Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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Relator: | MANUEL SOARES | ||
Descritores: | NULIDADE POR INSUFICIÊNCIA DO INQUÉRITO INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO SOBRE TODOS OS FACTOS DA ACUSAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 11/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | No decurso do inquérito, o arguido que foi convocado duas vezes para ser interrogado pelo Ministério Público sobre os factos até então apurados e que se recusou a prestar declarações, não tem de ser convocado para novo interrogatório sobre outros factos entretanto descobertos, dos quais teve conhecimento e sobre os quais não requereu para ser interrogado, podendo tais factos ser incluídos na acusação, ainda que deles resulte a imputação de um diferente tipo de crime. Nessa situação não se verifica a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do Código de Processo Penal: insuficiência do inquérito por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios. | ||
Decisão Texto Integral: | Acórdão deliberado em Conferência 1. Relatório 1.1. Decisão recorrida Decisão instrutória proferida em 21jun2024, em que o tribunal recorrido julgou procedente uma arguição de nulidade e em consequência declarou a nulidade parcial da acusação, quanto aos factos dos seus pontos 27 e 37 e não pronunciou o arguido AA pelo crime de coacção agravada tentada, previsto nos artigos 154º nºs 1 e 2 e 155º nº 1 als. a) e b), por referência ao 272º nºa 1 al. a) todos do CP, praticado na pessoa de BB. 1.2. Recurso e parecer 1.2.1. O Ministério Público recorreu do despacho, pedindo a sua revogação e substituição por outro que julgue improcedente a nulidade e pronuncie o arguido por todos os crimes imputados na acusação. Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte: - O arguido foi interrogado no inquérito duas vezes e tomou conhecimento das declarações para memória futura prestadas por BB, tendo sido confrontado com a generalidade dos factos que constam da acusação; - Dos factos com os quais foi confrontado em interrogatório, constam factos susceptíveis de consubstanciar a prática do crime de violência doméstica, do qual foi vítima BB, entre os quais, o desta ter dito à progenitora que pai tinha afirmado pretender matar a mãe, ainda que, nessa data, não fosse tal facto integrado no crime de coacção, por não ter sido possível esclarecer o contexto de tal afirmação; - Do aditamento efectuado aos autos no dia 21.10.2023 resulta que o arguido disse a BB que caso ela não afirmasse em tribunal que pretendia ficar com ele, colocava-a fora de casa, não lhe dava comida, e incendiava a casa; - Não obstante se enquadrarem num ilícito criminal distinto (coacção), os factos em questão estão indubitavelmente relacionados com os factos susceptíveis de consubstanciar a prática dos crimes de violência doméstica, com os quais o arguido já tinha sido confrontado previamente em sede de inquérito e pelos quais foi pronunciado, apenas se autonomizando destes por terem ocorrido em momento posterior, numa altura em que a menor já não reside com o arguido; - O artigo 272º nº 1 do CPP, com a epígrafe “primeiro interrogatório e comunicações ao arguido” determina a obrigatoriedade de interrogar o arguido, quando corra inquérito contra pessoa determinada, salvo se não foi possível proceder à sua notificação; - O artigo 120º nº 2 al. d) do CPP determina a nulidade, por insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios; - Não existe disposição legal que imponha a obrigação do arguido ser interrogado sempre que um facto novo seja trazido ao conhecimento do inquérito, nem que tenha de ser interrogado sobre todos os factos que venham a constar da acusação; - Tal obrigatoriedade não resulta do disposto no artigo 32º nº 1 da CRP, por força do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido em processo criminal pois o princípio do contraditório está previsto para as fases de instrução e julgamento e não para a do inquérito, que tem natureza acusatória; - Pelo exposto, não se verifica a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP, por omissão de acto obrigatório, nomeadamente o interrogatório de arguido, relativamente aos pontos 27 e 34 do despacho de acusação; - A realização do interrogatório a que se refere o artigo 272º do CPP não tem uma função delimitadora do objecto do processo, que continua em aberto até à acusação, nem fixa o enquadramento jurídico dos factos; - No processo penal vigora o princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades previsto no artigo 118º do CPP, nos termos do qual só são nulos os actos que a lei considere como tais, sendo irregulares todos os demais actos ilegais para os quais a lei nada comine; - Tendo o arguido sido interrogado em duas ocasiões, sobre a generalidade dos factos que constam da acusação, e não existindo disposição legal que imponha a obrigação do arguido ser interrogado sempre que um facto novo seja trazido ao conhecimento do inquérito, nem, tão pouco, que venha a ser interrogado sobre todos os factos que venham a constar da acusação, não se verifica qualquer omissão de actos legalmente obrigatórios. 1.2.2. Não houve resposta ao recurso. 1.2.3. Na Relação o Ministério Público aderiu à motivação do recurso e emitiu parecer no sentido da sua procedência. 2. Questões a decidir A única questão controversa é a de saber se a circunstância de o Ministério Público ter acusado o arguido por um crime tentado de coação agravada, sem o ter interrogado previamente sobre os respectivos factos, integra a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP – insuficiência do inquérito por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios – e se, em consequência, essa nulidade importa as não pronúncia do arguido por tal crime. 3. Fundamentação 3.1. Factualidade processual relevante - O inquérito iniciou-se com o auto de notícia de 3dez2021, onde se denunciaram factos integradores do crime de violência doméstica; - A ofendida CC foi ouvida em 14dez2021 e 16dez2021; - O arguido foi sujeito a interrogatório, no dia 07jan2022, e confrontado com os factos resultantes do auto de notícia e dos das inquirições da referida ofendida, tendo optado por não prestar declarações; - No dia 1jul2022, foi elaborado aditamento ao auto de notícia, com a denúncia de novos factos; - O arguido foi de novo confrontado com os mesmos, no interrogatório a que foi submetido em 12set2022, e optou novamente por não prestar declarações; - No dia 20mar2023, realizou-se a diligência de tomada de declarações para memória futura à menor BB, na qual o arguido esteve representado pela defensora; - Foi dado conhecimento ao arguido do teor das declarações ali prestadas; - Nos pontos 27 e 34 do despacho de acusação constam factos susceptíveis de integrar a prática do crime de coacção sobre a menor BB imputado ao arguido; - Tais factos resultaram do aditamento ao auto de notícia, datado de 21out2023, não tendo o Ministério Público procedido a novo interrogatório de arguido em fase posterior do inquérito. 3.2. Fundamentação do despacho recorrido (transcrição parcial) «No que concerne ao crime de coação agravada, praticado na pessoa de BB, cujos eventos integradores do crime resultam espelhados nos factos n.os 27 e 34 do despacho de acusação, a conclusão será, pelas razões já apontadas, diametralmente distinta. A este propósito e analisado o inquérito, resulta que tal factualidade foi trazida para o processo por via do aditamento ao auto de notícia de 21.10.2023 (cfr. fls. 340 a 341 verso do expediente físico), sendo que tal aditamento não gerou um inquérito distinto, pelo que não cabia constituir (novamente) arguido AA (como foi defendido no debate instrutório). Todavia, sobre esta factualidade, AA nunca foi ouvido em sede de inquérito, sendo certo que tal assim poderia e deveria ser sucedido. Nessa medida, os direitos de defesa do Arguido viram-se cerceados, dado que deveria e poderia ter sido levado a cabo interrogatório, a propósito desta factualidade integradora de um novo tipo de crime, à luz do disposto no art. 272.º, n.º 1 do CPP, pelo que a omissão deste ato obrigatório do inquérito configura a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, a qual não pode, nem deve, ser sanada em sede de instrução, nem tão pouco permite ao juiz de instrução criminal devolver o processo ao Ministério Público para que sane tal nulidade. Como curialmente explica a nossa jurisprudência mais avisada, «Considerado o princípio acusatório, o JIC não pode ordenar a prática do acto omitido em sede de instrução nem devolver o processo ao MP para repristinação do inquérito»12. Destarte e sem necessidade de considerações adicionais, julga-se procedente a arguição da nulidade a qual acarreta a invalidade parcial do despacho de acusação no que concerne à factualidade descrita nos pontos n.os 27 e 34 do despacho de acusação, o que deriva na prolação de despacho de não pronúncia nos termos conjugados dos artigos 120.º, n.º 2, alínea d), 122.º, n.º 1 e 308.º, n.º 3, todos do CPP, no que concerne à imputação de um crime de coacção agravada na forma tentada, alicerçado naqueles factos da acusação pública. 3.3. Análise A questão controversa a que temos de dar resposta é, em suma, a de saber se o Ministério Público tem de convocar o arguido para interrogatório, a fim de o confrontar com todos os factos que pretende imputar-lhe na acusação, sob pena de nulidade por insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios. No despacho recorrido considerou-se que sim, quando tais factos surgidos de novo no inquérito integrarem um crime diferente daquele resultante dos factos sobre os quais o arguido tiver sido interrogado. Sustenta o Ministério Público, ao contrário, que não. Não só porque tal não é legalmente obrigatório, como também porque, no caso em apreço, o arguido teve conhecimento genérico de factos relacionados e não quis prestar declarações sobre os mesmos. O recorrente tem razão, como se demonstra de seguida. A nulidade em questão reporta-se à insuficiência de inquérito por omissão de actos legalmente obrigatórios. Só ocorrerá, portanto, se a lei impuser que o arguido seja convocado para interrogatório sobre toda a factualidade indiciária recolhida pelo Ministério Público durante o inquérito, sobre a qual haja de deduzir acusação. Não vemos que a lei contenha tal imposição. O Ministério Público dirige o inquérito, ordenando todas as diligências que considere necessárias para investigar a existência de crimes, determinar e responsabilizar os seus agentes e recolher as provas, com vista a proferir, no final, uma decisão sobre a acusação (artigos 262º nº 1, 263º nº 1 e 267º do CPP). No decurso do inquérito, por óbvias razões de respeito pelas garantias de defesa e pelo princípio da busca da verdade material, é obrigatório interrogar o arguido, sempre que contra ele haja suspeita da prática de crime, salvo se a sua notificação não for possível (artigo 272º nº 1 do CPP). Evidentemente, decorre da natureza do acto, que tal interrogatório há-de incidir sobre os factos que sustentam a suspeitas do crime, no momento em que ocorrer. É verdade que a lei permite que o Ministério Público interrogue o arguido mais que uma vez no decurso do inquérito. Porém, não estabelece esses interrogatórios como obrigatórios em relação a cada facto, a cada prova, a cada indício. O artigo 144º do CPP limita-se a regular a forma como tais interrogatórios se realizam e não em que situações devem realizar-se. Por outro lado, esse direito – de ser ouvido sobre todos os factos que virão a constar na acusação – não se encontra consagrado no artigo 61º do CPP. Pelo contrário, o que resulta da al. b) do seu nº 1 é que o direito do arguido a ser ouvido antes da tomada de qualquer decisão que o afecte só existe perante o juiz de instrução e o tribunal (precisamente porque, como se verá abaixo, na fase de inquérito não vigora o princípio contraditório). Por opção expressa do legislador constitucional, o processo penal tem estrutura acusatória e na fase de inquérito não está subordinado ao princípio do contraditório (artigo 32º nº 5 da CRP). Isso significa – no que importa para o caso em apreço – que o processo se caracteriza pela existência de uma disputa entre sujeitos processuais com interesses contraditórios (Ministério Público e arguido), decidida por uma entidade terceira (o tribunal), colocada numa posição de independência em relação aos sujeitos da controvérsia e de imparcialidade em relação aos interesses em jogo. E significa, também, que não é obrigatório que sejam levados ao conhecimento do arguido todos os factos indiciariamente apurados no inquérito e que lhe seja dada a possibilidade de se pronunciar sobre eles e sobre o seu enquadramento jurídico, antes de deduzida a acusação. Esta solução, com expressa consagração constitucional, note-se, tem plena justificação e não ofende o princípio do processo justo e equitativo, na medida em que o processo penal assegura ao arguido acusado todas as possibilidades de contraditar a acusação numa fase de instrução, cuja abertura está na sua disponibilidade. Possibilidades essas que são, de resto, acrescidas, visto que na instrução o contraditório se exerce perante um juiz, com aquelas qualidades de independência e imparcialidade referidas, e não perante o Ministério Público, que no inquérito é o órgão titular do interesse oposto ao do arguido. Como resulta da factualidade processual acima elencada, o arguido foi interrogado duas vezes sobre os factos do auto de notícia e do seu aditamento e também sobre o que tinha sido dito pela ofendida nas suas inquirições. Cumpriu-se, assim, plenamente a regra do artigo 272º nº 1 do CPP: o arguido foi convocado para interrogatório sobre os factos que naqueles momentos eram conhecidos e consubstanciavam a suspeita da prática dos crimes de violência doméstica sobre a ex-companheira e a filha do casal. Mais tarde, na inquirição da ofendida, filha do casal, a mesma relatou novos factos, susceptíveis de integrar um crime de coacção agravada tentada. O arguido esteve representado por defensora nessa diligência e teve conhecimento formal e pessoal do que ali tinha sido dito. Não ficou impedido de contraditar tais factos. Se quisesse ser interrogado, podia dirigir-se ao Ministério Público e requerer isso mesmo, uma vez que o artigo 61º nº 1 al. g) do CPP lhe permitia intervir no inquérito, oferecendo provas requerendo diligências. E mesmo não tendo apresentado esse requerimento, como não apresentou, podia ter requerido a abertura de instrução para o efeito de contraditar os factos que sustentam a imputação do novo crime. Não fez nem uma coisa nem outra por opção própria. O Ministério Público não tinha de realizar, por sua iniciativa, um novo interrogatório do arguido, pela simples razão de que não se trata de uma diligência legalmente obrigatória. No despacho recorrido aceitou-se o princípio da não obrigatoriedade de confrontar o arguido com todos os factos que vão constar na acusação. Citou-se a esse propósito o acórdão nº 72/2012 do Tribunal Constitucional, em que se decidiu «Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea c) e 144.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com todos os factos concretos que venham a ser inseridos na acusação contra ele deduzida» (pode ser consultado aqui: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120072.html). Porém, considerou-se que nos casos em que dos factos novos resulte a imputação de um novo crime, tal interrogatório suplementar será obrigatório. Em abono dessa tese, referiu o acórdão desta Relação, de 10out2017, proferido no processo nº 127/16.7GCPTM.E1 (consultável em www.dgsi.pt), onde se lê: «O exercício da garantia de defesa no caso o interrogatório- não exige uma comunicação exaustiva de todos os factos que constituem o pedaço de vida em causa, mas impõe que se comuniquem ao arguido os factos concretamente imputados, as circunstâncias de tempo e lugar e modo se forem conhecidas e os elementos do processo que sustentam a imputação, caso não existam razões para vedar o conhecimento de algum meio de prova. E, haverá uma violação da garantia de defesa do arguido nos casos em que são aditados outros factos na acusação susceptíveis de integrarem outros crimes, sejam ou não da mesma Tal solução não se nos afigura correcta. Não há violação de garantias de defesa pelas razões já apontadas: (i) a lei não obriga o Ministério Público a interrogar o arguido sobre todos os factos recolhidos na investigação; (ii) isso sucede porque a fase de inquérito não está sujeita ao contraditório e o arguido tem mecanismos processuais à sua disposição para contraditar esses factos; (iii) o arguido teve conhecimento dos factos e podia ter requerido ao Ministério Público para ser interrogado sobre os mesmos, (iv) o arguido podia igualmente ter requerido instrução para contraditar aquela imputação. Acresce ainda uma razão suplementar. Mesmo que resultasse da lei a obrigatoriedade do Ministério Público interrogar o arguido sobre os factos em questão – que não resulta –, importaria ponderar que ele foi interrogado duas vezes e não quis prestar declarações. Este argumento invocado no recurso é importante em dois planos. Em primeiro lugar, porque o princípio geral da utilidade dos actos processuais, consagrado no artigo 130º do CPC, aplicável por força da remissão do artigo 4º do CPP, sempre permitiria ao MP abster-se de realizar uma diligência que se afigurava previsivelmente inútil, uma vez que o arguido tinha já sido confrontado duas com a possibilidade de apresentar a sua versão sobre os factos e absteve-se de o fazer. Em segundo lugar, porque não poderia deixar de se considerar abusivo e violador da cláusula geral do artigo 334º do CC o exercício do direito de invocar uma nulidade processual a que se deu parcialmente causa, dado que o arguido teve conhecimento dos factos em questão e não requereu ser ouvido sobre os mesmos. Pelas razões expostas, não tendo o Ministério Público deixado de realizar qualquer acto a que estivesse legalmente obrigado, não se verifica a nulidade de insuficiência de inquérito, prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP. A decisão recorrida tem pois de ser revogada. 4. Decisão Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente e em revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído pelo despacho a que houver lugar, não se dando provimento à arguição de nulidade. Não há lugar ao pagamento de custas. Évora, 5 de Novembro de 2024 Manuel Soares Laura Maurício Carla Oliveira |