Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
15/22.8JDLSB.E1
Relator: ANA BACELAR
Descritores: RELATÓRIO SOCIAL
MERA INFORMAÇÃO
TRANSCRIÇÃO
ESCRUTÍNIO JUDICIAL
Data do Acordão: 06/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Tendo o acórdão proferido nos autos sido condenatório, o objeto do processo inclui as condições familiares, sociais e económicas do Arguido.
II – Tornou-se procedimento habitual, na 1.ª Instância, a reprodução acrítica dos relatórios sociais. Procedimento que aligeira o trabalho de quem o adota, considerando as facilidades que nos propiciam os meios informáticos que utilizamos, tal como se torna simples a referência, em sede de fundamentação da matéria de facto, à existência do relatório social “copiado”. É procedimento indesejável. Porque a infeliz menção a que “do relatório social do Arguido consta, além do mais, que”, apenas demonstra, como não podem desconhecer os Senhores Juízes que optam por semelhante formulação, a existência de relatório social no processo, com o conteúdo transcrito. Ou seja, não estão provadas as condições familiares, sociais e económicas que o mesmo visa esclarecer.
III – A mera transcrição do relatório social é, pois, inaceitável. E conduz à inevitável conclusão de que não estão provadas as condições familiares sociais e económicas do Arguido e que o acórdão enferma do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, prevenido na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 15/22.8JDLSB do Juízo ... [Juiz ...] da Comarca de ..., o Ministério Público acusou
(i) AA, casado, ... na pré-reforma, nascido a .../.../1960, em ..., filho de BB e de CC, residente na Rua ..., em ..., atualmente detido, em prisão preventiva, no Estabelecimento Prisional ...,
pela prática, como autor material, em concurso real, efetivo e na forma consumada de
- 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
- 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), e pelos artigos 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal;
- 6 (seis) crimes de abuso sexual, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea c), com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 2, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), e pelos artigos 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal;
- 1 (um) crime de coação agravada, previsto e punível pelos artigos 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
- 1 (um) crime de violação na forma tentada, previsto e punível pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 6, e pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, todos do Código Penal;
- 3 (três) crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e puníveis pelos artigos 143.º, nº 1, 145.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, 132.º, n.º 1 e 2, alínea c), todos do Código Penal.

(ii) DD, solteira, ..., nascida a .../.../1986, em ..., filha de EE e de FF, residente na Rua ..., em ...,
pela prática, por omissão, de
- 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
- 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), e pelos artigos 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal;
- 6 (seis) crimes de abuso sexual, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea c), com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 2, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), e pelos artigos 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal;
- 1 (um) crime de coação agravada, previsto e punível pelos artigos 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
- 1 (um) crime de violação na forma tentada, previsto e punível pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 6, e pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, todos do Código Penal;
- 3 (três) crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e puníveis pelos artigos 143.º, nº 1, 145.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, 132.º, n.º 1 e 2, alínea c), todos do Código Penal.

«De acordo com a acusação, incorre ainda o arguido na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidade parentais, em conformidade com o disposto nos artigos 69.º B e 69.º-C, números 2, do Código Penal.
E incorre a arguida na pena acessória de proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidade parentais, em conformidade com o disposto no artigo 69.º-C, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Penal.» - transcrição do acórdão.

A Fundação ..., devidamente identificada nos autos, em representação da menor GG, pediu a condenação dos Arguidos no pagamento dos tratamentos que venham a ser considerados necessários, designadamente do foro psicológico e no pagamento de quantia não inferior a € 35 000,00 (trinta e cinco mil euros), a título de ressarcimento de danos de natureza patrimonial, acrescida de juros, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

O Arguido apresentou contestação escrita onde ofereceu o merecimento dos autos.
A Arguida não apresentou contestação escrita.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Coletivo e após comunicação de alteração não substancial de factos e de alteração da qualificação jurídica, por acórdão proferido e depositado em .../.../2023, foi, entre o mais, decidido:
«(…) julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação e, assim:
4.1. Da acusação:
4.1.1. ABSOLVEM a arguida DD da prática de todos os crimes de que vinha acusada.
4.1.2. CONDENAM o arguido AA como autor material dos seguintes crimes e nas seguintes penas parcelares:
- 6 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 1, com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, numa pena de 3 anos de prisão e cinco penas de 2 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 7 anos e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 anos, pela prática de cada um dos seis crimes.
- 3 crimes de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 1, com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), 22.º, 23.º e 73.º, do CP, na pena de 1 ano de prisão pela prática de cada um desses 3 crimes e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 7 anos e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 anos, pela prática de cada um dos três crimes.
- 3 crimes de abuso sexual, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 3, alínea c), com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, numa pena de 9 meses de prisão e duas penas de 1 ano e 3 meses de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 7 anos e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 anos, pela prática de cada um dos três crimes.
- 1 crime de abuso sexual de crianças na forma tentada, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 2, com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), 22.º, 23.º e 73.º, do CP, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 7 anos e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 anos.
- 1 crime de violação na forma tentada, p. e p. nos termos dos art.º 164.º, n.º 1, alínea a), com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), n.º 7, 22.º, 23.º, 73.º, do CP, na pena de 3 anos de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 7 anos e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 anos.
4.1.3. ABSOLVEM o arguido AA da prática de 1 crime de coação agravada, p.p. pelo art.º 154.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea b), do CP, e, convolando a acusação nos termos sobreditos, CONDENAM o arguido AA como autor material de 1 crime de coação, p.p. pelo art.º 154.º, n.º 1, do CP, na pena de 7 meses de prisão.
4.1.4. ABSOLVEM o arguido AA da prática de 3 crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos termos dos art.º 143.º, nº 1, 145.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, 132.º, n.º 1 e 2, alínea c), do CP, e, convolando a acusação nos termos sobreditos, CONDENAM o arguido AA como autor material de 3 crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos termos do art.º 143.º, nº 1, do CP, numa pena de 1 ano de prisão e duas penas de 7 meses de prisão.
4.1.5. ABSOLVEM o arguido AA da prática de 3 (de entre o total de 6) crimes de abuso sexual, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 3, alínea c), com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, de que vinha acusado.
4.1.6. Em cúmulo jurídico, condenam o arguido AA na pena única de 13 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 13 anos e 6 meses e na pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 13 anos e 6 meses.
4.1.7. Declaram perdidos a favor do Estado os dildos apreendidos, nos termos do art.º 109º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
4.1.8. Determinam a restituição aos respetivos proprietários, nos termos do art.º 186º do CPP, dos apreendidos telemóveis, computadores e cartões de memória, das peças de roupa, pessoal ou de casa e das fotos da menor, devendo os proprietários (no caso da menor a representante da instituição onde se contra acolhida), após trânsito em julgado deste acórdão, ser notificados para procederem ao seu levantamento, no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizerem, se consideram os respetivos objetos perdidos a favor do Estado.
4.1.9. Determinam a destruição dos demais objetos apreendidos, atenta a manifesta falta de valor – art.º 185º, nº 1, do CPP.
4.1.10. Determinam que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeita à medida de coação em que se encontra – prisão preventiva.
4.1.11. Consignam que o termo de identidade e residência do arguido só se extinguirá com a extinção da pena – art.º 214º, nº 1, al. e), do CPP.
4.1.12. Determinam a imediata extinção da medida de coação aplicada à arguida nestes autos – art.º 214.º, n.º 1, al. d) do CPP.
4.1.13. Condena-se ainda o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 4 Unidades de Conta (arts. 374.º n.º 4, e 513.º n.º 1, 514.º, do CPP, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais).
4.2. Do pedido de indemnização civil:
Julgam parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido de indemnização deduzido por Fundação ..., em representação da menor GG, contra os arguidos e, assim:
4.2.1. Absolvem a arguida DD do pedido;
4.2.2. Condenam o arguido AA a pagar à demandante a quantia de € 35.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.
4.2.3. Absolvem o arguido do que, no mais, foi peticionado contra si.
4.2.4. Custas a cargo do arguido, fixando-se a sua responsabilidade em ½ das devidas, ponderando, pese embora o seu decaimento, a isenção de custas de que goza a Fundação ..., que tem o estatuto de IPSS (art.º 4º, nº 1, al. f), do RCP.»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«I-O Recorrente foi condenado pela prática de 6 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 1, com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, numa pena de 3 anos de prisão e cinco penas de 2 anos e 6 meses de prisão ; 3 crimes de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 1, com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), 22.º, 23.º e 73.º, do CP, na pena de 1 ano de prisão pela prática de cada um desses 3 crimes; 3 crimes de abuso sexual, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 3, alínea c), com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, numa pena de 9 meses de prisão e duas penas de 1 ano e 3 meses de prisão; 1 crime de abuso sexual de crianças na forma tentada, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 2, com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), 22.º, 23.º e 73.º, do CP, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão; 1 crime de violação na forma tentada, p. e p. nos termos dos art.º 164.º, n.º 1, alínea a), com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), n.º 7, 22.º, 23.º, 73.º, do CP, na pena de 3 anos de prisão.
II-E todos na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 7 anos e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 anos.
III-Foi ainda o recorrente absolvido da prática de 1 crime de coação agravada, p.p. pelo art.º 154.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea b), do CP, e, convolando a acusação nos termos sobreditos, e condenado como autor material de 1 crime de coação, p.p. pelo art.º 154.º, n.º 1, do CP, na pena de 7 meses de prisão; da prática de 3 crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos termos dos art.º 143.º, nº 1, 145.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, 132.º, n.º 1 e 2, alínea c), do CP, e, convolando a acusação nos termos sobreditos, e condenado como autor material de 3 crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos termos do art.º 143.º, nº 1, do CP, numa pena de 1 ano de prisão e duas penas de 7 meses de prisão e absolvido da prática de 3 (de entre o total de 6) crimes de abuso sexual, p. e p. nos termos do art.º 171.º, n.º 3, alínea c), com a agravação do art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, de que vinha acusado.
IV-Em cúmulo jurídico, foi o recorrente condenado na pena única de 13 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 13 anos e 6 meses e na pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 13 anos e 6 meses e condenado a pagar à demandante a quantia de € 35.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente data e até efetivo e integral pagamento. Cfr. Acórdão – 4. DECISÃO (páginas 71 a 75).
V-O Tribunal recorrido fundou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados na análise crítica e conjugada das declarações para memória futura prestadas pela menor, nos depoimentos das testemunhas, com a prova documental, com o que foi apreendido e com o resultado das perícias, ficando o Tribunal “a quo” convencido da ocorrência dos factos nos moldes dados como provados.
VI-Entendeu o Tribunal “a quo” que as declarações para memória futura da menor GG, são claras, escorreitas e precisas, não levantando dúvidas e que a menor, apesar da sua idade e grau de imaturidade, descreveu os factos com desassombro, vivacidade e inteligência, tendo consciência da gravidade da acusação e apresentando uma narrativa coerente e verosímil nos seus detalhes. Cfr. Acórdão –2.3- Motivação de Facto (página 23 a 35).
VII-Considerou o tribunal “a quo” provados os factos insertos nos pontos 24 e 25 ”Em data não concretamente apurada mas após o verão de 20..., o arguido AA agarrou a menor GG e beijou-a no pescoço, ao mesmo que o seu pénis ficava ereto, o que a menor sentia, uma vez que o arguido encostava o seu corpo ao da menor.” e no ponto 33 “Em data não apurada, quando a menor GG ia à casa de banho, o arguido AA abriu a porta e ficou a olhar para aquela, através do espelho, o mesmo sucedendo quando a menor estava a tomar duche, o que sucedeu um número indeterminado de vezes.” Cfr. Acórdão (página 8 e 9)
VIII- Entendeu o Tribunal “a quo” que tais factos integram a prática pelo arguido de 2 crimes (dos 6 crimes em que foi condenado) de abuso sexual de criança p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b) do mesmo diploma.
IX- Entendemos, com o devido respeito que o Tribunal “a quo” ao classificar tais atos, como atos sexuais de relevo, violou a lei substantiva, incorrendo em erro, quer na interpretação quer na determinação da norma aplicável.
X-A Lei penal distingue Atos sexuais menos graves – como os “atos de caracter exibicionista” e os “atos de natureza sexual”; Atos sexuais graves ou de relevo- que integram o conceito de “ato sexual de relevo”; Atos sexuais mais graves- “especiais atos sexuais de relevo”.
XI-Para que possa qualificar um ato sexual como ato sexual de relevo, tem de, por um lado, ter uma relação com o sexo (relação objetiva) e em que, além disso haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais, e por outro lado, que constituir um entrave importante à determinação sexual da vítima.
XII-O artigo 171.º do C.P., visa essencialmente, a proteção dos menores relativamente a praticas sexuais. Sendo que o bem jurídico tutelado pela norma é a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão. Tal normativo, no seu n.º 1, prevê atos sexuais graves ou de relevo, no n.º 2 atos sexuais muito graves ou muitíssimo graves e no n.º 3 atos sexuais menos graves, pelo que há que entender a diferença entre ato sexual de relevo, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 171.º do C.P. e importunação sexual, p. e p. pelo n.º 3 alínea a) do mencionado diploma.
XIII-Em qualquer dos casos, dever-se-á analisar o modo e o contexto dos atos praticados pelo arguido, a sua intenção e intensidade, para que se possa afastar a perigosidade quer quanto à capacidade de concretização de intuitos e desígnios sexuais atentatórios da autodeterminação sexual.
IXV-Ora, considerando os factos provados nos pontos 24 e 25 e 33, verifica-se, que não estão em causa atos sexuais de relevo, tipificados pelo n.º 1 do artigo 171.º do C.P., ou seja, tais atitudes por parte do arguido, não representam “um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima”, por isso não havendo abuso que contenda com o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor, em termos de sexualidade.
XV- Assim, a matéria de facto provada em que se estribou o ponto 24 e 25, de “agarrou a menor GG e beijou-a no pescoço, ao mesmo que o seu pénis ficava ereto, o que a menor sentia, uma vez que o arguido encostava o seu corpo ao da menor”, não se afigura com relevo, muito menos dela ressalta ter havido qualquer imposição, para dar conteúdo ao elemento típico do crime.
XVI- Quanto ao facto provado no ponto 33, sempre se dirá, que abrir a porta e ficar a olhar para a menor GG, através do espelho, o mesmo sucedendo quando a menor estava a tomar duche, não é considerado ato sexual e muito menos de relevo.
XVII- Resulta das declarações para memória futura da menor de .../.../2022, registadas pelo sistema – CD- ... – (minuto ...:... ao ...:...) e transcrições juntas aos autos em .../.../2022, (factos provados 24 e 25) “ (…) tomar banho e ele entrava na casa de banho só que eu como começava a notar que ele vinha lá para me ver a …na parte do chu… na parte das portas como aquilo dá para ver eu começava a pôr a toalha assim para
não ver, só dava mesmo para ver até aqui e ele quando (impercetível) deixou-se estar quieto, depois eu ia à casa de banho fazer as necessidades ele abria a porta e ficava a olhar para mim na parte do chuveiro, eu agarrava na porta e fechava a porta, ficava só na parte de trás da porta”.
XVIII-Tais atos não podem, segundo as regras da experiência comum, ser classificados como atos sexuais de relevo e não permitiam a interpretação que foi feita pelo Tribunal “a quo”, porquanto os factos provados nos pontos 24 e 25 e 33 não se traduziram em atos sexuais de relevo.
XIX- Pelo que não pode ser mantida a condenação do arguido, absolvendo-se o mesmo da prática de 2 crimes de abuso sexual de criança p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b) do mesmo diploma (factos provados 24 e 25, e 33).
XX-Porém e caso, assim, não se entenda, deverão os factos provados nos pontos 24 e 25 e 33 antes subsumir-se a atos de importunação da alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º do C.P., alterando-se a qualificação jurídica realizada pelo Tribunal “a quo” dos crimes de abuso sexual de criança p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 1 do C. P., para os crimes de importunação sexual, p. e p. pela alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º do C.P.
XXI-Igualmente, mal andou o Tribunal recorrido ao condenar o arguido por um crime de abuso sexual p.e p. nos termos do artigo 171.º n.º 3 alínea c) do C.P. com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b) do mesmo diploma, quanto ao facto provado no ponto 32 dos factos provados “Em data não concretamente determinada, no interior da residência do arguido AA, este após tomar banho, dirigiu-se nu à sala onde estava a menor, dizendo-lhe para ela olhar, ao mesmo tempo que agarrava o pénis, fazendo movimentos com o mesmo “como se o estivesse a sacudir.”, incorrendo em erro, quer na interpretação quer na determinação da norma aplicável.
XXII- O arguido não concorda com a sua condenação pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 3, alínea c) do C.P., com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b) do mesmo diploma, pois, da prova produzida não resultaram provados factos subsumíveis à alínea c) n.º 3 do artigo 171.º do C.P., uma vez que não se fez prova que o arguido, tenha aliciado a menor a assistir a abusos sexuais ou atividades sexuais.
XXIII-Face à factualidade tida como assente no ponto 32 dos factos provados, tem vindo a ser jurisprudencialmente aceite que a exibição do pénis e/ou o seu manuseamento, ereto ou não, perante vítima menor de 14 anos, não realiza o tipo de crime p.e p. pela alínea c) do n.º 3 do artigo 171.º do Código Penal.
XXIV- Mal andou o Tribunal “a quo” ao entender que os factos praticados pelo arguido no ponto 32 dos factos provados, integram crime de abuso sexual de criança p. e p. pela alínea c) do n.º 3 do artigo 171.º do C.P.
XXV-Assim, desde logo quanto ao crime de abuso sexual de criança, na modalidade de importunação sexual, do art.º 171.º, n.º 3, alínea c), a matéria de facto provada em que se estribou (ponto 32), “(…) dizendo-lhe para ela olhar, ao mesmo tempo que agarrava o pénis, fazendo movimentos com o mesmo “como se o estivesse a sacudir”, não se afigura com relevo, nem dela ressalta ter havido qualquer imposição, para dar conteúdo ao elemento típico do crime de “constrangimento a contacto de natureza sexual”, conforme disposto no art.º 170.º, não representando “um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima”.
XXVI- Por isso não havendo abuso que contenda com o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor, em termos de sexualidade, pelo que deveria ter sido considerado como não provados os factos vertidos no ponto 32 dos Factos Provados.
XXVII- Impondo-se, assim, a absolvição do arguido da prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º n.º 3, alínea c) do Código Penal.
XXVIII- Considerou, ainda o tribunal “a quo” provados os factos insertos no ponto 23 “Na segunda noite o arguido AA tentou repetir o mesmo comportamento, mas a menor GG reagiu e deu-lhe um pontapé, o que fez com o que arguido cessasse a sua conduta. “, factos que integram a prática pelo arguido de crimes de abuso sexual de criança, na forma tentada p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b), 22.º, 23.º e 73.º do mesmo diploma.
XXIX-Entendeu, assim, o douto Tribunal “a quo” que o arguido tentou repetir o comportamento (tentou apalpar os seios da menor e roçar o seu joelho na vagina da menor). 3. Fundamentação – 3.1 Da ação penal - Impunha-se, no entanto, decisão sobre a matéria de facto diversa da decisão recorrida.
XXX-Pois, das declarações para memória futura da menor GG de .../.../2022, as quais se encontram registas pelo sistema - CD-... e transcrições juntas dos autos em .../.../2022.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
“Essa parte do carro pronto e então à noite o que é que aconteceu à noite foi nas duas noites em que lá passaram ou foi só numa?”
Ofendida: (minuto ...:...)
“Foi só numa, na outra noite ele queria-me pôr o pé só que eu mandei-lhe um pontapé (impercetível)”
XXXI-Como pode, assim o Tribunal “a quo” concluir das declarações prestadas pela menor GG, que “Na segunda noite o arguido AA tentou repetir o mesmo comportamento, mas a menor GG reagiu e deu-lhe um pontapé, o que fez com o que arguido cessasse a sua conduta.”, “tentou apalpar os seios da menor e roçar o seu joelho na vagina da menor”.?
XXXII-O ponto 23 dos factos provados, com todo o respeito, não passa de facto conclusivo sem qualquer força probatória que o sustente ou corrobore, pelo que mal andou o Tribunal “a quo” ao considerar tal facto como provado.
XXXIII-O Tribunal “a quo” fez, assim, uma errada interpretação das regras de experiência comum, daí a existência de um raciocínio ilógico, violador do princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do C.P.P.
XXXIV-Pelo que deveria ter sido considerado como não provados os factos vertidos no ponto 23 dos Factos Provados.
XXXV- Impondo-se, assim, a absolvição do arguido da prática de um crime de abuso sexual de crianças na forma tentada p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b), 22.º, 23.º e 73.º do mesmo diploma.
XXXVI-O Tribunal recorrido, condenar o arguido como autor material de 1 crime de coação, p. e p. nos termos do art. 154.º n.º 1 do CP, ao ter considerado que “(…) quando a menor ia à casa de banho, o arguido AA abriu a porta e ficou a olhar para aquela, através do espelho, o mesmo sucedendo quando a menor estava a tomar duche.” (Ponto 33 dos factos provados).“E provou-se que, nessas circunstâncias, o arguido AA dizia à menor que caso contasse a alguém faria pior, o que levava a menor a temer pela sua integridade física e sexual.“ (ponto 34 dos Factos Provados).
XXXVII-E que “O arguido AA, em todas as suas atuações, quis subjugar a menor GG aos seus desejos e vontades porquanto lhe dizia que se contasse a alguém lhe faria pior, o que a fazia temer pela sua integridade física e sexual.”, “(…) o que conseguiu, não tendo a menor de forma espontânea verbalizado os abusos de que foi vítima.” 3. Fundamentação – 3.1. Da Ação Penal - (página 54).
XXXVIII--Ora todo o respeito, não é isso que resulta das declarações para memória futura da menor GG, indicando-se como concretos meios probatórios que impunham decisão sobre a matéria de facto diversa da decisão recorrida as declarações para memória futura da menor de .../.../2022, as quais se encontram registadas pelo sistema CD- ... (minuto ...:... ao ...:...) e transcrições juntas aos autos em .../.../2022.
Ofendida:
(…) tomar banho e ele entrava na casa de banho só que eu como começava a notar que ele vinha lá para me ver a …na parte do chu… na parte das portas como aquilo dá para ver eu começava a pôr a toalha assim para não ver, só dava mesmo para ver até aqui e ele quando (impercetível) deixou-se estar quieto, depois eu ia à casa de banho fazer as necessidades ele abria a porta e ficava a olhar para mim na parte do chuveiro, eu agarrava na porta e fechava a porta, ficava só na parte de trás da porta.
XXXIX-Em momento algum das declarações da menor GG, a mesma afirmou ou sequer deu a entender que “(…) nessas circunstâncias, o arguido AA dizia à menor que caso contasse a alguém faria pior, o que levava a menor a temer pela sua integridade física e sexual.“
XL- Inexiste nos autos qualquer prova da qual se possa extirpar, com grau de certeza e segurança, que aquele tenha praticado sobre a menor um crime de coação, p. e p, pelo artigo 154.º n.º 1 do CP.
XLI-Com base neste meio probatório, imponha-se ao Tribunal absolver o arguido, e ao invés de o condenar pela prática do crime coação p.p. no art.º 154.º n.º 1 do CP, impugnando-se a decisão proferida sobre matéria de facto (pontos 33, 34) por incorretamente julgados, atendendo à prova produzida.
XLII-O Tribunal recorrido, considerou, ainda, como provado que “Em data não apurada, no interior do veículo automóvel pertença do arguido AA, em local não apurado da localidade de ..., o arguido disse à menor GG que com as suas mãos, agarrasse no pénis do arguido, o que aquela negou.” (Ponto 52 dos Factos Provados). Que “Face à recusa da menor, o arguido desferiu-lhe uma chapada na cara, junto do olho direito e após saíram do local.” (Ponto 53 dos Factos Provados).
XLIII-Condenando, assim, o arguido pela prática de 3 crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos termos do art. 143.º, nº 1, do CP., no entanto, salvo devido respeito que é muito, mal andou o Tribunal “a quo” ao dar como provado tais factos.
XLIV-Resulta das declarações para memória futura da menor GG prestadas em .../.../2022 as quais se encontram registadas pelo sistema CD-... e transcrições juntas aos autos em .../.../2022, que:
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Mas também foste com ele à ...?
Ofendida: (minuto ...:...)
Sim
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Ficaste também lá num… num hotel?
Ofendida: (minuto ...:...)
Sim, mas nessa noite não aconteceu nada, apenas só tirei uma foto e (impercetível).
Juiz de Direito:(minuto ...:...)
Quando é que isso foi? Sabes-me dizer? Mais ou menos, assim por alto?
Ofendida: (minuto ...:...)
Não, sei que foi numa noite que choveu muito só que já não sei.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Pronto, terá sido ainda o ano passado ou já este ano?
Ofendida: (minuto ...:...)
Eu acho que foi em novembro ou em dezembro…
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Pronto…
Ofendida: (minuto ...:...)
(…) eu já não me lembro muito bem.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
(…) novembro, dezembro do ano passado, pronto e foste com ele à ... foram só os dois?
Ofendida: (minuto ...:...)
Sim
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
E então nessas duas noites que passaram na ... a ….(impercetível)
Ofendida: (minuto ...:...)
Não aconteceu nada porque ele sabia…
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Não aconteceu nada…
Ofendida: (minuto ...:...)
(…) porque eu levava sempre o chicote comigo, o…
XLV- De tais declarações, em lugar algum resulta que a mesma tenha sido agredida fisicamente, designadamente com uma “(…) chapada na cara junto ao olho direito e após saíram do local.”
XLVI -Também no Relatório Pericial de psicologia elaborado em .../.../2022 junta aos autos a fls 762-768, 791-806, a menor refere que “(…) “Duas coisas, uma em casa e outra no carro. No carro a gente ia para dar uma volta e eu respondi-lhe mal e ele bateu-me. Eu deixei o telemóvel cair queria apanhá-lo, mas ele agarrou-me nos braços e deu-me uma estalada na cara. (…)”
XLVII-Não referindo, a menor GG, em momento algum, qualquer agressão que haja sofrido por parte do arguido pelos motivos dados como aprovados no ponto 52.
XLVIII-Das declarações da menor prestadas em .../.../2022 as quais se encontram registadas pelo sistema CD- ... e transcrições juntas em .../.../2022 resulta que:
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Hum. Mas então, a…queríamos então que tu nos dissesses a qua…primeiro, tens ideia mais ou menos quantas vezes é que ele te bateu? Três? Pronto. Pronto. A. (impercetível) já agora, eu, eu pedia-te que falasses mesmo verbalmente em vez de fazeres sinais porque às vezes as pessoas podem estar a ouvir isto só (impercetível) nós, nós aqui temos duas gravações, uma é só áudio e a outra tem vídeo, às vezes se as pessoas estiverem a ouvir só o áudio a…tu fazes assim três vezes com a, com a mão…
Ofendida: (minuto ...:...)
Três vezes.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Pronto, exatamente. E a pessoa não ouve. A… e então, a … da primeira vez que ele te bateu lembras-te da situação, lembras-te o que é que se pa… o que é que se passou?
Ofendida: (minuto ...:...)
Estou-me a tentar lembrar.
Ofendida: (minuto ...:...)
Foi porque eu não fiz aquilo que ele queria, agora já não me lembro (impercetível) o quê.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
No carro. Pronto. A-… então, tinham ido a… dar uma volta de carro, é isso? Lembras-te onde é, onde é que estavam) Se conheces o local ou s foi, se foram para algum sítio que tu não conhecias?
Ofendida: (minuto ...:...)
Acho que foi na ... (impercetível)
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
..., pronto. Pronto, Disseste que el queria que tu fizesses isso tu não fizeste e ele bateu-te. Como é que ele te bateu?
Ofendida: (minuto ...:...)
Essa pa…nesse dia, foi uma chapada.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Ah, tu disseste “nunca mais (impercetível)”. Tens mais ou menos ideia de quando é que isso aconteceu?
Consegues-te lembrar?
Ofendida: (minuto ...:...)
Para aí há…9 meses atrás.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
Há 9 meses atrás? E como é que tu chegas lá aos 9 meses?
Ofendida: (minuto ...:...)
Eu não sei em que dia foi, sei que foi há 9 meses atrás.
Juiz de Direito: (minuto ...:...)
E porquê 9 meses) Onde é que…como é que fa…como é que fizeste essas, essas contas, por assim dizer para chegar aí aos 9 meses?
Ofendida: (minuto 06:08)
Porque se eu estou há 6 meses lá, foi há dois meses antes de eu ir.
Ofendida: (minuto ...:...)
(…) para a fundação, que isso aconteceu.
XLIX- Das declarações da menor prestadas em .../.../2022 (nas quais refere que tal sucedeu há cerca de 9 meses a trás, tomando como base a data em que foi para a instituição – 6 meses atrás, o que nos reporta ao mês de ... de 2022), contrariam com toda a evidência as declarações da menor prestadas em .../.../2022 (nada referindo quanto a eventuais agressões) e o relatório psicológico datado de .../.../2022.
L- Ora, trata-se de contradições que quer à luz da prova produzida, quer à luz das regras da experiência comum, não podia o Tribunal recorrido considerar como provados os pontos 52 e 53 dos factos provados. É manifesto, pois, o ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA, o que é motivo de recurso – art.º 410º, nº 2, alínea c) do Código Processo Penal.
LI-Razão pela qual devia o arguido ser absolvido da prática de um crime de ofensas à integridade física art.º 143.º, nº 1, do C.P. (Pontos 52 e 53)
Do Pedido de Indemnização Civil
LII- O montante da indemnização “deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.
LIII- O objetivo da reparação dos danos não patrimoniais não visa nas palavras de GG, “é proporcionar [ao lesado] uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distrações – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris”.
LIV- Entre as “demais circunstâncias do caso” para que remetem aqueles preceitos legais, está a gravidade da lesão e a sua repercussão no desenvolvimento futuro da personalidade da criança no que tange à sua esfera sexual
LV- Atenta à prova produzida, ao mal eventualmente sofrido pela menor GG, a quantia fixada de 35.000,00 € é excessiva e está fora dos padrões fixados pela jurisprudência e face à gravidade do dano peca por excesso, não se percebendo a partir do texto da decisão recorrida como chegou o Tribunal a tal montante.
LVI - Não bastando, para tal, a mera invocação do disposto nos artigos 494.º e 496.º do CC, normas que se entende terem sido violadas.
LVII- Como pode o Tribunal “fazer” a justiça no caso concreto se, ao proceder ao juízo de equidade, refere na sentença que o arguido subsistia da pré reforma e continua a auferir verbalizando que da mesma é descontada a pensão de alimentos ao ex-cônjuge no valor de € 400,00 (…) - factualidade dada como provada nos pontos 91.
LVIII-O arguido não pode aceitar, a sua condenação no pagamento de 35 000,00 euros, à ofendida GG, por manifestamente injusta e penalizadora para o arguido atenta a sua idade, e a sua situação económica, que não lhe permite pagar tal montante.
LIX-Pelo que o montante de indemnização pelo dano não patrimonial fixado pelo Tribunal excede em muito o que é usual na jurisprudência em situações idênticas às dos Autos.
LX-Devendo, por isso, e, em face do exposto, tal montante ser reduzido substancialmente, em obediência a critérios de equidade e de justiça.
LXI-Atento, o que supra se deixou dito, impõe-se a absolvição do arguido quanto:
- Á prática de dois crimes de abuso sexual de criança p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b) do mesmo diploma e caso assim não se entenda, deverão os factos provados nos pontos 24 e 25 e 33 antes subsumir-se a atos de importunação da alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º do C.P., pelo que deverão Vossas Excelências alterar a qualificação jurídica realizada pelo Tribunal “a quo” dos crimes de abuso sexual de criança p. e p. nos termos do artigo 171.º n.º 1 do C. P., para os crimes de importunação sexual, p. e p. pela alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º do C.P. (pontos 24 e 25 e 33);
- Á prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º n.º 3, alínea c) do Código Penal (ponto 32);
- Á prática de um crime de abuso sexual de crianças na forma tentada p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação do artigo 177.º n.º 1 alínea b), 22.º, 23.º e 73.º do mesmo diploma. (ponto 23)
- Á pática de um crime de coação, p. e p. nos termos do art.º 154.º n.º 1 do CP (pontos 33 e 34)
- Á pratica de um crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo artigo do C. P. (pontos 52 e 53)
LXII- Reformulando-se o cúmulo jurídico das penas aplicadas.
LXIII- Entende, ainda o recorrente que as penas de prisão, parcelares e única, que lhe foram aplicadas, são excessivas, inadequadas e desproporcionais, perante todo o circunstancialismo supra descrito, não devendo as penas parcelares ser superiores ao mínimo legal abstrata, pugnando-se, assim, pela redução de tais penas parcelares no limite mínimo da moldura abstrata aplicável.

NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS
(art.º 412º, nº 2, alínea a), do CPP

Considerando os fundamentos que supra se expõem deverá ser revogado o Acórdão ora em crise, por terem sido violados os artigos
a) os artigos 171.º n.º 1, 171.º n.º 3 alínea a) e c), 177.º n.º 1 b), 22.º, 23.º e 73.º, 154.º n.º 1 e 143.º n.º 1 e as todos do Código Penal;
b) o artigo 127.º do Código de Processo Penal;
c) os artigos 494.º e 496.º do Código Civil;

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, devendo ser revogado o Douto Acórdão recorrido, absolvendo-se o arguido AA na parte que ora se recorre, nomeadamente dos crimes em que foi condenado, reduzindo-se o pedido de indemnização civil, para quantia que se mostre proporcional e adequada ao caso em apreço com as demais consequências legais.
Fazendo-se, assim, a costumada e serena JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1ª – O arguido recorreu, pois, no seu entender considera que, relativamente aos pontos da matéria de facto provada que indicou, existe um erro de julgamento – artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP.
2ª – Por outro lado, também recorreu, pois, considera que relativamente aos pontos 24, 25 e 33 dos factos dados como provado, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação das normas jurídicas aplicadas, porquanto tais factos provados não se traduzem em atos sexuais de relevo.
3ª – De tudo isso, retira diversas consequências jurídicas respeitantes à determinação das normas a aplicar e aos crimes em foi condenado.
3ª – Também considera que as penas parcelares que lhe foram aplicadas se mostram excessivas, inadequadas e desproporcionais.
4ª – Conclui, alegando que foram violadas as disposições constantes dos artigos 171.º, n.º 1, 171.º, n.º 3, alíneas a) e c), 177.º, n.º 1, alínea b), 22.º, 23.º e 73.º, 154.º, n.º 1, e 143.º, n.º 1, todos do CP, e 127.º, do CPP.
5ª – Afigura-se-nos, contudo, que em qualquer das matérias não assiste razão ao recorrente.
6ª - O Tribunal de recurso só pode alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância, quando as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impuserem manifestamente uma decisão diversa da decisão recorrida.
7ª – O mecanismo previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, destina-se a corrigir aquilo que se verifica serem erros manifestos de julgamento e que resultam ostensivos da leitura do registo da prova, mas sem nunca fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do princípio da livre convicção (v. Ac. do TRL de 18-02-2014 – processo n.º 1426/12.2GLSNT.L1).
8ª – Com efeito, só é possível controlar a convicção do julgador quando ela se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e, em determinadas situações, dos conhecimentos científicos, dado que, a livre apreciação da prova não exclui, antes exige, que sejam observadas as regras da experiência e critérios de lógica.
9ª – Ora, lendo o teor do segmento da decisão recorrida respeitante à Motivação de Facto (2.3), constata-se que inexiste qualquer erro manifesto de julgamento e que resulte do registo da prova, ou que a convicção do julgador se mostra contrária às regras da experiência, da lógica ou da razão, pois ali são indicados todos os elementos de prova que estiveram na base da convicção do julgador para chegar às conclusões que chegou e não a outras.
10ª - Por sua vez, com base nas referidas regras da experiência comum, consideramos que a decisão recorrida se mostra plausível.
11ª – Logo, o que se verifica no presente caso, é tão só uma apreciação divergente dos factos e da prova por parte do recorrente.
12ª - Só que, o recorrente não pode substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, pois se o fizesse, sem estar em causa um erro manifesto de julgamento, conforme entendemos ser o caso, então estaria a usurpar a competência do julgador.
13ª - Assim, não tendo as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, a virtualidade de imporem uma decisão diversa, afigura-se-nos que o Tribunal de recurso não pode alterar a matéria de facto que foi fixada.
14ª – O bem jurídico protegido com a incriminação prevista no art.º 171.º, n.º 1, do CP, é a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, de menor de 14 anos de idade.
15ª - Trata-se de um crime de perigo abstrato no que respeita ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de mera atividade quanto à forma de consumação.
16ª - Por sua vez, o ato sexual de relevo é a ação de conotação sexual de uma certa gravidade objetiva realizada na vítima (ver Paulo Pinto de Albuquerque – Cometário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – 5º edição atualizada – UCP, pág. 724).
17ª – Afastados os atos sexuais de relevo que consistem em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos (n.º 2, do art.º 171º, do CP), ou “importunação sexual” (n.º 3, do art.º 171º, do CP), que não estão agora aqui em causa, o ato sexual de relevo previsto no n.º 1, do citado art.º 171º, do CP, tem que se reportar, conforme já referido, a uma ação de conotação sexual com uma certa gravidade objetiva realizada na vítima.
18ª – Por sua vez, tais atos têm que afetar gravemente ou significativamente a liberdade sexual da vítima ou a sua livre determinação sexual.
19ª - Ora, os factos descritos nos pontos n.ºs 24 e 25 dos factos dados como provado, atenta a sua natureza e contexto em que foram praticados, afetaram gravemente a liberdade sexual da menor GG, pois não surgiram de forma isolada, ocasional e instantânea, antes enquadraram-se em todo um comportamento levado a efeito por parte do arguido que durou vários meses.
20ª - Existiu assim uma conduta por parte do arguido com conotação sexual, traduzida numa forma de satisfazer o seu impulso sexual.
21ª - Conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14-07-2021- processo 116/19.0JAAVR.P1:
“- São atos sexuais de relevo os que constituem uma ofensa séria e grave à intimidade do sujeito passivo e invadem de maneira objetivamente significativa aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano.
II - É ato sexual de relevo um beijo na boca de uma menor de nove anos, na sequência do envio de mensagens de teor amoroso.
III - É ato sexual de relevo a apalpar dos seios e da zona vaginal.
IV - O crime de trato sucessivo supõe uma unidade de resolução criminosa, uma conexão temporal entre os atos realizados e um único substrato de vida dotado de um significado social negativo.”
22ª - Por tudo isso, é imperioso concluir que os atos em causa têm que ser considerados atos sexuais de relevo.
23ª - No que respeita ao ponto 33 da matéria de facto provada, é de salientar que esse facto não pode ser analisado isoladamente e por si só, antes deve ser enquadrado, valorado e apreciado no âmbito da atuação do arguido, que se prologou por vários meses, manifestada numa conduta geral com conotação sexual, e, por isso, também se trata de um ato sexual de relevo.
24ª - Na determinação da medida concreta da pena, é de atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal.
25ª - Para além disso, as finalidades das penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme determina o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal.
26ª - Assim, a medida da pena há de ser dada tendo por base a necessidade de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias (prevenção geral positiva ou de integração), sem, contudo, poder ultrapassar a medida da culpa, atuando depois e em última instância a prevenção especial de socialização como forma de determinar a medida da pena.
27ª - Por isso, na determinação da medida da pena, deverá atender-se às exigências de prevenção que satisfaçam as necessidades comunitárias de se punir o crime e, bem assim, de se realizarem as finalidades das penas.
28ª - Por sua vez, será dentro da moldura de prevenção geral de integração que a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização (neste sentido cf. Acórdão do STJ de 20-09-2006, - processo n.º 03P4425, acessível em www.dgsi.pt).
29ª – A pena única resultante de cúmulo jurídico de penas, é fixada nos termos estabelecidos no art.º 77º, n.ºs 1 e 2, do CP.
30ª – No caso dos autos, se atendermos ao teor da decisão recorrida referente ao segmento respeitante à fundamentação – da ação penal (3.3.1) e a toda a fundamentação que ali é indicada, é de concluir que as penas de prisão parcelares e a pena única resultante do cúmulo jurídico operado, que foram aplicadas ao arguido, tendo como ponto de partida o tipo legal de cada crime em causa, se mostram justas e adequadas a prevenir a prática de crimes de igual natureza, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral.
31ª – Com efeito, entre o mais, foi ponderada a elevada gravidade dos ilícitos em apreço, a sua duração, o elevado alarme social que os crimes de natureza sexual causam e o seu desvalor; foram considerados os antecedentes criminais do arguido, com uma condenação por crime de idêntica natureza, em pena de prisão suspensa na sua execução, verificando-se que o arguido praticou os factos dos presentes autos no período da suspensão da pena.
32ª – Mas para além disso, após ter conhecimento do teor da segunda condenação por prática de crimes de natureza sexual contra menores, também em pena suspensa, o arguido foi sozinho com a menor para o ... e continuou a comportar-se da forma que já vinha fazendo, demostrando indiferença face às condenações que já tinha sofrido anteriormente.
33ª - Atendendo a tudo isso e tendo em conta a moldura abstrata dos crimes em causa, e o disposto no art.º 77º, n.ºs 1 e 2, do CP, consideramos que a pena única de 13 anos e 6 meses de prisão se mostra adequada, proporcional, justa e em conformidade com as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso concreto.
*
Por tudo o que vai exposto, consideramos que a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pelo recorrente, nem tão pouco fez qualquer interpretação errónea de tais normas.
Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida.
Contudo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, Magistrada do Ministério Público emitiu o seguinte parecer [transcrição]
«Sufraga-se a posição defendida na resposta apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, cujo sentido se nos afigura ser de acolher, e para cuja argumentação se remete.
Com efeito, não vislumbramos que o acórdão recorrido mereça censura relevante, ou que assista razão ao recorrente quanto aos argumentos invocados, face à fundamentação da decisão proferida, que de modo suficiente e claro justificou a opção tomada, ponderando adequadamente todas as circunstâncias relevantes.
E nada mais de relevante havendo a acrescentar, deverá o recurso interposto improceder.»

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[1], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[2]


Posto isto, e vistas as conclusões dos recursos, a esta Instância são colocadas as questões:
- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- do erro notório na apreciação da prova;
- da incorreta subsunção dos factos ao direito;
- da desadequação, por excesso, das penas impostas – parcelares e em cúmulo jurídico;
- da desadequação, por excesso, do montante indemnizatório fixado.
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No acórdão recorrido foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. GG, (doravante GG), nasceu a .../.../2009, contando 12 anos de idade aquando da dedução da acusação, e é filha da arguida DD e de HH, já falecido.
2. A arguida DD não desenvolve qualquer atividade profissional declarada desde 20..., tendo três filhos de três relações distintas.
3. A arguida DD reside na Rua ... em ..., com o seu companheiro II. Ao filho menor de ambos, JJ, que com eles vivia à data dos factos que infra se descreverão, foi entretanto aplicada a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial.
4. A menor GG sempre teve como referência a avó paterna, tendo o progenitor da menor falecido em .../.../2013.
5. A avó paterna, com quem sempre viveu até 20..., passando com ela depois dessa data fins de semana e férias, faleceu em finais de 20... / início de 20.... Após este falecimento, a menor passou a estar aos cuidados da arguida DD, sua mãe, integrando o agregado familiar daquela.
6. O arguido AA, (doravante AA) reside na Rua ..., em ....
7. Em data não concretamente apurada, o arguido AA e KK, casaram, partilhando cama, mesa e habitação, residindo na morada supra indicada.
8. KK abandonou a residência comum do casal em data não apurada mas anterior ao início da pandemia (que remonta consabidamente a .../.../2020).
9. Em data não concretamente apurada, mas que se situa antes dos meses de verão do ano de 20..., através das menores LL, de 14 anos de idade, MM, de 15 anos de idade, vizinhas do arguido, a menor GG travou conhecimento com o arguido AA.
10. A partir dessa data, a menor GG passou a frequentar a residência do arguido AA, onde pernoitava sozinha com aquele, sita na morada supra indicada, bem como a acompanhá-lo em viagens, o que fez sempre com o conhecimento e conivência da sua progenitora, a arguida DD, sem que entre os arguidos existisse qualquer relação de amizade ou conhecimento prévio.
11. A arguida DD conheceu o arguido AA através da sua filha GG, não sendo aquele uma pessoa da sua confiança ou um conhecimento de longa data da arguida.
12. A arguida DD, sem manter qualquer relação familiar ou outra com o arguido AA, permitiu que a menor GG, sua filha, ficasse entregue aos cuidados daquele, durante a semana e ao fim de semana, vivendo o arguido e a menor em comunhão de habitação e mesa.
13. O arguido AA costumava ainda levar e buscar a menor GG ao estabelecimento escolar que aquela frequentava “Escola Básica ...” em ....
14. Em data não apurada, mas após o verão de 20..., o arguido AA formulou o propósito de manter atos de natureza sexual com a menor GG.
15. Assim, em data não concretamente determinada mas que se situa duas semanas após ter conhecido o arguido AA, no interior da residência daquele, aproveitando um momento em que ficou sozinho com a menor GG, à data com 11 anos de idade, na sala, o arguido aproximou-se da menor e com as suas mãos tentou apalpar-lhe os seios, tendo a menor GG afastado o arguido.
16. Em data não apurada, mas que se situa no verão de 20..., o arguido AA levou a menor GG, as menores LL, MM e a progenitora destas, NN, para a localidade de ..., no ..., tendo todos pernoitado num quarto de hotel.
17. O arguido AA pernoitou na sala, ao passo que a menor GG, as restantes menores e a progenitora destas ficaram no quarto.
18. Após, o arguido AA regressou a ... para trazer as menores LL, MM e a progenitora destas, NN.
19. E regressou o arguido ao ..., para a zona da ..., na companhia da menor GG, tendo-lhe dito que iriam pernoitar num hotel.
20. Ao contrário do que o arguido AA tinha dito à menor, durante 3 noites pernoitaram no interior do veículo automóvel daquele, de marca ... com matrícula ..-PQ-.., em local não apurado da zona do ....
21. Para esse efeito, o arguido AA deitou os bancos do veículo automóvel e ele e a menor GG deitaram-se no chão do veículo automóvel.
22. Na primeira noite que ali pernoitaram, o arguido AA, com as suas mãos, apalpou os seios da menor GG e roçou o seu joelho na vagina daquela, comportamento que assustou a menor e a levou a sair do veículo automóvel.
23. Na segunda noite o arguido AA tentou repetir o mesmo comportamento, mas a menor GG reagiu e deu-lhe um pontapé, o que fez com o que arguido cessasse a sua conduta.
24. Em data não concretamente apurada mas após o verão de 20..., o arguido AA agarrou a menor GG e beijou-a no pescoço,
25. Ao mesmo que o seu pénis ficava ereto, o que a menor sentia, uma vez que o arguido encostava o seu corpo ao dela.
26. Em data não concretamente apurada, no interior do veículo automóvel de marca ... com matrícula ..-PQ-.., o arguido AA agarrou a mão da menor GG, introduziu-a no interior das suas calças de fato de treino ou calções, sem cuecas, e fez com que aquela segurasse no seu pénis e efetuasse movimentos no sentido ascendente e descendente, até aquele ejacular.
27. Em data não concretamente apurada, o arguido AA introduziu as suas mãos por dentro da roupa interior da menor GG e acariciou-lhe a zona da vagina e do rabo.
28. Em data não concretamente apurada, o arguido AA quis introduzir os dedos no interior da vagina da menor GG, o que esta não consentiu, afastando-se do arguido.
29. Durante o período em que a menor permaneceu aos cuidados do arguido AA, este dizia à menor que partilhasse a cama com ele, o que aquela foi sempre negando, ficando a dormir no sofá.
30. Em data não concretamente apurada, a menor GG estava sentada no chão da sala da residência do arguido AA quando este se aproximou daquela e deu-lhe um pontapé na coxa, ao que a menor reagiu pegou num mata moscas e bateu-lhe na zona do pénis, tendo o arguido reagido empurrando a menor, que acabou por tombar, e prendeu-lhe os braços com as suas mãos, tendo o arguido colocado o seu joelho entre as pernas da menor, ao que esta reagiu fechando as pernas, o que sucedeu pelo menos por duas vezes.
31. Em data não concretamente determinada, o arguido AA prendeu os braços da menor GG, meteu-lhe as mãos nos seios e tentou beijá-la na boca com a língua, tendo aquela sentido o seu pénis ereto de encontro ao seu corpo.
32. Em data não concretamente determinada, no interior da residência do arguido AA, este após tomar banho, dirigiu-se nu à sala onde estava a menor, dizendo-lhe para ela olhar, ao mesmo tempo que agarrava o pénis, fazendo movimentos com o mesmo “como se o estivesse a sacudir”.
33. Em data não apurada, quando a menor GG ia à casa de banho, o arguido AA abriu a porta e ficou a olhar para aquela, através do espelho, o mesmo sucedendo quando a menor estava a tomar duche.
34. Nas circunstâncias supra descritas, o arguido AA disse à menor que caso contasse a alguém faria pior, o que levava a menor a temer pela sua integridade física e sexual.
35. O arguido tratava a menor como se de sua mulher/companheira se tratasse, como que vivendo em comunhão de cama, mesa e habitação, dirigindo-se à menor como “amor” e dizia que a “amava muito”, e que queria casar com ela, bem como mantinha expostas pela residência múltiplas fotografias da menor.
36. O arguido AA providenciava pela alimentação da menor GG, comprava-lhe roupas, calçado, levava-a ao cabeleireiro, e levava e ia buscá-la à escola, circunstâncias que a arguida DD bem sabia.
37. A menor acompanhava o arguido AA sempre que esta ia fazer viagens, para fora de ....
38. No dia .../.../2022, o arguido AA dirigiu-se ao Tribunal ..., a fim de conhecer o teor do acórdão proferido no processo n.º 149/18...., fazendo-se acompanhar da menor GG e de KK, sendo que, enquanto aquele esteve no Tribunal, a menor aguardou no interior do veículo automóvel, após o que o arguido a levou ao cabeleireiro para cortar o cabelo.
39. No processo n.º 149/18...., por acórdão datado de .../.../2022, transitado em julgado em .../.../2022, o arguido AA foi condenado pela prática como autor material de um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de prisão de 3 (três) anos; tendo ainda sido condenado pela prática de um crime de pornografia de menores, p. e p. no artigo 176.º, n.º 5 do Código Penal, na pena de prisão de 1 (um) ano.
40. Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de prisão de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos, e na pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos.
41. De seguida, no dia .../.../2022, após ter conhecimento da condenação sofrida no processo n.º 149/18.... o arguido AA levou a menor GG para o ... e para ..., tendo-se alojado no A..., na ..., na noite de ... para ... de ... de 2022, onde chegaram pelas 18h24m.
42. As restantes noites pernoitaram no interior do veículo automóvel do arguido.
43. O arguido AA apresentou-se no citado hotel para efetivar a reserva, acompanhado de uma criança a quem se referia como filho, tratando-se da menor GG.
44. O arguido e a menor GG ficaram alojados num quarto duplo, com o número ..., que dispunha apenas de uma cama de casal, que dividiram.
45. Por essa estadia, o arguido pagou a quantia monetária de € 45,00.
46. Nas circunstâncias de tempo e de lugar supra descritas, o arguido AA tentou roçar o seu joelho na vagina da menor, bem como tentou colocar a mão da menor no seu pénis.
47. No dia .../.../2022, pelas 20h00m, o arguido AA, acompanhado da menor GG, e ao volante do veículo automóvel com a matrícula ..-PQ-.., regressaram à residência daquele, sita na morada supra identificada, de onde voltaram a sair pelas 08h02m do dia .../.../2022, sem que mais ninguém tivesse entrado ou saído da referida habitação.
48. Em datas não concretamente apuradas, mas durante viagens a locais não apurados que o arguido AA fez com a menor GG, em locais não apurados, junto a zonas de mata, o arguido parou o veículo automóvel e abordou duas prostitutas com quem manteve relações sexuais de cópula vaginal, tendo deixado a menor GG no interior do veículo automóvel, que se encontrava posicionado de frente para o arguido e para as mulheres com quem mantinha relações de sexuais de cópula vaginal, de molde a menor GG ver o que o arguido estava a fazer, o que sucedeu por duas vezes.
49. Em data não concretamente apurada, no interior da residência do arguido AA, este disse à menor GG para colocar o seu pénis na boca, o que aquela negou, posto o que o arguido agarrou a cabeça da menor e com força encostou o seu pénis aos lábios da menor, no intuito que aquela colocasse o pénis na boca, o que não conseguiu em virtude de a menor ter cerrado a boca.
50. Face à relutância da menor, o arguido AA retirou o cinto que usava nos calções, dobrou-o ao meio e com recurso ao mesmo desferiu pancadas no corpo da menor que a atingiram na zona das costelas, do lado direito.
51. Como consequência da atuação do arguido AA, a menor GG sofreu dores e lesões, designadamente hematomas na zona do tórax.
52. Em data não apurada, no interior do veículo automóvel pertença do arguido AA, em local não apurado da localidade de ..., o arguido disse à menor GG que com as suas mãos, agarrasse no pénis do arguido, o que aquela negou.
53. Face à recusa da menor, o arguido desferiu-lhe uma chapada na cara, junto do olho direito e após saíram do local.
54. Em data não apurada, na localidade de ..., no interior do veículo automóvel pertença do arguido, por motivo não concretamente apurada, o arguido atirou o telemóvel da menor para o chão e após desferiu-lhe uma chapada na face que a atingiu no maxilar.
55. Em data não apurada do mês de ... de 2022, o arguido AA, dirigiu-se à “Escola Básica ...” em ..., para a ir buscar e levar a casa da progenitora, mas, como aquela demorou, o arguido contactou-a para o telemóvel, tendo-lhe a menor dito que aguardasse porque estava a conversar com um amigo, ao que o arguido lhe respondeu “vens para fora agora”.
56. O arguido AA, não satisfeito com a resposta da menor, dirigiu-se à portaria da escola e, identificando-se como progenitor, perguntou pelo paradeiro daquela.
57. Quando a menor GG chegou ao veículo automóvel, o arguido AA demonstrou o seu desagrado com o comportamento da menor, tendo-se iniciado uma discussão entre ambos, demonstrando o arguido ciúmes, dizendo-lhe “tens um namorado e agora não me dizes nada”, ao que a menor respondeu que não e que queria ir para casa da mãe, tendo-lhe o arguido respondido negativamente.
58. De seguida, o arguido iniciou a marcha com o veículo automóvel e trancou as portas do veículo automóvel.
59. A menor conseguiu destrancar a porta do seu lado, tirou o cinto e abriu a porta, tendo-lhe o arguido dito para fechar a porta.
60. De seguida, a menor GG contactou telefonicamente com a arguida DD, sua progenitora, e disse-lhe que o arguido não a deixava sair do carro, não tendo a arguida acreditado na versão apresentada pela menor.
61. Após, a menor efetuou uma videochamada com a arguida DD, tendo-lhe esta dito para ir para casa, o que a menor fez.
62. No dia .../.../2022, no interior da residência do arguido sita na morada supra indicada, foram apreendidas várias fotografias da menor e na sala foram apreendidos 3 dildos sexuais.
63. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente.
64. O arguido AA agiu com o propósito de praticar atos de natureza sexual com a menor GG, com o intuito de satisfazer os seus desejos e impulsos sexuais.
65. O arguido AA sabia que esta era menor e que assim atentava contra o livre desenvolvimento da sua personalidade e sexualidade, atentando ainda contra a autodeterminação sexual da menor GG, obrigando-a a sofrer a prática de atos profundamente ofensivos para a sua honra além de a sujeitar a uma profunda humilhação.
66. O arguido AA estava ciente da idade da menor GG e, bem assim, que a mesma não sabia avaliar tais práticas e não poderia consentir ou anuir nas mesmas.
67. Aproveitando-se da inocência da menor e da relação de proximidade que estabeleceu com aquela e do facto de esta se encontrar na sua dependência económica, já que era o arguido quem providenciava pelo suprimento das suas necessidades básicas, designadamente alimentação e vestuário.
68. O arguido AA apenas não concretizou alguns dos atos por motivos alheios à sua vontade, em virtude de a menor ter logrado oferecer-lhe resistência, fechando as pernas, ou repelindo-o.
69. O arguido AA ao exibir o seu órgão sexual à menor, ao vê-la despida a tomar banho e na casa de banho, ao pedir à menor para agarrar no seu pénis e ao praticar relações sexuais de cópula com terceiros, na presença da menor quis importuná-la sexualmente e atentar contra a sua liberdade sexual, como conseguiu.
70. O arguido apenas não logrou introduzir os seus dedos na vagina da menor, por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque aquela o conseguiu repelir.
71. O arguido AA em todas as suas atuações quis subjugar a menor GG aos seus desejos e vontades porquanto lhe dizia que se contasse a alguém lhe faria pior, o que a fazia temer pela sua integridade física e sexual.
72. O arguido, ao dizer à menor que, caso aquela contasse o que se estava a passar a alguém, faria pior, quis provocar-lhe, como provocou, receio pela sua vida e integridade física e sexual, o que conseguiu, não tendo a menor de forma espontânea verbalizado os abusos de que foi vítima.
73. Nas demais situações descritas nos autos em que o arguido não logrou concretizar as suas condutas tal sucedeu por motivos alheios à vontade do arguido em face da reação da menor.
74. O arguido AA, ao agarrar a cabeça da menor e ao encostar os lábios daquela ao seu pénis, quis praticar sobre a mesma atos de natureza e conteúdo sexual, o que fez, contra a vontade daquela, não se tendo coibido de para esse efeito, usar de violência, apenas não tendo logrado alcançar o seu objetivo em virtude de a menor ter oferecido resistência, ciente da idade daquela.
75. O arguido AA, ao desferir pancadas no corpo da menor com recurso a um cinto, quis atentar contra a sua integridade física, provocando-lhe dor, o que conseguiu, ciente da idade daquela.
76. O arguido AA, ao desferir chapadas na face da menor, quis atentar contra a sua integridade física, provocando-lhe dor, o que conseguiu, ciente da idade daquela.
77. A arguida DD, progenitora da menor GG, sabia que a menor GG, permanecia em casa do arguido AA.
78. Assim como bem sabia que o arguido tinha uma idade aproximada de 60 anos e que a GG, sua filha era menor, à data com 11 e 12 anos de idade, descurando os seus deveres parentais, guarda, segurança, sustento.
79. À arguida DD, enquanto progenitora da menor GG, incumbia assegurar o bem-estar moral e material da menor, designadamente tomando conta da sua pessoa, mantendo relações pessoais com ela e assegurando que a mesma não ficava entregue aos cuidados de um indivíduo que não conhecia e com o qual não mantinha qualquer relação familiar.
80. Impondo-se à arguida acautelar pelo bem-estar, saúde e integridade física da menor.
81. O arguido estava ciente de que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal e, não obstante, não se coibiu de agir conforme supra descrito.
82. No certificado de registo criminal do arguido consta:
- Uma condenação, datada de .../.../2019 e transitada em julgado em .../.../2019, pela prática, em .../.../2017, de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º 171º do CP, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução foi suspensa por 3 anos com regime de prova;
- Uma condenação, datada de .../.../2019 e transitada em julgado em .../.../2019, pela prática, em .../.../2018, de um crime de ameaças agravada p. e p. pelos arts.º 153º, nº 1, e 155º CP, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de e 6,00, perfazendo a multa de € 720,00;
- Uma condenação, datada de .../.../2022 e transitada em julgado em .../.../2022, pela prática, em 20..., de um crime de pornografia de menores agravado p. e p. pelos arts.º 176º, nº 1, al. b), e 177º, nº 6, do CP, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por 3 anos e 6 meses, e ainda nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidade parentais, tudo por 5 anos.
83. No certificado de registo criminal da arguida nada consta.
No relatório social do arguido consta, além do mais, que:
84. AA de 62 anos de idade, é o primeiro de uma fratria de dois, sendo que o seu processo de desenvolvimento decorreu numa localidade rural, na zona de ..., onde os pais desempenhavam as funções de .... Posteriormente, o pai começou a trabalhar como ... na B... e mais tarde na C..., proporcionando uma situação económica estável ao agregado. O arguido descreve um ambiente familiar adequado, pautado pela transmissão de valores morais e imposição regras e normas socialmente aceites e pela responsabilização.
85. Ingressou na escola em idade normal, estudando até ao 4º ano de escolaridade. Mais tarde, já em idade de adulto, frequentou um curso de formação que lhe conferiu o 9º ano de escolaridade.
86. Em termos laborais, terá desenvolvido um percurso regular e investido. Refere ter tido a sua primeira experiência laboral aos 13 anos de idade, como ..., num ..., em ..., onde permaneceu durante cerca de 1 ano. Por volta dos 14 anos terá iniciado funções de ... na B..., junto do pai, e mais tarde na C..., onde manteve até aderir à situação de pré-reforma, há cerca de 9 anos atrás.
87. Durante o percurso laboral sofreu um acidente de trabalho que lhe terá deixado sequelas nos membros inferiores.
88. Ao nível afetivo, AA casou pela primeira vez aos 24 anos de idade, tendo deste casamento um filho de 33 anos de idade. O matrimónio dissolveu-se cerca de 35 anos depois, alegadamente, devido a dificuldades relacionais. Há cerca de 12 anos, iniciou novo relacionamento afetivo com o atual cônjuge, cujo matrimónio ocorreu em 20....
88. Devido à condenação do arguido numa pena de prisão suspensa pela prática de um crime de abuso sexual de menores, em .../.../2017, durante uma visita ao agregado do enteado, que residia no ..., cuja vítima é a neta do cônjuge, a esposa foi residir, alternadamente, no ... e no ..., na casa dos filhos. Ainda assim, deslocava-se, por vezes a ... e permanece na mesma casa, com o arguido. A habitação onde o arguido reside pertence ao filho mais velho da esposa do arguido.
89. No tocante à saúde refere ter sofrido de problemas depressivos, com ideação suicida (há cerca de 5 anos atrás), que considera ter superado. Neste âmbito, foi acompanhado em consulta de psiquiatria no Centro de Saúde .... Refere padecer também de problemas cardíacos, com medicação prescrita.
90. No período a que reportam os alegados factos, a esposa do arguido, pelo motivo acima explanado, tinha ido residir na casa dos filhos, no ... e no .... Ainda assim, esta, por vezes, deslocava-se a ..., para o ajudar na organização da habitação, permanecendo junto do arguido, na mesma casa.
91. AA subsistia da pré-reforma, que continua a auferir, verbalizando que da mesma é descontada a pensão de alimentos ao ex-cônjuge, no valor de €400, descrevendo uma situação económica pessoal estável.
92. Mantinha um quotidiano desocupado, evidenciando alguma tendência para o isolamento. Alega passar os dias em casa, ocupando o tempo livre nas tarefas domésticas, a jogar no computador e a ver TV e apoiava os pais de algumas crianças, mormente, duas vizinhas, alegadas afilhadas e a alegada vítima no presente processo, que refere ser amiga das afilhadas, permanecendo estas aos cuidados do arguido, normalmente, em períodos antes e depois do horário escolar. Pontualmente, visitava a progenitora que se encontra integrada num lar e passava algum tempo na pesca.
93. É descrito pelo cônjuge como uma pessoa calma, responsável e com boas capacidades, mas que mantinha por vezes contactos sexuais a troco de pagamento, comportamentos criticados pela mesma.
94. Na comunidade, a imagem do arguido surge desfavorecida, associada à prática comportamentos socialmente desvalorizados.
95. No estabelecimento prisional mantém um comportamento ajustado às normas institucionais e uma conduta de respeito para com pares e funcionários.
96. Do exterior, tem sido visitado pelo cônjuge, pelo filho e pelo irmão.
97. A presente situação, além da natural perda da liberdade, não representa outras consequências negativas, na medida em que, à data da prisão, não se encontrava integrado em qualquer atividade estruturada, a sua subsistência mantem-se garantida pela pré-reforma e ao nível familiar mantem o apoio do cônjuge, filho e irmão.
98. Face ao presente processo assume um discurso de distanciamento dos factos por que se encontra acusado. Com efeito, consubstanciado nas condenações acima mencionadas aceita frequentar um programa de tratamento direcionado a agressores sexuais.
No relatório social da arguida consta, além do mais, que:
99. Natural de ..., o processo de desenvolvimento de DD ocorreu num contexto familiar disfuncional devido ao comportamento agressivo do progenitor, sobretudo quando alcoolizado, o que levou à separação dos pais, quando a arguida era criança.
100. A mãe, ... nos D..., refez a sua vida afetiva, proporcionando as necessidades básicas à arguida, que encontrou na avó materna a sua principal referência afetiva e parental.
101. No plano escolar deparou-se com dificuldades de aprendizagem, registando algumas retenções e, embora ainda tenha frequentado o 9.º ano de escolaridade, abandonou os estudos sem o concluir. Mais tarde, aos 23 anos de idade, retomou os estudos no âmbito das Novas Oportunidade, frequentado e concluindo o 9.º ano de escolaridade, durante o seu internamento em ....
102. Relatou uma adolescência perturbada, que afetou o seu desenvolvimento pessoal, uma vez que referiu ter sido vítima de abuso sexual por pessoa exterior à família e ainda o facto de ter sido mãe em idade jovem (19 anos), cuja guarda foi entregue aos cuidados do pai, por falta de condições pessoais da mãe.
103. Aproximadamente aos 20 anos idade estabeleceu união afetiva com HH (entretanto falecido), de quem tem uma filha (GG, vítima neste processo), que era bebé quando o pai faleceu.
104. O seu então companheiro teve problemas de toxicodependência e, na época, a própria também se iniciou no consumo de drogas, mas, por volta dos 22/23 anos de idade, efetuou tratamento ao seu problema aditivo, numa ..., permanecendo desde então abstinente de drogas.
105. Mais tarde, DD iniciou nova união amorosa com II, que mantém há cerca de nove anos e da qual nasceu o seu terceiro filho, JJ.
106. À data da instauração do presente processo judicial, DD diz que vivia com o companheiro (II, 37 anos, ...), filho do casal (JJ, 7 anos) e a filha da arguida (GG).
107. De acordo com a CPCJ, a arguida revelou práticas parentais negligentes e com baixo nível de supervisão para com a menor GG, mas também para com o filho mais novo JJ, uma vez que não assegurava as várias consultas médicas à criança, que padece de grave escoliose na coluna.
108. Neste contexto, e sobretudo na sequência dos acontecimentos que determinaram a instauração deste processo judicial, os filhos da arguida, ao abrigo da lei de promoção e proteção de menores, foram colocados numa estrutura residencial de infância e juventude, em ..., em .../.../2022, onde têm permanecido e recebem visitas da mãe (arguida).
109. A técnica da CPCJ referiu que a menor GG, atualmente com 13 anos, tem revelado dificuldades de adaptação à instituição, pelo que foi transferida para outra instituição também de infância e juventude, do distrito .... E apesar de a arguida manifestar alguma indignação por não ter os filhos na sua companhia, tem tido uma atitude colaborante com os serviços que intervieram ou estão a intervir na situação dos menores.
110. Presentemente, DD reside apenas com o companheiro (II), que lhe tem prestado o necessário apoio familiar e material, havendo entre ambos uma relação de interajuda.
111. O casal reside, desde 20..., numa casa arrendada, no centro urbano de ..., que, segundo referiu, reúne suficientes condições de habitabilidade.
112. A arguida referiu que tem realizado alguns trabalhos durante as campanhas agrícolas sazonais e atualmente permanece desempregada, embora esteja inscrita no Centro de Emprego de ..., conforme documento apresentado.
113. O vencimento do companheiro, referido em 705,00€/mês, é na atualidade o único rendimento do agregado, assegurando com dificuldades as despesas fixas mensais, que segundo referiu rondam os 400,00€, de que salientou a renda da casa 230,00€.
114. Nos tempos livres, atualmente, privilegia essencialmente o convívio familiar e mais ocasionalmente o convívio com os seus colegas de trabalho.
115. No plano da saúde DD referiu que na sequência deste processo e do facto de ter ficado privada da companhia dos filhos, tem-se sentido emocionalmente frágil, referindo estar medicada através da médica de família.
116. Socialmente, os dados disponíveis indicam na atualidade e na globalidade uma interação adequada com os outros em geral, não havendo sobre si participações policiais recentes no posto da GNR de ....
117. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a menor GG revela sentimentos de dependência no relacionamento com os outros, buscando proteção.
118. Revela sentimentos de culpa, em especial relativamente à mãe, afirmando que esta nada sabia.
119. Sente repulsa por tudo quanto o arguido AA lhe fez e tristeza.
120. Tem de si uma imagem muito negativa, sem qualquer autoestima.
121. Sente-se confusa na sua orientação sexual, manifestando dificuldade em desenvolver relações de afeto com jovens da sua idade do sexo masculino.»

Relativamente a factos não provados, consta do acórdão que [transcrição]:
«De entre os factos alegados na acusação e no pedido de indemnização, não se provaram os factos acima não descritos e os factos contrários aos factos que se deram como provados, ou por este prejudicados, sendo certo que o Tribunal se debruçou especificadamente sobre cada um deles.
Designadamente, e com interesse, não se provou que:
- Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar mencionadas no artigo 15º da acusação (a que corresponde o ponto 15. dos factos provados), o arguido tenha, efetivamente, conseguido apalpar os seios da menor.
- A arguida DD sabia que a filha regressava ao ... apenas na companhia do arguido AA, o que consentiu.
- Em data não concretamente apurada enquanto a menor estava a dormir no sofá da sala, o arguido AA dirigiu-se àquela, levantou-lhe a camisola e ficou a olhar para os seus seios que estavam cobertos por um soutien.
- Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar mencionadas no artigo 46º da acusação (a que corresponde o ponto 46. dos factos provados), o arguido tentou colocar a sua mão no interior da vagina da menor.
- Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar mencionadas nos artigos 76º e 77º da acusação (a que correspondem os pontos 75. e 76. dos factos provados), a menor, por via da sua idade, não era capaz de oferecer resistência ao arguido, que disso estava ciente.
- A arguida DD sabia que a sua filha, quando permanecia em casa do arguido, o fazia a sós com este, sem a presença de mais ninguém, assim como também sabia que, de todas as vezes que a menor GG viajou pelo país com o arguido, foi sozinha com este, sem a presença de mais ninguém, deixando-a na descrita situação de forma propositada.
- A arguida DD admitiu como possível que o arguido AA atentasse contra a liberdade e autodeterminação sexual da menor GG, bem como contra a sua integridade física e vontade da menor, com o que se conformou.
- O arguido acariciou os seios da menor e apalpou-lhe / acariciou-lhe o rabo (facto referido na acusação sob o artº 25º) em momento ou momentos distintos dos provados em 27 e 31.
- Na instituição onde foi acolhida, a menor GG tem muita dificuldade no cumprimento de regras, adotando, por sistema, um comportamento desafiante;
- Sente mau estar, com vómitos, dificuldade em respirar e tremuras.
- Tem dificuldades em dormir.
- Carece de acompanhamento continuado de profissionais especializados, designadamente do foro psicológico

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«A convicção do Tribunal Coletivo para considerar provados e não provados os factos acima descritos teve por base a análise crítica e conjugada dos seguintes elementos probatórios:
I. O arguido AA exerceu o seu direito de não prestar declarações.
Já a arguida DD dispôs-se a prestar declarações. Explicou ter conhecido o arguido nas férias de verão de 20..., através das afilhadas do mesmo e da sua filha GG, que falou com ele e que o tinha como boa pessoa e de confiança. Negou ter sabido que a menor iria viajar sozinha com o arguido e que tivesse autorizado essas viagens. Na ida para o ..., falou antes com a NN, a mãe das afilhadas, pessoalmente e por telemóvel. Na ida para o ..., a menor disse que a KK, mulher do AA, também iria. Negou que a menor residisse em casa do arguido, admitindo que apenas aí pernoitou algumas vezes, poucas, com as outras meninas, e uma ou duas vezes a sós com o arguido, justificando esta situação por, só já muito tarde à noite, a menor a informar que as suas amigas afinal aí não dormiriam e ser tarde demais para a ir buscar. Alegou desconhecer a condenação que o arguido já tinha sofrido e disse que o arguido, em momento perto do inverno, a convidou uma vez para ir almoçar, com a menor, dizendo que estava a ser acusado e que era inocente. Considerou que, se fosse verdade, o arguido não teria esta conversa.
O pai das meninas, o OO, que trabalhava na ..., falava bem do AA.
A GG nunca lhe contou o que se passava e estava sempre feliz, sem evidenciar medo. A GG mentia-lhe porque queria sempre sair para estar com as amigas. No facebook, falsamente, a menor identificou a KK, agradecendo-lhe ter ido ao ....
Só soube do que se passava com o processo, tendo a menor dito que teve medo e que tinha sido ameaçada.
Chegou a ver a casa do arguido, confirmando que existia um quarto em cima, onde a menor ficava, e o do arguido, no piso de baixo. Reiterou que a menor ali não residia, apenas aí estando de dia com as miúdas e tendo passado apenas algumas noites.
Prestou declarações sobre a sua situação pessoal, familiar, profissional, económica e social.
II. Ouvida para memória futura (cfr. auto de declarações de .../.../2022 e transcrições juntas em .../.../2022 e .../.../2022), a menor GG descreveu os factos dados como provados em moldes que revelaram credibilidade e isenção.
III. O Tribunal ponderou os depoimentos das seguintes testemunhas:
1. PP, que relatou as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o arguido fez o check-in no A..., no ..., surgindo depois com aquilo que parecia ser um menino, tendo dormido ambos no mesmo quarto e saído no dia seguinte.
2. QQ, dono do A..., que relatou as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viu o arguido no hotel com o que julgava ser um menino. Entabulando o depoente diálogo com o arguido, este disse que o menino (que não falou e que estava junto ao arguido) era seu filho.
3. RR, professora na Escola ..., deu aulas à menor desde .../.../2021 até .../.../2022. Apesar de, desde o início, a menor evidenciar algumas dificuldades, teve sempre um comportamento uniforme, não lhe notando diferenças. A arguida, mãe da menor, comparecia na escola sempre que era convocada, revelando ser uma mãe como as demais.
4. KK, esposa do arguido, alegadamente separada de facto do mesmo desde data que não recorda mas que se situa desde antes do início da pandemia, mencionou, de forma um pouco errática, que continua a frequentar a casa dele como amigo, pelo menos uma vez por semana, quando o mesmo tem roupa para lavar, ficando lá às vezes de um dia para o outro.
Relatou as circunstâncias em que conheceu a menor, tendo-lhe dito que que não era bom andar só com um homem, o que explicou ter feito “por princípio”. A mãe da menor confiava no AA e a depoente não suspeitava do que se passava. O AA perguntou-lhe se queria ir ao ... mas a depoente não pôde ir, pelo que ficou surpreendida com a publicação que a menor fez no facebook.
A menor era rebelde, dizia palavrões. Trava a depoente por madrinha e o arguido por padrinho.
5. OO, vizinho e amigo do arguido – que é padrinho das suas filhas – desconhece se a GG ia a casa do arguido, descrevendo que a menor foi várias vezes à sua (do depoente) casa. Ainda assim, as suas filhas, quando vão a casa do arguido, vão sempre acompanhadas por si. Descreveu as circunstâncias em que a esposa e as filhas foram ao ... e de lá regressaram.
6. MM, filha do OO (mas que não é afilhada do arguido) relatou como a menor frequentava a sua (da depoente) casa e lá dormia, quando a mãe deixava. A GG entrava na casa do arguido sem ele saber, abrindo a porta, e este dizia para não ir lá por causa da mulher. Descreveu as circunstâncias em que, com a mãe, a irmã, um irmão bebé, foram ao ... e de lá regressaram. Nada sabe dos factos, nunca viu feridas ou lesões à GG e esta nada lhe contou.
7. LL, também filha do OO e afilhada do arguido, relatou o modo como convivia com a GG. Esta às vezes ia a casa do AA (a depoente também aí ia acompanhada do seu pai), onde a depoente nunca viu fotos da GG. Descreveu as circunstâncias em que, com a mãe e a irmã, foram ao ... e de lá regressaram. Nunca viu o AA a ir buscar a GG à escola. Nunca viu nada “anormal”, nem a GG lhe relatou. A mãe da GG ligava à filha para saber dela e a GG dizia que a mãe a autorizava a sair e a estar com o arguido.
Já visitou a GG na instituição e ela está triste por lá estar, mas não contou o que se passou.
8. NN, esposa do OO e mãe das menores ..., relatou que a GG ia de vez em quando à sua casa. As suas filhas frequentavam a casa do arguido, mas consigo ou com o seu marido, nunca sozinhas, já que se trata de um homem sozinho e a depoente se tem como pessoa protetora. Nunca viu fotos da GG em casa do arguido. Explicou como
foi combinada a ida ao ..., mas que, lá chegada, quis vir embora porque “viu muita gente e não gostou”. A GG acompanhou-os ao ... porque a mãe deixou, o que lhe foi transmitido pela própria GG, referindo a depoente que não é verdade que tenha falado antes com a arguida. A GG dizia que a mãe a deixava ir para casa do AA. Ouviu falar que o AA tinha um processo de abuso sexual quando o SS tinha um ano (e o menor fez três anos em ...). Contou à GG o processo do AA, mas não contou à mãe dela, a arguida.
9. II, companheiro da arguida há 8 anos, referiu que a menor sempre residiu na casa materna, onde ia dormir.
Quando a GG regressou do ..., após aí ter passado um período de três ou quatro dias (mais do que um, portanto), o AA e a família toda (os ...) foram levá-la a casa.
A arguida estava sempre preocupada com a filha e esta ligava para casa.
Nunca se apercebeu de diferenças de comportamento da GG.
10. TT, Inspetora da Polícia Judiciária, participou na investigação, descrevendo que foram feitas vigilâncias junto à casa do arguido, durante várias semanas, onde constataram que a menor aí passava a maior parte do tempo e aí dormia, saindo de manhã com o arguido, que a ia levar à escola e depois buscar. Não viu lá as outras miúdas. Não participou nas buscas, tendo, nesse momento, estado presente na abordagem feita à menor na escola.
Analisou a documentação sobre a estadia no ..., que conjugou com os registos de portagens na E....
Na abordagem feita à GG na escola, a menor estava muito envolvida e com mecanismos de ocultação, adicionando a KK às deslocações. Depois acabou por falar sobre os factos. A GG nunca lhe disse que contara os factos
à mãe, já que receava a sua reação.
11. UU, psicóloga na Fundação ..., conhece a menor desde que entrou na instituição, explicando que a mesma foi transferida no início deste ano para uma instituição sita em ....
Falou com a menor sobre os factos depois das perícias.
A menor tem baixa autoestima e autoapreciação, busca proteção e tem sentimentos de culpa, dizendo que a mãe não sabia por sua culpa.
Não tem perturbações no sono, mas às vezes tem pesadelos, cuja causa exata desconhece. Tem dúvidas se gosta de rapazes ou de raparigas, o que pode advir dos abusos de que foi alvo.
A mãe da menor ia lá frequentemente ver os filhos e ainda lá vai ver o outro filho menor. É pessoa frequente nas visitas.
Consigna-se, no que tange à prova testemunhal, que os depoimentos de PP, QQ, RR, TT e UU foram prestados de forma escorreita, tranquila, desinteressada, revelando conhecimento direto dos factos relatados e lógica quando conjugados com os demais meios de prova.
Já os depoimentos das demais testemunhas não foram considerados, sendo no essencial prestados de forma errática, comprometida e de modo disfuncional. Na verdade, e independentemente de ter ficado a sensação de que estas testemunhas não disseram tudo o que sabiam:
a) não se percebe como KK, esposa do arguido e que diz continuar a frequentar a casa dele como amigo – portanto com uma boa relação com ele – diz, sem mais, à menor que não era bom andar só com um homem;
b) da mesma forma, não é plausível que OO, vizinho e amigo do arguido – que é padrinho das suas filhas –, diga que as suas filhas, quando vão a casa do amigo, vizinho e padrinho, o fazem sempre acompanhadas por si; não se entende, nesta sequência, que LL, também filha do OO e afilhada do arguido, tenha dito que vai a casa do arguido acompanhada do seu pai e que não tenha visto fotos da GG em tal casa quando, aquando das buscas, várias fotos eram visíveis;
c) ainda nesta sequência, é incompreensível que NN, esposa do OO e mãe das menores ..., também insista que as suas filhas frequentavam a casa do arguido, mas consigo ou com o seu marido, nunca sozinhas. Sem olvidar que não é razoável a explicação para ter vindo do ... logo ao final de um dia, arrastando todas as pessoas consigo, ao invés de vir embora de autocarro, quando era previsto passarem mais dias, apenas porque “viu muita gente e não gostou”. Ir de ... ao ... é uma viagem muito grande que não se compadece com arrependimentos à chegada porque afinal não se gosta;
d) se havia sã proximidade declarada entre a menor GG e o arguido e uma boa relação entre o arguido e a sua ainda esposa KK, não se entende como MM, filha do OO, diz que a GG entrava na casa do arguido sem ele saber, abrindo a porta, e este lhe dizia para não ir lá por causa da mulher;
e) resultando cristalino das declarações da menor que regressou do ... a ... com todos os seus companheiros de viagem e que retornou ao ... sozinha com o arguido, e não tendo nenhum membro da família ... dito que foram levar a GG a casa, não pode convencer a afirmação de II, companheiro da arguida, de que, quando a GG regressou do ..., o AA e a família toda (os ...) foram levá-la a casa.
IV. Documentalmente, ponderou-se:
- expediente de fls. 1- 3, 5- 10, 23-32;
- auto de diligência de fls. 33- 37;
- informação de fls. 39- 41;
- auto de diligência de fls. 423, 44, 45, 46- 48, 49- 62;
- documentos de fls. 66- 69;
- auto de diligência de fls. 73- 79;
- informação de fls. 81- 82;
- certidão de assento de nascimento da menor GG de fls. 127;
- informação da base de dados da Segurança Social de fls. 129, referente à arguida;
- certidão extraída do processo n.º 456/17...., cf. fls. 165- 183;
- auto de busca e apreensão de fls. 214- 216, em .../.../2022;
- auto de apreensão de fls. 221- 222, igualmente em .../.../2022;
- auto de diligência externa de fls. 247;
- folhas de suporte, cf. fls. 268- 278, fls. 284- 287;
- reportagem fotográfica de fls. 289- 297;
- auto de busca e apreensão de fls. 302- 303;
- certidão do acórdão proferido no processo n.º 149/18...., cf. fls. 344- 378, 639-671;
- informação da CPCJ de fls. 466;
- informação prestada pela E... de fls. 501-503, referente ao veículo de matrícula ..-PQ-.. e ao período compreendido entre os dias ... e .../.../2022;
- declaração hospitalar junta pela defesa da arguida na primeira sessão do julgamento, referente ao acompanhamento feito aquando de um episódio de internamento do filho JJ.
V. Analisou-se o resultado da prova pericial, a saber:
- relatório de exame pericial de fls. 400- 446, repetido a fls. 518-565 – residência do arguido e ... ..-PQ-..;
- relatório da perícia de natureza sexual em direito Penal, a fls. 487-490 (relatório preliminar do exame feito à menor);
- relatório de exame pericial de fls. 566- 574 (incidente sobre o telemóvel da arguida, de onde se conclui ter havido chamadas deste telemóvel para o do arguido e vice versa);
- relatório de exame pericial de fls. 714- 755 (incidente sobre o computador ...);
- relatório de exame pericial de fls. 757- 760 (feito a escovas de cabelo, roupas, dildos, cabelos, pensos higiénicos, com alguns resultados positivos para vestígios biológicos da GG;
- relatório da perícia médico legal de fls. 762- 768, 791- 806 (este o original) – perícia psicológica feita à menor, concluindo pela credibilidade do seu discurso;
- relatório da perícia médico legal de fls.827- 835 (relatório final referente à menor GG).
VI. Os antecedentes criminais do arguido e a ausência de antecedente por parte da arguida emergem da leitura do respetivo certificado de registo criminal, datado de .../.../2023.
VII. A situação pessoal, profissional, familiar, social e económica dos arguidos resultou das declarações prestadas pela arguida e da análise dos relatórios sociais de cada um dos arguidos, juntos em .../.../2022 e .../.../2023.
Conjugadas as declarações para memória futura prestadas pela menor com os supra identificados depoimentos das testemunhas que revelaram credibilidade, com a prova documental, com o que foi apreendido e com o resultado das perícias, o Tribunal ficou convencido da ocorrência dos factos nos moldes dados como provados.
Reitera-se aqui que as declarações para memória futura são claras, escorreitas e precisas, não levantando dúvidas. A menor GG, pese embora a sua idade e grau de imaturidade, descreveu os factos com desassombro, vivacidade e inteligência, tendo consciência da gravidade da acusação e apresentando uma narrativa coerente e verosímil nos seus detalhes. A forma como descreveu a factualidade foi espontânea, sincera, circunstanciada e convincente, à luz das regras de experiência comum. Concretizou com absoluto rigor o contexto temporal em que ocorreram os factos e a caracterização explícita das condutas delituosas, o que permite, de forma segura, demonstrar a ocorrência dos factos dados como provados, não evidenciado a sua narrativa qualquer obscuridade, incoerência ou contrariedade. Ao invés, a GG revelou sempre segurança e rigor nas declarações que prestou, descrevendo com pormenor o sucedido e ilustrando de forma categórica o seu relato com a descrição dos locais e do modo como foram praticados os factos.
E, em consonância com o que vem de se expor, a perícia psicológica concluiu pela credibilidade do relato da menor, admitindo que corresponda a situações efetivamente vivenciadas pela mesma.
Por outro lado, o Tribunal não teve dúvidas em dar como provado que a GG, mais do que frequentar a casa do arguido, lá passava também as noites e aí fazia a sua vida, havendo uma grande proximidade entre ambos.
Como decorre do auto de apreensão (fls. 214-220) e das folhas que se mencionarão, são encontrados em casa do arguido: no seu quarto, e na sua mesa de cabeceira, uma foto da GG e o seu horário escolar– cfr. fls. 277-278 e 414; ainda no quarto do arguido, umas cuecas com motivos infantis (fls. 416),
um bikini feminino, roupas juvenis femininas em gavetas da cómoda (fls. 415-416), um trolley azul com roupa juvenil feminina; roupas juvenis femininas espalhadas pela casa e no wc (fls. 420-421, 428).
A GG tinha um quarto na casa do arguido, com um quadro com o seu nome por cima da porta, com uma cama, roupas e um portátil (fls. 290-291).
O arguido tinha preso ao frigorífico um papel com a indicação da marcação de um teste covid em nome da menor.
Na cozinha encontrava-se exposta uma foto da GG.
Na casa de banho foram encontrados vários pensos higiénicos com vestígios biológicos da GG (vide fls. 757-760), vestígios esses encontrados em algumas peças de roupa apreendidas.
Estes elementos, conjugados com as declarações da menor e da Inspetora que relatou as vigilâncias feitas, não deixaram dúvidas de que a menor residia em casa do arguido.
Os factos não provados, no que à menor GG respeitam, resultaram das declarações da menor.
Na verdade, analisadas as declarações para memória futura, a menor é muito clara quando, referindo-se ao primeiro episódio, diz que o arguido tentou apalpar-lhe os seios. Não disse que tinha sido apalpada.
Por outro lado, a menor não depôs exatamente como vertido no artigo 33º da douta acusação. Referiu que estava deitada no sofá, que o arguido a tinha tapado, que estava calor, que vestia um soutien desportivo e uma camisa ou camisola que estava aberta, e que o arguido depois levantou essa peça de roupa e olhou. A menor não disse que estava a dormir nem que o arguido a tenha olhado nos seios, pelo que, estando calor e a menor acordada, não há coincidência do relato, designadamente quanto às intenções do arguido.
Também, depondo sobre as circunstâncias de tempo, modo e lugar mencionadas no artigo 46º da acusação (a que corresponde o ponto 46. Dos factos provados), a GG não disse que o arguido tentou colocar a sua mão no interior da sua vagina. Diz antes que o arguido tentou colocar a sua (da menor) mão no pénis dele.
Também não se pode concluir, de forma isolada, pelas declarações da menor, que o arguido acariciou os seios da GG e apalpou-lhe / acariciou-lhe o rabo (facto referido na acusação sob o art.º 25º) em momento ou momentos distintos dos provados em 27 e 31.
Nos casos em que a acusação imputava ao arguido factos praticados “em datas não apuradas”, sem mencionar pelo menos, e no mínimo, quantas vezes esses factos ocorreram (precisão essa feita, por exemplo, no episódio das prostitutas, em que expressamente se disse – e demonstrou pelas declarações da menor – ter ocorrido duas vezes), o Tribunal, sem ter apurado, com rigor, que esses factos ocorreram pelo menos duas vezes ou pelo menos três vezes ou mais, apenas pôde dar como provada a ocorrência “em data não apurada”, ou seja, uma vez. Aliás, crê-se que, aquando da imputação de crimes aquando da dedução da acusação, mesmo nos casos em que se mencionou “em datas não apuradas”, também não se foi além da incriminação por um crime. Caso contrário, o número de crimes assacados ao arguido teria sido certamente maior.
E, na dúvida sobre quantas vezes o arguido praticou o mesmo ato concreto, não sendo seguro se o fez em mais do que uma ocasião, deve dar-se como provada a hipótese que beneficia o arguido, isto é, que o fez uma vez, ainda que em data não apurada.
Resultando das declarações da menor que a mesma ocultava dizer à mãe que estava a sós com o arguido, das mesmas não se evidenciando que lhe tenha contado algum dos atos que o mesmo praticou na sua pessoa e não se tendo sequer provado que a arguida sabia da (primeira) condenação que o arguido já tinha por crime de natureza sexual – mormente que tal fosse comentado na localidade -, o Tribunal ficou com dúvidas sobre se a arguida sabia, devia saber ou sequer desconfiava ou tinha razões para suspeitar que o arguido praticava atos de natureza sexual na pessoa da sua filha menor.
É efetivamente revelador de manifesta inaptidão para o exercício das responsabilidades parentais o facto de a arguida permitir que a sua filha vivesse em casa de alguém que conhecia há pouquíssimo tempo, aí dormindo e sendo levada por essa pessoa para a escola. Daí que não surpreenda que a menor e o seu irmão mais novo tenham beneficiado de medida de promoção e proteção de acolhimento residencial. Mas teria a arguida razões para suspeitar que o arguido poderia abusar sexualmente da filha, chegando ao ponto até de a poder tentar violar? E até que poderia bater-lhe ou ameaçá-la? É que o arguido era o padrinho das amigas da filha, delas sendo vizinho, e não se provou sequer que a anterior condenação do arguido fosse então comentada na comunidade. E desconhece-se se a pessoa com quem o arguido é ainda casado, apesar do seu depoimento incongruente, era ou não presença na casa ou na vida deste ou até na localidade, sendo que, na primeira hipótese, a dúvida beneficia claramente a arguida.
Além disso, e com todo o respeito pela arguida, quer pelas suas declarações, quer pela postura corporal evidenciada no decurso do julgamento (com inusitados trejeitos faciais aquando da prestação de alguns depoimentos e mesmo no decurso das alegações), tudo indicia que a arguida se rege por padrões, comportamentais, educacionais e de exigência, abaixo da média.
Daí que o Tribunal tenha ficado com dúvidas sobre se, neste caso concreto, a arguida admitiu a possibilidade de o arguido atuar como fez e se devia saber ou sequer desconfiava ou tinha razões para suspeitar que o arguido praticava atos de natureza sexual na pessoa da sua filha menor.
Ora, perante uma dúvida objetiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infração criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa.
Como consideram Gomes Canotilho e Vital Moreira «além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Cfr, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 1993, p. 203 e seguintes).
Como se lê no recente acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.02.2022, disponível no site da dgsi, cujo relator é o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. João Amaro, «quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia principio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa».
Assim, quanto à descrita matéria de facto não provada referente à arguida, a decisão do Tribunal decorreu do funcionamento do princípio geral da prova in dubio pro reo.
Também não foi feita qualquer prova sobre os citados danos que constam no pedido de indemnização e que o Tribunal julgou como não provados. Aliás, a testemunha específica do pedido de indemnização foi perentória em dizer que a menor não tem perturbações de sono, tendo por vezes pesadelos que não consegue relacionar com os factos em apreço.»
û
Conhecendo.
(i) Os factos provados
Os vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal
A incorreta valoração da prova produzida em julgamento
Não aceita o Recorrente a matéria que consta como provada nos pontos 23, 33, 34, 52 e 53.
E assenta semelhante discordância na ausência de prova bastante para a afirmar, convocando o teor das declarações prestadas, para memória futura, pela menor GG.

Vejamos se lhe assiste razão.
Com o propósito de bem expressar o nosso entendimento, impõe-se se precisem conceitos.
Em causa está o modo como pode sindicar-se a valoração da prova feita em 1.ª Instância, determinante para a fixação dos factos que aí se consideraram como provados e não provados – sindicância que pode fazer-se num primeiro momento fora e, depois, no âmbito dos vícios que devem ser aferidos perante o texto da decisão em causa [dito de outra forma, e respetivamente, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto e no domínio da impugnação restrita da matéria de facto].

A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto [ou aquela que se encontra fora do âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal], depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, ou seja:
«(...)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(...)»
E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme se dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa
Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento. No domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.
Erro do Julgador, no momento em que perceciona a prova, em que toma contacto com ela, e não no momento em que a avalia. Erro que pode viciar a avaliação da prova, mas que a antecede e dela se distingue.
Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, página 1131, em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal, afirma que «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (...)»; «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».
«(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado (...).».[3]
De onde é lícito concluir que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».[4]
Ou seja, a gravação das provas funciona como “válvula de segurança” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto.

A sindicância da matéria de facto pode, ainda, obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão [e não do julgamento] – impugnação restrita da matéria de facto –, de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento de recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito [n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal].
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.
Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[5]
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» [6]
O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» [7]

Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Mas tal valoração é, também, sindicável.
O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante[8], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa].[9]
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão [10]
E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

Posto isto, e de regresso ao processo, face ao que se deixou dito é patente que nas conclusões que o Recorrente extraiu da motivação do seu recurso se confundiu erro de julgamento com erro notório na apreciação da prova e que não se atentou que tais erros constituem formas distintas de impugnação da matéria de facto, sujeitas a regras processuais não coincidentes.
O erro notório na apreciação da prova – previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal consubstancia-se num vício de raciocínio que se deteta pela simples leitura da sentença. As provas apontam num determinado sentido e na sentença concluiu-se em termos opostos. E este erro há-de ser percetível para qualquer pessoa de mediana formação cultural.
Como já se deixou dito, os vícios consagrados nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, de enumeração taxativa, terão que ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame da sentença – sem possibilidade de solicitação a outros elementos constantes do processo –, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O erro de julgamento, não se limita ao texto da sentença, sendo, ao invés., uma forma de impugnação alargada da matéria de facto e que deve ser exercida com observância do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

Ao que acresce que que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida também não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Todavia, o texto da decisão recorrida evidencia que factos nele considerados como provados não constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou.
Vejamos porquê.

Tendo o acórdão proferido nos autos sido condenatório, o objeto do processo inclui as condições familiares, sociais e económicas do Arguido.
Tornou-se procedimento habitual, na 1.ª Instância, a reprodução acrítica dos relatórios sociais.
Procedimento que aligeira o trabalho de quem o adota, considerando as facilidades que nos propiciam os meios informáticos que utilizamos, tal como se torna simples a referência, em sede de fundamentação da matéria de facto, à existência do relatório social “copiado”.
É procedimento indesejável.
Porque a infeliz menção a que “do relatório social do Arguido consta, além do mais, que”, apenas demonstra, como não podem desconhecer os Senhores Juízes que optam por semelhante formulação, a existência de relatório social no processo, com o conteúdo transcrito.
Ou seja, não estão provadas as condições familiares, sociais e económicas que o mesmo visa esclarecer.
Este procedimento é também indesejável porque consente a consagração, entre a factualidade provada, de referências indevidas e inaceitáveis numa sentença criminal – nomeadamente, a aspetos da vida de outros familiares do arguido, a palavras que o Arguido não quis pronunciar em julgamento e que desconhecemos se foram bem entendidas por quem as ouviu, a depoimentos indiretos e a juízos de valores não suportados em nada de tangível.

Convém ter presente que o «“Relatório social” é a informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborado por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei.
(…)
O relatório social não é uma prova mas tão só meio de prova habilitante do conhecimento da personalidade do arguido que, não tendo o valor de prova pericial, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova.»[11]

A mera transcrição do relatório social é, pois, inaceitável.
E conduz à inevitável conclusão de que não estão provadas as condições familiares sociais e económicas do Arguido e que o acórdão enferma do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, prevenido na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

Acresce que nos autos foi formulado pedido de indemnização civil.
No acórdão foi fixada quantia com vista ao ressarcimento de danos não patrimoniais.
Diz-se no n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E do n.º 3 do mesmo preceito resulta que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.
«O artigo 494.º alude ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais
circunstâncias do caso justificativas.
A expressão “em qualquer caso”, tanto abrange o dolo como a mera culpa (v. C.J. 1986, 2º, 233 e, Vaz Serra in Rev. Leg. Jur., 113º-96).
Demais circunstâncias do caso é uma expressão genérica que se pretende referir a todos os elementos concretos caracterizadores da gravidade do dano, incluindo a desvalorização da moeda.
Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim, um critério para a correção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.
Na verdade, a lei não dá qualquer conceito de equidade, mas, tem-se aceite a mesma como a consideração prudente e acomodatícia do caso, e, em particular, a ponderação das prestações, vantagens e inconvenientes que concorram naquele (v. Ac. do S.T.J. de 19-4-91 in A.J. 18º, 6).
A fixação da indemnização em termos de equidade deve levar em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida; nessa perspetiva, tem-se feito jurisprudência no sentido de que tal como escapam à admissibilidade de recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal” (arts. 400., n.1, al. b), do CPP e 679. do C PC), em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras – cf., entre outros, Acs. de 29-11-01, Proc. n. 3434/0º1; de 08-05-03, Proc. n. 4520/02; de 17-06-04, Proc. n, 2364/04 e de 24-11-05, Proc. n. 2831/05, todos da 5.ª Secção. Ac. do STJ de 07.12. 2006, Processo n. 3053/06 - 5.ª Secção) [12]
O conhecimento das condições de vida do Arguido é, pois, imprescindível.

A insuficiência da matéria de facto para a decisão é vício que esta Relação não pode suprir, por falta de todos os elementos a tanto necessários, e para garantir o duplo grau de jurisdição consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Vício que determina, por isso, o reenvio do processo para novo julgamento, restrito ao apuramento das condições familiares, sociais e económicas do Arguido – artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Deixa-se consignado que, com vista à determinação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, se torna necessário apurar o montante da pensão de reforma auferida pelo Arguido, o montante da pensão de alimentos paga a ex-cônjuge, se o mesmo é o proprietário do imóvel onde habitualmente reside ou, não sendo, qual o montante da renda que paga pela sua utilização e, sendo proprietário de veículo automóvel, quais as suas características e valor estimado do mesmo.

O que torna inútil o conhecimento das restantes questões que nos foram apresentadas pelo Recorrente.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, restrito ao apuramento das condições familiares, sociais e económicas do Arguido – artigo 426.º-A do Código de Processo Penal.

Sem tributação.
û
Évora, 2023 junho 6
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Maria de Fátima Cardoso Bernardes
__________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] No mesmo sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17.ª Edição, páginas 965 e 966.
[4] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006, processos n.º 2951/05 e n.º 461/06, respetivamente, acessíveis in www.dgsi.pt.
[5] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.
[6] 6] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.
[7] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.
[8] O julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.
[9] O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
[10] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos
– acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[11] Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de maio de 2021, proferido no processo n.º 454/19.1PEAMD.L1-5 e acessível em www.dgsi.pt
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de fevereiro de 2011, relatado pelo Senhor Conselheiro Pires da Graça, no processo n.º 395/03.4GTSTB.L1.Si – acessível em www.dgsi.pt