Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5144/21.2T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO LOCADO PARA HABITAÇÃO
FUNDAMENTOS
REGIME EXCECIONAL
APLICAÇÃO ANALÓGICA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
OCUPAÇÃO ABUSIVA
Data do Acordão: 10/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 862.º, 864.º E 865.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 150.º, N.º 5, DO CIRE
Sumário: I – Tratando-se de acções legislativas excepcionais, o Estado tem vindo a comprimir, de uma forma limitada e por razões sociais imperiosas, o direito de propriedade privada – por exemplo, o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 do Código de Processo Civil e artigo 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

II – O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %;

III – Portanto, no caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada para habitação a lei permite que, por razões sociais imperiosas, o juiz defira para momento posterior – sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do art.º 865.º não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder – a desocupação do imóvel – a jurisprudência vem entendendo que este incidente se circunscreve exclusivamente a situações de arrendamento para habitação e também às situações de insolvência por força da remissão operada no artigo 150º, nº 5 do CIRE para o artigo 862º. No entanto, está vedada a sua aplicação analógica, porque regimes de excepção, a situações nele não expressamente previstas, não havendo também qualquer razão que autorize uma interpretação extensiva.

IV – Provada a propriedade da Apelada, os Apelantes, além de não fazerem prova da existência de qualquer título que legitime a utilização do imóvel, fazendo-o, consequentemente, de forma ilegal, ilícita e abusiva, não estão abrangidos por este regime especialíssimo. Provada a propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, entre os quais não figura o de os Apelantes ocuparem a coisa abusivamente e sem título – neste preciso sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.10.2009, pesquisável em www.dgsi.pt.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5144/21.2T8CBR-A.C1
(Juízo Central Cível de Coimbra - Juiz ...)

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:



 I – Relatório:
AUTORA
A..., S.A., sociedade comercial matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o n.º ...50, com o mesmo número de identificação fiscal, com sede na Rua ..., Quinta ..., Edifício ..., ... ...
RÉU
AA, contribuinte fiscal número ...57, com residência na Rua ..., ... ...
INTERVENIENTE
BB, com residência na mesma morada.
A autora pede a condenação dos Réus:
a) Restituir à A. o prédio urbano que ocupa, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando do início da ocupação ilegal e,
b) Pagar à A. A quantia de €12.000,00 a título de indemnização por cada mês de ocupação ilegal do imóvel desde outubro de 2019, considerando-se uma renda mensal de €500,00 acrescida dos juros de mora à taxa legal até à desocupação e entrega efetiva do imóvel.
Fundamenta a sua pretensão no seu direito de propriedade sobre o imóvel que identifica, o qual se encontra ocupado pelo réu de forma ilegítima e abusiva.
O réu contestou alegando que o imóvel constitui a sua casa de morada, da mulher e dois filhos, não tendo outro local para viverem e que nunca a autora interpelou o réu para a entrega do imóvel.
Estamos, no seu entender, perante um conflito entre o direito de propriedade da autora e o direito de habitação do réu e o seu agregado familiar. Impugna o valor locativo do imóvel e conclui pela improcedência da ação.
A autora respondeu por escrito.
Convidada para o efeito, a autora deduziu o incidente de intervenção provocada do cônjuge do réu, BB, a qual veio a ser admitida, tendo a mesma feito seus os articulados do réu.
Teve lugar a audiência prévia, tendo sido facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem face à possível decisão parcial de mérito.

*
Julgada a causa pelo Juízo Central Cível de Coimbra - Juiz ..., foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto decide-se condenar o réu e a interveniente a restituírem à A. o prédio urbano que ocupam, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando do início da ocupação.
Custas nesta parte a cargo do réu/interveniente.
Valor da ação: o indicado pela autora.
Registe e notifique.
A ação deve prosseguir para apreciação do segundo pedido da autora.
Objeto do litígio: Indemnização pela privação do uso.
Temas de Prova: Valor locativo do imóvel.
Admito os róis.
Julgamento em 9/6/2024, pelas 9h30”.
*
Os Autores não se conformando com tal decisão, interpõem o seu recurso para este Tribunal, alinhavando, assim, as suas conclusões:
1ª) Conforme decorre dos autos, a contestação dos ora recorrentes, sem colocar em causa a propriedade do imóvel, assentou essencialmente no facto de o mesmo se tratar de casa de morada de família, não tendo existido qualquer interpelação pela recorrida para a sua entrega, continuarem os recorrentes e família a residirem no local e, consequentemente, inexistir mora por parte dos mesmos, mostrando-se, no caso concreto, um claro conflito entre o direito de propriedade da A., que os RR não contestaram, e o direito à habitação de um agregado familiar que não tem outro local onde residir, não lhe tem sido sequer fixado um prazo razoável para deixar o local,
2ª)Verifica-se, pois, um claro conflito entre os direitos constitucionalmente consagrados: o direito de propriedade, artigo 62º da CRP e o direito à habitação, artigo 65º CRP, ambos direitos vertebrais num Estado de Direito Democrático, como é o Estado Português.
Parecendo uma questão linear, temos que assim não será quando se coloca a discussão de saber qual deles prevalece sobre o outro.
3ª) Sem que tivesse produzido prova, a douta decisão recorrida que concluiu pela entrega do imóvel pelos ora recorrentes à recorrida ali deu por provado:
5. O imóvel encontra-se ocupado pelo R.,
6. O alegado vendedor do imóvel à ora A. tinha conhecimento que o mesmo constituía a casa de morada de família do R., sua mulher e dois filhos,
7. O que continua a acontecer atualmente, não tendo o R. e família outro local para viverem,
8. Em todo este período nunca a A. interpelou extrajudicialmente o Réu para entrega do imóvel,
10. Pelo que o R. apenas teve conhecimento de que o A. o tinha adquirido através da presente acção.
4ª) Vistos os factos dados como provados, que correspondem, ainda que sem produção de prova, em grande parte, aos factos alegados pelos recorrentes, a questão é exatamente saber se apenas no fundamento daqueles factos dados por provados, estaria o Meritíssimo Juiz “a quo” em condições de concluir pela entrega do imóvel, sem uma apreciação critica, dos mesmos.
5ª) Designadamente saber qual a consequência daquele comportamento omissivo da A. ao não dar qualquer conhecimento da aquisição aos recorrentes, sabendo que o mesmo constituía a sua casa de morada de família, e se, nessas circunstâncias, podia a decisão recorrida ter decidido, como o fez, não tendo sequer aguardado pelo normal desenvolvimento do processo. Cremos que o não poderia ter feito!
6ª) A douta decisão recorrida, num caso de claro conflito de direitos, o de propriedade e o de habitação (de família), decidiu optar pelo primeiro sem ponderar o peso específico de cada um, e ignorando ostensivamente a norma constitucional ínsita no artigo 65º da CRP que termina que “todos têm direito para si e para a sua família a uma habitação…”.
7ª) Face à matéria dada por provada, isto é, que o vendedor do imóvel à A, sabia que o imóvel estava ocupado pelos recorrentes e filhos, enquanto casa de morada de família, que tal continua a acontecer por não terem outro lugar para viverem e que durante todo aquele período a A. nunca tinha interpelado extrajudicialmente os recorrentes para a entrega do imóvel, cuja interpelação ocorreu apenas com a acção, tais factos deveriam ter sido objecto de uma ponderação critica por parte do julgador,
8ª) Ponderando, designadamente, quais as consequências de um comportamento tão omissivo desleixado por parte de alguém que adquire um imóvel, que sabe estar ocupado por uma família, sem ter um qualquer comportamento prévio ou mesmo subsequente, à aquisição, tendente à composição desses direitos conflituantes. Não, a A. limitou-se a fazer uso do seu poder económico, adquirindo o imóvel e de seguida, sabendo que o mesmo estava ocupado, sem algum momento interpelar os recorrentes, veio exigir a entrega do imóvel, no fim de contas, despejando os recorrentes e família.
9ª) Com o devido respeito, que é muito, a decisão recorrida não poderia ter concluído pela restituição do imóvel nos termos em que o fez, tornando-se necessária produção de prova para apreciar e decidir sobre as consequências do comportamento omisso da recorrida ao ignorar ostensivamente que o imóvel era casa de morada de família dos recorrentes e filhos, traduzindo essa omissão uma clara violação das obrigações decorrentes do disposto no artigo 607º nº 4 do CPC.
10ª) Mesmo quando assim se não entendesse, isto é, mesmo que se tivesse como boa a decisão recorrida em decidir pela entrega nesta fase processual do imóvel à A., nunca tal decisão poderia ser tomada sem uma compatibilização critica com a matéria dada por provada, designadamente e sempre, o facto de a A., quando adquiriu o imóvel, saber que o mesmo estava ocupado pelos requerentes e família, que constituía cada de morada de família, sem nada ter dito ou feito para resolver essa situação altamente conflituante de direitos.
11ª)O mesmo fez a decisão recorrida que na oposição de dois direitos constitucionalmente garantidos, o direito de propriedade e o direito à habitação, decidiu-se pela prevalência do direito de propriedade, sem uma sequer palavra ou apreciação critica daquele direito à habitação, em clara violação das obrigações decorrentes do artigo 607, nº 4 do CPC e artigo 615, nº 1 b), c) e d) do mesmo diploma e, a final do disposto no artigo 65º da CRP, sendo por isso nula de acordo com o disposto no artigo 615, nº 1 b) e d) do CPC.
12ª) Pelo que terá de ser revogada e substituída por acórdão que ordene o prosseguimento dos autos para produção de prova, com todas as consequências daí advenientes.
13ª) Quando assim se não entenda, sempre terá de declarar-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que cumpra os deveres decorrentes do disposto no artigo 607º nº 4 e 615º nº 1 b), c) e d) do CPC, articulando e harmonizando os factos dados por provados, designadamente apreciando-os criticamente com a decisão de direito pela qual e em consequência venha a optar.
*
A..., S.A. A./apelada nestes autos apresenta as suas contra-alegações assim concluindo:
(…).

2. Do objecto do recurso
2.1 – Das nulidades decisórias;
Neste particular alegam os Apelantes:
“10ª) Mesmo quando assim se não entendesse, isto é, mesmo que se tivesse como boa a decisão recorrida em decidir pela entrega nesta fase processual do imóvel à A., nunca tal decisão poderia ser tomada sem uma compatibilização critica com a matéria dada por provada, designadamente e sempre, o facto de a A., quando adquiriu o imóvel, saber que o mesmo estava ocupado pelos requerentes e família, que constituía cada de morada de família, sem nada ter dito ou feito para resolver essa situação altamente conflituante de direitos.
11ª)O mesmo fez a decisão recorrida que na oposição de dois direitos constitucionalmente garantidos, o direito de propriedade e o direito à habitação, decidiu-se pela prevalência do direito de propriedade, sem uma sequer palavra ou apreciação critica daquele direito à habitação, em clara violação das obrigações decorrentes do artigo 607, nº 4 do CPC e artigo 615, nº 1 b), c) e d) do mesmo diploma e, a final do disposto no artigo 65º da CRP, sendo por isso nula de acordo com o disposto no artigo 615, nº 1 b) e d) do CPC”.
Com todo o respeito, os Apelantes carecem de razão.
Com é sabido, a norma do art.º 615º n.º 1 do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -  fulmina com nulidade a sentença que:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível e d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Como é sabido, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, sendo que a nulidade a que se reporta a al. b), só ocorre quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto e/ou de direito da decisão.
No seguimento da norma mais geral do artigo 154.º do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem – que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, exige a norma do art.º 615.º, n.º 1, al. b), que o julgador especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - discriminando os factos que considera provados e indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final -, sob pena de nulidade - as nulidades da decisão/sentença constituem vícios intrínsecos da própria, deficiências da respetiva estrutura, o que não é confundível com o erro de julgamento, sancionando vícios formais, de procedimento – errore in procedendo - e não patologias que eventualmente traduzam erros judiciais - errore in judicando.
Ora, vamos escrevendo, quase diariamente, que esta causa de nulidade da sentença, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação, como tem sido unanimemente defendido pela doutrina e jurisprudência – na pena do Professor Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 140)-, sempre actual, haverá “que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Por outro lado, a ambiguidade ou obscuridade da decisão só se verifica se é ininteligível e tem vários sentidos possíveis - implica que, seja na decisão, seja na fundamentação, se chegue a resultado que possa traduzir dois ou mais sentidos distintos e porventura opostos, que permita hesitar sobre a interpretação adoptada, ou não possa ser apreensível o raciocínio do julgador, quanto à interpretação e aplicação de determinado regime jurídico, considerados os factos adquiridos processualmente e visto o decisório in totum/Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-01-2021 (4258/18.0T8SNT.L1.S1), pesquisável em www.dgsi.pt.
Não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível, sendo que a ininteligibilidade relevante para efeito da norma do art.º 615.º é a da decisão da causa e não a mera ininteligibilidade de um argumento utilizado no percurso decisório - a omissão pressupõe uma abstenção não fundamentada de julgamento e não uma fundamentação errada para não conhecer de certa questão.
Mais, o Supremo Tribunal de Justiça tem declarado, constantemente, que deve distinguir-se as autênticas questões e os meros argumentos ou motivos invocados pelas partes, para concluir que só a omissão de pronúncia sobre as autênticas questões dá lugar à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil – por todos o Acórdão de 8.2.2024, pesquisável em www.dgsi.pt. /omissão e o excesso de pronúncia reconduzem-se à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do tribunal.
A decisão queda-se aquém ou foi além do thema decidendum ao qual o tribunal estava adstrito, consubstanciando-se no uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se ter deixado por tratar de questões que deveria conhecer - no caso da omissão de pronúncia - ou por se ter abordado e decidido questões de que não se podia conhecer - no caso de excesso de pronúncia.
Ora, com todo o respeito pela alegação dos Apelantes, nenhuma dessas nulidades assombra a decisão da 1.ª instância. Lida, percebemo-la, entendemos o raciocínio do julgador, que além de aí levar o núcleo factual invocado pelos Apelantes – pontos 8 a 10 -, concluiu que tal era insuficiente para arredar a aplicação da norma do artigo 1311.º n.º 1, assim escrevendo:
“Reconhecido o direito de propriedade à autora reivindicante a restituição só não ocorrerá se o reivindicado provar que detém a coisa por um justo título (art. 1311º, nºs 1 e 2). O demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa.
 Reconhecido tal direito ao reivindicante a restituição só não ocorrerá se o reivindicado provar que detém a coisa por um justo título. O demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira
Significa isto, que serão os réus que, tal como decorre dos arts. 1311º, nº 2, e 342º, nº 2, terão de alegar e fazer prova de que possuem título (vg. usufruto, contrato de arrendamento ou comodato) que impede que os autores venham a obter a restituição das aludidas frações autónomas, ainda que lhes venha a ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre as mesmas.
No caso dos autos ficou indemonstrado que o réu possua qualquer título válido para a detenção do imóvel.
A citação do réu e da interveniente valem como interpelação.
Não há conflito de direitos uma vez que o réu/interveniente não são titulares de qualquer direito que legitime a ocupação do imóvel que é propriedade da autora”.
Ora, lendo este naco decisório e o relatório da sentença, no qual se descreve todo o factualismo alegado, haveria necessidade de se escrever mais? Nos tempos em que se imputa à Justiça e aos seus colaboradores, o pecado de ser muito formal, com decisões muito extensas, repetitivas? Será que os Apelantes não compreenderam o decidido?
Salvo o devido respeito, parece-nos que não haveria necessidade de se escrever mais, de se alongar, desnecessariamente, a decisão. Esta é simples, mas eficaz, cumprindo-se o ritual judiciário, podendo o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória – artigo 595.º n.º 1 al. b).
Improcedem, pois, os assacados vícios à decisão.
*
2.2 – Dos factos;
O Tribunal da 1.ª instância assentou, assim, a sua matéria de facto:
1-Econtra-se inscrito na matriz sob o artigo ...54, do concelho ... e da freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o número ...05, cujo valor patrimonial ascende a €83.729.00, conforme certidão do Registo Predial e Caderneta Predial Urbana que se juntam como DOC. 1 e 2, um prédio urbano sito na Rua ..., ... ...
2. A A. adquiriu o referido imóvel ao Banco 1... S.A. (NIPC ...82) conforme resulta da AP. n.º 403 de 21/10/2019 cf. certidão permanente fls. 67.
3. O Banco 1... tinha assumido a propriedade do imóvel através de um processo de execução que correu termos no Juízo de Execução ... sob o n.º 9385/10.... tendo posteriormente transmitido a propriedade do imóvel à aqui A. cf-título de transmissão e escritura de compra e venda de fls. 58 a fls. 66.
5. O imóvel adquirido encontra-se ocupado pelo R..
6. O alegado vendedor do imóvel à ora A. tinha conhecimento de que o mesmo constituía a casa de morada de família do A., sua mulher e dois filhos.
7. O que continua a acontecer atualmente, não tendo o R. e família outro local para viverem.
8. Em todo este período nunca a A. interpelou extrajudicialmente o Réu para a entrega do imóvel.
10. Pelo que o R. apenas teve conhecimento de que a A. o tinha adquirido através da presente ação.
*
2.3 – Da interpelação aos Apelantes para entrega do imóvel;
Diz-nos a norma do art.º 805.º, n.º 1 do Código Civil que se constitui em mora do devedor depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. Ora, no caso dos autos, não resulta da lei nenhuma obrigação de interpelação prévia ao cumprimento ou, no caso, à entrega do imóvel, pelo que deve considerar-se a citação equiparada à interpelação judicial para cumprimento.
Não se vendo razões, nem fundamento legal, para exigir da Apelada o cumprimento de uma obrigação que a lei não lhe confere e a não a obriga, sempre se deve concluir que esta não estava obrigada a interpelar extrajudicialmente os Apelantes para a entrega do imóvel, equiparando-se, por isso, a citação à interpelação ao cumprimento, nos termos legais e para os devidos efeitos – mesmo que o facto não fosse exigível, no momento em que a acção foi proposta, não impede que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu a conteste, nem que este seja condenado a satisfazer a prestação no momento próprio/ artigo 610.º n.º 1.
*
2.4- Direito à habitação versus direito à propriedade;
Alegam, ainda, os Apelantes a impossibilidade do tribunal em decidir como decidiu, por força da existência de um conflito entre os diretos de propriedade e habitação.
É certo que, de uma forma programática e alterável aos ventos ideológicos, o art.65.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, afirma que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, sem, no entanto, colocar em causa, a respeito do direito de propriedade, que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição - art.º 62.º, n.º 1.
Por isso, incube ao Estado as acções para assegurar o constitucional direito à habitação, como aliás decorre do artigo 3.º da Lei de Bases da Habitação, aprovada pela Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro, na sua redação em vigor.
Como é sabido, tratando-se de acções legislativas excepcionais, o Estado tem vindo a comprimir, de uma forma limitada e por razões sociais imperiosas, o direito de propriedade privada - por exemplo, o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 do Código de Processo Civil  e artigo 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
No caso de diferimento decidido com base na alínea a), cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Portanto, no caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada para habitação a lei permite que, por razões sociais imperiosas, o juiz defira para momento posterior - sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do art.º 865.º não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder - a desocupação do imóvel - a jurisprudência bem entendendo que este incidente se circunscreve exclusivamente a situações de arrendamento para habitação e também às situações de insolvência por força da remissão operada no artigo 150º, nº 5 do CIRE para o artigo 862º.
Mais, está vedada a sua aplicação analógica, porque regimes de excepção, a situações nele não expressamente previstas, não havendo também qualquer razão que autorize uma interpretação extensiva.
Por isso, regressando aos autos, provada a propriedade da Apelada, os Apelantes, além de não fazerem prova da existência de qualquer título que legitime a utilização do imóvel, fazendo-o, consequentemente, de forma ilegal, ilícita e abusiva, não estão abrangidos por este regime especialíssimo.
Como se escreve no Acórdão do STJ  de 13.12.2022, pesquisável em www.dgsi.pt., ocupando a Ré o imóvel pertencente ao A. Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP, sem deter qualquer título para o efeito e não pagando qualquer contrapartida por essa mesma ocupação, assiste à proprietária, nos termos gerais do artigo 1311º do Código Civil, o direito a reivindicar, obtendo para si, o seu imóvel;  Merecendo a débil situação pessoal da Ré ocupante/utilizadora, mormente a sua fragilidade económica e o seu precário estado de saúde, o máximo respeito, devendo ser devidamente considerada, atendida e cuidada em sede e momento próprios pelas entidades públicas vocacionadas para a resolução destes problemas graves de emergência social, o certo é que a mesma não é susceptível, em termos estritamente jurídicos, de paralisar o direito de propriedade do A. que exige, legitimamente, a restituição de um bem que lhe pertence, cuja utilização não contratualizou com a Ré, e pela qual não recebe qualquer contrapartida, com directo prejuízo para as finalidades e programação (que lhe compete) das suas funções assistenciais, as quais devem cobrir globalmente toda a comunidade necessitada, em conformidade com os critérios e procedimentos legais previamente aprovados pelos órgãos competentes;  No mesmo sentido, não é possível interpretar o regime constante da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, que estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efectiva garantia desse direito a todos os cidadãos, nos termos da Constituição da República Portuguesa, como legitimando, num dado caso concreto, as ocupações de imóveis ilegalmente consumadas e que perdurem no tempo, agindo os ocupantes sem título e usando-os gratuitamente contra a vontade do seu proprietário, ao completo arrepio das atribuições conferidas às entidades competentes neste domínio da atribuição de habitação social, sob pena de total descaracterização e subversão da concepção de Estado de Direito que preside a todo o nosso edifício legislativo.
Provada a propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, entre os quais não figura o de os Apelantes ocuparem a coisa abusivamente e sem título – neste preciso sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.10.2009, pesquisável em www.dgsi.pt.
Alegando a Apelada/Autora ser proprietária da fracção autónoma em apreço nos autos – identificada no ponto 1 dos factos -, pediu que os réus sejam condenados a reconhecer esse seu direito e condenado a restituir-lhe esse bem. Em face da factualidade dada como provada, impõe-se concluir que o direito de propriedade da autora, sobre o imóvel em causa, adveio à sua titularidade em virtude de a haver adquirido através de venda pelo anterior proprietário que havia adquirido o imóvel em venda executiva - cfr. art.ºs 1316.º do Cód. Civil. Com base nesse título a autora/apelada efectuou a correspondente inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial ..., pelo que beneficia da presunção de titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em causa - art.º 7.º do Cód. Reg. Predial.
Trata-se, com é sabido, de uma acção petitória que tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela. O jus reivindicandi é a manifestação da supremacia universal do direito do proprietário que, impondo-se erga omnes, determina a passividade dos restantes sujeitos jurídicos e a reposição intrínseca da plenitude do gozo do objeto.
O demandado apenas poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base na existência e validade de uma qualquer relação - obrigacional ou real - que lhe confira a posse ou a detenção da coisa – neste preciso sentido, por exemplo, Profs. Pires Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 116.
Não o tendo feito, terá o recurso de improceder.
*
As conclusões (sumário):
(…).

3.Decisão
Na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Coimbra - Juiz ....

Custas a cargo dos Apelantes.

Coimbra, 8 de Outubro de 2024

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Chandra Gracias - 1.ª adjunta)

(Paulo Correia – 2.º adjunto)