Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
110/23.6GAFAL.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
REJEIÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
ELEMENTOS SUBJETIVOS DO CRIME
Data do Acordão: 05/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo a acusação particular omissa quanto à descrição dos factos que integram os elementos subjetivos dos crimes imputados à arguida (injúria e difamação), e apesar de tal falta ter sido colmatada por “aditamento” introduzido pelo Ministério Público (no despacho de acompanhamento da acusação particular), bem andou o Tribunal recorrido ao rejeitar a acusação particular, por ser manifestamente infundada (em virtude da ausência de alegação dos factos necessários para o preenchimento dos elementos subjetivos dos crimes em causa).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular que, com o nº 110/23.6GAFAL, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de Ferreira do Alentejo, recorre a assistente D do despacho proferido em 11-10-2024, pela Mm. Juiz titular dos presentes autos, que rejeitou a acusação deduzida pela mesma assistente, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada e, em consequência, também rejeitar o pedido de indemnização civil que a acompanha.

Inconformada com esta decisão de rejeição da acusação, a assistente D da mesma interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. A Recorrente foi notificada da rejeição da Acusação Particular pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo com a seguinte fundamentação:
- “Contudo, constata-se que a acusação particular é completamente omissa quanto ao elemento subjectivo dos crimes de injúria e difamação, que exigem uma actuação dolosa por parte do agente infractor e, nessa medida, que este tenha actuado com o conhecimento de que as expressões proferidas eram susceptíveis de ofender a honra e consideração do ofendido e, não obstante saber que tal lhe faria incorrer em responsabilidade criminal, teve vontade de praticar os factos”;
- “Ora, o deficit de alegação do elemento subjectivo não pode ser suprido pelo Ministério Público, mediante o aditamento introduzido a fls. 82, por consubstanciar uma alteração dos factos descritos na acusação particular, uma vez que é esse elemento que lhe confere o conteúdo incriminatório”;
- “Nessa medida, não tendo sido articulados na acusação particular todos os factos necessários a uma eventual decisão condenatória, conclui-se que a assistente não cumpriu o ónus de alegação previsto no art. 283º, nº 3, al. b), do Cód. Proc. Penal e, em consequência, que a referida acusação é manifestamente infundada, devendo, por isso, ser rejeitada”.
2. O Tribunal a quo rejeitou ainda a formulação do Pedido de Indemnização Civil deduzido, pois o mesmo era suportado na factualidade da acusação particular.
3. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo, não ajuizou de forma correcta ao decidir-se pela não aceitação da Acusação Particular, sobretudo porque percorrendo toda a Acusação é de concluir que existe matéria factual suficiente para que a mesma fosse aceite, e bem assim, está bem explícito e presente o elemento subjectivo dos tipos de ilícitos criminais em questão, bem como pelo facto da factualidade descrita integrar pela Arguida e ora Recorrida, a prática em autoria material de um crime de injúrias, p. e p. pelo art. 181º nº 1 do CP, para além da prática também em autoria material de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180 nº 1º do CP.
4. Isto, porque no seu articulado, a Recorrente alegou e fundamentou entre outros, o seguinte:
– “No dia 18 de Abril de 2023 cerca das 18h00 horas, a Assistente encontrava-se na sua viatura a descer a Rua 25 de Abril em direcção à Rua João de Deus, em Ferreira do Alentejo, quando a Arguida virou a esquina para subir a Rua 25 de Abril, no sentido inverso, tendo ambas ficado frente a frente, cada uma na sua viatura.”
– “Segundo as regras estradais, teria que ser a Arguida a facilitar a passagem da Assistente, porquanto se encontrava ainda a iniciar a subida e tinha a manobra muito mais facilitada.”
– “Contudo, não só não o fez, como parada em frente à viatura da Assistente, gritou de dentro do veículo com o vidro todo aberto, dirigindo-se à Assistente dizendo: “Vai para trás, baleia!”
– “A Assistente com bastante calma respondeu que não iria para trás, pois segundo as regras de trânsito, quem deveria ceder a passagem seria a Arguida!”
– “É nesse momento, que a Arguida saiu do veículo enraivecida, dirigiu-se ao veículo da Assistente, ameaçando-a, forçou a abertura da porta do lado direito e bateu no vidro e na porta com os punhos cerrados, completamente fora de si.”
– “Seguidamente, dirigiu-se ao aldo esquerdo do veículo onde se encontrava a Assistente e forçou a abertura da porta e bateu insistentemente no vidro e na porta, enquanto proferia “Sai daí de dentro, sua baleia!”, “Tens medo? Sai daí cá para fora e vais ver o que te acontece!”
– “Acto contínuo, dirigiu-se ainda à Assistente e disse: “Baleia assassina! Vais pagar por tudo o que fizeste”, “És uma bruxa!”, “Vocês são todas umas bruxas, mas vão pagar por tudo!”, “Não sais porquê? Tens medo?”.
– “Enquanto isto, a Assistente pediu que a Arguida a deixasse em paz, sem sucesso, pois a Arguida continuou “Não sais do carro, vou buscar o telemóvel para te tirar fotos para te embruxar”.
– “No momento em que se dirige ao seu veículo para ir apanhar o telemóvel, chegou uma colega da Assistente, de nome Ana Melão, a quem a Arguida disse: “Esta puta diz que não sai daqui, é uma baleia. Agora fica ali porque eu também não saio daqui!”.
– “Em meados de Maio de 2023, quando a Assistente se encontrava a circular no seu veículo na Avenida General Humberto Delgado, em Ferreira do Alentejo, acompanhada pela sua filha, I, e que se infra se arrola como testemunha, a Arguida que se encontrava na mesma via mas a pé, virou-se para a Assistente e disse: “És uma baleia, baleia assassina!”.
– “Também no decurso do mês de Maio de 2023, numa altura em que tanto a Assistente como a Arguida se encontravam dentro da superfície comercial denominada “Intermarché”, em Ferreira do Alentejo, a Arguida dirigiu-se à testemunha M e referindo-se à Assistente disse: “É uma baleia assassina, foi a culpada da morte do marido, sua gorda!”
5. No que concerne ao Pedido de Indemnização Civil, a Recorrente declarou que:
– “A Demandada atentou contra a honra, o bom-nome, consideração da Demandante, ofendendo-a gravemente em termos psicológicos, não só nas ofensas dirigidas a si como também no que se refere ao seu falecido marido.”
– “A Demandante foi atentada brutalmente na sua honra, consideração e brio pessoal, designadamente na presença da sua filha e de colegas e conhecidas da terra de ambas.”
– “Acresce-se que a ora Demandante sentiu uma profunda vergonha e vexame com as expressões e imputações, atentatórias da sua honra, proferidas pela Arguida e aqui Demandada.”
– “De tal forma que, a conduta praticada pela Demandada, veio a repercutir-se ao nível do equilíbrio emocional da Demandante, tanto no local de trabalho como no ciclo de amigos e lugares de convício, evitando os convívios sociais, festas e jantares com amigos, bem como até as próprias idas ao supermercado com receio de encontrar a Demandada e voltar a ser ofendida.”
– “Nos dias seguintes à ocorrência destes factos, a Demandante teve insónias e problemas em adormecer, por ainda estar em choque com o desenvolvimento dos acontecimentos.”
– “Nas semanas seguintes a estes acontecimentos, a Demandante evitou frequentar lugares que também eram frequentados pela Demandada, com receio que esta última repetisse as injúrias e impropérios desta feita num local público e à frente de pessoas conhecidas ou até familiares da Assistente.”
– “A Demandada agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo da ilicitude da sua conduta, moral e legalmente repreensível.”
– “O vexame, vergonha, inquietação e desgosto sofridos pela Demandante foram consequência directa e necessária da conduta ilícita da Demandada e, merecem inequivocamente, pela sua gravidade, tutela jurídica, nos termos do disposto nos artigos 483º e 496º ambos do Código Civil.”
– “A prática dos supra referidos factos ilícitos por parte da Demandada conferem à Demandante o direito a ser indemnizada, entendendo a mesma, ser justo e correcto o ressarcimento a título de danos morais pelo crime de injúrias e de difamação, no valor de € 500,00 (quinhentos euros).”
6. O art. 181º nº 1 do Código Penal preceitua que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
7. Assim, nos termos do preceito legal imediatamente supra citado, é por demais evidente que as injúrias dirigidas por palavras à Assistente quando esta se encontrava dentro da sua viatura, consubstanciam de forma inequívoca o referido crime.
8. Analisando o elemento objectivo do tipo de crime, “o tipo de ilícito é a figura sistemática de que a doutrina penal se serve para exprimir um sentido de ilicitude, individualizando uma espécie de delito e cumprindo deste modo, a função de dar a conhecer ao destinatário que tal espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico”, nas palavras do Professor Doutor Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora.
9. No respeitante ao elemento subjectivo do tipo de crime, refere ainda o Professor Doutor Figueiredo Dias que, “O art. 13º determina que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência””.
10. “Do que neste elemento verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. A razão desta exigência deve ser feita à luz da função que este elemento desempenha: o que com ele se pretende é que, ao actuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”, Professor Doutor Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora.
11. O bem jurídico protegido neste tipo de ilícito é a honra nas suas múltiplas concepções.
12. Ensina o Professor Doutor Figueiredo Dias no já aqui citado Comentário Conimbricense, “a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior”.
13. Para compreendermos o elemento objectivo deste tipo de crime, importa analisá-lo à luz da violação do bem jurídico protegido pela norma. Desta forma, o elemento objectivo de ilícito baseia-se na violação da honra perpetrada de maneira directa, na forma mais simples e comum, isto é, perante a vítima.
14. Analogamente ao elemento subjectivo do ilícito, o crime de injúrias p. e p. pelo art. 181º do CP é um crime essencialmente doloso, a que basta para uma plena imputação subjectiva, mesmo o mero dolo eventual.
15. Portanto, “Seguramente, que o ter-se querido um certo facto – um certo facto que se conhece – o se ter posto a sua realização como fim da conduta do agente, permite afirmar a existência daquela forma de conexão entre o facto e o agente que se trata como dolo”, Professor Doutor Eduardo Correia, em Direito Criminal, Livraria Almedina, Coimbra, 1996.
16. O que significa que, há dolo quando o agente quis o facto criminoso!
17. Regula o art. 180º nº 1 do Código Penal que “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.
18. Perante o conceito de difamação p. e p. pelo art. 180º nº do CP, é notório que quando a Arguida e ora Recorrida se dirige a terceiros, e imputa à Assistente, factos ofensivos da sua honra ou consideração quando a apelida de “puta”, “baleia”, “baleia assassina”, “culpada da morte do marido” e “gorda”, consubstanciam de forma inequívoca o referido crime.
19. Encontra-se preenchido o elemento objectivo do tipo de crime quando alguém se dirige a terceiros e imputa a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formula sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduz uma tal imputação ou juízo.
20. Para que se mostre preenchido o elemento subjectivo, é imprescindível a existência de dolo em qualquer das suas modalidades, conforme ao disposto no art. 14º do CP, designadamente dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual.
21. Com o merecido respeito, a Recorrente não alcança como pôde o douto Tribunal Recorrido decidir pela não existência da prática de um crime de injúrias e de difamação por parte da Recorrida, com fundamento na omissão do elemento subjectivo do tipo, ou seja, o dolo.
22. Arguindo que “a acusação particular é completamente omissa quanto ao elemento subjectivo dos crimes de injúria e difamação, que exigem uma actuação dolosa por parte do agente infractor e, nessa medida, que este tenha actuado com o conhecimento de que as expressões proferidas eram susceptíveis de ofender a honra e consideração do ofendido e, não obstante saber que tal lhe faria incorrer em responsabilidade criminal, teve vontade de praticar os factos”.
23. Ora, como pode uma mulher adulta com um conhecimento acima da média e na posição social e profissional em que a mesma se encontra, não discernir que dirigir as expressões “Baleia assassina! Vais pagar por tudo o que fizeste”, “És uma bruxa!”, “Vocês são todas umas bruxas, mas vão pagar por tudo!”, “Não sais porquê? Tens medo?”, “puta”, “gorda”, “baleia” e “culpada da morte do marido”, são claramente atentatórias da honra, bom-nome e consideração da Assistente?
24. E por outro lado, uma pessoa que se dirige, em fúria, ao veículo da outra e que lhe grita, chamando-lhe: “Baleia assassina”, “Vai para trás, baleia!”, “És uma bruxa”, não tem vontade de ofender a honra e a consideração da pessoa a quem são dirigidas as injúrias??
25. E, quando uma pessoa, dirigindo-se a um terceiro, se refere a outra pessoa como “puta”, “gorda”, “baleia”, “culpada pela morte do marido”, não tem conhecimento de que as expressões proferidas são susceptíveis de ofender a honra e consideração da Assistente e que tem claramente vontade de ofender a honra e consideração da Assistente? A resposta é apenas uma: Evidentemente que, não só tem conhecimento de que as expressões proferidas são susceptíveis de ofender a honra e consideração da Assistente e aqui recorrente, como também tem plena vontade de praticar os factos!
26. E a Assistente ora recorrente descreve exactamente isso no art. 22º da Acusação Particular quando diz “A Demandada agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo da ilicitude da sua conduta, moral e legalmente repreensível.”
27. O que significa que a Arguida e aqui recorrida actuou com dolo, porque teve a clara intenção de praticar os factos e de ofender a honra e consideração da Recorrente!
28. A Arguida recorrida ao ter agido de forma livre, voluntária e consciente, sabendo da ilicitude da sua conduta, agiu com dolo pois quis o facto criminoso!
29. A Arguida bem sabia que ao actuar da forma descrita na acusação particular provocaria inevitavelmente vergonha, vexame e medo na Recorrente, e que as expressões e imputações que dirigiu à Assistente, ofendiam gravemente a sua honra, consideração e brio pessoal.
30. De notar que o Digno Magistrado do Ministério Público acompanhou a acusação particular, através de despacho datado de 01-08-2024, por considerar que “foram recolhidos indícios suficientes da prática, pela arguida R, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º do Código Penal e difamação p. p. art. 180º, nº 1 do Código Penal”.
31. Acrescentando ainda que “A arguida bem sabia que agia com o intuito, concretizado, de se dirigir pessoalmente à assistente imputando-lhe os factos desonrosos descritos nos autos, como formulava sobre a mesma, juízos de valor que sabia serem susceptíveis de ofender, como ofenderam, a honra e consideração daquela, o que representou e quis” e que “a arguida bem sabia efectuando as considerações que efectuou, perante terceiros, imputando factos desonrosos e formulando juízos, agia com o propósito de atacar, denegrir e prejudicar tanto quanto possível, o que representou e quis”.
32. Em conclusão, dissecada toda a matéria factual constante da acusação particular é inequívoco que a Arguida e aqui recorrida teve o nítido propósito de ofender a honra, a dignidade e consideração que são devidas à Assistente e ora recorrente.
33. Ao agir do modo descrito na acusação particular quis e conseguiu causar uma profunda humilhação à Assistente, sem qualquer justificação, bem como atingi-la na sua honra, dignidade e consideração.
34. Pelo que, deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que ordene o julgamento da Arguida pela prática tanto do crime de injúria, p. p. pelo art. 181º CP, como por um crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º também do Código Penal, e consequentemente prossiga também, o Pedido de Indemnização Civil deduzido pela Assistente, fazendo-se assim a almejada Justiça!
Nestes termos e nos mais de Direito e com o Mui douto suprimento dos Venerandos Desembargadores, deve o presente Recurso ser admitido e ser revogada a decisão de rejeição da acusação particular deduzida pela Assistente, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene o julgamento da Arguida pela prática tanto do crime de injúria, p. p. pelo art. 181º CP, como por um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º do CP.
Deverá também ser admitido e prosseguir o Pedido de Indemnização Civil deduzido pela Assistente, no qual requer a condenação da Arguida ao pagamento da quantia de € 500,00 (quinhentos euros) a título de indemnização por danos morais, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Com o que farão V. Exas. Venerandos Desembargadores, a acostumada e almejada Justiça.

Notificado nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, do mesmo diploma legal, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela assistente D, concluindo pela improcedência do recurso interposto (transcrição):
1. Entende o Ministério Público que o douto despacho ora em crise não merece qualquer reparo e deverá ser mantido nos precisos termos que dele constam, não assistindo razão à assistente.
2. Dos factos descritos na acusação particular resulta claro que não foram alegados factos dos quais resulte o preenchimento do elemento subjetivo, falha que o Ministério Público, ao acompanhar a acusação deduzida, tentou colmatar, sem sucesso.
3. Conforme entendimento fixado na nossa jurisprudência pelo AUJ nº 1/2015, de 27-01-2015 e seguido pelo Tribunal de Relação de Évora no acórdão de 12-01-2021, proferido no Proc. nº 482/19.7T9FAR.E1, relatado por Nuno Garcia, in www. dgsi.pt.:
“Sendo a acusação particular omissa quanto ao aspeto do elemento subjetivo dos crimes imputados à arguida, não pode tal falta ser colmatada por “aditamento” introduzido pelo Ministério Público, em virtude de tal “aditamento” consubstanciar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação particular, uma vez que é esse “aditamento” que completa a acusação particular e lhe confere o conteúdo “incriminatório” (cfr. art. 285º, nº 4, do C.P.P.).
4. Deve, pois, concluir-se que bem andou a decisão recorrida ao rejeitar a acusação particular por ser manifestamente infundada em virtude da carência de alegação dos “factos” necessários para que o elemento subjetivo dos crimes em causa esteja completo, sabido que é que nos termos do A.F.J. 1/2015 (d.r. de 27-01-2015) «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do CPP.
Face ao exposto, deverá o Tribunal ad quem negar provimento ao recurso interposto pela assistente e confirmar o doutamente decidido pelo Tribunal a quo, assim se fazendo, uma vez mais, a costumada Justiça.

Notificada nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, do mesmo diploma legal, a arguida R pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela assistente D, concluindo pela improcedência do recurso interposto (transcrição):
1. O presente recurso centra-se no despacho de fls… em que o Tribunal a quo rejeitou a acusação particular deduzida pela assistente, maxime por deficit de alegação,
2. Uma vez que a referida acusação particular é totalmente omissa quanto ao elemento subjectivo dos crimes de injúria e difamação, não merece censura o despacho recorrido.
3. “Os elementos subjectivos do ilícito são aqueles que exigem uma determinada intenção por parte do agente do crime” (idem, p. 233).
4. Para além disso, para haver crime é necessário imputar-se um acontecimento a alguém, a título de culpa (idem, p. 347).
5. Do ponto de vista do processo penal, a acusação, pública ou particular contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
6. Ora, a acusação particular de fls…, deduzida pela assistente contra a aqui arguida respondente, é totalmente omissa quanto a estes elementos subjectivos e intelectuais.
7. A acusação particular de fls… não tem qualquer referência genérica e/ou específica à representação e vontade da aqui arguida respondente.
8. Dessa forma, falta, quanto aos dois crime em causa – difamação e injúria – a concretização fáctica e a devida alegação do elemento subjectivo, ou seja, da vontade livre de a aqui arguida praticar o ato, com uma dada consciência e representação, designadamente de que as alegadas expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal(is) ato(s) é(são) proibido(s) por lei,
9. Como é amplamente aceite, a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento (…).
10. E, não sendo admissível qualquer presunção do dolo tendo por base a factualidade objectiva, deve, também por isto, ser improcedente o recurso.
11. Deve improceder o recurso, concluindo-se, outrossim, pelo exposto, que decidiu bem o Tribunal a quo, quando rejeitou a acusação particular de fls… por a mesma não cumprir o ónus de alegação previsto no art. 283º, nº 3, al. b) CPP.
Termos em que e nos demais de Direito deve ser confirmado o despacho recorrido, negando-se provimento ao recurso.
Fazendo-se assim, a habitual e necessária Justiça.

Neste Tribunal da Relação de Évora, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto, conforme melhor resulta dos autos.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo a arguida R pugnado no sentido da resposta apresentada.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


B -
O despacho de 11-10-2024, ora recorrido, encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
“Nestes autos de processo comum, a assistente D deduziu acusação particular, com pedido de indemnização civil, pela prática de um crime de injúria p.p. pelo art. 181º, nº 1 e, ainda, de um crime de difamação p.p pelo art. 180º, nº 1, ambos do Cód. Penal, contra a arguida Rosa Grilo – cf. fls. 77-80.
O Ministério Público acompanhou a referida acusação particular – cf. fls. 82.
Concluso o processo para prolacção do despacho previsto no art. 311.º do Cód. Proc. Penal, onde cumpre proceder ao respectivo saneamento, constata-se que a acusação particular deduzida não cumpre com as formalidades impostas pelo art. 283º, nº 3, al. b), aplicável por remissão do art. 285º, nº 3, ambos do Cód. Proc. Penal.
Efectivamente, impõe a al. b) do art. 283º, nº 3 do Cód. Proc. Penal que a acusação contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, designadamente quanto às circunstâncias de tempo, lugar e modo de actuação que se enquadre em ilícito penal.
Nessa medida, deve a acusação particular conter um acervo factual do qual se retire, por um lado, que a actuação imputada ao arguido se subsume à conduta descrita na norma legal incriminatória (elemento objectivo) e, por outro lado, que essa mesma actuação é dolosa ou negligente, consoante o ilícito aqui em causa (elemento subjectivo), e o respectivo enquadramento legal.
Contudo, constata-se que a acusação particular é completamente omissa quanto ao elemento subjectivo dos crimes de injúria e difamação, que exigem uma actuação dolosa por parte do agente infractor e, nessa medida, que este tenha actuado com o conhecimento de que as expressões proferidas eram susceptíveis de ofender a honra e consideração do ofendido e, não obstante saber que tal lhe faria incorrer em responsabilidade criminal, teve vontade de praticar os factos.
Ora, o deficit de alegação do elemento subjectivo não pode ser suprido pelo Ministério Público, mediante o aditamento introduzido a fls. 82, por consubstanciar uma alteração dos factos descritos na acusação particular, uma vez que é esse aditamento que lhe confere o conteúdo incriminatório – neste sentido, cf. Ac. do TRE de 12-01-2021, p. 482/19.7T9FAR.E1, disponível em dgsi.pt.
Por esse motivo, também não pode este Tribunal, em sede de julgamento, integrar a falta de descrição dos elementos subjectivos do crime através do recurso ao mecanismo da alteração não substancial dos factos previsto no art. 358º do Cód. Proc. Penal, conforme decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005.
Nessa medida, não tendo sido articulados na acusação particular todos os factos necessários a uma eventual decisão condenatória, conclui-se que a assistente não cumpriu o ónus de alegação previsto no art. 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal e, em consequência, que a referida acusação é manifestamente infundada, devendo, por isso, ser jeitada.
Uma vez que pedido de indemnização civil apresentado pela assistente/demandante é exclusivamente suportado na factualidade que imputava à arguida a prática dos crimes de injúria e difamação, a rejeição da acusação, deverá, necessariamente, conduzir à rejeição do pedido de indeminização civil, por deixar de subsistir o princípio da adesão a que alude no art. 71º do Cód. Proc. Penal – cf. Ac. TRE de 20-02-2024, p.1034/19.7T9STC.E1, disponível em dgsi.pt.
Em face de todo o acima exposto, decide-se rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente D, por ser manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. a) do Cód. Proc. Penal e, em consequência, rejeitar o pedido de indemnização civil que a acompanha.
(…)”.

A acusação particular da assistente D encontra-se deduzida nos seguintes termos (transcrição):

1. No dia 18 de Abril de 2023 cerca das 18h00 horas, a Assistente encontrava-se na sua viatura a descer a Rua 25 de Abril em direcção à Rua João de Deus, em Ferreira do Alentejo, quando a Arguida virou a esquina para subir a Rua 25 de Abril, no sentido inverso, tendo ambas ficado frente a frente, cada uma na sua viatura.
2. Segundo as regras estradais, teria que ser a Arguida a facilitar a passagem da Assistente, porquanto se encontrava ainda a iniciar a subida e tinha a manobra muito mais facilitada.
3. Contudo, não só não o fez, como parada em frente à viatura da Assistente, gritou de dentro do veículo com o vidro todo aberto, dirigindo-se à Assistente dizendo: “Vai para trás, baleia!”
4. A Assistente com bastante calma respondeu que não iria para trás, pois segundo as regras de trânsito, quem deveria ceder a passagem seria a Arguida!
5. É nesse momento, que a Arguida saiu do veículo enraivecida, dirigiu-se ao veículo da Assistente, ameaçando-a, forçou a abertura da porta do lado direito e bateu no vidro e na porta com os punhos cerrados, completamente fora de si.
6. Seguidamente, dirigiu-se ao aldo esquerdo do veículo onde se encontrava a Assistente e forçou a abertura da porta e bateu insistentemente no vidro e na porta, enquanto proferia “Sai daí de dentro, sua baleia!”, “Tens medo? Sai daí cá para fora e vais ver o que te acontece!”
7. Acto contínuo, dirigiu-se ainda à Assistente e disse: “Baleia assassina! Vais pagar por tudo o que fizeste”, “És uma bruxa!”, “Vocês são todas umas bruxas mas vão pagar por tudo!”, “Não sais porquê? Tens medo?”.
8. Enquanto isto, a Assistente pediu que a Arguida a deixasse em paz, sem sucesso, pois a Arguida continuou “Não sais do carro, vou buscar o telemóvel para te tirar fotos para te embruxar”.
9. No momento em que se dirige ao seu veículo para ir apanhar o telemóvel, chegou uma colega da Assistente, de nome A a quem a Arguida disse: “Esta puta diz que não sai daqui, é uma baleia. Agora fica ali porque eu também não saio daqui!”.
10. A situação só terminou quando se começaram a aproximar mais veículos e começaram a buzinar, não tendo a Arguida alternativa que não fosse retirar a sua viatura, o que fez, momento em que a Assistente seguiu o seu caminho.
11. Em meados de Maio de 2023, quando a Assistente se encontrava a circular no seu veículo na Avenida General Humberto Delgado, em Ferreira do Alentejo, acompanhada pela sua filha, I, e que se infra se arrola como testemunha, a Arguida que se encontrava na mesma via mas a pé, virou-se para a Assistente e disse: “És uma baleia, baleia assassina!”.
12. Também no decurso do mês de Maio de 2023, numa altura em que tanto a Assistente como a Arguida se encontravam dentro da superfície comercial denominada “Intermarché”, em Ferreira do Alentejo, a Arguida dirigiu-se à testemunha M e referindo-se à Assistente disse: “É uma baleia assassina, foi a culpada da morte do marido, sua gorda!”.
13. Atento os factos supra expostos, praticou a Arguida um crime de injúrias, p.p. pelo disposto no art. 181º nº 1 do Código Penal, e bem assim, um crime de difamação p.p. pelo art, 180º, nº 1, também do Código Penal.

Do Pedido de Indemnização Cível:

14. Dá-se aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, toda a factualidade descrita na acusação particular.
15. A Demandante é pessoa de bem, respeitada, quer social quer profissionalmente, quer ainda no seio da sua família, e educada, sendo estimada por todos aqueles que consigo privam.
16. A Demandada atentou contra a honra, o bom-nome, consideração da Demandante, ofendendo-a gravemente em termos psicológicos, não só nas ofensas dirigidas a si como também no que se refere ao seu falecido marido.
17. A Demandante foi atentada brutalmente na sua honra, consideração e brio pessoal, designadamente na presença da sua filha e de colegas e conhecidas da terra de ambas.
18. Acresce-se que a ora Demandante sentiu uma profunda vergonha e vexame com as expressões e imputações, atentatórias da sua honra, proferidas pela Arguida e aqui Demandada.
19. De tal forma que, a conduta praticada pela Demandada, veio a repercutir-se ao nível do equilíbrio emocional da Demandante, tanto no local de trabalho como no ciclo de amigos e lugares de convício, evitando os convívios sociais, festas e jantares com amigos, bem como até as próprias idas ao supermercado com receio de encontrar a Demandada e voltar a ser ofendida.
20. Nos dias seguintes à ocorrência destes factos, a Demandante teve insónias e problemas em adormecer, por ainda estar em choque com o desenvolvimento dos acontecimentos.
21. Nas semanas seguintes a estes acontecimentos, a Demandante evitou frequentar lugares que também eram frequentados pela Demandada, com receio que esta última repetisse as injúrias e impropérios desta feita num local público e à frente de pessoas conhecidas ou até familiares da Assistente.
22. A Demandada agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo da ilicitude da sua conduta, moral e legalmente repreensível.
23. Dispõe o artigo 129º do Código Penal que “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.
24. O vexame, vergonha, inquietação e desgosto sofridos pela Demandante foram consequência directa e necessária da conduta ilícita da Demandada e, merecem inequivocamente, pela sua gravidade, tutela jurídica, nos termos do disposto nos artigos 483º e 496º ambos do Código Civil.
25. A prática dos supra referidos factos ilícitos por parte da Demandada conferem à Demandante o direito a ser indemnizada, entendendo a mesma, ser justo e correcto o ressarcimento a título de danos morais pelo crime de injúrias e de difamação, no valor de € 500,00 (quinhentos euros).”
(…)


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:

- Incorrecta interpretação e aplicação no despacho recorrido, do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e, nº 3, alínea b) do Código Penal, relativamente à rejeição da acusação particular deduzida nos presentes autos.

2 - Apreciando e decidindo:
Dispõe o artigo 311º, nº 2, do Código de Processo Penal, que nos casos em que o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, como é o caso, o juiz de julgamento profere despacho:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284°, n° 1 e, 285º, n° 3, respectivamente.
A acusação só pode ser considerada manifestamente infundada, nas situações enumeradas no nº 3, do mesmo artigo:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
De forma uniforme a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido, “que o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não integre de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
Uma opinião divergente, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a que cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação”, (Ac. Rel. Lisboa, de 10-12-2007, proferido no Processo nº 475/08.0TAAGH.L1).
Nos termos do disposto no artigo 283º nº 3, ex vi do artigo 285º nº 3, ambos do Código de Processo Penal, na parte que ao presente caso importa, a acusação particular deve conter, sob pena de nulidade: «b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada.»
No conceito de “acusação manifestamente infundada”, em ordem a poder determinar a sua rejeição, no despacho de saneamento do processo, não tendo havido lugar à instrução, compreende-se a acusação que padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”, encontrando-se taxativamente enumerados no nº 3 do artigo 311º, as situações em que, para efeitos do nº 2 do mesmo preceito legal, a acusação se considera manifestamente infundada.
De entre eles, interessa-nos aqui considerar o que vem previsto na al. b), que se verifica quando a acusação não contenha a narração dos factos.
A omissão de narração dos factos, que constitui causa de nulidade da acusação (cf. al. b) do nº 3 do artigo 283º do CPP), reconduz-se à situação em que do texto da acusação não conste a descrição de factos suficientes para integrar os elementos típicos objetivos e/ou subjetivos do(s) crime(s) cuja prática é imputada ao arguido.
Como refere Maia Costa «O nosso processo penal tem estrutura acusatória, como a própria Constituição impõe (art. 32º, nº 4), sendo o objecto do processo fixado pela acusação (ou pela pronúncia, no caso de ter havido instrução).
Esta vinculação temática da acusação obriga, por isso, a que ela contenha uma precisa narração dos factos, que vai delimitar o poder cognitivo do tribunal. Essa narração abrange necessariamente os factos integradores de todos os elementos típicos do crime, quer os objetivos, quer os subjetivos (…).
Não é admissível a “presunção” do elemento subjetivo do crime a partir dos elementos objetivos descritos na acusação.
Esta tem que explicitamente descrever os factos que consubstanciam o tipo subjetivo.
Assim, tratando-se de crime doloso, a acusação deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja: o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade (intenção direta de praticar o facto; previsão do resultado como consequência necessária da conduta; previsão do resultado como consequência possível da conduta e aceitação do resultado).
(…).
A falta de qualquer destes elementos não pode ser suprida em julgamento com recurso ao art. 358º (ver o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça infra)»
O referenciado Acórdão do STJ nº 1/2015 – fixou jurisprudência no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do CPP.»
Tendo presentes as considerações expendidas e baixando ao caso dos autos:
Na acusação particular deduzida, a assistente/recorrente imputa ao arguido a prática de um crime de injúrias previsto e punido 181º, nº 1 e um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º, nº 1, ambos do Código Penal.
Vista a acusação particular, facilmente e inequivocamente se conclui que a mesma é completamente omissa relativamente aos elementos subjectivos dos crimes imputados à arguida, total ausência da descrição dos elementos intelectuais e volitivos dos tipos legais de crimes imputados.
Por tal, atenta a jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ nº 1/2015 que a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal, terá de se considerar a acusação particular deduzida como manifestamente infundada, porque não contém a narração dos factos subjectivos relativos aos tipos legais de crime imputados à arguida, ausência essa que é insusceptível de reparação e determina considerar a mesma acusação particular, manifestamente infundada e, determinar a sua rejeição nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Assim, pelas razões expostas, terá de se considerar a acusação como manifestamente infundada, pois os factos integrantes da mesma não contêm os elementos subjectivos dos tipos legais de crime imputados e, consequentemente, terá de ser rejeitada.
Improcede por tal o recurso interposto pela assistente D, por falta de fundamento legal, mantendo-se o despacho recorrido.

Em vista do decaimento total no recurso interposto pela assistente D, ao abrigo do disposto nos artigos 515º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal e, artigo 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação da mesma recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pela assistente D e, em consequência, confirmar integralmente o despacho recorrido.
Custas pela recorrente que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta), sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 06-05-2025

Fernando Pina
Maria José Cortes
Filipa Costa Lourenço