Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
649/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: COMPRA E VENDA
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 06/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 247.º E 251.º, 289.º, N.º 1 E 1273.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Há erro sobre o objecto do negócio quando o comprador compra um imóvel na convicção, conhecida do vendedor, de que dele fazem partes dois estabelecimentos comerciais aparentemente em laboração, e que depois constata que não possuem alvará ou licença de utilização.
2. O negócio celebrado em tais condições é anulável, a pedido do comprador, com a consequente restituição do preço e pagamento de juros e benfeitorias.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO
1. A..., veio propor a presente acção sob a forma ordinária, contra B... e mulher C..., alegando -em síntese-, que por escritura de 24/2/1997, outorgada no Cartório Notarial de Montemor-o- Velho, os RR. venderam à A., por 40.000 contos, um prédio urbano dotado de estabelecimentos de mercearia, pastelaria e padaria, em funcionamento à data, tendo o seu valor sido incluído no preço indicado na escritura, só havendo interesse da A. na compra devido à incorporação dos estabelecimentos, os quais apenas não foram mencionados na dita escritura para evitar custos e impostos.
Sucede, porém –mais alega-, que, posteriormente, os representantes da A. vieram a saber que o dito estabelecimento de mercearia tinha o alvará em nome de uns antigos donos do prédio, e o de padaria não tinha qualquer alvará, sentindo-se por isso enganados, pois o valor do prédio sem o estabelecimento de padaria legalizado é de metade.
Mais acontece –diz ainda- que entretanto a A. fez benfeitorias no prédio, algumas exigidas pelas autoridades competentes.
E assim fundada, conclui a A. pedindo a anulação da compra e venda, a restituição do preço e juros legais e, ainda, o valor de 11.000 contos de tais benfeitorias, num total, em moeda actual, de €254.387, ou, em alternativa, a redução do preço a 20.000 contos, condenando-se os RR. a restituir outro tanto à A., com juros legais, bem como nas custas do processo.
Contestaram os Réus, excepcionando com a caducidade e prescrição da acção por terem decorrido mais de cinco anos sobre o conhecimento de alegados defeitos, nos termos do artº 916° do Código Civil.
Por impugnação, mais aduziram que compraram o prédio em causa a António de Oliveira Ferreira e mulher, sendo o mesmo avaliado em 34.000.000$00 pelo Banco que lhes concedeu o empréstimo com vista a essa compra, e que os estabelecimentos ali existentes pertenciam à sociedade “ António de Oliveira Ferreira, Lda.”, cujas quotas os RR. adquiriram, desenvolvendo a sua actividade durante três meses, vindo a encerrar sucessivamente os ditos estabelecimentos, que nunca foram negociados pelas partes, sendo que o gerente da A. recusou a oferta de aquisição da sociedade, dizendo que lhe bastaria comprar o imóvel e depois solicitar um averbamento ao seu alvará.
Por outro lado –acrescentam-, não aceitam que o valor do prédio seja reduzido a 20.000 contos, por isso que foi adquirido há mais de três anos por essa importância de 34.000 contos, sendo que não necessita de melhoramentos, pelo que a A. litiga de má fé, pugnando assim os RR. pela sua absolvição do pedido e pela condenação da A. em multa e numa indemnização como litigante de má fé.
Replicando, a A. afirma que foi enganada pelos RR., porquanto comprou o prédio e os estabelecimentos nele instalados na convicção de que fossem dotados das respectivas licenças de laboração e, consequentemente, alvarás, sendo que nunca teria concretizado o negócio se do mesmo não fizessem parte os ditos estabelecimentos, pelo que se verificou erro de sua parte acerca do objecto e dolo dos RR., sendo estes quem litiga de má fé.
E assim concluem como na inicial, pedindo ainda a condenação dos RR. como litigantes de má fé, em multa e numa indemnização a favor da A., a liquidar oportunamente.
Os RR. responderam, por seu turno, propugnando a não aceitação da réplica da A. em tudo o excedente à resposta à excepção deduzi da na contestação.
No saneador julgou-se improcedente a excepção de caducidade invocada pelos RR., e, seguindo os autos os seus ulteriores e normais termos, foi por fim vertida nos autos douta sentença julgando a acção improcedente com a inerente absolvição dos RR. dos pedidos.


2. Inconformada com o assim decidido, a A. interpôs o presente recurso de apelação, em remate do qual –e visando a revogação da sentença impugnada-, exarara as seguintes conclusões:
A) Apesar da matéria dada como assente, entendeu-se na sentença não se verificar erro sobre o objecto do negócio, nos termos do artigo 251º C. C., porque as partes declararam, respectivamente, comprar e vender o prédio que na matriz predial incluiu as instalações industriais e comerciais que interessavam à Autora.
B) E, segundo o entendimento expresso na sentença “Só porque os Réus sabiam que os sócios da A. apenas se interessaram pela compra do prédio em virtude dos dois estabelecimentos nele incorporados e porque pretendiam empregar na laboração de tais estabelecimentos dos filhos seus, não se conclui que os vendedores agiram com dolo e enganaram os sócios e gerentes da compradora por os não alertarem de que os ditos alvarás dos ditos estabelecimentos não se encontravam em nome dos RR..”.
C) Não nos parece que na sentença se aplique correctamente o direito de acordo com os factos provados pela A., e que consubstanciam o pedido principal, o qual consistia no pedido de anulação do contrato de compra e venda, por erro, porquanto “o erro-vício traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio.”
D) Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.
E) Em face do Código Civil de 1996 não se formula na secção relativa aos vícios da vontade qualquer exigência de desculpabilidade ou escusabilidade do erro. Razão porque na senda de melhor doutrina - cfr. Mota Pinto -, a desculpabilidade ou escusabilidade do erro é perfeitamente dispensável enquanto requisito da anulação.
F) Ficou provado que a A. apenas se interessou no negócio porque no prédio estavam incorporados, em plena laboração, os referidos estabelecimentos comerciais.
G) Tendo em conta os factos dados como provados entendemos, salvo melhor opinião, que estamos perante um erro sobre objecto de negócio previsto no art. 251°do C.C., tal como se determinou no Acórdão da Relação Porto de 12/07/2005, proc. nº 0523695.
H) Por outro lado, exige-se às partes agir de boa-fé com correcção, lisura, lealdade, com confiança na realização dos negócios, não defraudando as expectativas da parte contrária, o que não se compadece com a ocultação de informação relevante para decisão de comprar ou não comprar.
I) Razão pela qual somos a admitir a existência de um dolo ilícito porque houve a omissão no esclarecimento de uma circunstância essencial para a conclusão do negócio.
. J) Se porventura não existisse uma eventual ignorância culposa da A. quanto à natureza do negócio, este também não se teria efectuado pelo trespasse, pois como se veio a provar os estabelecimentos comerciais não possuíam a alvarás e respectivas licenças.
L) A A. peticionou como pedido alternativo a redução a metade do preço pago pelo prédio, tendo-se entendido na sentença que o mesmo não pode proceder por não se ter provado que os RR. usassem de dolo ilícito para enganar a A. de modo a convencê-los a comprar o prédio com inclusão tácita dos estabelecimentos pelo preço declarado sem as devidas licenças.
M) Ora, salvo melhor entendimento, não há obrigatoriedade face à lei da existência do dolo para obtenção da redução bastando a mera culpa; todavia, existiu dolo por parte dos RR..
N) Na sentença não se teve em conta o princípio da justiça comutativa ou da equivalência objectiva das prestações uma regra estruturante onde assenta toda a disciplina dos contratos, e onde se estrutura todo o direito civil, já que através dele há uma garantia da inter-subjectividade, e é notório que este princípio foi violado no negócio jurídico em causa.

3. Os RR., por sua vez, apresentaram contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos que se mostram os competentes vistos, cumpre decidir.

II - FACTOS
Na douta sentença, a matéria provada foi nela inventariada da forma que segue:
Assentes
A) Por escritura pública realizada no dia 24 de Fevereiro do ano de 1997, exarada a fls. 78 verso a folhas 84 verso, do Livro 170 D, do Cartório Notarial de Montemor-o-Velho, os ora Réus declararam vender à ora Autora, pelo preço de 40.000.000$00 (quarenta milhões de escudos), o seu prédio urbano sito na Rua da Misericórdia, no Lugar e freguesia de Tentúgal, do concelho de Montemor-o- Velho, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 869 e descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial, sob o n° 1835, da freguesia de Tentúgal, registado a favor dos vendedores ora Réus, pela inscrição G - 2 e actualmente registada a sua aquisição a favor da ora Autora (docs. de fls. 12 a 30). B) A Autora foi constituída por escritura pública realizada em 1995, encontrando-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Montemor-o-Velho, sob o n° 274. sendo seus únicos sócios e gerentes, D... e E..., casados no regime da comunhão geral de bens (doc. de fls. 32 e 33).
C) A Autora, em 24/02/1997, procedeu ao pagamento da sisa, constando do respectivo conhecimento a seguinte declaração “que pretende pagar a sisa que for devida com referência à compra que por 40.000.000$00 (quarenta milhões de escudos) vai fazer a B... e mulher C..., casados em comunhão de adquiridos, de uma casa composta de r/c 2 divisões, destinadas a comércio, uma cozinha e 1º andar, 4 divisões para habitação, 1 dependência com 2 divisões, sendo uma o foro da padaria e outra a casa de cozedura. Uma adega, pátio e telheiro, sita em Tentúgal, sob o Artigo 869, com o Valor Patrimonial de 5.981.040$00. Mais declarou que sobre o referido prédio não impendem quaisquer ónus ou encargos ou arrendamento a longo prazo, encontrando-se o prédio hipotecado pelo valor de 23.411.200$00.”
D) Por escritura pública outorgada em 03/12/1993 os RR compraram a António de Oliveira Ferreira e mulher o prédio indicado no art°. 1º da petição, além de outro, pelo preço de 34.000.000$00, como se prova por documento já junto com a petição, sob o n° 5.
E) Os réus são sócios de Mendes & Ferreira, Padarias, Lda., que tem por objecto social o “fabrico e venda de pão, pastelaria, artigos de mercearia e produtos similares” ( doc. de fls. 67).
F) A sociedade referida em E), até 13/10/1994, tinha a seguinte denominação “António de Oliveira Ferreira, Lda.” (doc. fls. 67 e segs.).
*
Da base instrutória
1°: Provado que o prédio referido em A), no momento da sua venda e quando foi negociada essa venda possuía instalado no seu rés-do-chão-frente, um estabelecimento comercial de mercearia (mini-mercado) e, na sua parte traseira, lado nascente, um estabelecimento industrial de padaria.
2°. Os estabelecimentos, à data da celebração da escritura pública referida em A), encontravam-se em plena laboração.
4°: P .q. o imóvel referido em A) sem tais estabelecimentos valia 26.200.000$00.
5°. A Autora só se interessou pela aquisição do prédio, em virtude dos dois estabelecimentos nele incorporados.
6°. E porque pretendia empregar na laboração de tais estabelecimentos dois filhos seus, que estavam desempregados.
7°. O que era do conhecimento dos réus.
8°. Em virtude de tais estabelecimentos já estarem em plena laboração há vários anos e do teor da descrição matricial do prédio a Autora estava convicta de que os estabelecimentos comerciais nele instalados estavam legalizados e licenciados.
12°: P. q. em 25/3/1997, na sequência de uma acção de fiscalização efectuada aos estabelecimentos industriais instalados no prédio referido em A), pela Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia, a Autora é alertada que a padaria estava a funcionar sem alvará sanitário.
13°. Nessa altura constataram que o Alvará do mini-mercado, não estava também em nome dos Réus.
14°: P. q. a Autora desde a realização da escritura referida em A) efectuou obras no mini-mercado.
15°. E ainda obras noutras dependências anexas ao referido estabelecimento, necessárias, por razões de higiene sanitária e de solidez.
16°: P .q . a Autora reformulou as instalações eléctricas do rés-do-chão.
17°: P. q. as obras referidas em 14°,15° e 16° ascenderam a 4.000.000$00.
19°. Os estabelecimentos do mini-mercado e padaria que estavam instalados no rés-do-chão do edifício referido em A) eram explorados pela sociedade referida em E).

III – FUNDAMENTAÇÃO
1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, do Cód. Proc. Civil (ao qual pertencem os demais preceitos a citar sem menção de origem), o âmbito do recurso é, em princípio, definido em função das conclusões das alegações da Recorrente, circunscrevendo-se às questões aí equacionadas, excepção feita às de conhecimento oficioso.
E entre as questões a respeito das quais esse imperativo conhecimento se impõe aos Tribunais da Relação, surgem, desde logo, as referentes à fixação da matéria de facto, dada a consabida natureza de tribunais de instância que aos mesmos assiste.
Tendo pois em conta esse poder-dever que, em razão do exposto, se nos acha legalmente cometido, e que decorre patentemente do estipulado em todo o art.º 712º, sucede que, muito embora a matéria factual acima transcrita não venha posta em causa no vertente recurso, e bem assim a douta decisão da qual emerge essa mesma matéria, sucede –dizíamos-, apresentar-se-nos em alguma medida essa decisão eivada de deficiência, a justificar de nossa parte intervenção no sentido da respectiva correcção e eliminação.
Estamos a referir-nos, mais concretamente, à resposta rotundamente negativa conferida ao quesito 11º da B.I., a qual, tendo em conta as respostas positivas outorgadas aos quesitos 5º, 6º, 7ºe 8º -acima reproduzidas-, nos surge obscura e até mesmo contraditória com estas últimas respostas. Acresce ainda que, em nosso modesto ver, a prova produzida nos autos –seja de índole testemunhal, seja documental-, e que conduziu às ditas respostas positivas, impunha por igual, sem quebra do muito respeito, também pronunciamento positivo em relação a esse quesito 11º.
Se não vejamos.
Depois de no quesito 10º se perguntar se “No decurso de tais negociações [anteriores à celebração da escritura referida em A)], sempre foi referido pelos réus à autora que os estabelecimentos faziam parte integrante do prédio e que estavam ambos a funcionar em pleno e legalmente?”, no enfocado quesito 11º, por sua vez, perguntava-se: “Na sequência do referido em 10º, os representantes da autora ultimaram o negócio à aquisição do prédio urbano, pela escritura pública referida em A), através da qual os réus e a autora pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimentos, referidos em 2º. –padaria e mini-mercado?”.
Como dissemos, a este quesito 11º respondeu-se “não provado”.
Todavia, no tocante àqueles quesitos 5º, 6º, 7ºe 8º conferiu-se pronunciamento oposto, dando-se assim como demonstrado que:
- A A. só se interessou pela aquisição do prédio, em virtude dos dois estabelecimentos nele incorporados – qtº 5°.
- E porque pretendia empregar na laboração de tais estabelecimentos dois filhos seus, que estavam desempregados – qtº 6°.
- O que era do conhecimento dos réus – qtº 7°.
- Em virtude de tais estabelecimentos já estarem em plena laboração há vários anos e do teor da descrição matricial do prédio a A. estava convicta de que os estabelecimentos comerciais nele instalados estavam legalizados e licenciados – qtº 8°.
Ora, frente a esta materialidade -da qual decorre, pois, que apenas o intuito de empregar os respectivos filhos na laboração dos estabelecimentos nele instalados levou os sócios-gerentes da A. a adquirirem o prédio, desígnio esse outrossim do conhecimento dos RR-, não vislumbramos como seja possível, sem resvalar para a incoerência, dar essa resposta negativa em relação ao dito quesito 11º, ou seja, considerar não provado que através da escritura pública de aquisição do prédio, os nela intervenientes RR. e sócios da A. não pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimentos no mesmo imóvel situados.
A incongruência afigura-se-nos, sempre com o muito respeito, manifesta, deficiência que no entanto transparece não só ao nível puramente lógico-formal ora considerado, confrontando o teor das respostas entre si, mas também, e como dissemos, ao nível mais profundo e substancial da prova produzida.
Com efeito, e auscultando, desde logo, a prova testemunhal ocorrida em audiência e devidamente objecto de gravação, concluímos que –ao invés do inserto nesse quesito 11º-, tanto da parte dos RR. como dos sócios da A. houve a intenção de, com a escritura reportada em A), para além do imóvel em si, transferir também para esta última ambos os estabelecimentos. Ou seja, com tal convénio, tiveram as partes em vista vender e comprar não só o edifício propriamente dito –como da escritura expressamente consta-, mas também os ditos estabelecimentos, padaria e mini-mercado.
Assim é que a testemunha António Gomes Teixeira refere, além do mais, ter assistido a conversa entre o R. e o D... (sócio-gerente da A.) da qual resultava que “... era para passar aquilo para eles; era isso tudo, eles não tinham interesses se não fosse a mercearia e a padaria...” e a testemunha Maria da Conceição Cunha Mendes Laranjeiro, por seu turno, que em conversa com a E... esta lhe disse “...vou comprar a padaria para futuro dos meus filhos..”, mais acrescentando a mesma testemunha “... sei que eles venderam tudo..., depois que eles compraram não vi lá mais ninguém (da parte dos RR.).
Também a testemunha Constantino Ferreira Cardoso, trabalhador na padaria desde a sua instalação –por conversão de uma serração de madeiras-, afirma que o seu último patrão “... foi o Sr. D......” e ele e a mulher “.. compraram tudo aquilo, o prédio, a padaria, e tudo.”. Mais esclarece que antes do negócio dos autos, ele, Constantino Cardoso, quis alugar aos RR. e então seus patrões, a padaria, mas que estes não aceitaram, dizendo-lhe que “isto está quase vendido.” Refere ainda que pelo que se apercebeu o “... o D... interessava-se não propriamente pelo prédio mas pelos estabelecimentos, por causa dos filhos ...”, sendo que o filho varão daquele foi trabalhar com a testemunha na padaria logo após a aquisição pelos pais, elucidando ainda que nos estabelecimentos, após o negócio,”... ficou tudo, o forno, o frigorífico, tudo!”.
Outrossim de mencionar é ainda o depoimento da testemunha Rui de Abreu Maia, cliente da padaria, o qual, entre o mais, refere que o estabelecimento não obstante a sua passagem dos RR. para a família F... continuou normalmente a trabalhar, que “... o Sr. D... comprou o prédio por causa dos filhos, para dar emprego ao filho, que a padaria foi passada com tudo,... estavam lá os mesmos objectos...” Em idêntico pendor se pronunciou também, e por fim, a testemunha Amélia da Conceição F... (malgrado este apelido sem qualquer ligação de parentesco com os sócios-gerentes da A.), também cliente habitual tanto da padaria como do mini-mercado.
Pese embora estas mencionadas testemunhas serem todas da A., verdade é, no entanto, que os seus depoimentos em nada são infirmados pelos da parte contrária, sendo certo que todas estas concedem que ambos os estabelecimentos, efectuada a escritura nominalmente reportada apenas ao edifício, prosseguiram no seu normal funcionamento, agora sob a tutela da família F....
E idêntica ilação –no sentido da abrangência pelo firmado contrato dos estabelecimentos-, se extrai também, como dissemos, dos elementos documentais juntos aos autos.
Tal é o caso do doc. de fls. 70-71, donde resulta que à frente dos destinos do estabelecimento de padaria passou a ficar apenas e só a A.. E o mesmo se verifica com os docs. de fls. 252 e ss, dos quais se infere idêntica ocorrência em relação à mercearia, particular saliência concitando o doc. de fls. 261, constitutivo do pedido por parte do próprio R.-marido no sentido do averbamento do respectivo alvará a favor da A., averbamento que efectivamente veio a ter lugar, conforme doc. de fls. 266 e vº.
Ora, perante todo este eloquente e multifacetado conjunto de elementos, como recusar que, com a celebração da mencionada escritura, os RR. tiveram a intenção de abrir (também) mão dos estabelecimentos, e a A. (família F...), por seu turno, de adquirir outrossim os mesmos estabelecimentos? É certo que a tal respeito nada fizeram constar nesse instrumento, nem isso era sequer possível, dada a qualidade em que os RR. ali intervieram e outorgaram. Mas este particularismo, sempre com a devida vénia, em nada invalida a realidade objectiva das coisas, e ela é, insofismavelmente, no sentido que vimos propugnando, seja, ter o contrato em foco envolvido, de conformidade com o óbvio intuito de ambos os intervenientes, também os estabelecimentos instalados no edifício (apenas) declaradamente transaccionado. Como alguém avisadamente já afirmou, “deve-se dar mais valor ao poder dos factos e à realidade da vida do que a construções jurídicas!”
Nesta decorrência, pensamos que o negativo pronunciamento deferido ao ventilado quesito 11º não pode subsistir, antes se impondo substituí-lo -presente o disposto no segmento inicial da al. a), do nº 1, do art.º 712º, e nº 4 do mesmo preceito-, por um outro de sentido inverso, ainda que com um pendor restritivo, a saber:
- “Provado apenas que os representantes da autora ultimaram o negócio à aquisição do prédio urbano, pela escritura pública referida em A), através da qual os réus e a autora pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimento, referidos em 2º. –padaria e mini-mercado.”
Como assim, o quadro fáctico a considerar em vista da decisão da causa, além do material acima alinhado, extractado da douta sentença, integrará também este que, a título desse devido veredicto, se acaba de enunciar.

2. Definido, enfim, o contingente fáctico a subsumir juridicamente, cuidemos então das questões recursórias directamente suscitadas pela A./Apelante.

2.1. Esta começa por se insurgir contra a douta sentença porquanto, ao invés do que nesta se decidiu, no caso ajuizado se verificou, por parte dos sócios da A., erro sobre o objecto do negócio, nos termos do art.º 251ºdo Cód. Civil.
Na referida sentença, com efeito, o Mm.º Juiz excluiu a verificação dessa figura do erro sobre o objecto negocial, aduzindo para tanto que as partes declararam, respectivamente, comprar e vender o prédio que na matriz predial inclui as instalações industriais e comerciais que interessavam à A.. Assim, e no que em especial concerne aos sócios desta, sabiam que compravam aos RR. esse prédio e respectivas instalações, e não que adquiriam por trespasse, na sua globalidade, os dois estabelecimentos ali localizados. De tal sorte, o erro desses sócios –na medida em que estavam convictos de que os estabelecimentos se achavam legalizados e licenciados, só querendo comprar o prédio por nele estarem incorporados os estabelecimentos e neles quererem empregar os filhos-, apenas incidiu sobre os motivos determinantes da vontade, a subsumir à previsão do art.º 252º, nº 1, do mesmo diploma, pelo que só seria fundamento de anulação se as partes houvessem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo. Hipótese, porém, que –ainda segundo o Exmº Magistrado-, “in casu” não ocorre, por não se ter provado que os vendedores tivessem nas negociações prévias dito que cediam à A. os alvarás e demais elementos incorpóreos dos estabelecimentos.
E assim discorrendo, o Mm.º Juiz indeferiu o pedido de anulação do contrato com base em erro da vontade ou erro-vício, seja em uma ou outra das apontadas modalidades.
Ressalvando sempre o muito respeito, não podemos subscrever este douto entendimento.

2.2. Com efeito, em nosso bem modesto ver, verificou-se da parte dos sócios da A. erro, e erro quadrável ao art.º 251º do CC, na medida em que incidiu sobre o objecto do negócio.
Na verdade, e como vimos –facto acima adscrito-, os ditos sócios, tal como os RR., quiseram efectivamente, mediante o contrato que outorgaram, transferir também para aqueles não só o prédio e o lastro físico dos estabelecimentos, mas também estes mesmos. Não vale falar, sempre sem quebra do muito respeito, em elementos corpóreos e incorpóreos, porquanto o certo é que, tendo os compradores apenas entrado no negócio por causa única e exclusiva dos estabelecimentos –factos provados 5º e 6º-, verdade é que, celebrada a escritura, de pronto os adquirentes passaram a tomar conta e explorar os mesmos, deixando os compradores de manter neles qualquer presença, seja a que título. Não foi, pois, apenas negociado o edifício –conforme o teor literal da escritura-, mas muito mais do que isso: foram os locais dos estabelecimentos, as máquinas, os utensílios, e tudo o mais que neles se encontrava, inclusive os respectivos trabalhadores.
Assim sendo, como é, por que excluir do “negócio” –a exemplo da douta sentença-, os alvarás e licenças, sendo certo, por outro lado, que a clientela e o aviamento –conforme expendem, entre outros, Fernando Olavo (Dir. Comercial, Vol. I, 2 ª ed., C. Editora, pág. 265) e E. Santos Júnior (As Operações Comerciais -Trabalhos do Curso de Mestrado Sob A Orientação Do Prof. Doutor Oliveira Ascensão, Almedina, pág. 413)-, não fazem parte dos elementos constitutivos dos estabelecimentos, mas sim das respectivas qualidades ou características? A olhar aos dados da experiência e da intuição humanas, havemos de convir que uma tal exclusão, em face do demais circunstancialismo envolvente, se apresenta escassamente plausível. E os elementos constantes dos autos evidenciam o bem fundado desta nossa elucubração, pois, como já referimos, o alvará da mercearia, único existente, acabou por ser averbado, com a intervenção dos próprios RR., em nome da A. compradora.
Deste modo, e repisando, não restam dúvidas que com o contrato em foco os sócios da A. quiseram também adquirir os estabelecimentos, as unidades negociais, em vista a neles empregar os filhos, sendo assim condição essencial para a cabal concretização desse desiderato que os mesmos se achassem devidamente legalizados e licenciados. Ora, como sabemos, isso de todo não se verificava em relação à padaria –não só desprovida do concernente alvará ou licença camarária de utilização, mas também, e sobretudo, do licenciamento para o exercício da própria actividade industrial ou laboração (cfr. fls. 70-71 e 229) -, sendo certo que no tocante à mercearia, a irregularidade verificada -achar-se o respectivo alvará sanitário passado em nome diferente dos RR.-, pôde ser devidamente sanada, como sempre seria de perspectivar, mediante o ulterior e competente averbamento nele da firma da A..
Ora, sendo condição necessária e imprescindível a plena legalidade dos estabelecimentos em vista adquirir, e não se verificando tal –de forma irremissível-, em relação à padaria, temos que os gerentes da A., convictos como se achavam do contrário –f. p. nº 8-, agiram em erro sobre as qualidades do objecto mediato do negócio (art.º 251º), sabido que nesse enfoque também relevam as qualidades de índole jurídica, a que a ora considerada falta de licenciamento industrial se reconduz, conforme a lição de Menezes Cordeiro, in Tratado de Dir. Civil, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, pág. 539.
Destarte, e tal como avançámos, a douta objecção da Recorrente logra vitória, nesta parte se evidenciado, pois, a douta sentença insubsistente.

2.3. Sustenta mais a Recorrente que verificando-se, como acabamos de ver, erro por parte dos representantes da A. sobre o objecto do negócio (do tipo erro sobre as qualidades), esse negócio, na linha do pretendido por aquela, não pode deixar de ser anulado, por verificação da integralidade dos requisitos que a tanto se fazem mister.
Que dizer? Vejamos.
Conforme o ensinamento de Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Dir. Civil, 2003, 2ª ed., Almedina, pág. 496, para que o negócio inquinado de erro seja anulável é necessário que se verifiquem dois pressupostos, constantes do art.º 247º do CC, por remissão do predito art.º 251º, a saber, a essencialidade e a cognoscibilidade. No mesmo sentido, veja-se também, Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 533.
Quanto àquele primeiro requisito, a sua verificação no caso dos autos temo-la por indiscutível, tomando designadamente em conta os f. p. nºs 5º e 6º: “A A. só se interessou pela aquisição do prédio, em virtude dos dois estabelecimentos nele incorporados”, “E porque pretendia empregar na laboração de tais estabelecimentos dois filhos seus, que estavam desempregados.”
No tocante ao outro, traduz-se ele, consoante o mesmo Mestre (ob. e loc. cits.), em o declaratário conhecer ou não dever ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que o erro deste versou. Este pressuposto, também na espécie em exame nitidamente ocorre, pois sabendo os RR. que os sócios da A. só outorgavam o contrato em virtude dos estabelecimentos incorporados no prédio, por isso que na respectiva laboração pretendiam empregar os seus filhos –f. p. nºs 5º, 6º e 7º-, obviamente que, quando menos, não podiam ignorar que para os adquirentes era fundamental que, ao revés do sucedido, os estabelecimentos estivessem em perfeitas condições de legalidade, pois só assim seria possível prosseguir na respectiva exploração e, de tal sorte, concretizar esse único escopo tido em vista com tal convénio.
Nestes termos, pois, e tal como o defendido pela Recorrente, na situação em presença ocorrem todos os elementos de relevância anulatória do erro sofrido pelos sócios da A.. Sem embargo, a excluir essa relevância, na douta sentença considerou-se que se os sócios da A. fizeram a compra partindo do pressuposto de que bastaria adquirir o prédio com os estabelecimentos para, achando-se estes licenciados em nome dos RR., poderem logo prosseguir nas mesmas actividades, então os mesmos incorreram em erro crasso e indesculpável, o que pela doutrina tradicional lhes não daria o direito a obter tal invalidação.
Salvo o muito respeito, uma vez mais não estamos com o Mm.º Juiz, pois, como vem sendo prevalentemente defendido pelos autores –cfr., por todos, Paulo Mota Pinto, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, Almedina, pág. 81-, face ao regime instituído pelo CC actual, a desculpabilidade ou escusabilidade não é condição para a anulação de declaração negocial viciada por erro sobre a determinação causal da vontade.
Deste modo, o engano, a falsa representação em que os sócios da A. incorreram ao celebrarem o contrato, é efectivamente, e tal como reclamado por aquela, fundado motivo em ordem à almejada anulação do negócio.

2. 4. Na sua douta alegação a A./Recorrente sustenta ainda a existência de dolo ilícito por parte dos RR., na medida em que, ocultando dos representantes da A. a falta de condições de legalidade dos estabelecimentos, omitiram o esclarecimento de uma circunstância essencial para a conclusão do negócio.
Salvo o muito respeito, nesta parte não podemos concordar com a Recorrente.
Conforme elucida o Prof. Mota Pinto, in Teoria Geral do Dir. Civil, 3ª ed. C. Editora, pág. 518, para a verificação de um comportamento qualificável como doloso, à luz do art.º 253º, nº 1, do CC, necessário se torna que o declaratário actue com a intenção ou a consciência de enganar a contraparte.
Aplicando este emérito ensinamento ao caso dos autos, temos que a conduta dos RR. só poderia ser considerada como dolosa, caso se provasse que os mesmos, embora sabendo ou estando cientes que os estabelecimentos –“maxime” a padaria-, não se encontravam legalizados, isso, porém, sonegassem dos sócios da A., ou, até mesmo, procedessem no sentido de os persuadir do contrário, de essa legalização efectivamente ocorrer.
Ora, analisando a factualidade provada, nenhuns elementos é possível extrair apontando para existência desse indispensável conhecimento por parte dos RR.. E essa falência de elementos surge plenamente justificada, quando atentando nos depoimentos testemunhais produzidos em audiência, se fica a saber que os RR., emigrantes na Suíça, nunca estiveram à frente da exploração de qualquer dos estabelecimentos que, desde a primeira hora, confiaram a um casal seu familiar. Daí que –conforme o depoimento da testemunha Rui Abreu Maia-, o R.-marido até estivesse convencido da plena legalidade dos ditos estabelecimentos, tanto que ao ser demandado nesse sentido por D... lhe tenha tornado que, conquanto não em seu poder, o alvará dos estabelecimentos estaria na posse de um seu tio ou de um determinado causídico.
Nestes termos, pois, inviável se torna, como dissemos, considerar a conduta dos RR. como inquinada por dolo e, logo, o erro dos sócios da A. qualificado pela operância de tal vício.

3. Sem embargo, porém, esse erro por parte dos ditos sócios, ainda que na sua forma simples –não provocada ou determinada pelos RR.-, ocorre, o que, como repetidamente já afirmámos, conduz à anulação do negócio de compra e venda entre os aqui Pleiteantes celebrado.
O pedido principal da A. logra, pois, vitória, assim se quedando prejudicado o pedido deduzido pela mesma em via subsidiária e, mercê de tal, as questões a tal respeito suscitadas no vertente recurso.

4. A par desse pedido de anulação, deduz a A. o pedido de restituição do preço –Esc. 40.000.000$00-, por ela paga pela realização do negócio, acrescido dos juros legais.
Quanto à restituição do preço, é manifesta a procedência da respectiva pretensão, sendo que em face do regime prescrito no art.º 289º, nº 1, a anulação, tal como a nulidade, opera retroactivamente, havendo lugar à repristinação das coisas no estado anterior do negócio, o que implica a obrigação de cada uma das partes devolver o que recebeu. No tocante aos juros legais, que se entendem reclamados, frente aos termos do respectivo “petitum”, desde a citação dos RR., igual procedência há que afirmar, em decorrência do estatuído nas disposições conjugadas do nº 3, desse art.º 289º, e do nº 1, do art.º 1270º, também do CC – cfr., a propósito, Acs. do S.T.J. de 15-10-98, in Col./STJ, III, pág. 63 e da R.C. de 9-5-2000, in Bol. 497º-452.

5. Peticiona ainda a A. o valor das benfeitorias por ela entretanto efectuadas no prédio.
A este propósito, surgem-nos provados os factos 15º, 16º e 17º, nos quais se consubstanciam benfeitorias necessárias e úteis, consabido que –de acordo com literalidade do nº 3, do art.º 216º, do CC-, as primeiras são as que evitam o detrimento da coisa e as outras as que aumentam a potencialidade de gozo da coisa.
Afigurando-se-nos de considerar a existência de impossibilidade de levantamento de tais benfeitorias sem detrimento do imóvel, essa pretensão indemnizatória da A. surge-nos também de acolher, por força do disposto no art.º 1273, aplicável por força da remissão plasmada nesse predito nº 3 do art.º 289º. Confinada ao comprovado valor de Esc. 4.000.000$00, efectivamente despendido nas obras –f. p. 16º-, é, pois, essa pretensão igualmente procedente.

6. Por tudo o que se vem de dizer, e em suma, logra o ora apreciado recurso sucesso, o que implica a revogação da douta sentença por ele adversada, e nos conduz à seguinte

IV – DECISÃO
Nestes expostos termos, julga-se o presente recurso de apelação procedente e, mercê de tal, revoga-se a douta sentença recorrida, em razão do que se julga a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- anula-se o contrato de compra e venda celebrado entre a A. e os RR., no dia 24-02-97, mediante escritura pública da mesma data e exarada de fls. 78 vº a fls. 84 vº do Livro nº 170- D, do Cartório Notarial de Montemor-o-Velho; e condena-se os RR.
- a restituir à A. a quantia de € 199.519,00 (correspondente a Esc. 40.000.000$00), acrescida de juros à taxa anual de 7% (Port. nº 263/99) desde 5-03-2003, e à taxa de 4% (Port. nº 291/2003), desde 1-05-2003; e ainda
- a pagar à A. a quantia de € 19.952,00 (correspondente a Esc. 4.000.000$00).
Custas da apelação pelos Recorridos, custas da acção por A. e RR. na proporção do vencido.

Coimbra,