Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1806/04.7TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO
RENDA
NÃO PAGAMENTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ACTUALIZAÇÃO DE RENDA
COMUNICAÇÃO ANUAL PELO LOCADOR
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1038º E 342º, Nº 2, C.CIV.; 33º, NºS 1 E 3 DO RAU.
Sumário: I – É entendimento jurisprudencial maioritário o de que o não pagamento de rendas – seja como causa de pedir de acção de dívida, seja como fundamento de resolução do contrato de arrendamento – não tem a natureza de facto constitutivo, antes se configurando o seu pagamento como facto extintivo do direito a esse pagamento, cabendo o ónus de prova nesta matéria não ao autor, mas ao réu – artº 342º, nº 2, C.Civ..

II – Nesta problemática deve-se propender, pois, na consideração segundo a qual o pagamento das rendas, ou melhor, o seu não pagamento, não se distingue, no essencial, da dogmática jurídica do normal incumprimento, fazendo recair a sua alegação e prova no devedor.

III – A consideração de que apenas o invocado pagamento das rendas pelo réu pode ser levado à base instrutória significa que, quando o pagamento não tenha sido invocado, v.g. porque o réu que o devia alegar seja revel, o julgador não tem de incluir o não pagamento dessas rendas nos factos provados ou nos não provados, mas terá de extrair essa conclusão de não pagamento precisamente da não demonstração do contrário.

IV – Estabelecendo a lei um procedimento de diligência anual a cargo do locador para que o direito à actualização do valor da renda possa ser accionado, o facto de no contrato de arrendamento se deixar estipulado que a renda fixada será actualizável não dispensa o senhorio de diligenciar anualmente pela comunicação formal, expressamente prevista e desejada pelo legislador como condição (anual) para uma eficaz actualização.

V – Se por ventura o locador não comunicar num ano (ou em mais) ao locatário a actualização das rendas, não poderá no ano a seguir, na actualização que pretenda realizar, incluir o coeficiente legal do ano ou anos em que não diligenciou pela comunicação.

Decisão Texto Integral:        

                        Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal Judicial de Pombal, H… e E…, residentes em …, Pombal, intentaram a presente acção, com processo sumário, contra L… e M…, residentes na …, pedindo que os Réus sejam condenados a pagarem-lhes a quantia de € 7.943,85, referente a rendas vencidas e não pagas até 01/04/2004, acrescida de € 286,90 de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.

Para tal alegam que deram de arrendamento, mediante escritura pública realizada no Cartório Notarial de Ansião, realizada no dia 10/02/1999, a fracção M, destinada ao comércio, correspondente ao r/c direito do prédio urbano, sito na Rua de … e descrito na Conservatória de Registo Predial competente sob o nº...

Tal contrato teria a duração de 5 anos, renovável por igual período de tempo, caso não fosse denunciado pelas partes; a renda inicialmente convencionada foi no montante de 2.280.000$00, a pagar mensalmente em duodécimos, no domicílio deles, autores, ou a quem eles indicassem, no valor de 190.000$00, cada.

A dita renda, nos termos acordados, seria actualizável anualmente com a aplicação do coeficiente legal de actualização, com vencimento no primeiro dia útil do mês anterior a que disser respeito.

O local arrendado destinava-se a comércio, exercido pelo réu.

Desde a data de celebração de tal contrato que o réu passou a usar a dita fracção, destinando-a à actividade comercial a que se dedicava; contudo, a partir do dia 1/09/2003, o réu deixou de proceder ao pagamento da renda, apesar de ter sido interpelado a pagá-la.

Acrescentam que o réu somente lhes entregou a fracção arrendada no dia 28/05/2004.

Mais afirmam que as rendas mensais no ano de 2004, com a legal actualização, ascendiam a € 1.035,41, pelo que tendo de ser efectuada a retenção na fonte o seu montante era de € 882,65.

Assim, referem que se encontram em dívida as rendas referentes aos meses de Agosto a Dezembro de 2003 e de Janeiro a Abril de 2004, no montante total de € 7 943,85.

Acrescentam, ainda, que o réu marido exerce a actividade comercial no ramo de vestuário, tendo arrendado a fracção em causa no exercício de tal comércio, com o consentimento, conhecimento e concordância da cônjuge mulher.

Mais afirmam que da actividade exercida pelo réu resultavam ganhos e proventos, os quais revertiam no interesse comum do casal e do seu agregado familiar, designadamente para socorrer aos encargos com alimentação, vestuário, calçado, energia eléctrica, gás e todos os demais inerentes a uma economia doméstica, sendo ambos os réus responsáveis pelo pagamento das rendas em atraso.

O réu marido foi citado editalmente e a ré mulher, citada, contestou, afirmando que tinha conhecimento de que o réu havia arrendado uma loja em Pombal onde exerceu a actividade de venda de artigos de vestuário, desconhecendo, contudo, as circunstâncias concretas de tal arrendamento, nomeadamente a pessoa do senhorio, o montante de rendas que o mesmo pagou ou deixou em dívida, assim como a data em que procedeu à entrega do imóvel aos autores.

Acrescenta que ela e o seu co-réu se encontram separados de facto desde meados de 2002, uma vez que em Julho de 2002 aquele abandonou o lar conjugal e passou a viver com uma senhora de nome …, trabalhadora do seu estabelecimento comercial, com quem passou a co-habitar na R. … e com quem continua a viver, ao que supõe, em Inglaterra.

A partir de Julho de 2002 não voltaram a co-habitar, tendo o réu levado do lar conjugal a sua roupa e demais pertences.

Em finais de 2002, o réu foi viver para o Algarve, mais concretamente para Albufeira, onde passou a explorar uma pizzaria, o que deixou de se verificar em princípios de 2003.

Acrescenta que ela é, desde 1978, trabalhadora do Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra, auferindo o respectivo vencimento, sendo certo que à data em que se constituiu a dívida em causa nos autos ela não dependia economicamente do réu, mas do salário que recebia.

Por outro lado, desde que o réu abandonou o lar conjugal deixou de contribuir para as despesas do mesmo e para a alimentação, vestuário, saúde e qualquer outra despesa dela e dos seus filhos, o que aliás já acontecia nos últimos meses da co-habitação.

Efectivamente, desde o Verão de 2002 que ela passou a viver exclusivamente do seu vencimento, não recebendo do réu qualquer contribuição para as despesas que tinha.

Era com tal vencimento que fazia face às suas despesas e dos seus filhos com alimentação, saúde, vestuário e demais despesas, tendo, por vezes, de recorrer à ajuda de uma amiga que consigo co-habitava e que contribuía para as despesas da casa designadamente com alimentação.

Por outro lado, teve de recorrer ao auxílio de familiares e amigos que, em momentos de maior aperto económico, lhe emprestavam dinheiro.

Assim, já muito antes do período a que respeitavam as rendas cujo pagamento é reclamado nos autos que não beneficiava da actividade comercial desenvolvida pelo réu, sendo certo que este último gastava tudo o que auferia em seu exclusivo proveito.

Acrescenta que o réu, no período a que as rendas respeitam, já não exercia actividade comercial no estabelecimento em causa, pelo que também desse facto decorre que nunca poderia advir qualquer ganho, para si, do dito arrendamento.

Por outro lado, veio a ré invocar que as rendas vencidas em Agosto, Setembro e Outubro de 2003 já se encontram prescritas, na medida em que a sua citação apenas ocorreu no dia 13/10/2008 e que somente com tal citação se tendo interrompido a prescrição.

Efectivamente, nos termos do disposto no art. 310º, al. b), do CCivil, os montantes de tais rendas prescreveram no prazo de 5 anos. Assim, conclui pela improcedência da acção com a sua consequente absolvição do pedido.

Os autores vieram apresentar articulado de resposta à contestação referindo que os réus se casaram em 1977, sendo certo que tal casamento ainda não foi dissolvido.

Assim, consideram que sendo a dívida em causa nos autos proveniente do exercício do comércio é também a ré responsável pelo respectivo pagamento.

Relativamente à prescrição invocada consideram que a mesma se não verifica, na medida em que a acção foi proposta em 14/10/2004 e, se bem que não tenham identificado correctamente a ré, ela era identificável pela respectiva morada, pelo que a sua não citação nos 5 dias posteriores à propositura da acção lhes não é imputável, pelo que a prescrição se interrompeu decorridos 5 dias após a propositura da acção.

Assim, concluem pela improcedência da excepção invocada.

Elaborado despacho saneador e dispensa a realização de base instrutória foi designado julgamento e proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada relativamente à ré M… e parcialmente procedente o pedido deduzido contra o réu L… e, em consequência, condenou-se este o mesmo no pagamento as autores da quantia de € 6.634,01 referente às rendas relativas aos meses de Outubro de 2003 a Maio de 2004, bem como no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos desde a data em que cada uma de tais rendas deveriam ter sido pagas, isto é, no primeiro dia do mês anterior ao que dissessem respeito, à taxa legal de 4 %, até integral pagamento.

Inconformados com esta decisão dela interpuseram recurso os autores concluindo que:

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O Tribunal de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

… …

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C.P.Civil), nem criar decisões sobre matéria nova, a Apelação a recorrente pretende a revogação da decisão recorrida por em seu entender ter havido matéria de facto alegada e importante à decisão mas que não foi objecto de julgamento; a impugnação da matéria de facto quer por contradição entre alguma daquela que foi dada como provada, quer por erro de julgamento relativamente a outra e reclama diferente decisão de direito com base em errada interpretação e aplicação das normas jurídicas.

Iniciando a apreciação do objecto de recurso pela invocação dos recorrentes quanto a ter havido factos alegados e importantes à decisão da causa que não foram objecto de julgamento nem de prova, concretizamos que esses factos, na alegação dos apelantes eram os que estavam incluídos nos pontos 35º, 51º, 55º, 56º e 57º da sua petição inicial.

Na análise dos autos, observamos que a fls. 149, no tribunal recorrido, foi proferida decisão com os seguintes termos “Uma vez que o réu citado editalmente não apresentou contestação, não sendo de aplicar o disposto no art. 784 do CPCivil, impõe-se a produção de prova sem condensação, art. 508-A nº1 al.e) do CPCivil.

Notifique, cumprindo ainda o disposto no art. 512 do CPCivil.”

Entendeu-se pois determinar o prosseguimento dos autos sem fazer a selecção da matéria facto relevante que se considerava assente e a que deveria constituir a base instrutora, ao abrigo de uma faculdade prevista no art. 787 nº1 do CPC que permite essa dispensa quando a selecção dos factos se revista de simplicidade.

Ora, na petição inicial os autores alegaram que “Presentemente encontram-se em dívida as rendas respeitantes aos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2003; Janeiro Fevereiro, Março Abril de 2004; vencidas - respectivamente - nos dias 1-8-03 no valor de 882,65 €; 1-9-03 no valor de 882,65 €; 1-10-03 no valor de 882,65 €; 1-11-03 no valor de 882,65 €; 1-12-03 no valor de 882,65 €; 1-1-04 no valor de 882,65 €; 1-2-04 no valor de 882,65 €; 1-3-04 no valor de 882,65 € e 1-4-04 no valor de 882,65 € ”. (art. 35 dos factos articulados na pi);

“O réu marido como se referiu, exerce e explora a actividade comercial no ramo de vestuário?” (art. 51 da pi);

“Da actividade exercida pelo R. marido, resultavam ganhos e proventos; os quais revertiam no interesse e proveito comum do casal formado pelos RR e, do seu agregado familiar”. (art. 55 da pi);

   “Bem como, integravam e aumentavam, proporcionalmente o seu património” (art. 56 da pi);

“Designadamente, para socorrer aos encargos com alimentação vestuário, calçado energia eléctrica, gás e todas as demais inerentes a uma economia doméstica” (art. 57 da pi);

Consultando os factos que o tribunal recorrido considerou como provados e não provados (vd. fls. 243 a 249) retemos que, quanto às rendas, não se faz referência alguma às que estavam em dívida ou não, nomeadamente, não se deu como provado (nem como não provado) que os réus desde Agosto de 2003 tenham deixado (ou não) de pagar as rendas ou, tão pouco, que tenham deixado de fazer esse pagamento apenas a partir do mês de Setembro de 2003.

Sabendo-se que o pedido formulado nos autos pelos autores era, exclusivamente, o do pagamento das rendas que se dizia estarem em falta pelos réus, importa determinar se tal facto deveria ser tomado como constitutivo do direito invocado, cabendo assim ao autor/locador a alegação e prova das rendas que estavam em dívida ou se, tal cumprimento, como facto extintivo, caberia antes no ónus de alegação e prova do réu/locatário.

A este propósito um entendimento possível é o de que, não obstante a prova do cumprimento de uma obrigação (como facto extintivo dela) incumba ao devedor - art. 342 nº2 do CPC - quando esse não cumprimento está inscrito como pressuposto constitutivo e fundamental do direito invocado, como acontece por exemplo nos casos de pedido de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas, essa alegação e prova pertence a quem protesta o direito[1].

Por outro lado, num sentido maioritário se não unânime, tem-se entendido que o não pagamento de rendas - seja como causa de pedir de acção de dívida, seja como fundamento de resolução do contrato de arrendamento - não tem a natureza de facto constitutivo, antes se configurando o seu pagamento como facto extintivo do direito a esse pagamento, cabendo o ónus de prova nesta matéria, não ao autor, mas ao réu[2] - art. 342º, nº 2 do C. Civil.

Nesta problemática propendemos na consideração segundo a qual o pagamento das rendas, ou melhor, o seu não pagamento, não se distingue, no essencial, da dogmática jurídica do normal incumprimento, fazendo recair a sua alegação e prova no devedor.

Mas mesmo para quem entendesse que o não pagamento das rendas numa acção para resolução do contrato de arrendamento de despejo, com esse fundamento, constituiria a verificação de um facto constitutivo do direito daquele que intenta, com base neles, a respectiva acção (de despejo), com fundamento em que “[o] que verdadeiramente legitima o exercício do direito de resolução do contrato de arrendamento é a prova do comportamento tipificado do locatário que, consubstanciando uma violação dos seus deveres contratuais, genericamente referenciados no artº 1038º, do Código Civil, habilita o senhorio, por esse motivo, à cessação unilateral da relação jurídica locatícia entre eles estabelecida”[3], mesmo estes, dizíamos, ressalvam que nas acções onde o pedido não é a resolução do contrato de arrendamento mas apenas o pagamento das rendas, o ónus de alegação e prova do pagamento cabe ao réu e o facto que deverá ser formulado na base instrutória é pela positiva.

No caso em decisão, estas observações são da maior importância porque a consideração de que apenas o invocado pagamento das rendas pelo réu poderia ser levado à base instrutória, significa que quando o pagamento não tenha sido invocado, v.g. porque o réu que o devia alegar seja revel, o julgador não tem de incluir o não pagamento dessas rendas nos factos provados ou nos não provados mas terá de extrair essa conclusão de não pagamento, precisamente da não demonstração do contrário[4].

Ora, ao conhecer da prescrição, o tribunal a quo afirmou que “[O]u seja, resulta do exposto que apenas se encontrariam prescritas as rendas vencidas até Julho de 2008, isto é, a renda referente ao mês de Agosto de 2003.

No caso dos autos, os autores referem, na p.i., que foi a partir de 1 de Setembro de 2003 que o réu marido deixou de proceder ao pagamento de qualquer renda.

Nestes termos, nenhuma renda se encontra prescrita porquanto, apesar de os autores também referirem na p.i. que existem rendas em dívida desde Agosto de 2003, tal está em contradição com o que alegam quando referem que o réu deixou de proceder ao pagamento de qualquer renda desde 1 Setembro de 2003.”

Resulta deste segmento da sentença que o tribunal a quo, no conhecimento da prescrição, tomou como certo e provado que apenas a partir de Setembro de 2003 os réus teriam deixado de pagar as rendas, não obstante na petição inicial os autores referirem que tal acontecera a partir de 1/9/2003 (art. 31) mas, também, noutro ponto dessa peça processual, que a primeira renda em dívida correspondia ao mês de Agosto (art. 35).

A justificação para que o tribunal recorrido tenha considerado que a primeira renda vencida era a de Setembro fundou-a, não nos factos provados, mas sim na circunstância de ter entendido haver contradição entre dizer-se que a renda de Agosto estava por pagar e, também, que a partir de 1-9-de 2003 o réu tinha deixado de fazer o pagamento das rendas.

Neste domínio, se a articulação dos factos pelos autores na sua petição inicial suscitava ao julgador em primeira instância dúvidas sobre o sentido exacto dessa articulação, deveria ter convidado aqueles a aperfeiçoarem o articulado nesse sentido (art. 508 nº2 do CPC), ou ter quesitado/tornado objecto de discussão e julgamento o facto da falta de renda nas duas versões apresentadas (isto no caso de entender que era ao locador que cabia a sua prova). Contudo, a não o ter feito, o tribunal a quo apenas poderia tomar em consideração, de forma segura, que as rendas pedidas eram as que incluíam o mês de Agosto porque na descriminação dos quantitativos reclamados para pagamento também esta foi calculada e objecto do pedido, não havendo pois manifestamente contradição entre o declarar-se que a partir de Setembro os réus tinham deixado de pagar as rendas e, também, que eles as tinham deixado de pagar desde Agosto, fornecendo os autos elementos para uma interpretação segura de que a vontade do demandante foi pedir também a renda de Agosto.

Em resumo, mesmo que na sentença não se faça constar dos factos provados (nem dos não provados) qualquer referência ao pagamento ou ao não pagamento das rendas, ou ao momento desde o qual alas teriam ficado em dívida, tal não constitui uma omissão de factos que importasse levar a julgamento porquanto era aos réus e não ao autor que cumpria alegar e provar o pagamento das rendas e, não o tendo feito, deve tomar-se em consideração que as rendas alegadas pelo autor não se encontram pagas, mais se devendo considerar que estão em dívida as que se venceram desde Agosto.

… …

Apreciando agora a alegação dos recorrentes quanto à restante matéria de facto que, constante dos artigos. 51, 55, 56 e 57 da p.i., os recorrentes diziam não ter sido tomada em consideração e dever ser discutida, entendemos que tal matéria foi objecto de discussão em julgamento e de decisão, mostrando-se, quanto à actividade do autor (art. 51 da p.i.) provado que “o réu Luís Mendes desde 1999 que se dedicava ao comércio de vestuário” e que “em finais de 2002 ou início de 2003 o réu foi viver para o Algarve tendo ido trabalhar para uma pizaria” (factos provados 2 e 15).

Também, no que se refere ao benefício dos ganhos da actividade do réu (art. 55 e 56 da p.i.) ficou provado que “da actividade exercida pelo réu marido resultavam proventos que eram pelo mesmo utilizados até Agosto de 2003 para suportar os encargos do seu agregado familiar, designadamente ao pagamento da prestação de um empréstimo contraído para aquisição de casa própria” (facto provado 11).

Já quanto aos encargos de alimentação, vestuário, calçado, energia eléctrica, gás e todas as demais inerentes a uma economia doméstica (art. 57 da p.i.), ficou dado como demonstrado que “desde que o réu abandonou o lar conjugal foi a ré mulher que com o seu salário passou a suportar as despesas do seu agregado familiar com alimentação, vestuário e saúde” (facto provado 18).

Neste domínio, é verdade que se não tomou posição quanto às despesas de energia eléctrica e gás do agregado familiar da ré depois de Agosto de 2003, mas é igualmente verdade que, quanto às despesas de habitação, o facto provado 11 já citado reduziu para Agosto de 2003 o pagamento da prestação do empréstimo contraído para aquisição de casa própria por parte do réu, o que faz entender que o tribunal a quo apreciou essa matéria de facto que se dizia ter sido desprezada.

Acresce que, sendo aos réus quem cabia alegar e provar os factos de onde resultasse o afastamento da presunção de proveito comum do casal, nesse sentido a matéria referida nos arts. 55 e 57 da p.i., mesmo a ter-se realizado a selecção dos factos assentes e os da base instrutória, nunca deveria incluir o elenco da matéria a discutir, para além do que a matéria do art. 56 é manifestamente conclusiva e mesmo que coubesse ao autor a sua alegação e prova nunca deveria ser respondida.

Por outro lado, no enquadramento previsivo das várias soluções possíveis da questão de direito de forma a configurar o sentido da necessidade, relevância e suficiência dos factos alegados e a provar (ou não provar), diga-se que não é a circunstância de os réus continuarem casados e eventualmente terem ainda um património comum, por inexistência de partilha, que serve para significar que ainda vivem em economia comum, ou melhor, que a actividade do réu se realizou ou não em proveito comum do casal.

Este proveito comum, na previsão da selecção dos factos, deve ser encarado (de acordo com os que tenham sido articulados), como forma de demonstração de que deixou de haver entre os cônjuges, na gestão da suas vidas diárias, aquele relacionamento de afectação e interdependência económica que permita afirmar que se age, e agiu em concreto, em vista de um fim comum, tendo em conta a aplicação visada e não os seus resultados, ainda que seja essencial que a possibilidade de benefício para ambos os cônjuges advenha da contraprestação que, no contrato em causa, corresponda à dívida constituída no mesmo acto.

Com estes contornos e na aplicação ao problema em decisão, entendemos que nessa parte os elementos de facto que foram sujeitos a discussão em julgamento e aos quais o tribunal a quo deu resposta, são os necessários e suficientes para poder decidir se existe (e desde quando) responsabilidade ou não da ré pelo pagamento das rendas, advertindo que esta problemática da suficiência e relevância dos factos necessários ao conhecimento da inexistência do proveito comum do casal é autónoma e independente da de saber se os factos provados são ou não bem interpretados de forma a sustentarem a decisão de direito o que já não é uma questão de facto.       

… …

Da impugnação da matéria de facto

Apreciando o objecto do recurso, no que se refere à impugnação da matéria de facto, cumprirá enquadrar a natureza, finalidade e limites da apreciação dessa matéria pelo Tribunal de recurso.  

O Tribunal da Relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690-A do CPC a decisão com base neles proferida.

Este último preceito citado refere no seu nº1 que o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios constante do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, cabendo ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2 do art. 522-C do CPC (vd. nº2).

Porque os recorrentes indicam quais os concretos pontos da matéria de facto que entende como incorrectamente julgados e, bem assim, os elementos de prova (documentos e depoimentos das testemunhas) que impunham diferente decisão, encontram-se preenchidos os pressupostos formais da impugnação sendo que os fundamentos de prova invocados para alteração da decisão facto remetem para os critérios de convicção do julgador na apreciação da prova produzida.

Quanto a esta convicção e ao modo de a apreender, quando haja impugnação da matéria de facto que satisfaça os pressupostos exigidos para o seu conhecimento, o Tribunal da Relação tem a possibilidade de alterar o decidido em 1ª instância, reapreciando as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em conta o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, para o que procederá, nos termos sobreditos, à audição dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o relator considerar necessária a sua transcrição, que será realizada por entidades externas, contratadas pelo tribunal (arts. 712º, nºs 1 a), 2ª parte, e 2 e 690º-A/5). E pode mesmo, para proferir a sua decisão, «oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados» (art. 712º/2, 2ª parte).

A extensão desta reapreciação, que o Tribunal da Relação realiza, coincide em tese, na amplitude, com a da primeira instância e traduz-se na audição dos depoimentos, atendendo aos meios probatórios que existam nos autos destinados à demonstração desses concretos pontos, apreciando-os criticamente de forma a responder-lhes convictamente e em consciência, segundo critérios razoabilidade e segurança, e emitindo um juízo de concordância ou discordância com a matéria fixada e que foi impugnada, mantendo-a ou alterando-a.

Independentemente de um ponto de vista da exegese dos preceitos se poder questionar a natureza da impugnação e a sua finalidade, na perspectiva do modo como funciona a apreciação da impugnação, aquilo que se realiza é, sempre, um juízo de valoração sobre a prova, procedendo-se à sua apreciação e revelando-se o modo como esses concretos pontos, em face da prova, no escrutínio da segunda instância, deverão ser julgados.

É pacífico, para nós, que não é por referência às respostas dadas aos quesitos e à sua motivação, que consta do despacho fundamentador, sem audição dos depoimentos e sem consulta da demais prova que exista, que se pode decidir a matéria de facto impugnada, nem esta decisão dispensa a formação e formulação de uma convicção própria, ou se basta e tem por suficiente que tenha havido depoimentos sobre essa matéria, independentemente do seu conteúdo ou do modo como tenham sido valorados. E temos por evidente, também, que o resultado dessa actividade de apreciação é sempre a da formação de uma convicção, pois não se compreenderia sequer que um juiz (ainda que da Relação) fosse convocado para uma fase probatória, em que a lei lhe determina que reaprecie as provas, e não se lhe pedisse a formação de uma convicção própria e, mais ainda, que a formulasse.

Acontece, contudo, que a actividade de reapreciação, mesmo com a formação de uma convicção própria acaba sempre por constituir um veredicto sobre uma actividade anterior já que o que a lei determina é que a reapreciação a realizar pela Relação confirme ou altere a matéria anteriormente decidida. Isto é, o objecto da reapreciação, no caso que agora nos importa, é delimitado pela própria impugnação e destina-se, imediatamente, à emissão de um juízo sobre essa matéria de facto e, mediatamente, à declaração de manutenção ou de alteração dessa matéria anteriormente firmada.

A percepção das diferentes condições de apreciação da prova em 1ª e 2ª instância, bem como da advertência de que ao Tribunal d Relação reaprecia a prova para apreciar o sentido da decisão do tribunal a quo é sublinhada no ac. STJ de 19/3/ 2009 no proc. 08B1745, in dgsi.pt, onde se lê que “Vigoram, em ambos os casos, para os julgadores desses tribunais, as mesmas regras e os mesmos princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (...) consagrado no artigo 655º, n.º 1, do CPC.

Significa isto que a prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formulação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação.”

Porém, tudo isto que acabamos de dizer, atendendo à circunstância sublinhada de a apreciação da matéria de facto impugnada ser sempre uma reapreciação de uma convicção anteriormente formada impõe que se tenha presente que o relacionamento desta instância com a prova testemunhal (a prova que o Apelante considera ter sido mal apreciada pela primeira instância em alguns aspectos) tem lugar de forma indirecta, através do acesso às gravações áudio realizadas na audiência de julgamento.

O carácter mediato do relacionamento deste Tribunal com esta prova assume particular relevância, dando sentido à asserção de que o controlo que ora se exerce se refere à detecção e correcção, sendo caso disso, “(…) de manifestos erros de julgamento e de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova”[5], sendo certo - e seguimos aqui, desta feita, a argumentação constante do Acórdão do STJ de 10/05/2007[6] - que o legislador do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (que estruturou o 2º grau na apreciação da matéria de facto, com base no registo da prova produzida em audiência) “[…] afora pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento - preferiu acreditar, em regra, no juiz que faz a imediação da prova, por mais qualificado que possa parecer, pela natureza e a hierarquia das coisas, um juízo feito num tribunal superior”.

A valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação (artigo 396º do CC), expressando este a aceitação de uma margem de ponderação subjectiva do julgador, cuja essência reside em algo irrepetível num controlo mediato por terceiros, nas condições em que os subscritores deste Acórdão, enquanto juízes de uma instância de recurso, se encontram. Não existe, estamos seguros, fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos (assente, tão-só, na audição de uma gravação sonora de depoimentos), para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador imediato, pela sua (mediata) “livre apreciação”. E se o recorrente tem direito a que sobre a livre apreciação do julgador imediato da prova (tribunal a quo), seja exercido algum tipo de controlo, convocando o tribunal ad quem a declarar a sua convicção, este exercício de valoração da prova feito nesta instância e com a amplitude sublinhada anteriormente, não equivale, por óbvia impossibilidade, a um direito do recorrente a que sobre a causa incidam, sucessivamente, duas “livres apreciações” de igual natureza e condição. É que, a ideia de um recurso que assuma natureza substitutiva – e este não deixa de a assumir – e incida sobre a matéria de facto, não implica qualquer tipo de “substituição” de “livres apreciações”[7].

O julgamento dos factos - o julgamento dos factos assente no depoimento das testemunhas - não se repete assim na segunda instância, quando esta ouve as gravações, porque é irrepetível, não obstante ser controlável em alguns elementos. O que aqui se aprecia, porque, isso sim, é possível perceber e, consequentemente, pode ser controlado, é a racionalidade da fixação de determinados factos e não de outros. A substituição opera, pois, fora de um quadro valorativo em que a instância de recurso se limite a invocar, substituindo-a à da instância recorrida, a “sua” “livre apreciação” da prova testemunhal.

O controlo de uma “livre apreciação” através de uma convicção própria e autónoma afirmada pelo Tribunal da Relação como resposta à impugnação da matéria de facto, entende-se pois possível nos termos abordados por Jordi Ferrer Beltrán, quando refere que “livre valoração da prova é livre, só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração. Com efeito, a operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a determinada hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e da racionalidade”[8], querendo isto dizer que é no controlo do carácter lógico e racional da fixação dos factos por referência à prova produzida, que se exerce o poder da Relação de actuar sobre o julgamento desses factos, quando estão em causa asserções que assentem na prova testemunhal. Quando se trata, enfim, de controlar a valoração da prova testemunhal feita pelo tribunal de primeira instância.

Assim, indeferindo-se também a conclusão do recorrente quanto à contradição mencionado passemos agora a apreciar da regularidade da convicção do tribunal a quo quando deu como provados os factos nºs 13 e 18 e como não provado o facto nº 6:

Nesta conformidade, entendemos ser de confirmar na totalidade as respostas fixadas pelo tribunal a quo sendo os factos que foram dados como provados e não provado que servem a decisão de direito a proferir        

Quanto à decisão de direito

Os apelantes sustentam que as rendas vencidas devem ser consideradas desde Agosto de 2003 a Abril de 2004, inclusive, e que o valor a considerar deveria ser o de 7.943,85 € correspondente a unidades de 882,65 €.

Esta argumentação é expendida também pelos apelantes quando impugnam a matéria de facto - o facto 6 dos não provados - ao dar-se como não demonstrado que a renda mensal era no ano de 2004 de 1.035, 41 €.

Tendo-se mantido como não provada essa matéria e mais, que esta não poderia ser objecto de julgamento, observamos que a prova do montante da renda é um ónus do credor e que a circunstância de no contrato de arrendamento ter sido fixada uma cláusula de actualização segundo a qual “a renda para as anuidades seguintes será a que resultar das actualizações a fixar por Portaria dos Ministérios da Tutela, sendo as mensalidades actualizadas considerando aquele valor, dividido por doze.” não nos parece que seja suficiente para que se entenda que, sem mais, a renda foi sendo actualizada anual e automaticamente desde que em 1999 o arrendamento foi celebrado.

Como se encontrava previsto no art. 33 nº1 do Regime do Arrendamento Urbano, aplicável ao caso vertente, “O senhorio interessado na actualização anual da renda deve comunicar por escrito ao arrendatário, com a antecedência mínima de 30 dias, o novo montante e o coeficiente e demais factores relevantes utilizados no seu cálculo.”.

Estabelecendo a lei um procedimento de diligência anual a cargo do locador para que o direito à actualização pudesse ser accionado, o facto de no contrato de arrendamento se deixar estipulado que a renda fixada era actualizável, o que já decorria da própria lei, mesmo que nada fosse clausulado, não dispensava o senhorio de diligenciar anualmente pela comunicação formal, expressamente prevista e desejada pelo legislador como condição (anual) para uma eficaz actualização.

Que é esta a melhor interpretação do preceito, resulta do próprio nº3 do artigo quando refere que “O arrendatário que não concorde com a nova renda pode ainda denunciar o contrato, contanto que o faça até 15 dias antes de findar o primeiro mês de vigência da nova renda, mês esse pelo qual apenas deve pagar a renda antiga.”. Isto é, com a comunicação da actualização da renda não se está apenas a proceder a uma formalidade dispensável mas antes a abrir-se um procedimento negocial que implica uma resposta do locatário que se pode traduzir numa aceitação tácita (nos termos do nº2) mas que pode ser também de recusa. Por isso nos parece seguro que, se por ventura o locador não comunicar num ano (ou em mais) ao locatário a actualização das rendas, não poderá no ano a seguir, na actualização que pretenda realizar, incluir o coeficiente legal do ano ou anos em que não diligenciou pela comunicação.

Assim, quanto ao valor unitário das rendas a considerar na decisão é de manter o entendimento do tribunal recorrido, sendo que, como observámos, o valor global das rendas em dívida deve incluir mais uma unidade, precisamente a correspondente ao mês de Setembro que se vencida em Agosto, no valor total de 7.581,76 € (sete mil quinhentos e oitenta e um euros e setenta e seis cêntimos).

No que se refere à responsabilidade da ré apelada pelo pagamento das rendas em dívida, tendo por referência os factos fixados como provados, lembramos que o art. 1691 nº1 al. al. d) do C.Civil, são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre eles o regime da separação de bens.

Como no caso dos autos se sabe que o regime de bens dos réus enquanto cônjuges não é o da separação e porque se tem por demonstrada a qualidade de comerciante do réu arrendatário, teremos de concluir que a ré mulher apenas não será responsabilizada pela dívida das rendas se tiver provado nos autos factos que ilidam a presunção, ou seja, que não foi no proveito comum do casal que a dívida de rendas se contraiu a partir de Agosto de 2003.  

Quando a lei se refere ao proveito comum do casal está a aludir a uma realidade, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu: “se este fim foi o interesse do casal, a dívida pode considerar-se aplicada em proveito comum do casal, embora na realidade, dessa aplicação tenham resultado prejuízos” [Prof. Pereira Coelho, Família, 1977, 347], donde resulta que quem tenha o ónus de afastar a presunção desse proveito comum deverá agir de forma a fazer a demonstração de que a finalidade da dívida, em concreto, não se destinava a fazer face ao interesse patrimonial do casal.

Neste contexto, num arrendamento para habitação referente à casa de morada de família celebrado apenas pelo cônjuge marido, a dívida das rendas seria da responsabilidade de ambos os cônjuges, bastando pensar que nesse caso a acção de despejo até deveria ser instaurada contra ambos os cônjuges, seja qual for o regime de bens do casamento, porque da sua procedência pode resultar a resolução, a denúncia ou a caducidade do contrato de arrendamento, consoante o fundamento invocado [Ver, sobre o tema, o Prof. Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 120º, 50.]
(ver art. 1682ºB, CC). E assim sendo, não se poderia compreender que, por um lado, se viesse a condenar a ré mulher, que não assinou o contrato de arrendamento, no despejo do prédio arrendado - pois a sua presença era imprescindível na demanda - e, por outro lado, se viesse a absolver essa mesma ré do pagamento das rendas da mesma casa de morada de família, objecto do despejo
[9].

Diferentemente no caso de arrendamento para comércio celebrado apenas pelo cônjuge marido não valem as considerações relativas à evidência do objecto do arrendamento ser a casa de família, devendo antes, de acordo com a matéria provada, verificar-se se na vigência do contrato todas as rendas se incluíam na mesma lógica do proveito comum que se verificava inicialmente, ou se a partir de algum momento se quebrou essa presunção de comunicabilidade por força de factos que a certifiquem.

É que, segundo o estatuído no nº2 do art. 1690 do Código Civil “para a determinação da responsabilidade dos cônjuges, as dívidas por eles contraídas têm a data do facto que lhes deu origem”, mas tratando-se de dívidas “correspondentes a rendas a pagar no âmbito de um arrendamento urbano, no entanto, não pode tomar-se como referência a data da celebração do respectivo contrato, porque, como é sabido, no arrendamento urbano o direito do locador ao pagamento de cada renda - de todas as rendas que vierem a ser devidas por todo o tempo que se mantiver o contrato - vai surgindo com o decurso do tempo, valendo como período supletivo para os sucessivos vencimentos o prazo de um mês (cfr. artigo 20º da lei vigente naquela data, o Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro).”[10]

Deste modo a análise dos factos provados revela que o arrendamento destinado ao comércio foi celebrado em Fevereiro de 1999 pelo réu marido, que se dedicava ao comércio de vestuário, e que dessa actividade, nomeadamente a desenvolvida no locado, até Agosto de 2003, resultavam proventos que eram pelo mesmo utilizados para suportar os encargos do seu agregado familiar, designadamente ao pagamento da prestação de um empréstimo contraído para aquisição/consttução de casa própria.

Dúvidas não subsistem que até essa data, situada antes de Agosto de 2003, a ré mulher tinha conhecimento de que a actividade desenvolvida pelo seu marido no estabelecimento situado no arrendado tinha por finalidade o suporte das despesas do agregado familiar e, por consequência, por essas rendas até Agosto, exclusive, era também ela responsável.

A partir dessa data ficou provado que o réu marido deixou de viver com a ré mulher e que esta desde que o R. abandonou o lar conjugal passou com o seu salário a suportar as despesas do agregado familiar com alimentação, vestuário e saúde; que para fazer face às despesas recorreu à ajuda monetária de uma amiga que consigo co-habitava e que contribuía para as inerentes despesas da casa, nomeadamente de alimentação e, ainda, que recorreu a familiares que, em momentos de maior aperto económico, lhe emprestaram dinheiro.

Estes factos fazem concluir de forma segura que a partir de Agosto de 2003, terá deixado de haver economia comum no casal formado pelos réus e que, as rendas que se venceram em Agosto e a partir deste mês, deixaram de beneficiar da presunção de proveito comum pois a finalidade das dívidas assim consubstanciadas não tinham já referência ao interesse conjugal, maxime, às despesas do agregado familiar.

Mesmo que se argumente que continuavam casados e, mesmo sem prova, que tinham património comum e viviam na mesma casa (embora separados de facto), não é nem seria mesmo assim essa situação que serviria para consubstanciar a existência e manutenção da presunção de proveito comum do casal. Essa situação devia aferir-se por relação à demonstração de que a vida patrimonial corrente e ordinária do casal se faz em comum ou em separado e, neste domínio, cremos que a prova revela seguramente que deixou de haver “comunicabilidade” nessa vida patrimonial corrente de forma a poder-se afirmar que cada um dos cônjuges, a partir de Agosto de 2003, inclusive, passou a ter a gestão dos seus interesses absolutamente diferenciada. E é desta asserção que se retira que a partir da data referida as rendas que se venceram já não podem ser tomadas como destinadas a um interesse do casal, da mesma forma que, diga-se, a simples separação de facto em si mesma não significa que fique afastada a presunção de proveito comum uma vez que é o concreto da organização patrimonial do casal que determina essa conclusão.

Para substanciar estas considerações não cremos que possa protestar-se que a prova de a ré mulher ter passado a suportar com o seu salário as despesas do agregado familiar com alimentação, vestuário e saúde não baste para o afastamento da presunção porque nada se provou sobre as despesas de “energia eléctrica, gás, agua, calçado, higiene, limpeza, transporte, educação, impostos, seguros, etc.”

O afastamento da presunção do proveito comum do casal não obriga a uma prova exaustiva de que todas, e absolutamente todas, as despesas possíveis do agregado familiar sejam suportadas pela ré mulher mas tão só que a situação patrimonial do casal tenha sofrido uma alteração que se revele numa separação efectiva da gestão doméstica.

Nestes termos, provado que o réu deixou de viver com a mulher desde Agosto de 2003 e que desde esta data de abandono do lar conjugal foi a ré mulher que com o seu salário passou a suportar as despesas do seu agregado familiar, temos por suficiente a matéria de facto que admite a conclusão tirada pela primeira instância no sentido de ter sido afastada a presunção do proveito comum do casal e, consequentemente a responsabilidade da ré mulher pelo pagamento das rendas em dívida.

Nesta conformidade, e julgando-se procedente a Apelação apenas na parte em que considerámos que as rendas em dívida e a cargo do réu Luís Manuel Conceição Mendes totalizam o valor total de 7.581,76 € (sete mil quinhentos e oitenta e um euros e setenta e seis cêntimos), por inclusão da renda de Agosto de 2003, indefere-se o recurso em tudo o mais.

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar parcialmente procedente a Apelação, no que se refere ao montante a pagar pelo réu marido e, nesta parte, altera-se a sentença recorrida, condenando-se L… a pagar aos autores H… e E… a quantia de 7.581,76 € (sete mil quinhentos e oitenta e um euros e setenta e seis cêntimos), referentes às rendas relativas aos meses de Setembro de 2003 a Maio de 2004, bem como no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos desde a data em que cada uma de tais rendas deveriam ter sido pagas, isto é, no primeiro dia do mês ao que dissessem respeito, à taxa legal de 4% ao ano, até integral pagamento.

Julga-se, no mais, improcedente a Apelação, mantendo-se nessa parte a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes e pelo Apelado/réu L…, na proporção do respectivo decaimento que se fixa em 30% e 70%.

Coimbra, 12 de Julho de 2011.

RELATOR:

MANUEL CAPELO

ADJUNTOS:

JACINTO MECA

FALCÃO DE MAGALHÃES

[1] Vd. ac. RL de 15-12-2009 no proc. 37/06.6YXLSB.L1-7, in dgsi.pt
[2] Vd. acs. RL de 20-6-2006 no proc. 1794/2006-7 e de 4-10-2007 no proc. 5406/2007-8, in dgsi.pt; ac. da RP de 24-5-2011 no proc. 3132/08.3TBGDM.P1, no site do TRP e ainda Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora Em Manual de Processo Civil, 1984, pág. 446 e 447

[3] Vd. ac. RL de 15-12-2009 no proc. 37/06.6YXLSB.L1-7 citado.
[4] Vd. ac. RL de 4-10-2007 no proc. 5406/2007-8 onde se diz expressou que se a revelia impede a cominação ela não inverte o ónus da prova, continuando mesmo nos casos de revelia a ser ele (réu/locatário) quem tem o ónus de provar o facto extintivo, ou seja o pagamento das rendas.
[5] Acórdão do STJ de 14/03/2006 (Ferreira Girão), na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIV, Tomo I/2006, pp. 130/131.
[6] Proferido no processo nº 06B1868 (Pires da Rosa), in dgsi.pt.

[7] O legislador, aliás, assumiu este condicionalismo ao consignar no preâmbulo do referido Decreto-Lei nº 39/95 que “ O objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova […]”.
[8] La valoración racional de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 45.

[9] Poder-se-á dizer que a solução ora defendida, mais não fosse, sempre traduziria uma manifestação daquilo a que certos autores designam por efeito externo da relação arrendatícia como refere Antunes Varela no Manual do Arrendamento Urbano, cit., a pág. 320.

   

[10] Vd. ac. STJ de 3 de Abril de 2008 no proc.07B1329, in dgsi.pt