sigilo das comunicações e pelo sigilo profissional. Razões pelas quais pediu escusa. A requerente veio requerer a citação edital da requerida. Foi, então, proferido o seguinte despacho: “(…) Dispõe o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que «1- Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.». Por seu turno, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, «3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.» (sublinhado meu). Por fim, o n.º 4 da referida disposição legal, prevê que «4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.». Assim sendo, considerando os motivos de recusa invocados pela operadora, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, cumpre aplicar o disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da eventual dispensa do dever de segredo. Deste modo, em primeiro lugar cumprirá apreciar e decidir se a recusa da operadora em questão é ou não legítima. Caso se conclua pela ilegitimidade da recusa, o tribunal (de 1.ª instância) deve ordenar a prestação das informações (n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal), cabendo recurso desta decisão; caso contrário, sendo considerada legítima a recusa, e indispensável o fornecimento dos elementos recusados, deve ser suscitado o incidente junto do tribunal superior - oficiosamente ou a requerimento - solicitando que seja determinada a prestação da informação, com quebra de sigilo (n.º 3 do artigo 135.º do Código de Processo Penal). Isto posto, apreciando a legitimidade da recusa e os fundamentos invocados pela operadora, à luz do quadro legal aplicável, temos que o artigo 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «Inviolabilidade do domicílio e da correspondência» dispõe que «[o] domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis», prevendo-se no n.º 4 do mesmo preceito legal «[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.» Por seu turno, dispõe o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 41/2004, de 18/08 que «1- As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.». Finalmente, o artigo 48.º, n.º 1, al. l), da Lei n.º 5/2004, de 10/02 prevê a inclusão obrigatória nos contratos celebrados com as operadoras da «Indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respetivos elementos pessoais nas listas telefónicas e sua divulgação através dos serviços informativos, envolvendo ou não a sua transmissão a terceiros, nos termos da legislação relativa à proteção de dados pessoais». No caso dos autos, a informação pretendida cinge-se à morada da requerida e, como tal, não se pretendendo a revelação de quaisquer dados de tráfego e de conteúdo, entendo não estar em causa a invocada intromissão na correspondência ou nas telecomunicações prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil. Contudo, é de relevar que a operadora informou que a sua cliente se opôs expressamente à divulgação dos elementos pessoais constantes do contrato, motivo pelo qual entendo que assiste razão à operadora quando alega que se encontra vinculada ao dever de sigilo de tais dados (dados de base), atento o disposto no artigo 48.º, n.º 1, al. l), da Lei n.º 5/2004 (cfr. no mesmo sentido Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 12/04/2018, Proc. 2112/16.0T8EVR-A.E1). Destarte, julgo legítima a recusa da operadora Vodafone Portugal- Comunicações Pessoais, S.A. em prestar a informação solicitada. Sucede que o apuramento da morada atual da requerida com vista à sua citação pessoal torna-se imprescindível ao regular andamento do processo e à boa administração da justiça, na perspetiva de que o recurso à citação edital só deve suceder em casos limite, designadamente quando se mostrarem frustradas todas as diligências passíveis de serem realizadas com vista à localização do paradeiro do réu, motivo pelo qual, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, entendo ser de suscitar o incidente de quebra de sigilo. Em face de todo o exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 417.º, n.º 4, do CPC e 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, suscito o incidente de quebra de sigilo perante o Venerando Tribunal da Relação de Évora, para o efeito de ser determinada a prestação da informação da morada da requerida MARIA (…), atualmente registada no contrato celebrado com a “Vodafone Portugal - Comunicações Pessoais, S.A., com vista à sua citação pessoal nos presentes autos. (…).”. * Os factos pertinentes para a economia do presente processo são os que se deixaram expressos no relatório. II É a seguinte a questão a decidir: No confronto dos interesses que se hão de decompor e sopesar, deve a operadora de telecomunicações prestar a informação solicitada? Vejamos. As empresas de telecomunicações estão sujeitas ao dever de confidencialidade previsto na Lei n.º 5/2004, de 10-02 e na Lei n.º 41/2004, de 18-08. Nos termos do art. 48º da Lei n.º 5/2004, de 10-02 (Lei das Comunicações Eletrónicas), do contrato que oferece o serviço de comunicações eletrónicas deve constar, entre o mais: « l) Indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respetivos elementos pessoais nas listas telefónicas e sua divulgação através dos serviços informativos, envolvendo ou não a sua transmissão a terceiros, nos termos da legislação relativa à proteção de dados pessoais;” (sublinhado nosso). A informação solicitada – sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida – está contemplada no campo de previsão respeitante à divulgação de elementos pessoais (do cliente) através dos serviços informativos da prestadora a terceiros (no caso, o tribunal e as partes no processo). Por força do art. 4º nº 1 da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações) : «1 - As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.» A informação solicitada nos autos principais à Vodafone não se inclui neste campo de previsão, respeitante à inviolabilidade das comunicações eletrónicas e dados de tráfego. Como normativo específico está, em causa, tão só a possível ofensa ao art. 48º da Lei n.º 5/2004, de 10-02. A cliente da Vodafone (titular de dados pessoais) ao contratar com esta (responsável pelo tratamento) terá expressado a sua vontade em não autorizar a divulgação dos seus dados pessoais. Tendo essa proteção enquadramento constitucional (art. 35º,4 CRP ) e do direito da proteção de dados (art. 5º, 1 alª f do RGPD). Assim, em princípio, para que a Vodafone pudesse prestar a informação solicitada, a sua cliente teria de o consentir, porque a informação solicitada respeita aos seus dados pessoais. Mas o consentimento não constitui a única causa de legitimidade e de licitude no tratamento de dados pessoais. O art. 6º do RGPD enuncia um conjunto de situações, para além do consentimento, que conferem licitude ao tratamento como, para o que ora importa, a estabelecida na alínea f): “O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança.” (sublinhados nossos). De acordo com esta norma, os interesses do responsável pelo tratamento ou os interesses de terceiro podem fundamentar a licitude do tratamento. No caso, estamos perante um litígio que pondera os interesses de terceiro. Interesse legítimo porque visa assegurar-lhe uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20 CRP). O terceiro, autor da ação principal não tem ao seu alcance outra via, menos intrusiva, de obter informação de morada da Ré com vista a viabilizar a sua citação. O conjunto de diligências efetuadas nos autos principais permitem concluir que se esgotaram todas as demais possibilidades de obter essa informação. De acordo com o princípio de proporcionalidade sugerido ao intérprete pelo art. 6º alª f) do RGPD, o direito da cliente da Vodafone ao sigilo quanto à sua morada e número de identificação fiscal, não prevalece sobre aquele. Não revela nada de fundamental que o sobreponha. Prevalece, por isso, este interesse de terceiro. O tratamento/divulgação em causa mostra-se necessário para o tratamento de interesses legítimos de terceiros (à relação titular dos dados-responsável pelo tratamento). Logo, é lícito/a. Em consequência, deve a operadora de telecomunicações prestar a informação solicitada no âmbito do dever processual de cooperação para a descoberta da verdade. (…) III Termos em que, acorda-se em conceder a dispensa do dever de sigilo da Vodafone Portugal Comunicações Pessoais, S.A. para prestar a informação solicitada. Sem custas. Évora, 12 de maio de 2022 Anabela Luna de Carvalho (Relatora) Voto vencida, pelas seguintes razões:Maria Adelaide Domingos Maria da Graça Araújo (com declaração de voto) - Em causa está a ponderação, no concreto circunstancialismo dos autos, entre o dever de segredo a que a Vodafone está vinculada e o interesse da boa administração da justiça (conforme entendeu a 1ª instância e sendo certo que a autora requereu a citação edital da ré); - Na situação em apreço, a boa administração da justiça não se prende com o mérito da causa (nomeadamente, com o direito à prova), mas apenas com o seu andamento, com a tramitação do processo; - Se é certo que a lei privilegia a citação pessoal do réu, não deixou de prever a citação edital do mesmo, quando o seu paradeiro não for conhecido (nº 6 do artigo 225º do Cód. Proc. Civ.). Não se confundindo regularidade (que significa conformidade com as regras) com frequência ou normalidade, à face da lei – e, naturalmente, desde que a mesma seja respeitada – tão regular é a citação pessoal do réu como a sua citação edital; - Mister é que o recurso a esta última modalidade assente na verificação dos pressupostos legais constantes do artigo 236º do Cód. Proc. Civ. (a título exemplificativo, vd. Ac. RL de 27.10.21 e da RE de 6.10.16, in http://www.dgsi.pt, respectivamente, Proc. nº 1788/16.2T8FNC-B.L2-4 e 212/14.0TBPTG-A.E1). O que não se confunde com a realização prévia de “todas as diligências passíveis de serem realizadas com vista à localização do paradeiro do réu”, como afirma a 1ª instância, até pelo que tais pesquisas, tendencialmente exaustivas, acarretariam para o andamento do processo; - Assim sendo, o esforço exigido ao tribunal há-de, em regra, considerar-se concluído quando se obtiveram informações dos serviços públicos referidos no nº 1 do citado artigo 236º e, relativamente a todas as moradas obtidas, se tentou a citação por via postal e, se frustrada, por contacto de agente de execução ou funcionário judicial; - A eleição de tais serviços como auxiliares do tribunal prende-se, precisamente, com a obrigatoriedade de os cidadãos terem as suas moradas actualizadas junto dessas entidades. Ora, se o próprio e principal interessado na citação pessoal (repare-se que a requerente já requereu a citação edital), enquanto pressuposto para a sua defesa no processo, não trata de comunicar a sua nova morada aos serviços oficiais, não cremos que, em regra, se justifiquem indagações ulteriores. Mais: se é o citando que, contratando os serviços da Vodafone, lhe impõe sigilo relativamente aos seus dados, nomeadamente a sua morada, não vemos porque, em nome da sua defesa, havemos de levantar o dever de sigilo da operadora; - No caso em apreço, o tribunal nem sequer esgotou as possibilidades de localizar a requerida no quadro do artigo 236º nº 1 do Cód. Proc. Civ.. Com efeito, não foi pedida informação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e não foi tentada a citação por agente de execução na morada indicada no requerimento de injunção (a carta para aí remetida foi devolvida por não ter sido reclamada); - Em conclusão, entendo que, in casu, não se justifica a quebra do dever de sigilo da Vodafone (No sentido exposto, aponta o Ac. RL de 5.5.20 (http://www.dgsi.pt Proc. nº 5002/16.2T8LRS-A.L1-7), a propósito de situação parcialmente idêntica à destes autos). |