Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
161/08.0TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RESPOSTAS AOS QUESITOS
BASE INSTRUTÓRIA
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 646.º N.º 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Considera-se como não escrita a parte da resposta dada a um quesito que se encontre para além da matéria quesitada, aplicando-se por analogia do disposto no artigo 646.º n.º 4 do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou, na comarca de Gouveia, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B..., pedindo a condenação deste:

- a reconhecer que o autor é dono e legítimo possuidor do prédio rústico situado em ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto de terra de centeio, a confrontar do norte com o caminho, do nascente com a estrada, do sul e poente com P..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... com a área de 13.000 m2, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00 .../ ...96, com os limites constantes no levantamento que junta e a área, que vier a resultar de levantamento efectuado, tendo em conta os mesmos limites, em peritagem que venha a ser realizada nos presentes autos, em caso de impugnação da área constante do levantamento que junta;

- a reconhecer que a linha divisória do prédio do autor correspondente à estrema nascente, é a linha que confina com a berma da Estrada, a nascente, que liga à Estação de ...; e que a linha divisória do prédio do autor correspondente à estrema norte, é a linha que confina com o limite do prédio a norte, e o qual, desde sempre pertenceu a AN... e seus legítimos sucessores;

- a reconhecer que a parcela de terreno situada a poente, e sul, dessas linhas divisórias, faz parte integrante do prédio do autor identificado nos artigos 1.º a 6.º da petição inicial;

- a proceder à terraplanagem das terras desta parcela de terreno, por si movimentadas com o propósito de subtrair ao autor a parcela de terreno em questão, assinalada a tinta vermelha no levantamento que junta;

- a abster-se de impedir ou perturbar por qualquer meio, o exercício do direito de propriedade do autor sobre a parcela, ora reivindicada - assinalada a tinta vermelha no levantamento que junta;

- em sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações, que resultem da decisão de mérito desta causa, em montante nunca inferior a 50 € por dia, sendo que, só metade se destina ao autor;

- a pagar ao autor, uma indemnização pelas perdas e danos, causados, no montante de 271,25 €, e os ainda não verificados, como consequência da sua conduta ilícita e culposa, no montante que se vier a apurar em sede de liquidação e execução de sentença;

- a pagar ao autor uma compensação por todos os danos morais emergentes da conduta invasora da parcela sub judice, que se alegam nos artigos 60.º a 63.º da petição inicial.

Alegou, em síntese, que adquiriu o prédio rústico situado em ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto de terra de centeio, a confrontar do norte com o caminho, do nascente com a estrada, do sul e poente com P..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... com a área de 13.000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00 .../ ...96 e inscrito a seu favor, por doação, dizendo também que o adquiriu por usucapião. Tal prédio tem os limites definidos no documento que juntou e que se encontra na folha 40. O réu ocupa a parcela de terreno que assinala no documento da folha 41 e com essa ocupação causou-lhe despesas num total de 271,25 €, para repor o terreno no estado anterior aos sucessivos actos praticados por este.

Contestando, o réu invoca a ineptidão da petição inicial e a sua ilegitimidade passiva e alegando, em síntese, que a parcela de terreno assinalada a vermelho no documento da folha 41 sempre fez parte integrante de um prédio seu.

O autor, na resposta à contestação, defendeu a improcedência da ineptidão da petição inicial e requereu a intervenção principal provocada da mulher do réu.

Admitida a intervenção na causa, ao lado do réu, da sua mulher, C..., foi a mesma citada para os termos da acção, sem que tenha apresentado qualquer articulado.

Foi proferido despacho saneador e fixaram-se os factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento.

Foi proferida sentença em que se decidiu:

Nestes termos, julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, declaro que o autor é titular do direito de propriedade sobre o prédio rústico sito à “ ...”, freguesia de ..., concelho de ..., composto de terra de centeio, a confrontar do norte com o caminho, do nascente com a estrada, do sul com P... e herdeiros de AN..., do poente com P..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... com a área de 13.000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00 .../ ...96; improcedendo os demais pedidos formulados de que absolvo os réus.

Inconformado com tal decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª) A resposta dada aos quesitos 1.º e 2.º, não tem qualquer elemento de prova que a sustente, e nenhuma das partes alegou que o prédio do Autor, com ou sem parcela em litígio confronte do sul com AN... e ou sucessores, porque isso não faz parte da realidade dos factos, nem de qualquer versão trazida aos autos pelas partes, e muito menos por qualquer meio de prova; e remeter a resposta ao 2.º quesito, para a descrição matricial e de registo do prédio do Réu, foi em nosso modesto entender, uma forma de nem dizer que sim, nem que não; já que naquela descrição se diz que confronta a nascente com a estrada.... em que ficamos ????

2.ª) A resposta dada aos quesitos 4.º a 11.º, pura e simplesmente, significa e isto sempre em nosso mui modesto entender, que os depoimentos das testemunhas D... , e dos pastores F... e G..., conjugados com a confissão resultante do depoimento de parte do Réu, não foram correctamente avaliados; depois de eles terem relatado tudo o que fizeram na parcela em litígio desde há mais de meio século, não teve qualquer relevância para o Tribunal a quo, e não dar qualquer relevância a actos de posse descritos de forma clara e inequívoca por pessoas que não podiam ter melhor razão de ciência, constitui em nosso humilde entender, não uma livre apreciação da prova, mas sim, uma não apreciação da mesma, como se esta não tivesse sido produzida;

3.ª) Assim e como entendemos que os depoimentos daquelas testemunhas não foram apreciados minimamente, o que teria certamente levado a uma resposta positiva aos quesitos 4.º a 11.º, poderá e deverá o Venerando Tribunal para o qual apelamos, reapreciar esta prova, porque efectivamente esta gente idosa, com tamanha razão de ciência, merece ser ouvida de outra maneira, e merecia da parte do Tribunal a quo, outro tratamento que valorasse o esforço que fizeram em ali ir contar o que fizeram durante mais de meio século nos prédios de Autor e RR e parcela em litigio...

4.ª) não dando qualquer relevância à mencionada prova produzida e inúmera documentação por demais citada nas alegações que antecedem, desde as escrituras, aos documentos sucessivos que mostram a forma como o Réu foi rectificando áreas e a confrontação de poente do seu prédio, para poder arrogar-se dono da parcela que o Autor reivindica como fazendo parte do seu prédio, o Tribunal a quo, acabou por deixar tudo na mesma , como se os documentos não falassem por si, e como se os pastores que traziam o gado na parcela em litigio, há mais de meio século, até o Réu de lá remover a vegetação comestível em Abril de 2006, não tenham praticado actos com qualquer relevância jurídica;

5.ª) para todos os efeitos, em nosso humilde entender, o Tribunal recorrido não valorou convenientemente, nem minimamente, a prova documental mencionada supra, nem tão pouco, os depoimentos da D. E..., e dos dois irmãos pastores F... e G..., não lhes atribuindo a relevância que o dever de julgar lhe impunha, para dar solução a este dissídio;

6.ª) desta forma, não só violou as normas contidas nos artigos 1305.º, 1308.º, 1311.º n.º 1, 1344.º n.º 1, e ainda os artigos 483.º e 496.º todos do CC, porque deixou de conhecer convenientemente da prova colocada à disposição do Tribunal - documental e testemunhal - não podendo assim aplicar as normas aos factos que podiam ter sido dados como provados e não foram, o que por sua vez impediu que se pudesse depois condenar por perdas e danos materiais e morais, causados com os actos dados como provados em resposta aos quesitos 13.º a 19.º da BI; cfr. pontos 5 a 11 dos Factos Provados na Fundamentação da decisão ora recorrida;

7.ª) em nosso modesto entender, ainda pela insuficiente ou deficiente apreciação da prova, o Tribunal recorrido viu-se privado de poder fazer uma correcta aplicação do Direito a factos constitutivos do direito de propriedade do Autor sobre a parcela em litígio, o que certamente, o levaria a uma decisão que resolveria de forma eficiente e eficaz o dissídio, e isto integra ainda uma denegação do seu Direito à Justiça para defesa do seu Direito de Propriedade, um Direito que se encontra consagrado na nossa CRP, pelo que a sentença ora recorrida se encontra ainda ferida dessa inconstitucionalidade;

8.ª) para poder ser feita Justiça, poderá e deverá o Venerando Tribunal para o qual apelamos, valorar de forma adequada e suficiente toda a prova supra invocada - documentos e depoimentos gravados devidamente identificados supra - restando-nos agora depositar nessa reapreciação toda a confiança que este Tribunal nos merece; sendo certo que reiteramos todos os pedidos feitos na petição;

9.ª) até porque estamos certos de que este Venerando Tribunal chegará à conclusão de que existe uma flagrante desconformidade da prova efectivamente produzida nos autos e a resposta dada aos quesitos 1.º a 2.º e 4.º a 11.º; o que depois levou a darem-se como improcedentes os pedidos deduzidos na petição;

10.ª) O Autor é titular do Direito de Propriedade, dono e legítimo possuidor, do prédio rústico sito à ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto de terra de centeio, a confrontar de Norte – e não de Sul – com AN..., do nascente com Estrada EN ..., do sul e poente com P..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ... com a área mencionada na matriz de 13 000 m2, descrito na CRP de ..., sob o n.º 00 .../ ...96; prédio este do qual faz parte a parcela triangular em litígio, assinalada a vermelho na planta de fls. 41 destes autos, todo ele, a confrontar de nascente com a estrada EN ...; e os RR devem ser condenados pelos actos praticados contra o Direito de Propriedade do Autor sobre esta parcela em litígio, nos precisos termos em que esses actos de violação, ficaram provados na decisão decorrida de 5 a 11 dos Factos Provados, respondendo por eles nos termos peticionados pelo Autor na petição.

Termina pedindo que a decisão recorrida seja revogada, procedendo a acção com a condenação dos réus nos pedidos.

Os réus contra-alegaram, mas as contra-alegações foram mandadas desentranhar por não ter sido paga a taxa de justiça e a multa a que se refere o artigo 685.º-D do Código de Processo Civil.

Face às conclusões com que findam as alegação de recurso, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há erro no julgamento da matéria de facto que figura nos quesitos 1.º, 2.º, 4.º e 11.º;

b) realizando-se a alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pelo autor, procede algum dos pedidos julgados improcedentes.


II

1.º


Dispõe o artigo 685.º-B n.º 1 a) que quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Cumprindo tal ónus, o autor, nas suas conclusões, refere-se (somente) aos quesitos 1., 2.º, 4.º e 11.º[1], dizendo, nomeadamente que, existe uma flagrante desconformidade da prova efectivamente produzida nos autos e a resposta dada aos quesitos 1.º a 2.º e 4.º a 11.º; o que depois levou a darem-se como improcedentes os pedidos deduzidos na petição[2].

Assim, a reapreciação da prova está limitada à matéria desses quatro quesitos.

Os quesitos 1.º, 2.º, 4.º e 11.º têm o seguinte teor:

1) O prédio referido em A) sempre confrontou do norte com AN... e, actualmente, com os seus sucessores?

2) E a nascente com a berma da estrada que liga à Estação de ...?

4) Há mais de 50 anos que, por si e antepossuidores, o autor tira todas as utilidades do prédio referido em A) com os limites constantes do documento de fls. 40?

11) E de não lesar os direitos de quem quer que fosse?

A estes quesitos o Meritíssimo Juiz respondeu:

1.º e 2.º: Provado apenas o que consta da alínea A) dos factos assentes e que o prédio confrontava parcialmente do lado sul com AN... e, actualmente, com os seus sucessores.

4.º: Não provado.

11.º: Não provado.

O autor defende que tanto na versão dos RR, como na do Autor, os prédios de AN..., sempre se situaram - e situam - a NORTE dos prédios de Autor e RR, em quaisquer das duas versões trazidas a Juízo; e foi isso que o Réu também disse no seu depoimento de parte[3].

Em primeiro lugar importa dizer que, no tocante à confrontação norte do imóvel do autor, não é isso que resulta do processo. Na verdade, o réu, no artigo 29.º da contestação, impugna que, conforme o autor havia alegado no artigo 4.º da petição inicial, o prédio deste confronte a norte com AN... e seus sucessores, o que significa que essa confrontação está controvertida. E o réu, quando no seu depoimento de parte lhe foi colocada a questão contida no quesito 1.º, respondeu que o imóvel do autor nunca confrontou a norte com AN..., acrescentando que não sabe com quem é que ele, nesse lado, confronta.

Em segundo lugar, ouvidos os depoimentos prestados e examinados os documentos juntos aos autos, conclui-se que não foi produzida prova que permita dar como assente o que figura no quesito 1.º, nomeadamente ninguém testemunhou nesse sentido.

Em terceiro lugar, nos quesitos 1.º e 2.º apenas se questiona as confrontações do prédio do autor a norte e a nascente; neles não se abrange a confrontação a sul. Então, é evidente que, quando o Meritíssimo Juiz responde a esses quesitos dizendo que o prédio confrontava parcialmente do lado sul com AN... e, actualmente, com os seus sucessores, está a ir para além do quesitado. Ora, aplicando-se por analogia o n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, deve-se considerar não escritas as respostas que excedam o âmbito das questões de facto formuladas[4]. Com efeito, não podem ser consideradas as decisões do tribunal (…) sobre factos não quesitados e se este decidir questões de facto que não lhe foram postas (…) considera-se não escrita a resposta[5].

Nestes termos, considera-se como não escrita a resposta dada aos quesitos 1.º e 2.º na parte em que aí se afirma que o prédio confrontava parcialmente do lado sul com AN... e, actualmente, com os seus sucessores.


3.º

Já quanto ao quesitado nos quesitos 2.º 4.º e 11.º, que entronca na questão de fundo dos autos, convém lembrar que o autor e o réu são donos de dois imóveis que em tempos pertenceram ao mesmo dono, H... , e depois da morte deste, à sua mulher I... , a qual vendeu um deles, em 1980, ao réu e dou o outro, em 1996, ao autor. A divergência entre as partes resulta de o autor considerar que o triângulo desenhado a vermelho na planta da folha 41 integra o seu prédio e de o réu entender que tal faixa faz parte da propriedade de que é dono.

Como é sabido, nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Significa isso que, nesta acção, é ao autor que cabe fazer prova dos factos de onde resulte que o terreno em disputa lhe pertence. Por isso, para que o pedido do autor seja julgado improcedente não se torna necessário que o réu faça prova de que o terreno em discussão é seu; basta que aquele não cumpra o ónus que sobre si recai.

A testemunha J... , mãe do autor, depôs no sentido de que o terreno triangular em causa integra o prédio do autor. Funda tal entendimento na circunstância de que foi essa a informação que lhe foi dada pelos pastores F... e G...(que são as testemunhas F... e G...). Resulta, pois, do seu depoimento que não tem conhecimento directo de factos concretos que lhe permitam saber, com segurança, quais as efectivas confrontações, nomeadamente a nascente, do imóvel do autor. Só sabe o que aquelas duas pessoas lhe disseram.

A testemunha E... começa por dizer não passa na zona onde estão os prédios das partes há mais de vinte anos, para depois já se referir a trinta anos e finalmente mencionar quarenta anos. Esta testemunha, que tem 86 anos de idade, afirma que em tempos tinha um terreno arrendado a H..., quando este ainda era dono de ambos os imóveis. Refere que lá plantava centeio e aí tinha um rebanho de ovelhas. Vendeu estas há quarenta anos e, desde então, deixou de ir para esses prédios. Quando lhe foi perguntado se a propriedade, hoje do réu, chegava ao caminho[6] respondeu Não chegava. Isso não sei. e repete Isso não sei. Tendo a pergunta sido colocada novamente, agora mencionando-se o triângulo em disputa como a parte que tinha tojos e questionando-se se ela pertencia à parte de baixo[7] da propriedade dos H e I... ou à parte de cima[8], E... disse Isso não sei explicar. E tendo a pergunta sido feita uma terceira vez respondeu Isso não sei. Conclui-se assim que a testemunha não sabe a que prédio pertence o terreno em causa, sendo certo que desde há cerca de quarenta anos que não acompanha os acontecimentos a eles relativos.

A testemunha F..., que tem 64 anos de idade, menciona que desde os seus 10 anos que vai para o prédio que hoje é do autor. Andou lá primeiro com o seu pai, que tinha esse imóvel arrendado, e depois foi ele quem o arrendou. Diz que semeava a tapada toda[9] até à estrada e que para aí levava um rebanho. Confirma que deu conhecimento à mãe do autor de quais os limites do prédio deste. Da parte inicial do seu depoimento resulta que o triângulo de terreno em disputa integra o prédio do autor. Referiu também que chegou a lavrar o terreno até à estrada[10]. Mas, também diz que quando H... era dono dos dois terrenos, foram plantados tojos nesse triângulo, os quais eram cortados e colocados na vinha[11] para a adubar. Quando lhe foi perguntado se sabe com exactidão se esse terreno pertence ou não à propriedade do autor, responde que Depende como fizeram a escritura[12], revelando não estar seguro quanto a saber a que prédio, afinal, pertence o triângulo disputado. Por outro lado, a testemunha é arrendatário do prédio autor, o que aproxima os seus interesses aos deste.

A testemunha G..., que tem 56 anos e é irmão de F..., declara que andou naqueles terrenos entre os seus 14 e 21 anos, altura em que foi para a tropa. Quer isso dizer que conheceu a realidade que ali se encontrava há 35 anos, quando, como referiu, ambos os prédios pertenciam a H.... Tendo-lhe sido perguntado se sabe se o terreno do tojal[13] pertencia à tapada[14] ou à parte da vinha[15] respondeu Isso aí é que eu não sei explicar. Acrescenta que ouviu dizer que os tojos eram para meter na vinha.[16] Afirma ainda que tem ideia que o triângulo em causa pertencia à tapada[17], por que o seu pai, na altura, como arrendatário, cultivava centeio e andava com um rebanho de ovelhas até à estrada[18].

A testemunha L... diz que sempre viu aquilo[19] como um baldio, nunca lá viu ninguém e que nos últimos anos deitavam aí muito lixo. Acrescenta que ouviu dizer que lá cortavam tojos para meter na vinha[20].

A testemunha M... afirmou que conhece mais ou menos o local há 15 anos, por ali passar na sua actividade de caçador. Refere que nunca lá viu ninguém fazer nada.

N... . e O... O... depuseram no sentido de que o triângulo em questão integra o prédio do réu, mas os seus depoimentos merecem pouca credibilidade, pois não se compreende que não saibam que o actual prédio do autor pertencia a H..., quando é certo que sabiam que este era o dono do prédio que hoje é do réu e dizem conhecer os factos desde quando este imóvel ainda era de H.... Quem conhecia a realidade do actual prédio do réu nessa época, dificilmente desconhecia que o imóvel que agora pertence ao autor era (também) propriedade de H....

A testemunha P... , de 71 anos de idade, também depôs no sentido de que a faixa em disputa integra o prédio do réu, isto por que, há mais de cinquenta anos, quando umas ovelhas que pastavam fugiram para aí, H... disse-lhe que essa parte pertencia à vinha[21]. Mas o seu depoimento reporta-se a factos ocorridos quando tinha entre 14 e 18 anos de idade e a explicação dada é insuficiente para se extraírem conclusões seguras.

As outras testemunhas não mostraram conhecer factos relativos ao quesitado nos quesitos 2.º 4.º e 11.º.

À luz do que se deixa dito, não se encontra na prova testemunhal produzida elementos que permitam atingir um patamar de certeza quanto aos factos objecto destes três quesitos. Com efeito, a testemunha F..., quando confrontado com a questão de saber a qual dos prédios é que pertence o triângulo em causa, revelou algumas dúvidas, não se mostrando segura de que ele integra, realmente, o do autor. Já as testemunhas E..., G... acabam por reconhecer que não sabem, com segurança, a que imóvel pertence aquele bocado de terreno. A testemunha J... diz que o que sabe relativamente aos limites do prédio do autor é o que lhe foi transmitido pelos pastores (testemunhas F... e G...), o que significa que não tem conhecimento directo de factos que sustentem a sua perspectiva das coisas. E esta testemunha também revela alguma parcialidade, a que não é alheia a referência que faz, por mais do que uma vez, ao prédio do autor, seu filho, como nosso.

As testemunhas N..., O... e P... depõem no sentido de que esse triângulo integra o prédio do réu. Por sua vez, as testemunhas L...e M... acabam por não sustentar qualquer uma das teses em confronto.

Esta prova, como se disse, não confere qualquer grau de certeza, quanto a saber se o triângulo em disputa integra o prédio do autor.

Por outro lado, os documentos das folhas 68 a 72, 79 a 88, 91 a 104 e 106 a 118, referem-se ao prédio do réu e, pese embora em alguns deles se mencione que ele confronta a poente com a estrada[22], não se pode extrair daí, necessariamente, a conclusão de que o triângulo de terreno em causa integra o imóvel do autor. Figurando no registo predial[23] essa confrontação é razoável que ela tenha que ser usada em documentação relativa ao prédio. Acresce que o réu não tem o ónus de provar que esse terreno é parte do deu imóvel.

Finalmente, há ainda que lembrar que se realizou uma inspecção ao local, em que, como se menciona na acta da folha 317, as partes prestaram esclarecimentos ao Meritíssimo Juiz, os quais não foram documentados, e que várias testemunhas, no decorrer dos seus depoimentos, foram confrontadas com algumas das plantas juntas aos autos, prestando esclarecimentos que, em grande parte, ouvindo apenas o que foi dito nessas ocasiões, não se conseguem perceber, visto que elas estão simultaneamente a apontar para partes desses documentos.

Portanto, tem que se reconhecer que o Meritíssimo Juiz formulou o seu juízo com base em alguma informação a que este tribunal de recurso não consegue aceder, motivo pelo qual ele está em melhor posição para fazer o julgamento de facto.

Há, pois, quanto à apreciação da prova, uma enorme diferença entre as condições que a primeira instância tem e as de que dispõe o tribunal de recurso; não se tenha a ilusão de pensar que, nessa matéria, as duas instâncias estão em pé de igualdade. Por isso mesmo é que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[24].

Nestes termos, sem prejuízo do que acima já se disse quanto ao facto de em parte da resposta aos quesitos 1.º e 2.º se ter ido para além do quesitado e das consequência daí decorrentes, nenhuma (outra) alteração deve ser feita ao julgamento da matéria de facto dos quesitos 1.º, 2.º, 4.º e 11.º.


2.º

Estão provados os seguintes factos:

1) O prédio rústico situado em ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto de terra de centeio, a confrontar do norte com o caminho, do nascente com a estrada, do sul e poente com P..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... com a área de 13.000 m2, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00 .../ ...96 e inscrito a favor do autor, pela inscrição G-2, apresentação .../ ...01 por doação de S..., viúva [A].

2) O prédio rústico situado em “ ...”, da freguesia de ..., concelho de ..., composto de terra de vinha com oliveiras e palheira, a confrontar do norte com Q..., do sul com a estrada, do poente com o caminho público e do nascente com R..., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...com a área coberta de 18,80 m2 e descoberta de 14381,2 m2, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .../1992 ... e inscrito a favor dos réus, pela inscrição G, ap. ...de 10/09/1992, por compra  a S..., viúva [B].

3) A área total correspondente aos limites assinalados no documento de fls. 41 é de 19.268,374 m2, nela se incluindo a área de 588,722 m2 relativa aos caminhos assinalados naquele documento [12.º].

4) Em Abril de 2006 o réu procedeu à remoção de vegetação e movimentação de terras na parcela de terreno delimitada a vermelho no documento de fls. 41 [C e 13.º].

5) No dia 18 de Setembro de 2006 um maquinista procedeu à terraplanagem das terras resultantes da movimentação referida no artigo anterior [14.º].

6) O autor despendeu importância não concretamente apurada na execução dos trabalhos referidos no artigo anterior [15.º]. 

7) Após a execução dos trabalhos referidos em 6), com uma máquina retroescavadora, o réu movimentou as terras daquela parcela, fazendo valas e montes de terra, de forma a impedir que continuassem a ser utilizadas para pasto [16.º].

8) Para endireitar o terreno resultante da movimentação das terras referidas no artigo anterior, o autor despendeu a importância de € 70,00, relativa ao pagamento da remuneração a dois homens [17.º].

9) De seguida foi semeado centeio na parcela de terreno assinalada a vermelho no documento de fls. 41 e a mãe do autor contratou o trabalho de um tractorista para atupir o centeio [18.º].

10) Já após a execução dos trabalhos referidos nos dois artigos anteriores, o réu procedeu à abertura de valas profundas e colocou montes de terra, deixando a parcela no estado constante das fotografias de fls. 67 [19.º].

11) A “antiga estrada da estação de ...” é a actual estrada de Ribamondego [20.º].

12) O caminho que delimita a parcela contornada a encarnado no documento de fls. 41, legendado como “caminho particular” é utilizado por qualquer pessoa que nele quer passar, sem pedir autorização a ninguém [22.º].


3.º

A violação do disposto nos artigos 483.º, 496.º, 1305.º, 1308.º, 1311.º n.º 1 e 1344.º n.º 1 do Código Civil e a ofensa aos direitos do autor tutelados por estas normas, que este afirma ocorrer[25], radica num alegado erro no julgamento da matéria de facto. É, segundo o que sustente, por se ter apreciado erradamente a matéria de facto que se viola tais disposições.

Ora, como se viu, o pressuposto não é verdadeiro, pelo igualmente não é verdadeira a conclusão que nele assenta.


II

Com fundamento no atrás exposto, julga-se:

a) parcialmente procedente a apelação, considerando-se, na resposta aos quesitos 1.º e 2.º, como não escrita a parte em que se dá como provado que o prédio confrontava parcialmente do lado sul com AN... e, actualmente, com os seus sucessores.

b) improcedente na restante parte a apelação, mantendo-se no mais a sentença recorrida.

Custas pelo autor.


António Beça Pereira (Relator)
Manuela Fialho
Távora Vítor


[1] Cfr. conclusões 1.ª, 2.ª, 3.ª e 9.ª.
[2] Cfr. conclusão 9.ª.
[3] Cfr. folha 381.
[4] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 639.
[5] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, 1951, pág. 533.
[6] Trata-se do caminho que no documento da folha 41 está marcado, em parte, a vermelho e que tem por cima os dizeres caminho particular.
[7] Refere-se ao prédio do réu.
[8] Refere-se ao prédio do autor.
[9] Refere-se ao prédio do autor, como incluindo o triângulo a vermelho da folha 41.
[10] Refere-se à estrada que na folha 41 tem a menção de antiga estrada da estação de ....
[11] Refere-se ao actual prédio do réu.
[12] Refere-se à escritura de compra e venda do prédio do réu.
[13] Refere-se ao triângulo em disputa.
[14] Refere-se ao prédio do autor.
[15] Refere-se ao actual prédio do réu.
[16] Refere-se ao actual prédio do réu.
[17] Refere-se ao prédio do autor.
[18] Refere-se à estrada que na folha 41 tem a menção de antiga estrada da estação de ....
[19] Refere-se ao triângulo em disputa.
[20] Refere-se ao actual prédio do réu.
[21] Refere-se ao actual prédio do réu.
[22] Cfr. folhas 71, 75, 81 e 91.
[23] Cfr. documento da folha 91. Como é sabido a presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange as confrontações que figuram no registo. Neste sentido pode ver-se Ac. STJ 8-10-2009, Proc. 839/04.8TBGRD em www.gde.mj.pt.
[24] Ac. Rel. Porto de 19-9-00, CJ 2000-IV-186.
[25] Cfr. conclusões 6.ª, 7.ª e 10.ª.