Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
369/07.6TBCDN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPOSO
REQUISITOS
Data do Acordão: 04/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 186º, NºS 1, 2 E 3, DO CIRE
Sumário: I – Tendo presente o disposto no artº 186º, nº 1, do CIRE – noção de insolvência culposa -, para a qualificação da insolvência como culposa importa que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito, que: - tenha criado ou agravado a situação de insolvência; - tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo; - e que essa conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.

II – De acordo com o nº 2 do referido preceito, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito, tenham praticado algum dos factos previstos nas diversas alíneas desse número – presunções juris et de jure de insolvência culposa.

III – Já o nº 3 do dito preceito contém uma presunção ilidível de existência de culpa grave por parte dos administradores de sociedades, ao não requererem a insolvência do devedor ou ao não procederem à elaboração das contas, à sujeição a fiscalização ou ao depósito das contas.

IV – Verificada qualquer uma das situações tipificadas nas als. do nº 2 do artº 186º do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa.

V – Para que se possa qualificar a insolvência como culposa, nas situações previstas no nº 3 do artº 186º, é necessário verificar que os comportamentos omissivos aí previstos criaram ou agravaram a situação de insolvência, não bastando a mera demonstração da sua existência e o funcionamento da presunção de culpa que recai sobre os administradores.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Na sentença proferida em 1.8.2007 que declarou a insol­vência de A... , foi, além do mais,  decidido proceder-se à abertura do incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno.
B... e C..., credores, junta­ram aos autos as alegações a que se refere o artigo 188º, nº 1, do CIRE, concluindo pela qualificação como culposa da insolvência da supra referida sociedade, tendo alegado, em síntese:
Ø Os administradores da insolvente violaram o disposto no art.º 186º, n.º 3, als. a) e b), do CIRE.
Ø Os mesmos não cumpriram a obrigação legal que impendia sobre a insolvente de depositar as suas contas na conservatória do registo comercial compe­tente.
Ø Os administradores da insolvente igualmente não cumpriram o dever que impendia sobre a insolvente de a mesma se apresentar à insolvência no prazo de 60 dias após o conhecimento da sua situação de insolvência, sendo certo que a mesma se reporta, pelo menos, a 2005, e que a insolvente apenas se apresentou à insolvência em 31.07.2007.

Pelo administrador da insolvência foi junto o parecer a que alude o art.º 188º, n.º 2, do CIRE, o qual, igualmente, concluiu pela qualificação da insolvência como culposa, pelas mesmas razões adiantadas pelos credores.

O Ministério Público, no parecer a que se reporta o artigo 188º, nº 3, do CIRE, defende a  qualificação da insolvência como culposa.

Os sócios-gerentes da insolvente, D... e E... , opondo-se à qualificação da insolvência como culposa, deduziram oposição nos termos e para os efeitos do artigo 188º, n.º 5, do CIRE, alegando:
Ø O estado de insolvência da insolvente decorreu das circunstâncias pró­prias do comércio de acessórios de golfe a que a mesma se dedicava.
Ø A insolvente, constituída em 2002, no ano de 2004 começou a definhar devido à ausência de vendas, circunstância, aliás, comum a grandes superfícies comerciais, de que é exemplo a secção de golfe da F... instalada no Centro Comercial G...., em H..., porquanto os grandes retalhistas europeus iniciaram o seu comércio na internet e com isso reduziram as possibilidades de sucesso da insolvente, a qual somente uns meses após Agosto de 2006 se tornou inviável economicamente.
Ø Com a sua acção não contribuíram para a insolvência da insolvente, sendo certo que a falta de depósito das contas da mesma na conservatória do registo comercial competente e o facto de somente se terem apresentado à insolvência em 30.07.2007 não contribuíram para a criação ou agravamento da situação de insol­vência.
Concluíram pela qualificação da insolvência como fortuita.

Veio a ser proferida decisão que qualificou a insolvência como fortuita.

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Inconformados com esta decisão dela recorreram os credores da insol­vente B... e C..., apresentando os seguintes  fundamentos:
1 – A escalpelização hermenêutica da sentença, ora, recorrida descor­tina, salvo o devido respeito que muito é, equívocos continentais ao nível da sub­sunção e interpretação jurídicas e descobre falências fácticas manifestas.
2 – O Tribunal “a quo” afasta a situação de insolvência nos 2 anos ante­riores a 27.7.07, com base em suposições fácticas, que nunca foram provadas nos autos, e muito menos sequer alegadas pela própria interessada, postergando, ainda o estatuído no art.º 18º, n.º 3, do CIRE.
3 – Pelo menos desde Janeiro de 2006 (3 meses após o incumprimento do pagamento das rendas vencidas desde Novembro/2005) a insolvente teve conheci­mento presumido e inilidível da sua situação de insolvência (vide artigo 18º, n.º 3, do CIRE).
Logo tinha a obrigação no prazo de 60 dias, requerer a sua declaração de insolvência, nos termos do artigo 18º, n.º 1, do CIRE, o que não fez, uma vez, que o respectivo requerimento entrado em juízo, data apenas de 27.7.2007, convindo-se, pois, que os gerentes da devedora não cumpriram a obrigação legal que sobre si impendia de requererem a situação de insolvência.
4 – Atendendo ao elemento sistemático, teleológico e literal do artigo 186º, n.º 3, do CIRE, a referida noção de culpa grave só pode dizer respeito à pró­pria insolvência!!!
A própria epígrafe do artigo 186º do CIRE é esclarecedora “Insolvência Culposa”. Isto é, a culpa grave presumida nos termos do artigo 186º, n.º 3, com­preende necessariamente o nexo causal, com a criação ou agravação da situação de insolvência, pois, a culpa está a seu montante e não a jusante deste critério.
5 – Quando o legislador refere insolvência culposa está automaticamente a afirmar que a situação de insolvência foi criada ou agravada em consequência da actuação dolosa, ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores de direito ou de facto.
6 – Quando o  n.º 3 do art.º 186º do CIRE, presume a culpa grave, está a presumir que (como explica o n.º 1) a insolvência foi criada ou agravada em conse­quência da actuação dolosa ou com culpa grave dos seus administradores, sendo inerente o nexo causal entre a insolvência e tal incumprimento, a não ser que esta presunção seja afastada pelo interessado, fazendo prova em contrário (vide artigo 350º, n.º 2 do CC), o que não sucedeu in casu.
7 – Violou, assim, a douta sentença em análise, o disposto nos artigos 3º, 18º, 20º, 186º, todos do CIRE, e ainda o artigo 352º do CC.
Conclui pela procedência do recurso.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela con­firmação da decisão recorrida.

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1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações dos recorrentes, cumpre apreciar a seguinte questão:

A conduta dos gerentes da Requerida determina que a insolvência seja qualificada como dolosa?

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2. Os factos

Da leitura da decisão recorrida, conclui-se que na mesma foram conside­rados provados os seguintes factos:

I – A insolvente é uma pessoa colectiva, constituída, em 31.03.2004, sob a forma de sociedade comercial, por quotas, encontrando-se matriculada na Conser­vatória do Registo Comercial de H... sob a matrícula nº 506926893, desde tal data, pela apresentação nº 10/20040331, com o capital social de € 7.500,00 euros, repartido por três quotas de € 2.500,00, cada.

II – O objecto social da insolvente delimita-se na comercialização de material desportivo, comércio de vestuário, importação de vestuário e material desportivo e organização de eventos.

III – É, actualmente, sócio-gerente da insolvente D....

IV – I.... , actualmente sócio da insolvente, cessou as suas funções de gerente em 12.12.2005.
V – A insolvente era titular de uma empresa, que estava apetrechada com equipamento administrativo, contava com a colaboração de um técnico de contas e relacionava-se com clientes e fornecedores.

VI – Foi a insolvente quem, em 30.07.2007, se apresentou à insolvência.

VII – Por sentença já transitada em julgado, proferida em 01.08.2007, nos autos principais, foi declarada a insolvência da Requerente.

VIII – Pelo menos em 27.07.2007, data em que deu entrada em juízo o requerimento de apresentação à insolvência, a requerente encontrava-se em situação de insolvência.

IX – A insolvente declarou ao fisco ter tido resultados líquidos de exercí­cio negativos no que toca aos anos de 2005 (- € 17.547,90), 006 (- € 18.863.,74) e 2007 (- € 14.982,99).

X – Por referência a Novembro de 2006 o balancete geral relativo às contas da insolvente apresentava no que toca ao acumulado dos movimentos a débito e a crédito por referência a tal ano um saldo nulo, ou seja, tais movimentos encontravam-se equilibrados.

XI – Por referência à data em que a insolvente se apresentou à insolvên­cia encontrava-se em dívida a diversos fornecedores por referência aos anos de 2004, 2005 e 2006 a quantia de € 32.734,33.

XII – Por referência à mesma data o único património da insolvente con­sistia nas mercadorias por si adquiridas, atinentes à prática do golfe, no valor de € 11.372,77.

XIII – A insolvente nunca procedeu ao depósito das suas contas anuais na Conservatória competente.

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3. O Direito Aplicável

Vem o presente recurso interposto da decisão proferida no incidente de qualificação de insolvência, no processo respeitante a A...
Conforme resulta dos autos, na sequência da declaração de insolvência de A... foi declarado aberto o incidente de qualificação com carácter pleno, nos termos impostos pelo art.º 36º, i),  e 188º, todos do C.I.R.E..
Da remissão que o n.º 7, do art.º 188º, do C.I.R.E., faz para o art.º 132º, do mesmo diploma, conclui-se que este incidente constitui um apenso do processo de insolvência, devendo nele constar todas as peças processuais referidas no art.º 188º, nomeadamente, alegação de qualquer interessado para efeitos de qualificação de insolvência, parecer do administrador, parecer do Ministério Público, documentos que instruam estes pareceres e decisão, caso as propostas do administrador e do Ministério Público sejam de qualificação da insolvência como fortuita.
Caso os pareceres não sejam coincidentes na qualificação a atribuir, pro­cede-se à citação dos interessados, identificados por aqueles que devam ser afecta­dos pela qualificação da insolvência como culposa e à notificação do devedor, para deduzirem oposição.
A apresentação de oposição pode dar lugar a articulado de resposta, desde que verificado o circunstancialismo previsto no n.º 6, do art.º 188º, do C.I.R.E..
Findos os articulados haverá lugar à prolação do despacho a que alude o art.º 510º e 511º, do C. P. Civil, tendo posteriormente lugar a audiência de discussão e julgamento e finalmente a sentença.
Foi esta a tramitação seguida neste caso, tendo a sentença proferida con­cluído pela qualificação da insolvência como fortuita.
No caso em análise, defendem os Recorrentes que a insolvência deve ser qualificada como culposa, uma vez que se encontram demonstrados nos autos factos que integram as presunções contidas no art.º 186º, n.º 3, a) e b), do C.I.R.E., não sendo necessário a demonstração do nexo causal daquelas condutas omissivas com a situação de insolvência.
Independentemente de se considerar se houve ou não violação por parte dos gerentes da devedora da obrigação de requerer a insolvência da mesma no prazo fixado pelo art.º 18º, n.º 1 e 3, do CIRE, antes do mais há que analisar se a verifica­ção das condutas omissivas que os recorrentes dizem estar verificadas – as contidas nas alíneas a) e b), do n.º 3, do art.º 186º, do CIRE – são, por si só, suficientes para a qualificação da insolvência como culposa.
A situação de insolvência ocorre quando o devedor se encontre impossi­bilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – art.º 3º, nº 1, do CIRE.
Consta do n.º 1, do art.º 186º, do CIRE.:
 A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do pro­cesso de insolvência.
Tendo presente esta noção de insolvência culposa, para essa qualificação importa que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito que:
- tenha criado ou agravado a situação de insolvência,
- tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo,
- e que essa conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.
De acordo com o n.º 2 deste mesmo artigo, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito, tenham praticado algum dos factos previstos nas diversas alíneas desse número.
Assim, neste n.º 2, consagram-se presunções, “juris et de jure”, de insolvência culposa [1].
Já o n.º 3 dispõe:
Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incum­prido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Aqui não se estabelece, ao contrário do que acontece no n.º 2, uma presunção de que a insolvência é culposa, mas tão somente uma presunção ilidível, de que os administradores, ao não requererem a insolvência do devedor ou ao não procederem à elaboração das contas, à sujeição a fiscalização ou ao depósito das contas, agiram com culpa grave.
A lei é precisa nos termos que emprega: no n.º 2 refere-se expressamente que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular, enquanto que no n.º 3 apenas diz que presume-se a existência de culpa grave.
Assim, verificada qualquer uma das situações tipificadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 186º, do CIRE, o julgador deve, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa. Já quando se verifique uma das situações previstas nas alíneas do n.º 3, do mesmo artigo, apenas será dispensável a demonstração do nexo de imputação desses incumprimentos, a título de culpa, aos administradores da pessoa colectiva insolvente, sendo exigível a verificação dos demais requisitos, incluindo o nexo de causalidade entre esse incumprimento e a criação ou agravamento da situação de insolvência, para que esta possa ser qualificada como culposa [2].
Para que se possa qualificar a insolvência como culposa, nas situações previstas no n.º 3, do art.º 186º, do CIRE, é necessário verificar que os comportamentos omissivos aí previstos criaram ou agravaram a situação de insolvência, não bastando a mera demonstração da sua existência e o funcionamento da presunção de culpa que recai sobre os administradores.
Da análise dos factos provados, não resulta a verificação de qualquer um de que se possa concluir que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essas omissões.
Não estando, pois, demonstrados os requisitos da insolvência culposa, revela-se correcta a sua qualificação como fortuita, devendo improceder o recurso.

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Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto e, em conse­quência, confirma-se a sentença recorrida.

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Custas do recurso pelos recorrentes.


[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, pág. 15, ed. 2005, Quid Júris, Carvalho Fernandes, em A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor, pág. 94, da Themis, edição especial (2005), e Menezes Leitão, em Direito da insolvência, pág. 270-271, da ed. de 2009, da Almedina.
[2] Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, na ob. e loc. cit., Menezes Leitão, na ob. e loc. cit., e
os seguintes acórdãos:
TRC, de 28.10.08, relatado por Artur Dias, acessível em www.dgsi.pt, proc. 2577/05.5TBPMA-R.C1,
TRE, de 17.4.02, relatado por Sílvio Sousa, acessível em www.dgsi.pt, proc. 2773/07-2;
TRG, de 20.9.07, relatado por António Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt, proc. 1728/07-2,
TRL, de 22.1.08, relatado por Graça Amaral, acessível em www.dgsi.pt, proc. 10141/2007-1,
TRP, de 15.3.07, relatado por Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt, proc. 0730992,
TRP, de 18.6.07, relatado por Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt, proc. 0731779,
TRP, de 13.9.07, relatado por José Ferraz, acessível em www.dgsi.pt, proc. 07311516.