Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ARLINDO OLIVEIRA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE INDEFERIMENTO LIMINAR RESOLUÇÃO A FAVOR DA MASSA INSOLVENTE | ||
Data do Acordão: | 04/05/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 238.º, N.º 1, AL.ª E), DO CIRE. | ||
Sumário: | I – Justifica-se o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, no âmbito do art. 238.º, n.º 1, al.ª e), do CIRE, se o devedor teve em vista, face à sua situação de insolvência, ocultar a existência de um crédito hipotecário (no valor de vários milhares de euros), declarando transmiti-lo, com a hipoteca, a sua irmã – pelo preço de 100 mil euros, declarado já recebido –, para que não respondesse pelas suas dívidas. II – Tendo a transmissão do crédito agravado o seu estado de insolvência, ao ponto de não terem sido apreendidos bens ou direitos para a massa, a não ser esse mesmo crédito, por via de resolução a favor da massa insolvente, o facto de o negócio ter sido assim resolvido não é obstáculo àquele indeferimento liminar. | ||
Decisão Texto Integral: |
Processo n.º 4386/18.2T8LRA-G.C1 – Apelação Comarca de Leiria, ..., Juízo de Comércio
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
No decurso da acção de insolvência que lhe foi movida pelo M..., SA, a devedora/requerida, AA, já identificada nos autos, requereu a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos artigos 235.º e ss. do CIRE. Tendo sido declarada insolvente veio a decretar-se o respectivo processo de insolvência, e tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante, por despacho de 26/03/2019 foi admitida a apreciação liminar de tal pedido e na sentença de declaração de insolvência proferida nessa data foi determinado que, querendo, o Exmº Administrador de Insolvência poder-se-ia pronunciar sobre tal pedido no relatório a que alude o art. 155º do CIRE, e os credores no prazo de 10 dias após a notificação de tal relatório. Nessa sequência, o Exmº Administrador de Insolvência, no relatório a que alude o art. 155º do CIRE, a respeito do pedido em apreço, afirmou que «Atendendo a que há fortes expectativas de se proceder à resolução do supra mencionado negócio de cessão de crédito em benefício da massa insolvente, por este ter lesado os credores, o aqui signatário protesta juntar o seu parecer relativamente á exoneração do passivo restante após a concretização ou não da referida resolução.». A credora M..., SA, no seu requerimento de 03/06/2019, pronunciou-se contra o deferimento de tal pedido, concluindo do seguinte modo: «Assim, o pedido de exoneração do passivo restante deverá ser liminarmente indeferido, uma vez que o Insolvente (1) não se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, provocando, entre outros, um agravamento das provisões; (2) da não apresentação resultou prejuízo para a credora, decorrente, entre outros, de provisionamento a que está obrigada junto do Banco de Portugal; e (3) sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, a inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica e da sociedade a quem prestou aval; (4) praticou atos de disposição e dissipação do seu património, entendidos como prejudiciais à massa insolvente e aos credores, encontram-se, pois, preenchidos, cumulativamente, todos os requisitos previstos no disposto na alínea d) e e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.». A Insolvente, através do seu requerimento de 17/06/2019, para além do mais, exerceu o contraditório quanto à pronúncia da credora M..., SA. Por despacho de 21/08/2019 foi determinado que a apreciação liminar do presente incidente de exoneração do passivo restante deveria aguardar a concretização da referenciada resolução em benefício da massa insolvente e as eventuais vicissitudes processuais posteriores. A Massa Insolvente da aqui devedora propôs uma acção de resolução em benefício da massa insolvente contra BB e CC, visando essencialmente a resolução em benefício da massa insolvente do referenciado negócio de cessão de crédito hipotecário, a qual foi julgada parcialmente procedente, por sentença já transitada em julgado, tendo sido, ademais, declarada a resolução de todo o negócio posto em crise em tal acção – cfr. apenso B. Nessa sequência já foi apreendido para a massa insolvente o aludido crédito hipotecário.
Conclusos os autos ao M.mo Juiz a quo, este, cf. decisão proferida em 21 de Dezembro de 2021, (aqui recorrida), decidiu o seguinte: “Nos termos e pelos fundamentos supra vertidos, em conformidade com o disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, decide-se indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente. ** Custas do incidente pela própria insolvente/requerente deste incidente (e não pela respectiva massa insolvente – cfr. art. 303º do CIRE, interpretado a contrario sensu, e art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC), fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. Valor processual do incidente: 30.000,01 € - cfr. art. 303º, nº 1, do CPC, ex vi do art. 17º do CIRE.”.
Inconformada com a mesma, dela interpôs recurso, a requerida/insolvente, AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 75 v.º), apresentando as seguintes conclusões: (…).
Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos legais, há que decidir. Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, ora recorrentes, com base no disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE.
São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida: 1. O presente processo de insolvência iniciou-se a 21/12/2018, a requerimento da credora M..., SA. 2. Na sequência da citação para contestar, a devedora apresentou pedido de exoneração do passivo restante e declarou que preenchia todos os requisitos e se dispunha a observar todas as condições exigidas para esse efeito. 3. A insolvência da devedora foi declarada por sentença proferida a 23/06/2019, já transitada em julgado. 4. Na referida sentença foi nomeado Administrador de Insolvência o Sr. Dr. DD. 5. A Massa Insolvente da devedora, representada pelo Exmº Administrador de Insolvência nomeado nos autos, propôs uma acção de resolução em benefício da massa insolvente contra BB e CC, que correu termos sob o ap. B. 6. Na p.i. dessa acção foram formulados os seguintes pedidos: «NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exª Doutamente suprirá, designadamente quanto à apresentação do presente petitório por apenso aos Autos principais, requer-se que: A) Seja judicialmente declarada a resolução de todo o negócio identificado no artigo 9.º desta Petição, nos termos e para os efeitos do preceituado na alínea b) do n.º 1 do sobredito art.º 121.º do C.I.R.E., ou de parte no negócio no que corresponde a 250.000,00 €. B) Sem conceder, na eventualidade de V. Exª não acompanhar o argumentário aduzido pela Autora relativamente à resolução incondicional de todo ou parte do negócio posto em crise, sempre deverá ser judicialmente declarada a sua resolução, nos termos e para os efeitos do preceituado das disposições conjugadas dos n.º 1, 2, 3 e 5 do artigo 120.º do C.I.R.E.; C) Mais se deve, em qualquer dos casos, com a declaração de resolução, condenar os Réus a restituirem à massa insolvente, no prazo mais curto que V. Exª entender fixar, os valores que entretanto receberam e forem entretanto recebendo de EE. D) Deve condenar-se, ainda, os Réus ao pagamento de todas as custas e demais encargos com o processo.». 7. Em tal acção foi proferida sentença a 08/12/2020, na qual foi determinado o seguinte: «Em face do exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada em igual medida, mais concretamente: - julgo improcedente o pedido formulado pela Autora sob a alínea A) do petitório, absolvendo os Réus do mesmo; - julgo procedentes os pedidos formulados pela Autora sob as alíneas B) e C) do petitório e, consequentemente, declaro a resolução de todo o negócio posto em crise na presente acção, supra descrito nos factos provados 8. e 9., e condeno os Réus, para a eventualidade de terem entretanto recebido ou virem a receber (judicial ou extra-judicialmente) algum valor do devedor do crédito em apreço, Sr. EE, a restituírem tal valor à aqui A. Massa Insolvente no prazo de 15 (quinze) dias após o trânsito em julgado da presente sentença ou no prazo de 15 (quinze) dias após o eventual ulterior recebimento.» 8. Tal sentença foi objecto de recurso, o qual foi julgado improcedente, tendo já transitado em julgado. 9. Na referida sentença foi apurada a seguinte factualidade: «A) Os Factos Provados: 1. Os presentes autos de insolvência iniciaram-se na data de 21.12.2018 com a junção da petição inicial apresentada pela credora M..., SA.. 2. Em 26/03/2019, no processo principal de insolvência, foi declarada insolvente AA, tendo sido nomeado em tal sentença como Administrador da Insolvência o Exmº Sr. Dr. DD. 3. Na lista definitiva de créditos reconhecidos apresentada nos autos pelo Exmº Administrador da Insolvência, este reconheceu créditos no valor total de € 1.825.457,15. 4. No âmbito da acção de verificação ulterior de créditos, que correu termos sob o ap. C, por sentença já transitada em julgado, foi reconhecido à aí autora MB..., Unipessoal, Lda., «o crédito reclamado pela autora no valor de € 140.686,17 (cento e quarenta mil, seiscentos e oitenta e seis euros e dezassete cêntimos) a título de capital, a que acrescem os correspondentes juros de mora legais vencidos até à data da propositura da presente acção (26/09/2019), no montante de € 1.155,65 (mil cento e cinquenta e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos), bem como os juros de mora vencidos e vincendos desde aquela data até efectivo e integral pagamento.». 5. A ora Insolvente foi casada com EE de 20/08/1983 até 18/05/2016, data do divórcio por mútuo consentimento decretado no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 3664/2016, da Conservatória do Registo Civil .... 6. Ao designado Administrador da Insolvência no âmbito dos autos principais chegou o concreto conhecimento que a agora insolvente, a 18 de Maio de 2016, compareceu com outro outorgante, o Sr. EE, no Cartório Notarial em ... sito na Praça ..., ..., nesse concelho, perante a Exmª Sra. Notária, Dra. FF, outorgando escritura pública identificada com a epígrafe “PARTILHA E HIPOTECA”. 7. Da leitura desse documento, para o que ao mérito dos presentes autos importará, deflui, para além do mais, o seguinte: a) Que foram casados os aí outorgantes um com o outro sob o regime de comunhão de adquiridos e se divorciaram por decisão desse dia, transitada em julgado, sendo que o acervo patrimonial do extinto casal, ali partilhado, integrava bens móveis e imóveis, tal como descritos nesse documento, e que ascendiam à quantia declarada de € 1.655.110,00 (um milhão, seiscentos e cinquenta e cinco mil, cento e dez euros). b) Que à ora insolvente não foram adjudicados quaisquer bens, pelo que a sua meação foi integralmente preenchida em dinheiro e a título de tornas, declarando ter já recebido a quantia de quatrocentos e vinte e sete mil quinhentos e cinquenta e cinco euros, ficando em dívida o montante de quatrocentos mil euros. c) Que o montante em dívida à agora insolvente, seria pago em quarenta prestações mensais, iguais e sucessivas de dez mil euros, cada, vencendo-se a primeira prestação trinta dias após a data da realização dessa escritura, e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes, por transferência ou depósito bancário na conta com o IBAN ...02, d) Que o aí primeiro outorgante, para garantia do pagamento do montante em tornas em dívida, constituiu hipoteca voluntária a favor da aqui insolvente, a mesma a aceitando, sobre o prédio urbano, sito em “...”, da freguesia ..., concelho ..., composto por edifício de ... e ... destinado a serviços, com a superfície coberta de 869,94 m2, inscrito na matriz sob o artigo ...83, anteriormente inscrito sob o artigo ...53, o qual por sua vez proveio do artigo ...36 da freguesia ..., com o valor tributário de 251.230,00 €, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...64, o qual foi por ele adquirido nesse acto. e) Que a insolvente se comprometia a entregar ao aí primeiro outorgante, o distrate da hipoteca aí constituída, no prazo de cinco dias úteis, contados do pagamento integral de tal dívida. 8. Compulsou seguidamente o designado Administrador da Insolvência outro documento, de onde decorre que a insolvente, no dia vinte e três de Março de 2017 compareceu com outra outorgante, em concreto BB, no Cartório Notarial ..., perante o Exmº Sr. Notário, Dr. GG, outorgando escritura pública identificada com a epígrafe “CESSÃO DE CRÉDITO HIPOTECÁRIO”. 9. Da leitura desse documento extrai-se, ademais, o seguinte: a) Que era a agora insolvente titular de um crédito, no valor de 350.000,00 €, detido sobre EE, resultante da dívida de tornas da partilha de 18 de Maio de 2016, garantido pela hipoteca registada a seu favor pela apresentação dois mil seiscentos e quarenta e dois de 2016/06/07, sobre o prédio urbano composto por edifício de ... e ... destinado a serviços, sito na Estrada ..., ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...64, inscrito na matriz sob o artigo ...83, com o valor patrimonial de 256.882,68 €. b) Que pelo preço de 100.000,00 € (cem mil euros), declarado como já recebido, cedia a BB o aludido crédito, transmitindo com ele a hipoteca referida, cessão que era efectuada a título definitivo e irreversível, não estando sujeita a condição ou termo. 10. BB e AA são ambas filhas de HH e de II. 11. Relativamente ao prédio dado de hipoteca supra referido, a Autoridade Tributária e Aduaneira determinou, no ano de 2016, o valor patrimonial (tributário) de 256.882,68 €. 12. Sobre tal prédio não se encontram registadas hipotecas ou penhoras anteriores ao registo da referida hipoteca. 13. Até à presente data o Exmº Administrador da Insolvência não logrou apreender quaisquer bens ou direitos para a massa insolvente ora Autora, apesar da realização das atinentes diligências de pesquisas para o efeito. 14. No âmbito do processo principal, a insolvente, através do seu requerimento de 17/06/2019, relativamente ao modo e meios de pagamento das referidas tornas e da aludida cessão do crédito hipotecário, esclareceu e juntou aos autos o seguinte: «a) Relativamente ao solicitado – “Documento bancário comprovativo do depósito do cheque nº ...62 (Banco B...) no valor de 80.000,00€ com data de 24 março de 2017 “, informa-se que conforme consta do verso do cheque, DOC 1 o cheque não foi depositado, mas sim pago à beneficiária no balcão do Banco B... a 30.03.2017; Este cheque foi debitado da conta nº ...01, titulada pela cessionária e seu marido, conforme DOC 2; b) Relativamente ao solicitado – “Extrato bancário comprovativo do deposito do cheque nº ...46 Banco B... em conta da insolvente”, informa-se que foi depositado a a 21.11.2017 na conta da insolvente na C... com nº ...30 , conforme cópia do talão de deposito e do extrato bancário – DOC 3; c) Relativamente ao solicitado – “Cópia do cheque recebido de EE no valor e 400.000,00€ e comprovativo do seu depósito” – requer-se a junção de cópia do aludido cheque e do seu deposito na conta da insolvente na C... nº ...30 em 19.05.2016; DOC 4 d) Relativamente ao solicitado – “Cópia dos cheques recebidos de EE e respetivos extratos bancários comprovativos do seu depósito” – requer-se a junção aos autos dos comprovativos dos depósitos dos quatro cheques no valor total de 50.000,00€ nas contas da insolvente , sendo o primeiro cheque de 10.000,00€ datado de 17.06.2016 depositado na conta da C... com nº ...30 em 22.06.2016 e os três restantes na Conta da A... com o nº ...4, depositados nas datas de 18.07.2016, 09.09.2016 e 08.11.2016; DOC 5». 15. O ora Réu CC instaurou contra a ora Insolvente um processo executivo em Novembro de 2017 (com o nº 4116/17....), dando à execução uma letra de câmbio no valor de € 70.000,00, aceite pela aqui Insolvente, com data de emissão de 2017/10/02 e data de vencimento 2017/10/16, e na qual figuram como sacadores os dois ora réus. 16. No processo executivo referido no facto anterior o aí exequente logrou obter pagamento integral da quantia exequenda através da venda aí realizada dum imóvel da titularidade da aí executada, adquirido por uma filha desta no exercício do direito de remição. 17. Para cobrança do crédito cedido em apreço os aqui RR. propuseram a competente execução contra EE, que corre termos com o nº 2281/17.... no Juízo de Execução ... – Juiz .... 18. Não tendo obtido qualquer pagamento pelo menos até à data de 09/03/2020. 19. O executado em tal processo deduziu oposição a tal execução, com os fundamentos referidos no d. saneador-sentença proferido a 12/03/2019 nos atinentes Embargos de Executado, oposição essa que foi julgada improcedente por não provada em tal decisão, transitada em julgado a 26/04/2019 e cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. 20. Dois dos bens/direitos partilhados pela Insolvente e EE na escritura de partilha supra referenciada foram duas quotas na sociedade comercial por quotas denominada “T..., Lda”, com o NIPC ..., cada uma delas no valor nominal de € 273.900,00 e no valor atribuído de € 634.420,00. 21. A sociedade comercial referida no facto anterior foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 06 de Dezembro de 2018, no processo n.º 20629/18...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ....
* B) Factos não provados: 1. A cessão de créditos em apreço foi efectuada com o intuito de ajudar a Insolvente e não de a prejudicar, a ela ou aos seus credores. 2. A Insolvente, fruto do referido divórcio, viu-se confrontada com uma situação económica muito difícil. 3. A sociedade “T..., Lda”, pelo valor que tinha, fazia acreditar, à data da referida escritura de partilha, que a Insolvente veria o seu crédito de tornas satisfeito, até porque tratava-se de uma sociedade saudável financeiramente, que não registava qualquer incumprimento. 4. Sucede que o ex-marido da Insolvente, por razões que se desconhecem, no final de 2017 e inicio de 2018, retirou toda a actividade da sociedade, não tendo libertado a sua ex-mulher dos avais prestados, conforme se havia comprometido aquando do divórcio, o que colocou a mesma numa situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações. 5. Aliás, a insolvente, no mês seguinte ao divórcio, remeteu carta registada a todas as entidades bancárias onde havia sido prestado o Aval, na qual informava e comprovava documentalmente o divórcio, a cessão de quotas e a renúncia à gerência, solicitando a extinção dos avais. 6. Perante a frágil situação financeira da Insolvente, os Réus dispuseram-se a “correr o risco” da cobrança do crédito em mérito nos autos. 7. Os Réus, por considerarem “manifesto que o crédito cedido não seria facilmente recuperado, até porque tinham consciência que existiam potenciais créditos garantidos (AT e Segurança social) que seriam considerados e graduados antes do crédito hipotecário, avaliaram o mesmo em € 100.000,00”. 8. As partes do contrato de cessão de créditos em mérito, “cientes do elevado risco no recebimento daquele crédito, atentas as hipotéticas reversões fiscais para o ex marido da insolvente, entenderam que o preço fixado e pago correspondia ao risco que ambas as partes quiseram correr”. 9. O imóvel dado de garantia não vale mais do que € 100.000,00.» 10. Na sequência do trânsito em julgado da referida sentença proferida no âmbito do ap. B já foi apreendido para a massa insolvente o aludido crédito hipotecário, no valor de € 350.000,00.
Se deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, ora recorrente, com base no disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE. Como resulta do relatório que antecede e da alegação da recorrente, esta insurge-se contra a decisão recorrida, a qual, no seu entender, devia ter deferido liminarmente o pedido em referência, com o fundamento em que operando a resolução do negócio, a massa insolvente irá receber a totalidade do produto da venda do imóvel hipotecado, inexistindo prejuízo e porque, aquando da transmissão do crédito, desconhecia a situação financeira da Sociedade T..., Lda, pelo que, em sua opinião, não se verifica o condicionalismo previsto na alínea e), do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, por não existirem elementos nos autos que permitam concluir que a requerente agiu com culpa, na criação ou agravamento da situação de insolvência. Ao invés, na decisão recorrida, como resulta do relatório que antecede, considerou-se que a insolvente agravou a sua situação de insolvência, ao tentar subtrair a totalidade do seu património, à acção dos credores, o que se enquadra na previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE.
Desde logo, cumpre mencionar que como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2015, a pág. 855, não é ao devedor que incumbe fazer prova dos requisitos previstos no n.º 1, cabendo aos interessados invocar e demonstrar que não se verificam, ali indicando vária jurisprudência, nesse sentido. Para além dos Arestos ali citados, pode, ainda, exemplificativamente, ver-se, no mesmo sentido, o Acórdão do STJ, de 14 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 3327/10...., disponível no respectivo sítio do itij, no qual se decidiu que “o ónus da prova dos requisitos descritos no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, incumbe aos credores”.
Resumidamente, aduziu-se na decisão recorrida, para indeferir liminarmente o requerido pedido de exoneração do passivo restante, que a requerente ao outorgar com a sua irmã a cessão do crédito hipotecário de que era beneficiária, por um preço significativamente inferior ao seu valor e até por reporte ao VPT, tentou subtrair tais valores/bens à satisfação dos seus débitos, assim, violando o disposto na referida alínea g), nos termos que se seguem: “Segundo a alínea e) deste preceito, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência nos termos do artigo 186.º. Resulta, assim, dele que quando existam elementos no processo que indiciem com toda a probabilidade que a insolvência é de qualificar como culposa, nos termos do artigo 186.º, o devedor não é merecedor da exoneração do passivo restante. A insolvência é de qualificar como culposa, nos termos do artigo 186.º, tanto por aplicação da cláusula geral do seu n.º 1 como por aplicação dos seus números 2 e 3. Para o caso interessam-nos a insolvência culposa baseada no número 1. Ao abrigo do n.º 1 é de qualificar a insolvência como culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Tal qualificação exige que os factos constantes do processo compreendam a acção/omissão do devedor, o nexo de causalidade entre essa acção e a criação ou agravamento da situação de insolvência e a culpa do devedor, na modalidade de dolo ou culpa grave. É o que resulta manifestamente da factualidade apurada, pois é indubitável que a referenciada conduta da aqui Insolvente - marcadamente com culpa grave, se não mesmo com dolo - traduzida na realização do referenciado negócio de cessão de crédito hipotecário, pelo menos agravou (e sobremaneira) a insolvência da devedora, pois através de tal conduta tentou subtrair a totalidade do seu património, ou pelo menos a parte mais significativa e valiosa do mesmo, à acção dos credores, o que ocorreu nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Mostra-se, assim, preenchido, o pressuposto necessário exigido pelo artigo 238.º, nº 1, al. e), do CIRE, para o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.”.
Vejamos, então, face à factualidade dada como provada, se existem, ou não, razões para ser, como o foi, liminarmente indeferido, o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pela ora recorrente. Constam do artigo 237.º do CIRE, os pressupostos da efectiva concessão da exoneração do passivo restante. Sem esquecer que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento. Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “(…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos ..., e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”. Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e tem como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[1]. É assim uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor. Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade”[2]. Por outro lado, constam do disposto no artigo 238.º, n.º 1, os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Como referem Carvalho Fernandes e Luís Labareda, in ob. cit., pág.854/5, as suas alíneas b) a g) “definem, embora pela negativa, requisitos de cuja verificação depende a exoneração, podendo reconduzir-se a três grupos diferentes. Respeita um deles a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram [als. b), d) e e)]; outro compreende situações ligadas ao passado do insolvente [als. c) e f)]; finalmente a al. g) configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência”.
Ora, dispõe-se no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE (no que ao presente recurso interessa) o seguinte. “1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
Assim, resulta desta alínea e) que a mesma pressupõe, para a verificação da situação nela prevista, que constem do processo elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º. Refere a recorrente que não actuou nem com dolo, nem com culpa grave, porquanto com a resolução do negócio, a massa irá receber a totalidade do produto da venda do bem e porque desconhecia a situação da dita sociedade, não prevendo que esta viesse a ser declarada insolvente um ano depois. Desde já, cumpre referir que a questão do prejuízo para a massa releva para efeitos da resolução, que já se mostra decidida, importando, nesta sede, averiguar se a situação de insolvência foi criada ou agravada em consequência de actuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Por outro lado, estamos a apreciar a sua própria, singular, insolvência e não a da supra referida sociedade, de que era sócia, conjuntamente, com o seu ex-marido. Como se refere no Acórdão desta Relação e Secção, de 20 de Março de 2018, Processo n.º 4694/15...., disponível no respectivo sítio do itij, dada a omissão do CIRE na indicação do critério da apreciação da culpa, deverá aplicar-se, analogicamente, o critério do artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, segundo o qual a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso. Citando Assunção Cristas (Exoneração do passivo restante, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 171) “a culpa grave corresponde à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso”. Citando, ainda, no mesmo sentido, Inocêncio Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Reimpressão, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, pág. 354, que ali refere que “a culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira”.
Vejamos, então, se é possível imputar à recorrente uma conduta dolosa ou com culpa grave, com reflexos na criação ou agravamento da sua situação de insolvência. Ora, como resulta dos factos provados, a mesma aquando da partilha de bens subsequente a divórcio, ocorrida em 18 de Maio de 2016, não recebeu quaisquer bens, tendo a sua meação sido integralmente preenchida em dinheiro, tendo declarado já ter recebido a quantia de 427.555,00 €, ficando em dívida o de 400 mil euros, a pagar em prestações, garantindo tal crédito mediante a constituição de hipoteca voluntária a seu favor, sobre o prédio urbano acima identificado, com o valor tributário de 251.230,00 €. Posteriormente, em 23 de Março de 2017, referindo ser titular de um crédito, no valor de 350 mil euros, detido sobre EE, garantido, por hipoteca, a insolvente declarou cedê-lo a sua irmã, BB, pelo preço de 100 mil euros, declarado já recebido, transmitindo com ele a hipoteca, “a título definitivo e irreversível, não estando sujeita a condição ou termo”. Mais se demonstrou que, no ano de 2016, a AT, fixou o valor patrimonial tributário do prédio hipotecado no montante de 256.882,68 €. Até à data em que foi proferida a sentença de resolução do negócio a favor da massa insolvente, o AI não logrou apreender quaisquer bens ou direitos para a massa insolvente ali autora, apesar de ter realizado diligências e pesquisas para o efeito – tudo cf. item 9.º dos factos provados. Salvo o devido respeito por contrário entendimento, resulta destes factos que, a recorrente cedeu por 100 mil euros, um crédito de 350 mil euros, garantido por hipoteca sobre um imóvel avaliado para efeitos tributários em 256.882,68 €. Não lhe eram conhecidos outros bens ou direitos. Do que tudo resulta que a recorrente teve em vista, face à sua situação de insolvência (cujo processo se iniciou em Dezembro de 2018 – cf. item 1.º dos factos dados como provados), tentar ocultar a existência de tal crédito, transmitindo-o nas referidas condições e subtraí-lo ao seu património, de molde a que o mesmo não respondesse pelas suas dívidas. Fora de dúvidas que subtracção de tal crédito da esfera do seu património, no mínimo, agravou o seu estado de insolvência, tanto assim que, não obstante os esforços para tal desenvolvidos, o AI não logrou apreender quaisquer outros bens ou direitos para a massa, que não o referido crédito hipotecário, após trânsito em julgado da sentença proferida no apenso B – Resolução a favor da Massa Insolvente. E nem a tal obsta o facto de o negócio ter sido resolvido. O que releva, para a questão da concessão ou não concessão do benefício da exoneração do passivo restante é a anterior descrita actuação da recorrente, a qual, teve em vista e, na prática teve, os já mencionados efeitos. É diferente, logo no início do processo de insolvência existir ou inexistir património a apreender, com todas as consequências daí decorrentes. Consequentemente, improcede o recurso.
Nestes termos se decide: Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida. Custas, a cargo da apelante. Coimbra, 05 de Abril de 2022. [1] “A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133. [2] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264. |