Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
100/19.3GBMMN.E1
Relator: LAURA GOULAR MAURÍCIO
Descritores: ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE
Data do Acordão: 02/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No estado de necessidade desculpante, previsto no art. 35.º, § 1.º do Código Penal, a culpa é excluída porque o agente pratica um facto ilícito, facto que, todavia, é considerado indispensável para afastar um perigo atual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro e não for razoável exigir-lhe, no caso concreto, outro comportamento.
O afastamento da punibilidade fica, assim, a dever-se a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que no caso não seja razoável exigir dele outro comportamento.
O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, ao princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de (…), no âmbito dos autos com o NUIPC nº 100/19.3GBMMN foi o arguido GUZ submetido a julgamento em Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular.
Após realização de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por sentença de 19 de maio de 2021, decidiu julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:
- Condenar o arguido GUZ pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art.348.º, n.º1, a) do Código Penal e art.153.º, n.º1, a) e 3 do Código da Estrada, na pena de 4 meses de prisão.
- Suspender a execução da pena de 4 meses de prisão, pelo período de um ano.
- Condenar o arguido na proibição de conduzir veículos a motor por um período de 10 meses, nos termos do disposto no art.69.º, n.º1 do Código Penal, devendo entregar a carta de condução na secretaria do tribunal ou qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito da decisão, sob pena de cometer um crime de desobediência, p. e p. pelo art.348.º, n.º1, b) do Código Penal.
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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação
A)- Por sentença, datada de 19 de maio de 2021, a Meretíssima Juíza do Juízo (…), condenou o recorrente na pena de 4 meses de prisão, com suspensão da pena por um período de um ano.
B)- Bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 10 meses.
C)- Por alegadamente ter cometido um crime de desobediência, p. e p. pelo Artº. 348º, nº.1, a) do Código Penal e Artº. 153º, nº.1, a) e nº.3, do Código da Estrada.
D)- Não pode o recorrente conformar-se com esta sentença, pois considera existir insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, numa violação da al. A) do nº. 2 do artº. 410º do CPP.
E)- Bem como errou a sentença decorrida, ao não aplicar in dúbio pro reo.
F)- A sentença recorrida baseia-se só nos depoimentos dos dois guardas da GNR, que se revelaram contraditórios entre si e cheios de lacunas, não considerando os relatórios médicos apresentados pelo Recorrente.
G)- O Recorrente obedeceu sempre às ordens dos militares da GNR, para efectuar todos os testes de despistagem que eles entenderam fazer, sem qualquer problema, Quando foi informado que teria de submeter-se a teste através de análise sanguínea, o Arguido não recusou tal teste, disse simplesmente que não o podia fazer por indicação médica, facto que os guardas disseram não se lembrarem.
H)- Mas a verdade não veste farda! Porque no dia 03 de abril de 2019, o Arguido tinha sido sujeito a uma criocirurgia na face direita, como era perfeitamente visível na altura e ainda é. E nas recomendações pós-operatórias, consta” … Também foi alertado para o dever de informar médico em relação a procedimentos e tratamentos temporariamente desaconselhados como anti-coagulantes, dádivas de sangue, fisioterapia, hidroterapia, acupunctura e ainda viagens de avião…”, conforme o atestado emitido pelo Sr. Dr. DCD.
I)- Ao não considera e a omitir este documento, junto aos autos, o Tribunal omitiu provas relevantes para uma apreciação isenta e não preconceituosa dos factos, devendo ter levantado dúvidas razoáveis sobre a verdade dos factos, tal como foi apresentada pela acusação.
J)- A falência da apreciação integral de todo o probatório, nos termos que se deixaram alegados, a verificação de um non liquet, de um facto pouco claro que suscite dúvidas deverá, o mesmo, ser valorado probatoriamente a favor do arguido.
K)- O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias decisões plausíveis, como sejam a condenação ou a absolvição, bem como a existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
L)- O princípio in dUbio pro reo estabelece que na decisão de facto incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
M)- Considerando a globalidade das provas apresentadas, e sendo certo que, no seu depoimento, os guardas da GNR declararam ter o Recorrente sempre obedecido às suas indicações, só recusando o teste sanguíneo.
N)- Bem como o atestado médico, não contestado, em como o Recorrente não podia efectuar análises ao sangue, deveria o Tribunal recorrido ter apreciado a actuação do recorrente ao abrigo do Artº. 35º do Código Penal.
O)- Ou, no mínimo, em caso de dúvida aplicar o in dubio pro reo.”
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso foi interposto pelo arguido GUZ, no que concerne à douta decisão judicial que, em sede de julgamento o condenou pela prática, em autoria material, do crime de desobediência, p. e p. pelo Artº. 348º, nº.1, a)-, do Código Penal e Artº. 153º, nº.1, a)- e nº.3, do Código da Estrada, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano e na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor, pelo período de dez meses, pugnando pela sua absolvição.
2. Em virtude de o Tribunal não ter apreciado todos os meios de prova que foram indicados.
3. O arguido insurgiu-se contra a referida decisão, alegando, em suma, que o Tribunal a quo não levou em consideração todos os meios de prova que lhe foram apresentados.
4. Sendo que, se o tivesse feito, facilmente teria decidido que a conduta do arguido ocorreu no âmbito do previsto no Artº. 35º do Código Penal e, se tal não se entendesse, teria sempre de ser aplicado o princípio do in dubio pro reo.
5. Não lhe assiste razão, já que, devido ao facto de o arguido não ter prestado declarações, toda a matéria de facto que veio alegar em sede de recurso, designadamente, o facto de não ter desobedecido às ordens dos elementos da GNR, mas sim, não o tendo feito porque tinha sido sujeito a uma intervenção cirúrgica, não foi possível ponderar, já que toda a prova se baseou nas declarações das testemunhas, os elementos da GNR que se deslocaram ao local, porque o mesmo não prestou quaisquer declarações em sede de audiência de discussão e julgamento.
6. Testemunhas essas que, no essencial, e para o que aqui releva, confirmaram os factos vertidos na acusação, tendo, dessa forma, formado a convicção no Tribunal de que os mesmos ocorreram, efectivamente, da forma que ali vinha descrita, tendo-os, por isso, dado como provados, o que levou à condenação do arguido.
7. Como tal, a conduta do arguido não se pode considerar como estando abrangida pela ratio do estado de necessidade desculpante, previsto no Artº. 35º do Código Penal.
8. E, muito menos, se suscitaram dúvidas ao Tribunal que obrigassem à aplicação do princípio do in dubio pro reo.
9. Assim sendo, deve o recurso deve ser rejeitado e manter-se a douta sentença nos seus exactos termos.
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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido do não provimento do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não foi apresentada resposta ao Parecer.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
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Cumpre decidir
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice o recorrente suscita as seguintes questões:
- Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão
- Violação do princípio in dúbio pro reo
- Estado de necessidade desculpante
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É do seguinte teor a sentença recorrida, no que concerne a factos provados, factos não provados e motivação (transcrição):
“2 – FUNDAMENTAÇÃO
2 – 1 - FACTOS PROVADOS:
1.Em 07 de Abril de 2019, o arguido foi abordado pelos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR) após imobilizar o veículo, atravessado na berma, encontrando-se aquele sentado no lugar do condutor, com o cinto de segurança colocado e com o veículo a trabalhar.
2. Nesse momento, COV, militar da GNR, informou o arguido que teria de se submeter a teste de despistagem de teor de álcool no sangue através de ar expirado.
3. Para o efeito, o arguido foi conduzido ao posto territorial da GNR de Montemor-o-Novo.
4. Já no interior do referido posto territorial, o arguido realizou pelo menos três exames de expiração de ar - teste quantitativo - cujo resultado deu como "sopro insuficiente".
5. Após o sopro insuficiente, o arguido foi esclarecido que, não sendo possível a realização de teste quantitativo, teria de submeter-se a teste através de análise sanguínea, o que este de imediato recusou afirmando que não realizava mais testes.
6. Não obstante ter sido informado que a recusa o faria incorrer na prática de crime, o arguido manteve a sua recusa em ser transportado a estabelecimento de saúde para a realização do teste de álcool através de análise sanguínea.
7. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente bem sabendo que ao não efetuar o teste de alcoolemia cuja realização lhe fora ordenada por militar da GNR, no exercício das suas funções, incumpria uma ordem legítima, que lhe fora regularmente comunicada por agente de autoridade o qual lhe fez a correspondente cominação legal.
8. O arguido atuou com o propósito concretizado de não ser sujeito a teste de alcoolemia.
9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
10. No dia 03 de Abril de 2019, o arguido tinha sido sujeito a uma criocirurgia na face direita.
11. O arguido é casado e reside com a sua mulher.
12. Encontra-se reformado e aufere de pensão de reforma cerca de 450,00 € e a esposa recebe cerca de 300.00€.
13.O arguido exercia atividade profissional na área da agricultura por conta própria.
14. Reside casa própria.
15. Tem como habilitações académicas o 3.º ano de escolaridade.
16. O arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência por factos de 2006, e foi condenado pela prática de sete crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, por factos de 2006, 2008, 2015 e 2018, respectivamente, tendo no âmbito da última pena aplicada sido aplicada uma pena de 7 meses de prisão cumprida em regime de permanência na habitação, por sentença 04.09.2018.
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Não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a decisão da causa.
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2-2Motivação
No que concerne à factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência e julgamento, bem como dos documentos juntos aos autos.
Todas estas provas foram apreciadas no seu conjunto, à luz das regras da experiência comum, da normalidade e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (art.127.º do Código de Processo Penal).
Em sede de audiência de julgamento o arguido declarou não querer prestar declarações quanto aos factos que lhe são imputados.
Assim, foram inquiridas as testemunhas COV, GAT, militares da GNR.
As testemunhas explicaram que foram informados por chamada telefónica que um condutor exercia condução de forma perigosa para os outros utentes da via.
Quando chegaram ao local verificaram vários veículos parados, tendo-lhe sido indicado o veículo do arguido como o que estaria a efetuar as manobras perigosas.
Declararam também que o arguido era o único ocupante do veÍculo, este encontrava-se com o motor ligado e o arguido estava sentado no local do condutor com o cinto colocado, perguntaram-lhe se estava bem de saúde, tendo o mesmo dito que disse, pediram-lhe para desligar a viatura.
Explicaram também que o arguido foi conduzido ao posto para realizar o teste de álcool no sangue e que nesse local lhe foi explicado que tinha que fazer o teste e a forma como devia actual para o teste ser efectuado, contudo o arguido colocava a boquilha na boca mas não soprava e que a meio do último teste (3.º) o arguido tirou a boquilha tendo como resultado “sopro insuficiente”.
A primeira testemunha referiu que questionou o arguido se tinha algum problema de saúde que comprometesse a realização do teste, tendo o mesmo respondido que não padecia de problema.
Explicaram-lhe que tinha que fazer o teste se não cometia um crime de desobediência, e depois da 3.ª vez do teste por ar expirado, as testemunhas explicaram ao arguido se não fizesse mais testes tinha que fazer o teste por analise sanguínea, tendo explicado ao arguido, mais uma vez, que incorria em desobediência se não fizesse não o teste ao sangue, tendo o mesmo dito que não fazia mais qualquer teste.
Resultou também do depoimento das testemunhas que a Testemunha GAT conduziu o veículo do arguido ao posto da GNR, com autorização do mesmo.
As testemunhas não se recordavam se o arguido tinha algum penso no rosto, e a segunda testemunha não se recordava quais as características interiores do veiculo do arguido, contudo tais factos não têm relevância para a decisão da causa.
Ambas as testemunhas declararam de forma coerente e convicta que em momento algum o arguido apresentou qualquer razão, nomeadamente de saúde, para não efetuar devidamente o teste por ar expirado, bem como o teste através de análises ao sangue, tendo-se recusado a efectuar correctamente o teste por ar expirado e a efectuar analises ao sangue.
Os factos atrás descritos foram relatados pelas testemunhas militares da GNR, no exercício das suas funções, os quais se mostraram no essencial e no que aos factos que constituem as condutas praticadas pelo arguido respeita, concordantes entre si, tendo os mesmos prestados depoimentos claros, coerentes e pormenorizados, conformes às regras da experiência e da normalidade das coisas, não tendo os mesmos demonstrado qualquer animosidade em relação ao arguido ou qualquer interesse no desfecho da causa.
Quanto aos factos respeitantes ao elemento subjectivo, os mesmos decorrem da conjugação da factualidade apurada com as regras da normalidade e da experiência comum.
Ao actuar como actuou, inexistindo qualquer elemento que vicie a sua vontade, o arguido não pode deixar de querer actuar como descrito, de ter consciência de que a sua conduta é proibida e de conformar-se com as consequências legais da mesma.
Os factos respeitantes à situação pessoal, familiar, profissional e social do arguido resultaram das declarações do mesmo, as quais mereceram credibilidade.
Os antecedentes criminais resultam do CRC junto aos autos.”
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Apreciando
- Da invocada insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
A insuficiência a que se refere a al. a) do art. 410º, nº 2, do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Assim, tal vício não tem a ver nem com a insuficiência da prova produzida, pois que, se não foi feita prova bastante de um facto e ele é dado como provado, haverá, sim, erro na apreciação da prova, nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão proferida, em que, também, há erro, já não na decisão sobre a matéria de facto mas, sim, na qualificação jurídica desta (cfr., neste sentido, Ac. STJ, de 7/7/99, proferido no Processo nº99P348, www.dgsi.pt).
Quando os recorrentes alegam este vício, partindo necessariamente da análise do texto da decisão, devem especificar os factos que em seu entender eram necessários para a decisão justa que devia ser proferida, que o tribunal a quo devia ter indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo. Assim os recorrentes devem procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos, os quais devem identificar, necessários (fundamentando esta necessidade invocando normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles (fundamentando).
Cabe aqui desde já ter presente que a insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
Esta segunda opção tem a ver com a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º n.º 3 do Código de Processo Penal, com reapreciação da prova e não com a verificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que terão que ser visíveis no texto da decisão, sem recurso a quaisquer provas documentadas.
Também nada tem a ver com o vício da insuficiência o caso em que o recorrente enumera uma série de factos que foram dados como provados e que na sua ótica deviam ser dados como não provados.
Em face do resumidamente exposto, quando os recorrentes alegam este vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada não podem almejar um outro julgamento de um outro processo, não pode subverter-se o princípio da vinculação temática do Tribunal (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/7/2013, acessível in www.dgsi.pt).
Ora, analisando a sentença recorrida, da mesma não decorre omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, não se vislumbrando, pois, na mesma sentença, insuficiência da matéria de facto.
Com efeito, os meios de prova detalhadamente expressos na motivação, devidamente conjugados e criticamente avaliados, são suporte bastante dos factos assentes como provados.
Neste aspeto versado no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de o Tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que lhe era desfavorável sobre a matéria de facto, pois que, o que verdadeiramente ilustra toda a impugnação do recorrente nesta vertente é apenas o seu inconformismo pela sua condenação, aí fazendo radicar o aludido vício que aponta à decisão recorrida.
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que o recorrente lhe assaca, porquanto os factos considerados assentes sustentam cabalmente a decisão.
Destarte, é forçoso concluir, face à argumentação, que o recorrente invoca a existência deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto da sentença recorrida, a omissão de pronúncia sobre factos relevantes para a decisão, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
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- Da invocada violação do princípio do in dubio pro reo.
Alega o recorrente nas conclusões E), J), L), M) e O):
“E)- Bem como errou a sentença decorrida, ao não aplicar in dúbio pro reo.
(…)
J)- A falência da apreciação integral de todo o probatório, nos termos que se deixaram alegados, a verificação de um non liquet, de um facto pouco claro que suscite dúvidas deverá, o mesmo, ser valorado probatoriamente a favor do arguido.
L)- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de facto incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
M)- Considerando a globalidade das provas apresentadas, e sendo certo que, no seu depoimento, os guardas da GNR declararam ter o Recorrente sempre obedecido às suas indicações, só recusando o teste sanguíneo.
(…)
O)- Ou, no mínimo, em caso de dúvida aplicar o in dubio pro reo.”
Como corolário do princípio da presunção de inocência que decorre do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, apresenta-se o princípio do in dubio pro reo que obriga a que, instalando-se e permanecendo a dúvida acerca de factos referentes ao objecto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática), essa dúvida deve ser sempre desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à absolvição (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, pags 50 e 51).
Salienta Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) que “Um non liquet na questão da prova – não permitindo ao juiz – que omita decisão … - tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pró reo”.
Tal princípio incute uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, à forma do cometimento dos mesmos, bem como às finalidades pretendidas com o cometimento dos mesmos, não tendo cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal.
Contudo, no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos imputados ao ora recorrente, indicando exaustivamente as razões que fundaram a convicção do tribunal para o assentamento, pela positiva, da materialidade que deu como provada.
Perante esta decisão, tomada com toda a segurança, não tem sentido invocar a violação do princípio in dubio pro reo, que só opera, como já se disse, quando, produzida toda a prova, o tribunal mantiver dúvidas sobre a prática, pelo arguido, de factos que lhe sejam desfavoráveis. Esta dúvida impõe ao juiz que decida de modo a favorecer o arguido.
Não havendo dúvida sobre a prática dos tais factos desfavoráveis ao arguido/recorrente não há lugar à aplicação de um tal princípio.
Daí que, também neste particular, improcede o recurso.
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- Do invocado estado de necessidade desculpante
Invoca o recorrente que a sua conduta seria subsumível a uma situação de estado de necessidade desculpante.
O estado de necessidade desculpante vem previsto no art. 35º, nº 1, do Código Penal, sendo a culpa excluída porque o agente pratica um facto ilícito, mas que é considerado indispensável (adequado) para afastar um perigo atual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro e não for razoável exigir-lhe, no caso concreto, outro comportamento.
Pressupostos do estado de necessidade desculpante são, então, a verificação de uma situação de perigo atual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro.
Assim, para que a culpa seja excluída têm de se verificar os seguintes e cumulativos requisitos:
- atualidade do perigo, isto é, que o mesmo seja presente e efetivo; sendo certo que a atualidade do perigo se afere em termos idênticos à da “atualidade” da agressão na legítima defesa, embora se admitam correções no sentido do seu alargamento, podendo o perigo não ser, sequer, iminente, embora, neste caso, se exija que o protelamento da ação salvadora agravaria (potenciaria) seriamente esse perigo.
- indispensabilidade e adequação do ato a removê-lo;
- desrazoabilidade da exigência ao agente de um comportamento diferente, naquelas concretas circunstâncias.
A exclusão da culpa decorre de, nas circunstâncias concretas do facto, não ser razoável exigir do agente um comportamento diferente.
O afastamento da punibilidade fica, assim, a dever-se a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que no caso não seja razoável exigir dele outro comportamento; apesar do ilicito-típico praticado demonstra-se a persistência no agente de uma atitude de fidelidade do direito que aponta a fundamentação do facto numa atitude pessoal juridicamente desvaliosa ou em qualidades juridicamente desvaliosas da sua personalidade.
O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, ao princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma.
O facto ilícito praticado tem de ser “adequado”, ou seja, idóneo a afastar o perigo que não seria remível por outro modo.
Para além destes elementos objetivos relacionados com o perigo, o bem jurídico ameaçado e a adequação do facto é necessário que o juiz verifique que não era razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
Torna-se ainda indispensável que o agente pratique a ação para determinar com ela a preservação do bem jurídico ameaçado, isto é, o animus salvandi, o que bem se compreende pois está em causa a prática de um facto ilícito e, por conseguinte, juridicamente desaprovado.
Ora, no caso, é manifesto que os factos provados não permitem ter por verificada uma situação de estado de necessidade desculpante nos termos previstos no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal.
E, assim, sendo certo que a situação apreendida nos autos não é subsumível ao disposto no art. 35º do Código Penal, mostra-se correta e adequada a subsunção jurídica dos factos levada a cabo no Tribunal a quo.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a decisão recorrida.
- Condenar o recorrente em custas, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça .
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 8 de fevereiro de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares