Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
238/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. INÁCIO MONTEIRO
Descritores: LEGITIMIDADE PARA SE CONSTITUIR ASSISTENTE
Data do Acordão: 03/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 68.º, N.º 1, A1. A), DO CPP; ART. 46.º, DO RGIFNA; ART. 50.º E 107.º, DO RGIT; ART. 1.º DO D. L. N.º 260/99, DE 7 DE JUNHO E ART. 63.º, DA CRP .
Sumário:

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto instituto público com autonomia financeira e administrativa, a quem compete cobrar dos contribuintes e administrar as prestações para a segurança social, tem legitimidade para se constituir assistente, ao abrigo do art. 68.º, n.1 al. a), do CPP.
Decisão Texto Integral:
Recurso n.º 238/04-4
Inquérito n.º 1/02.4TASBG-A, do Tribunal Judicial da Comarca de Sabugal
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Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
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No processo supra identificado, em que é arguido BB e ofendido o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social – Delegação da Guarda, foi proferido despacho a indeferir o requerimento deste através do qual pretendia constituir-se assistente.
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Inconformado com tal despacho, dele interpôs recurso o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social – Delegação da Guarda, sendo do seguinte teor as conclusões do recorrente:
Embora a Lei N.o 15/2001, de 5de Junho, novo Regime para as Infracções Fiscais, não comporte norma jurídica especial que expressamente confira a possibilidade de a Segurança Social se poder constituir como assistente.
Tal não significa que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social careça de legitimidade para se constituir como assistente.
Conforme dispõe o art. o 68.º, al.a) do CPP podem constituir-se assistentes além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito “os ofendidos considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação desde que maiores de 16 anos ".
Comiserando nós que a legitimidade da Segurança Social provém directamente do referido Artigo 68.º, uma vez que é representada por Institutos Públicos dotados de personalidade jurídica própria e titulares de interesses que a lei quis proteger com a incriminação não fará sentido entender ou colocar em causa este direito, o que de resto a lei especial não autoriza a concluir.
O bem jurídico tutelado pelos crimes contra a Segurança Social, fraude e abuso de confiança tem um carácter patrimonial, o qual assenta na satisfação dos créditos contributivos de que a Segurança Social é titular e que integram o seu património.
Sendo de relevar que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social reveste a natureza de Instituto Público dotado de autonomia administrativa e financeira com personalidade jurídica e património próprios - Artigo 1. o do D. L. N. o 260199, de 7 de Julho.
Não se confundindo assim ( o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) com o Estado, respondendo pelos seus actos em nome próprio.
Não é legalmente possível o indeferimento de constituição de assistente, não tendo o Despacho Recorrido feito correcta aplicação da Lei, na medida em que se subsume na mesma realidade jurídica duas pessoas orgânicas diferentes - a Administração Tributária e a Segurança Social.
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O Ministério Público, notificado da interposição do recurso, para os efeitos do art. 413.º, do Cód. Proc. Penal, veio responder, tendo sustentado que o recorrente tem legitimidade para se constituir assistente, uma vez que é ofendido nos autos, por ser o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, a par do direito à segurança social e dever de solidariedade e por isso deve ser revogado o despacho recorrido
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A senhora juíza “a quo” proferiu despacho no sentido de sustentar a decisão recorrida.
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Nesta instância o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, aderindo aos fundamentos enunciados da resposta à motivação, manifesta-se também pela procedência do recurso interposto, emitindo o seguinte parecer:
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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve resposta do recorrente.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre-nos decidir.
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O Direito:
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso, nos termos do art. 409.º, do Cód. Proc. Penal que impõe o princípio da proibição de reformatio in pejus.
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme escreve o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Questão a decidir:
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social tem ou não legitimidade para se poder constituir assistente em processo que corre termos por crime de abuso de confiança contra a segurança social.

Vejamos pois o despacho recorrido, o qual fundamenta o indeferimento que motivou o presente recurso no seguintes termos:
“Veio o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a fls. 105, requerer a sua constituição como assistente.
A Sr.ª Procuradora Adjunta e o arguido não tiveram nada a opor ao requerido.
Cumpre decidir.
De acordo com o disposto no art.° 68.°, n.° 1, a) do C.P.P, podem constituir-se como assistentes, (além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito), os ofendidos, considerando--se como tal os titulares dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
De acordo com o art.° 46.° do RGIFNA, a administração fiscal podia constituir-se assistente.
Sucede que aquele preceito legal não tem hoje consagração no RGIT, pelo que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social só poderá constituir-se como assistente se puder considerar-se ofendido, de acordo com a noção da referida alinea a) do act.° 68.° do C.P.P. Com efeito, sendo a Administração Fiscal um serviço simples do Ministério das Finanças, sem personalidade jurídica distinta do Estado, consubstanciada na estrutura da Direcção Geral das Contribuições e impostos é representada pelo Ministério Público, a quem cabe defender a legalidade e promover o interesse público (vide o art. 50.° do RGIT, sobre a assessoria técnica ao M. P.).
O conceito de ofendido não se identifica com o de lesado, sendo mais restrito, por isso não pode constituir-se assistente todo o lesado com o crime, mas somente o que seja titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Decorre dos autos que está em causa um crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Constituindo um crime eminentemente público, deve considerar-se que o verdadeiro ofendido neste crime é o Estado, não sendo assim de admitir a requerida constituição de assistente do I.G.F.S.S., por não ser o titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação (expressamente nesse sentido, considerando não poder existir a constituição de assistente, Paulo José Rodrigues Antunes, Infracções Fiscais e seu processo, Regime de 2001/2, Anotado, em anotação ao art.° 50.°, p. 71).
Face ao exposto, indefere-se o requerido”.
Nos termos do art. 68.º, n.º 1, al. a), do CPP, podem constituir-se assistentes, no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: os ofendidos, considerando--se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
É certo que o art. 46.º do RGIFNA, conferia à administração fiscal a qualidade de se poder constituir assistente.
O facto de aquele preceito legal não ter hoje consagração no RGIT, não nos permite tirar necessariamente a conclusão de que Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, não poderá constituir-se assistente nos autos.
O despacho recorrido equipara o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social à Administração Fiscal, sendo certo que estamos perante entidades diversas, quanto à qualidade de se poderem constituir como assistentes.
Parece-nos bem que tendo desaparecido norma especial a conferir à administração fiscal a qualidade de se poder constituir assistente, aplicar-se-à ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a norma geral do art. 68.º, n.º 1, al. a), do CPP.
E aplicar-se-à aquela norma porquê?
Em primeiro lugar diremos que estamos perante um crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Nesta conformidade é o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social considerado ofendido, considerando--se como tal, por ser o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto instituto, tem autonomia financeira e administrativa e administra património próprio, nos termos do art. 1.º, do DL n.º 260/99, de 7 de Julho.
Cabe-lhe por isso assegurar com as prestações entregues pelos trabalhadores no activo, o pagamento de pensões quando atingirem a idade de reforma por limite de idade ou por doença.
Não se confunde pois com o Estado propriamente dito.
Por isso mesmo os próprios funcionários do Estado estão sujeitos a contribuir com prestações para a segurança social.
Assim, o próprio Estado ao proceder ao pagamento dos vencimentos aos seus trabalhadores está obrigado a reter as prestações destinadas à segurança social e fazer a sua entrega, enquanto mero fiel depositário, como qualquer particular.
Se não veja-se a polémica recentemente criada com a falta de entrega de prestações à segurança social por parte do Ministério da Justiça.
No crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo art. 107.º, do RGIT, o bem jurídico tutelado é um bem jurídico multifacetado, abrangendo o direito fundamental à segurança social e dever de solidariedade, consagrados no art. 63.º, da CRP e ainda também como interesse que a lei especialmente quis proteger, o património da segurança social, isto é, o erário de que é titular a Segurança Social que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito.
É pois ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, dotado de autonomia administrativa e financeira, de personalidade jurídica e de património próprio, que incumbe zelar pela cobrança dos créditos em dívida dos seus contribuintes, proceder a inspecções para indagar situações de incumprimento e promover a sua cobrança, se necessário de forma coerciva.
Nesta conformidade, estando perante um crime de abuso de confiança contra a segurança social, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social assume a qualidade de ofendido, por ser o titular do interesse que a lei com a incriminação especialmente quis proteger, de acordo com o disposto no art. 68, n.º 1, al. a), do CPP.

Decisão:
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, julgar procedente o recurso e consequentemente revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que admita o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social – Delegação da Guarda, a intervir nos autos como assistente.
Sem custas.

Coimbra,