Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
143/23.2T9OLH.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: EXECUÇÃO DE COIMAS E CUSTAS
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: Não é recorrível o despacho judicial que declara a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima instaurada pelo Ministério Público - tendo-se considerado caber essa competência à Autoridade Tributária -, decretando a absolvição do executado da instância.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Olhão – Juiz 2, foi, pelo Ministério Público, instaurada, contra (A), execução para cobrança da quantia de €142,50 (cento e quarenta e dois euros e cinquenta cêntimos), referentes a uma coima, no valor de €90,00 (noventa euros) e a custas, no montante de €42,50 (quarenta e dois euros e cinquenta cêntimos), aplicadas pelo Município de Olhão, no âmbito do processo de contraordenação n.º 014336561.
1.2. Por despacho proferido em 10/05/2023, a Exm.ª Juiz daquele Juízo declarou a incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal, para conhecer da execução e, em consequência, absolveu a executada da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a), todos do CPC, por entender que compete à Autoridade Tributária promover a execução, atento o estatuído no artigo 35º do Regulamento das Custas Processuais, na redação dada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março.
1.3. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso para esta Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões:
«1) O Ministério Público promoveu a execução da coima e custas da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente liquidados os valores em dívida por parte do executado.
2) Para o efeito, o Ministério Público submeteu requerimento executivo que deu origem aos presentes autos.
3) Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT.
4) O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.º, 88.º e 89.º, do RCP, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.
5) Perante a actual redação do artigo 35.º, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à AT.
6) Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.º, 88.º, e 89.º, do RGCO, 35.º, do RCP, e 64.º, do CPC, por força do disposto no artigo 4.º, do CPP.
7) Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido nunca se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
8) Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa e, eventualmente, relativamente às custas aplicadas pela entidade administrativa, caso se entenda que o Tribunal recorrido é igualmente competente para a sua execução.
Vossas Ex.ªs, porém, decidirão como for de JUSTIÇA!»
1.4. O recurso foi regularmente admitido, tendo a Exm.ª Juiz a quo proferido despacho de sustentação, mantendo o despacho recorrido.
1.5. Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser dado provimento ao recurso.
1.6. Colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Atentas as conclusões extraídas pelo recorrente Ministério Público da motivação do recurso e que delimitam o objeto deste último (cf. artigo 412º, nº 1, do CPP), a questão suscitada é a de saber se a competência para a execução, por coima, aplicada pela autoridade administrativa em processo contraordenacional, cabe ao tribunal – no caso concreto, ao Juízo de Competência Genérica de Olhão – ou se cabe à Administração Tributária.
Importa fazer notar que a questão suscitada no recurso e submetida à apreciação desta Relação é apenas a da competência para a execução, por coima, não colocando o recorrente Ministério Público, a questão da competência para a execução por custas, sendo certo que a quantia exequenda reclamada abrange o valor da coima e das custas.


2.2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima, devida ao Município de Olhão.
Estabelece o actual art.º 35º do Regulamento das custas processuais (após - Lei n.º 27/2019, de 28/03) o seguinte:
1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.
2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.
3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.
4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil.
Com a actual redacção da sobredita norma, o Ministério Publico no âmbito da jurisdição criminal junto dos Juízos Locais criminais tem competência unicamente para instaurar execução por multa devida nos processos e indemnizações arbitradas aos ofendidos/vitimas dos processos criminais. Todos os demais valores são cobrados pela A.T. após emissão da competente certidão de divida no processo.
É aliás este o entendimento vertido no parecer n.º 27/2020, de 04-10 do Ministério Publico. Fazendo, como se entende, todo o sentido que se o Ministério Publico junto do tribunal não tem competência para cobrar as custas devidas no próprio processo, não poderá executar custas ou coimas devidas em qualquer outro processo de natureza administrativa, junto de qualquer outra entidade.
Em face do exposto, e tendo em conta o objecto da presente execução, constatamos que este Tribunal é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar e a presente acção executiva, a qual entendemos ser da Autoridade Tributária.
A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a) do Código de Processo Civil.
Notifique.
Existindo alguma penhora nos autos proceda ao seu imediato cancelamento.
Existindo valores pagos proceda notificação do executado com informação dos respectivos valores.»

2.3. Tal como já referimos, a questão suscitada no recurso é a de saber se a competência para a execução por coima, aplicada pela autoridade administrativa em processo contraordenacional cabe ao tribunal – no caso concreto, ao Juízo de Competência Genérica de Olhão – ou se cabe à Administração Tributária.
Coloca-se, porém, a questão prévia de saber se a decisão judicial em crise, de declaração de incompetência do tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima, é, ou não, recorrível.
Desde há muito que a enunciada questão tem dividido a jurisprudência desta Relação de Évora[1] e ultimamente essa divergência mostra-se bem evidenciada nos acórdãos e decisões sumárias que têm sido proferidos versando sobre essa matéria. Com efeito, enquanto uns entendem não ser recorrível a decisão em causa[2] outros há que defendem a posição contrária, perfilhando o entendimento de que é admissível a interposição de recurso dessa decisão[3].
Conforme referimos no Acórdão que relatamos, proferido em 09/01/2024[4] ponderando os argumentos que vêm sendo aduzidos em sustentação da posição da irrecorribilidade da decisão judicial que declara a incompetência do tribunal, em razão da matéria, para tramitar a execução por coima, aplicada pela autoridade administrativa, em processo de contraordenação, entendemos serem de acolher e daí sufragarmos essa posição.
Reproduz-se, por isso, o que ali escrevemos, acrescentando-se mais alguns argumentos em sustentação da orientação defendida.
A decisão judicial sob recurso, diz respeito à declaração de incompetência em razão da matéria, incompetência absoluta, portanto, do Tribunal Judicial de Olhão – Juízo de Competência Genérica, para apreciar a execução por coima (e custas), instaurada pelo Ministério Público, tendo-se considerado caber a competência para tal, à Administração Tributária.
Está, pois, em causa, uma execução por coima (e custas), aplicada por decisão da autoridade administrativa, no âmbito de um processo de contraordenação.
Não tendo essa decisão sido impugnada judicialmente, tornou-se definitiva e exequível (cf. artigo 58º, n.º 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações e Coimas).
A execução por coima está regulada nos artigos 89º e ss. do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO).
Desde logo, importa referir que considerando o disposto no n.º 3 do artigo 89º do RGCO – «Quando a execução tiver por base uma decisão da autoridade administrativa, esta remeterá os autos ao representante do Ministério Público para promover a execução.» – haverá que entender-se ser o mesmo o regime aplicável à execução por coima, quer o título executivo seja uma sentença ou um despacho proferido em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, quer se trate de decisão da autoridade administrativa, que não haja sido impugnada, tornando-se definitiva.
O n.º 2 do artigo 89º do RGCO estatui que «A execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa
A remissão prevista no enunciado preceito legal, tem de ser entendida como reportada aos artigos 491º e 510º do CPP[5].
O artigo 491º do CPP – inserido no Título III, “Da execução da pena de multa” –, sob a epígrafe “Lei aplicável”, dispõe:
«1 - Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução patrimonial.
2 - Tendo o condenado bens penhoráveis suficientes de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações.
3 - A decisão sobre a suspensão da execução da prisão subsidiária é precedida de parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente
Por sua vez, o artigo 510º do CPP – inserido no Título VI, “Da execução de bens e destino das multas” –, sob a epígrafe “Lei aplicável”, na redação dada pela Lei n.º 34/2008, de 20 de fevereiro, estatui que «Em tudo o que não esteja especialmente previsto neste Código, a execução de bens rege-se pelo disposto no Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais».
A redação do n.º 2 do artigo 491º do CPP foi dada pela Lei n.º 27/2019 de 28 de março, diploma que estabelece a aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.
De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 491º do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 27/2019, a execução da pena de multa, segue as “disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações”.
A execução pelas indemnizações está prevista nos artigos 87º e 88º do Código de Processo Civil, cuja redação foi alterada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março.
Dispõem os enunciados preceitos legais:

Artigo 87.º
Execução pelas indemnizações
1 - Para a execução pelas indemnizações referidas no artigo 542.º e preceitos análogos é competente o tribunal em que haja corrido o processo no qual tenha sido proferida a condenação.
2 - A execução pelas indemnizações corre por apenso ao respetivo processo.
Artigo 88.º
Execução pelas indemnizações derivadas de condenação em tribunais superiores
Quando a condenação em indemnização tiver sido proferida na Relação ou no Supremo Tribunal de Justiça, a execução corre no tribunal de 1.ª instância competente da área em que o processo haja corrido.
Neste quadro legal, entendemos que a remissão prevista no n.º 2 do artigo 491º do CPP, para «as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações», reporta-se aos artigos 87º e 88º do CPC.
Donde, regulando-se nos artigos 87º e 88º do CPC, a quem cabe a competência para a execução, salvo o devido respeito pela posição em sentido contrário, entendemos que a remissão prevista no n.º 2 do artigo 491º do CPP terá de ser interpretada como tendo apenas esse âmbito de aplicação.
Consideramos, por outro lado, que a remissão operada pelo artigo 510º do CPP, para o disposto no Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais, no respeitante à execução de bens e em tudo o que não estiver previsto no CPP, refere-se ao regime que a execução deve seguir, em termos de procedimento e tramitação.
A remissão prevista no artigo 510º do CPP, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, para o Regulamento das Custas Processuais, deve entender-se como reportada ao artigo 35º deste diploma legal.
Sem pretendermos entrar na apreciação do mérito do recurso, diremos que, em nossa opinião, a previsão do artigo 35º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março[6], não abrange a execução por coima, razão pela qual, considerando a concreta questão suscitada no recurso, entendemos não ter aqui campo de aplicação.
Em suma: Consideramos que a remissão prevista no n.º 2 do artigo 491º do CPP, para as disposições do Código de Processo Civil que regem a execução por indemnizações (artigos 87º e 88º) e a remissão estabelecida no artigo 510º do CPP, para o Código de Processo Civil (artigo 762º e ss.), subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, à execução por coima, por força do disposto no artigo 89º, n.º 2, do RGCO, cinge-se ao regime da execução, quanto ao procedimento e trâmites que deve seguir.
No respeitante aos recursos, no âmbito do processo executivo, por contraordenação, perfilhamos o entendimento de que, em face redação dada ao n.º 2 do artigo 91º do RGCO, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, tendo deixado de se prever os casos de admissibilidade de recurso para a relação que eram previstos, na redação originária, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro[7] e existindo um regime específico quanto à recorribilidade das decisões, previsto no artigo 73º do RGCO, regime este que, em nossa opinião, também é aplicável à execução, com as necessárias adaptações, não devem ter aplicação as normas do CPC relativas ao regime recursivo.
Esta matéria tem dividido a doutrina.
Defendem alguns autores que com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, ao n.º 2 do artigo 91º do RGCO, foram eliminadas as limitações ao direito de recurso anteriormente previstas, pelo que, terá de se aplicar a regra geral do artigo 627º, nº 1 do Código de Processo Civil (por remissão do artigo 510º do CPP e ex vi do disposto no artigo 89º, n.º 2, do RGCO), que consagra a recorribilidade das decisões judiciais.
Entre os autores que preconizam este entendimento não é consensual se a regra da recorribilidade das decisões proferidas no processo executivo, por coima, aplicada no âmbito de processo de contraordenação, está, ou não, sujeita aos limites do artigo 73º do RGCO, defendendo uns que está, sendo esses limites aplicáveis mutatis mutandis[8] e propendo outros para a solução negativa, embora com dúvidas[9].
Em sentido diametralmente oposto, entendem outros autores que as decisões proferidas em processo executivo, por coima, são todas irrecorríveis[10].
Acompanhamos a posição doutrinária segundo a qual, perante a redação dada ao n.º 2 do artigo 91º do RGCO, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, atinente à execução da coima, deixando de estar previstos os casos de admissibilidade de recurso para relação que constavam da redação originária dessa norma, a admissibilidade da interposição de recurso passou a estar sujeita ao regime geral, com os limites previstos no artigo 73º do RGCO, aplicável com as devidas adaptações.
Sobre as decisões que admitem recurso, no âmbito do processo de contraordenação, dispõe o artigo 73º do RGCO:
«1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 249,40€;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 249,40€ ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - (...)
Ora o despacho judicial recorrido não se integra em nenhum dos casos elencados no n.º 1 do artigo 73º do RGCO, aplicável, ao processo de execução por coima, com as necessárias adaptações.
Como é sabido, no processo contraordenacional o direito ao recurso é muito restrito, vigorando o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis aquelas cuja impugnação esteja expressamente prevista[11], nos termos do disposto no artigo 73º do RGCO.
O Tribunal Constitucional, já por diversas vezes, se pronunciou no sentido de não ser inconstitucional a interpretação da norma ínsita no artigo 73º do RGCO, ao estabelecer limites ao direito de recurso[12].
Não se ignorando que a assinalada orientação do TC respeita a situações em que estava em causa o direito ao recurso por parte do arguido/condenado/executado, não existem razões para que, seja arredada quando se trate de recurso interposto por outro sujeito processual, no caso o Ministério Público, que promoveu a execução da coima (e custas).
Diremos, ainda, o seguinte:
No Código de Processo Civil, em matéria de recursos e no respeitante ao processo executivo, são aplicáveis os artigos 853º e 854º e, subsidiariamente, por remissão do artigo 852º, o regime dos recursos no processo de declaração, previsto nos artigos 629º e seguintes.
A norma do Código de Processo Civil, convocada por quem defende ser admissível a interposição de recurso da declaração de incompetência, em razão da matéria, no âmbito do processo executivo, por coima – atenta a remissão do artigo 89º, n.º 2, do RGCO, para o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa, o que, na prática, significa para os artigos 491º, n.º 2 e 510º, ambos do CPP, os quais estabelecem que a execução da multa segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações (artigo 491º, n.º 2) e que em tudo o que não esteja previsto no Código de Processo Penal, a execução de bens rege-se pelo disposto no Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais (artigo 510º) –, é o artigo 629º, n.º 2, al. a), a qual estatui que: «Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;».
Como é sabido tem sido objeto de acesa controvérsia na jurisprudência a questão da aplicabilidade da enunciada norma, no âmbito do processo penal, aos recursos ordinários, tendo por fundamento a violação do caso julgado.
A orientação jurisprudencial maioritária do STJ vem decidindo recusar a aplicabilidade, ao processo penal, do artigo 629º, al. a), do CPC, ex vi do disposto no artigo 4º do CPP, em matéria penal, acolhendo o entendimento de que o regime normativo dos recursos penais é completo e carateriza-se por uma pretensão de autonomia face ao processo civil, procedendo a um tratamento das suas dimensões essenciais, pelo que, não havendo lacuna a assinalar a esse regime, não há razão para aplicar as normas do CPC[13].
Cabe perguntar: Existirá fundamento para afastar esta orientação jurisprudencial, estando em causa a questão da declaração de incompetência, em razão da matéria, proferida no âmbito de processo de execução para cobrança coerciva de coima aplicada pela autoridade administrativa?
Salvo o devido respeito pela posição contrária, afigura-se-nos que tal questão deve merecer resposta negativa.
Na verdade, se no processo de contraordenação, para a impugnação das decisões judiciais, está previsto um regime específico em matéria de recursos (cf. artigos 73º e 74º, ambos do RGCO), sendo, subsidiariamente, aplicáveis, devidamente adaptadas e com as especialidades resultantes do RGCO, as normas do processo penal (cf. artigos 41º, n.º 1 e 74º, n.º 4, ambos do RGCO), não tendo, neste último, campo de aplicação a norma prevista 629º, al. a), do CPC, não vislumbramos que o possa ter, no processo executivo, por coima, ainda que, por via remissão estabelecida no artigo 89º, n.º 2, do RGCO, para o disposto nos artigos 491º, n.º 2 e 510º, do CPP, remetendo estes para as disposições do CPC respeitantes à execução.
Nesta conformidade, entendemos não ser recorrível o despacho judicial que declara a incompetência do tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima, instaurada pelo Ministério Público, tendo-se considerado caber essa competência à Autoridade Tributária e, em consequência, tendo sido decretada a absolvição do executado da instância, nos termos do disposto no artigo 577º, al. a), do CPC.
Uma última nota para referir o seguinte:
Em face do decidido na 1.ª instância, o Ministério Público poderá, se assim o entender, requerer a remessa do processo executivo à Administração Tributária e se tal acontecer, esta entidade poderá adotar uma de duas posições: Aceitar a competência ou declarar também a sua incompetência. Adotando a AT a primeira posição, a situação ficaria ultrapassada. Pelo contrário se a AT recusar a competência, configurar-se-ia um conflito de jurisdição (cf. artigo 109º, n.º 1, do CPC), recaindo a competência para dele conhecer, ao presidente do STJ, com a faculdade de delegação nos vice-presidentes (cf. artigo 110º, n.º 1, do CPC e 62º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário), sendo aplicável, uma vez que não está regulado no CPP e por via do disposto no artigo 4º, o regime processual previsto nos artigos 111º a 113º do CPC.
Pelo exposto, não sendo recorrível a decisão judicial em apreço, deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser rejeitado (cf. artigo 420º, n.º 1, al. b), do CPP, aplicável ex vi do artigo 74º, n.º 4, do RGCO), o que se decide.


3. DECISÃO
Nestes termos e em conformidade com o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público, por a decisão ser irrecorrível.
Sem tributação.
Notifique.

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Fátima Bernardes (Relatora)
Renato Barroso (1º Adjunto)
Gomes de Sousa (2º Adjunto - com voto de vencido, nos termos da declaração infra)

*
«Voto vencido por entender que o regime resultante do art. 73º do RGCO é claro quando restringe a sua aplicabilidade aos casos em que houve – em 1ª instância – “sentença ou despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º”, o que não é o caso dos autos.
Conforme bem se realça na Decisão Sumária lavrada nesta Relação em 5 de fevereiro de 2024, o que aqui “se executa é, pois, uma decisão administrativa, não impugnada judicialmente, proferida no âmbito do referido processo contraordenacional“.
Em breve, o art. 73º do RGCO não é aplicável ao caso dos autos devido a ausência de “recurso” de impugnação judicial».

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Gomes de Sousa

__________________________________________________
[1] Cf., por todos, Ac. desta RE de 19/11/2015, proc. 892/07.2TAFAR.E1, in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, cf. Decisão Sumária de 29/11/2023, proc. n.º 82/23.1T9OLH.E1 – Desemb. Moreira das Neves –, in www.dgsi.pt. Decisão Sumária de 06/02/2024, proc. n.º 434/20.0T9OLH.E1 – Desemb. Ana Bacelar –, ainda não publicado no site da dgsi;
[3] Neste sentido, cf. Ac. de 07/11/2023, proc. n.º 107/23.6T9OLH.E1 – Relator Desemb. Jorge Antunes; Ac. de 24/10/2023, proc. n.º 109/23.2T9OLH.E1 – Relator Desemb. João Carrola; Ac. de 07/11/2023, proc. n.º 319/23.2T9OLH.E1 – Relator Desemb. Carlos de Campos Lobo, com voto de vencido da Desemb. Ana Bacelar – e Decisão Sumária de 05/02/2024, proc. n.º 154/23.8T9OLH.E1 – Desembargadora Maria Clara Figueiredo –, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] No âmbito do processo n.º 516/23.0T9OLH.E1 – que tem voto de vencido da Desemb. Maria Perquilhas – disponível in www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, cf. António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in “Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas”, 3ª Edição, Almedina, pág. 288.
[6] Sob a epígrafe “Execução” dispõe o enunciado artigo 35º:
«1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.
2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.
3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.
4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil.»
[7] Dispunha o artigo 91º:
«1 - O tribunal perante o qual se promove a execução será competente para decidir sobre todos os incidentes e questões suscitados na execução, nomeadamente:
a) A admissibilidade da execução;
b) As decisões tomadas pelas autoridades administrativas em matéria de facilidades de pagamento;
c) A suspensão da execução segundo o artigo 90.º
2 - Admite-se, todavia, recurso para a relação nos seguintes casos:
a) Admissibilidade de execução de coima aplicada por via judicial;
b) Nos casos referidos na alínea b) do número anterior, quando as decisões forem da competência do tribunal da comarca.
(...).»
[8] Neste sentido, cf. António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 10ª edição, 2014, Almedina, pág. 241, Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 337 e António de Oliveira Mendes e José Santos Cabral, in ob. cit., pág. 291.
[9] Assim, Manuel Ferreira Antunes, in Contra-Ordenações e Coimas – Anotado e Comentado, 2005, Dislivro, pág.571.
[10] Neste sentido, vide Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 6ª edição, Vislis, pág. 644.
[11] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2011, Universidade Católica Editora, pág. 298.
[12] Cf., entre outros, Acórdãos do TC n.º 508/2016, de 21/09/2016, nº 355/2012, de 05/07/2012 e n.º 659/2006, de 28/11/2006, acessíveis in https://www.tribunalconstitucional.pt.
[13] Neste sentido, cf., por todos, Ac. do STJ de 12/01/2022 – com data de publicação de 02/02/2022 – proc. n.º 3519/16.8T8LLE.E1.S1 e de 18/06/2020, proc. n.º 28/06.7TELSB.L2. S1, in www.dgsi.pt.