Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
795/18.5PBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: CRIMES AMNISTIADOS
REFORMULAÇÃO DO CÚMULO JURÍDICO
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO
ARTIGOS 77.º, 78.º E 128.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 472.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Com a alteração da moldura penal abstracta aplicável ao concurso de crimes, devido à retirada de penas parcelares aplicadas a crimes declarados amnistiados, impõe-se a realização de audiência com vista à reformulação do cúmulo jurídico das restantes penas parcelares aplicadas pela prática dos demais crimes não amnistiados, para determinação da nova pena única com vista à posterior aplicação do perdão.
Decisão Texto Integral: Relatora: Cândida Martinho
Adjuntos: Maria José Guerra
João Abrunhosa

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

1.

No âmbito do processo comum coletivo nº795/18.5PBCBR, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz ..., por despacho de 12/4/2024 foi proferido o seguinte despacho:

“Foi o arguido AA condenado no presente processo n.º 795/18.5PBCBR na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão (efectiva), pena única que englobou, em cúmulo jurídico:

- a pena de 2 anos e 9 meses de prisão, pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 143º/n.º 1 e 145º/n.os 1-a) e 2, este por referência ao art. 132º/n.º 2-f) e h), todos do Código Penal (C.P.);

- a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em co-autoria material, de outro crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 143º/n.º 1 e 145º/n.os 1-a) e 2, este por referência ao art. 132º/n.º 2-f) e h), todos C.P.;

- a pena de 2 meses de prisão, pela prática, em co-autoria material, de um crime de injúria, p. e p. no art. 181º/n.º 1 C.P.;

- e ainda a pena de 2 meses de prisão, pela prática, em co-autoria material, de outro crime de injúria, p. e p. no art. 181º/n.º 1 C.P..

Atendendo à data da prática da factualidade em questão (14 de Julho de 2018), e considerando haver o arguido nascido em ../../1999, é aplicável aos crimes de injúria, p. e p. no art. 181º/n.º 1 C.P., pelos quais foi condenado, a amnistia contida no art. 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, pois que os crimes de injúria em causa são puníveis com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias, e não estão excluídos dessa mesma aplicação (art. 7º da Lei n.º 38-A/2023).

Por outro lado, abstraindo agora da questão dos apontados crimes a amnistiar, atendendo à circunstância da prática dos demais factos sub judicio haver ocorrido exactamente no mesmo dia já referido (14 de Julho de 2018), e considerando a aludida data de nascimento do arguido – ../../1999 –, é aplicável à pena cumulatória única o perdão de penas contido na Lei n.º 38-A/2023, visto que os demais crimes ali em causa – ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 143º/n.º 1 e 145º/n.os 1-a) e 2, este por referência ao art. 132º/n.º 2-f) e h), todos C.P. –, não estão excluídos dessa mesma aplicação (art. 7º da Lei n.º 38-A/2023).

Considerando que, como dissemos, os crimes de injúria, p. e p. no art. 181º/n.º 1 C.P., deverão ser declarados amnistiados, restar-nos-á, depois, e “retirados” que sejam tais crimes – bem como as respectivas penas parcelares aos mesmos aplicadas – da economia da pena cumulatória única, perceber sobre que quantum, desta mesma pena cumulatória, haverá de incidir o perdão de 1 ano consagrado no art. 3º/n.os 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023.

Pois bem, entende este Tribunal que, na sua ponderação normativa, pretendeu o legislador evitar, mesmo com a aplicação da amnistia aos crimes dela passíveis, a realização de cúmulos jurídicos em situações como a presente, ou seja, nas quais haja que decretar primeiramente a amnistia e, após, aplicar à pena cumulatória sobejante o perdão contido na Lei n.º 38-A/2023.

A alicerçar a nossa asserção está, desde logo, a circunstância de a redacção do n.º 3 do art. 5º da Proposta de Lei do Governo n.º 97/XV/1ª, de 19/6/2023 (que haveria de dar origem, com diversas alterações, à Lei n.º 38-A/2023), ser a seguinte, a propósito das situações em que houvesse crimes que beneficiassem do perdão ou da amnistia em concurso com outros que estivessem excluídos nos termos das excepções constantes desse art. 5º: «a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no art. 3º e da amnistia prevista no art. 4º relativamente a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico, quando aplicável».

Ora, a redacção acabada de mencionar, no tocante à realização de novos cúmulos jurídicos, não veio a lume em segmento algum da Lei n.º 38-A/2023, designadamente no n.º 3 do seu art. 7º, que apenas refere que «a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no art. 3º e da amnistia prevista no art. 4º relativamente a outros crimes cometidos».

Pelo que tudo nos leva a concluir, em situações como a presente, devermos realizar primeiramente uma ponderação acerca do (mais ou menos) exacto “peso” relativo de que, na pena cumulatória única, se revestiu(iram) a(s) pena(s) parcelar(es) referente(s) ao(s) crime(s) amnistiado(s), ou seja, no caso vertente, as duas penas de 2 meses de prisão que couberam aos dois crimes de injúria, p. e p. no art. 181º/n.º 1 C.P..

Fazendo-o, percebemos que o mencionado “peso” relativo das duas penas parcelares de 2 meses cada uma, ou seja, o “peso” relativo de 4 meses, equivale a cerca de 2 meses e 20 dias do quantum cumulatório global de 45 meses (3 anos e 9 meses) de prisão concretamente aplicado ao arguido.

Assim, na primeira fase metódica acabada de expor, por via das infracções amnistiadas, e nos termos do art. 4º da Lei n.º 38-A/2023, “retiraremos” 2 meses e 20 dias de prisão à pena cumulatória única de 3 anos e 9 meses de prisão, “ficando”, por conseguinte, tal pena cumulatória reduzida a 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão.

Depois, aplicaremos o perdão de 1 ano aos aludidos 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão, por força do disposto no art. 3º/n.os 1 e 4 da mesma Lei n.º 38-A/2023.

Por todo o exposto, nos termos da conjugação dos arts. 128º/n.º 2 C.P. e 1º, 2º/n.º 1 e 4º da mencionada Lei n.º 38-A/2023, declara-se extinta, por amnistia, a responsabilidade criminal do arguido AA relativamente aos dois crimes de injúria por que foi condenado e, consequentemente, a cessação das respectivas penas de prisão, as quais, na economia da pena cumulatória única de 3 anos e 9 meses de prisão, representam 2 meses e 20 dias de prisão da mesma, que, assim, fica reduzida a 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão.

No mais, nos termos do disposto, conjugadamente, nos arts. 128º/n.º 3 C.P. e 1º, 2º/n.º 1 e 3º/n.os 1 e 4 da citada Lei n.º 38-A/2023, declara-se perdoado ao arguido AA 1 ano de prisão da referida pena única de 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão, sob as condições resolutivas de:

- não praticar o arguido qualquer infracção dolosa até 1 de Setembro de 2024 (pois que, caso tal aconteça, à pena aplicada à infracção superveniente acrescerá o cumprimento da parte da pena agora perdoada, conforme o previsto no n.º 1 do art. 8º da Lei n.º 38-A/2023);

- efectuar o pagamento das quantias indemnizatórias aos ofendidos nos presentes autos n.º 795/18.5PBCBR, nos moldes definidos no acórdão condenatório aqui prolatado, no prazo de 90 dias após a notificação a realizar para o efeito (nos termos do n.º 2 do art. 8º da Lei n.º 38-A/2023).

Notifique (e comunique igualmente ao Tribunal de Execução de Penas).

(…)”.

           

2.

            Inconformado com o decidido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

            “1- O presente recurso é interposto do douto despacho proferido em 3 de Abril de 2024, pelo M.mo Juiz que, recusou reformular o cúmulo jurídico efectuado, que englobava duas penas que deviam ser declarada extintas por amnistia e penas parcelares de crimes que são abrangidos pelo perdão, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, não obstante a alteração da moldura penal abstracta das penas englobadas no cúmulo jurídico, decorrente da extinção de duas dessas penas por força da amnistia.

2- Sustentou essa sua decisão na interpretação que efectuou da eliminação do segmento que constava da proposta da proposta de Lei n.º 97/XV/1: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico de penas”

3- Concluindo que o legislador ao afastar esse segmento pretendeu “desviar a necessidade de reformular qualquer cúmulo jurídico”.

4- Desse modo, decidiu por despacho, aplicar a amnistia e apurar a relevância das penas dos crimes amnistiados na pena única na qual as mesmas tinham sido englobada e após proceder a vários cálculos aritméticos, utilizando fórmulas que explicitou, concluiu que deveriam ser descontados 2 meses e 20 dias de prisão à pena cumulatória única de 3 anos e 9 meses, determinando que a pena única do cúmulo jurídico fosse de 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão, aplicando o perdão de 1 ano aos aludidos 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão.

5 - É hoje entendimento da jurisprudência e da doutrina que as leis de amnistia e de perdão são providência de ocasião e de excepção, que se interpretam e aplicam nos seus precisos termos sem ampliação nem restrição que não venha expressamente consignada.

6 - A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto prevê no artigo 7.º, n.º 3, que:” A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”. Mas apenas isso.

7- Essa previsão não vai para além do disposto conjugadamente nos artigos 128, n. º2, 77.º e 78.º do Código Penal, cujos pressupostos se mantêm de verificação imperativa.

8- No caso de cúmulos jurídicos que abranjam penas parcelares resultantes da condenação por crimes amnistiados e crimes abrangidos pela lei do perdão, por força do disposto no artigo 128, n.º 2, impõe-se em primeiro lugar declarar os crimes amnistiados e cessada a execução das respectivas penas.

9- Desse modo, eliminando os crimes amnistiados que haviam sido considerados, bem como as respetivas penas parcelares, altera-se a moldura abstrata do cúmulo.

10- Atendendo às as regras de determinação da pena única num cúmulo jurídico, onde são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. art.º 77.º, n.º 1, do C.P.), nunca se poderá afirmar que uma pena parcelar teve, dentro da medida que lhe foi fixada, um determinado peso dentro daquela outra medida encontrada para a pena única.

11- Por isso mesmo, com fundamento precisamente nos artigos 77.º, 78.º e 128.º, n.º 2, do Código Penal, impõe-se reformular o cúmulo jurídico na parte restante, para determinar a pena única, tendo em conta as penas parcelares aplicadas pelos crimes não amnistiados, para, após fazer incidir o perdão sobre tal pena.

12-Para efetivar a reformulação terá que ser designada audiência e proferida nova decisão com a aplicação do perdão na pena única que vier a ser determinada na sequência da reformulação.

13- Assim o não havendo decidido o douto despacho recorrido interpretou deficientemente e ofendeu o disposto nos artigos 128, n.º 2 e 3, 77º e 78º, do Código Penal, e artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de Agosto.

            (…)”.

3.

O arguido não respondeu ao recurso.

4.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, na senda da posição assumida pela primeira instância, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5.

Cumprido o artigo 417º, nº2, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta ao parecer.

     

6.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al. c), do diploma citado.

II. Fundamentação

Sendo consensual na doutrina e na jurisprudência que as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais, no caso vertente, a questão a decidir passa apenas por saber se no âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, em caso de o arguido ter sido condenado em pena única por crime que se encontre amnistiado e por outros crimes alguns dos quais beneficiem do perdão decretado pela mesma, deve ou não ser realizada a audiência de julgamento para a reformulação do cúmulo jurídico e aplicação desse perdão.

Vejamos.

Defendeu-se no despacho recorrido a desnecessidade de proceder à reformulação do cúmulo jurídico que englobava duas penas que deviam ser declarada extintas por amnistia e penas parcelares de crimes que são abrangidos pelo perdão, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, não obstante a alteração da moldura penal abstrata das penas englobadas no cúmulo jurídico, decorrente da extinção de duas dessas penas por força da amnistia.

Tal entendimento do Mmo Juiz decorreu da interpretação que efetuou da eliminação do segmento que constava da proposta da proposta de Lei n.º 97/XV/1: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico de penas”, concluindo que o legislador ao afastar esse segmento pretendeu “desviar a necessidade de reformular qualquer cúmulo jurídico”.

Em conformidade com essa sua interpretação, o Mmo Juiz decidiu por despacho, aplicar a amnistia e apurar a relevância/peso das penas dos crimes amnistiados (no caso, dois crimes de injúria, cada um punido com 2 meses de prisão), na pena única na qual as mesmas tinham sido englobada e após proceder a vários cálculos aritméticos, utilizando fórmulas matemáticas, concluindo depois que deveriam ser descontados 2 meses e 20 dias de prisão à pena cumulatória única de 3 anos e 9 meses, determinando que a pena única do cúmulo jurídico fosse de 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão, aplicando o perdão de 1 ano aos aludidos 3 anos, 6 meses e 10 dias de prisão.

Já o Ministério Público, ora Recorrente, entende que, no caso de cúmulos jurídicos que abranjam penas parcelares resultantes da condenação por crimes amnistiados e crimes abrangidos pela lei do perdão, por força do disposto no artigo 128, n.º 2, impõe-se em primeiro lugar declarar os crimes amnistiados e cessada a execução das respetivas penas e uma vez eliminados os crimes amnistiados que haviam sido considerados, bem como as respetivas penas parcelares, proceder-se, em segundo lugar, à reformulação do cúmulo jurídico na parte restante, para determinar a pena única, tendo em conta as penas parcelares aplicadas pelos crimes não amnistiados, para, após fazer incidir o perdão sobre tal pena, reformulação essa para a qual terá de ser designada audiência e proferida nova decisão com a aplicação do perdão na pena única que vier a ser determinada na sequência da reformulação.

Cremos, com franqueza, que assiste toda a razão ao Recorrente.

Com efeito, não conseguimos compreender como é que perante alteração evidente da moldura penal abstrata do concurso, após a retirada das duas penas parcelares (aplicadas aos crimes amnistiados) do cúmulo jurídico efetuado, o Mmo Juiz, em face do disposto nos artigos 128º, nº2, 77º e 78º do C.Penal e 472º do CPP, não procedeu à realização da audiência com vista à reformulação do cúmulo jurídico com vista à determinação de nova pena única e posterior aplicação do perdão.  

Menos se compreende como é que tendo em conta as regras de determinação da pena única a levar em conta na elaboração do cúmulo jurídico, no qual devem ser considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente (cfr.art.77º,nº1, do C.Penal, se pode afirmar  qual o concreto “peso” que uma ou mais das penas parcelares nela englobadas teve na determinação da pena única encontrada.

Ademais, como alega o recorrente nas conclusões 6. e 7.A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto prevê no artigo 7.º, n.º 3, que:” A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”. Mas apenas isso.

Essa previsão não vai para além do disposto conjugadamente nos artigos 128, n. º2, 77.º e 78.º do Código Penal, cujos pressupostos se mantêm de verificação imperativa”.

Como se aduziu no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 19/06/2024, proferido no Proc.126/12.8GDCNT-A (Relator João Abrunhosa), “ (…) a decisão recorrida, apesar de concluir que a lei da amnistia não obriga à reformulação do cúmulo jurídico das penas, refaz esse cúmulo, por operações matemáticas sobre o anterior cúmulo, mas sem a realização de audiência, nem seguindo os parâmetros do art.º 77º/2 do CP.

Acresce que, tendo o CSM emitido parecer, revelou especial preocupação com os efeitos práticos da aplicação da lei então projectada, e, para obviar a esses inconvenientes, pôs em alternativa que a amnistia e o perdão se não aplicassem aos casos de cúmulo jurídico ou que a entrada em vigor da mesma fosse adiada para depois das férias judiciais, o que resulta do texto já citado “... Optando o legislador por não excluir, nos casos de cúmulo jurídico já realizado, a aplicação da presente lei quando haja concurso de infracções em que um dos crimes cometido esteja excluído do perdão e da amnistia, deverá alterar-se o estabelecido no art.º 13.º da proposta de lei. ...”.

O texto definitivo da lei, por comparação com o da proposta, revela que o legislador optou por manter a aplicação da amnistia e do perdão aos casos de cúmulo, mas adiou a entrada em vigor da lei, para 01-09-2023.

Por outro lado, a eliminação do segmento “devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico, quando aplicável”, que constava do art.º 5º/3 da proposta, do art.º 7º/3 da lei, que lhe corresponde, pode ser interpretado como a eliminação de uma redundância, uma vez que o art.º 3º/4 já estabelece que “Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.

Entendemos que a eliminação deste segmento nunca poderá ser interpretada como eliminação da necessidade de se refazer o cúmulo jurídico das penas, porque isso levaria a consequências intoleráveis, por exemplo, manter a mesma pena única, apesar de terem sido amnistiados crimes cujas penas entraram na determinação desta pena.

Além disso, por um lado, o art.º 472º/1 do CPP de termina que “Para o efeito do disposto no n.º 2 do artigo 78.º do Código Penal, o tribunal designa dia para a realização da audiência, ...” e, por outro, a lei da amnistia nunca se pronuncia pela desnecessidade da realização de audiência, para refazer o cúmulo jurídico das penas remanescentes.

Tem, pois, que se aplicar essa norma, designando data para a realização da audiência

(…)”.

Trazendo-se à liça um Estudo de 1/03/2024, da autoria do Exmo Juiz Desembargador, Cruz Bucho, “Amnistia e perdão (Lei nº38-a/2023, de 2 de Agosto): Seis meses depois (elementos de estudo)”, publicado na página do Tribunal da Relação de Guimarães, seguimos também o entendimento ai expresso (pág.87), citado igualmente no Ac. deste Tribunal a que já fizemos menção.

“... Se um ou mais do que um dos crimes em concurso for amnistiável importa declará-los amnistiados e extinto o respectivo procedimento criminal.

No caso de já ter havido condenação, deverá também ser declarada cessada a execução das respectivas penas.

Como bem sintetiza o Dr. Pedro Esteves de Brito, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, cit., pág. 17:

«Caso o referido cúmulo jurídico abranja apenas uma outra pena parcelar aplicada pela prática de um crime não amnistiado, desfeito o cúmulo em consequência daquele despacho, a dita pena parcelar recupera autonomia, devendo ser aplicada à mesma o perdão, se for o caso.

Caso o referido cúmulo jurídico abranja outras duas ou mais penas parcelares aplicadas pela prática de crimes não amnistiados, haverá, em seguida, que proceder à reformulação do cúmulo jurídico dessas penas, atenta, desde logo, a alteração da moldura abstrata, aplicando, por fim, se for o caso, o perdão à pena unitária fixada. Para a reformulação do cúmulo jurídico, será necessário designar dia para a realização da competente audiência (cfr. art.º 472.º do Código de Processo Penal - C.P.P.), com a prolação da subsequente decisão» (sublinhado nosso)

Trata-se de entendimento há muito consolidado na doutrina (Beleza dos Santos, RLJ ano 65.º, pág. 91, Eduardo Correia, Pena Conjunta e Pena Unitária, Coimbra, 1948, págs. 9-10 e 68-69, Eduardo Correia e Taipa de Carvalho, Direito Criminal III (2), Coimbra, 1980, págs. 25-26, Maia Gonçalves, “Medidas de Graça no Código Penal e no Projecto de Revisão”, cit., pág. 22 e Catarina Veiga, Considerações sobre a Relevância dos Antecedentes Criminais do Arguido no Processo Penal, Coimbra, 2000, pág. 79) e na jurisprudência (cfr., v.g., os Acs. do STJ de 28-6-1961, BMJ n.º 109, pág. 445 e ss, de 19-12-1990, proc.º n.º 041254, rel. Cons.º Maia Gonçalves, de 21-5-1992, proc.º n.º 042638, rel. Cons.º Pereira dos Santos, de 14-5-1992, proc.º n.º 042799, rel. Cons.º Cerqueira Vahia, de 1-10-1992, proc.º n.º 042949, rel. Cons.º Guerra Pires e de 25-1-1996, proc.º n.º 048794, rel. Cons.º Sá Nogueira).

(…)”.

Em suma, sem necessidade de mais considerações, com fundamento no disposto nos arts. 77.º, 78.º e 128.º todos do Código Penal, resulta claro que se impõe reformular o cúmulo jurídico das restantes penas parcelares que ao arguido foram aplicadas pela prática dos demais crimes (não amnistiados), para, assim, determinar a pena única sobre a qual incidirá o perdão que lhe haja de caber, por força dele beneficiarem os demais crimes.

              Reformulação essa para a qual terá de ser designada a audiência a que alude o citado artigo 472º e proferida nova decisão com a aplicação do perdão na pena única que vier a ser determinada na sequência da reformulação.

No mesmo sentido já se decidiu também nos acórdãos desta Relação de 26.07.2024, no Proc. 1266/11.6PBCBR-A.C1 (Relatora Alexandra Guiné) e de 26/8/2024, proc. 117/18.5GACND.C1 (Relatora Maria José Guerra), para além do já citado.


*

            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente:

            - Revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, declarando extinta, por amnistia, a responsabilidade criminal do arguido relativamente aos crimes de injúria, designe dia para realização da audiência a que alude o artigo 472º, do CPP, com vista à reformulação do cúmulo jurídico das demais penas em que o mesmo foi condenado e à aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/23, de 2.08.

            - Sem custas.