Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CRISTINA BRANCO | ||
Descritores: | REFORMA SUPRIMENTO DE NULIDADES E CORRECÇÃO DA SENTENÇA PENAL OMISSÃO DE PRONÚNCIA | ||
Data do Acordão: | 10/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SÁTÃO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | INDEFERIDA A ARGUIÇÃO DE NULIDADE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 379.º, 380.º, E 425.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGO 608.º, N.º 2, DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
Sumário: | I - Em processo penal não é admissível a figura da reforma da sentença.
II - O C.P.P. tem uma previsão completa dos casos em que a sentença penal pode ser modificada pelo tribunal que a proferiu, suprindo nulidades nos moldes previstos no artigo 379.º, n.º 2, e procedendo às correcções que caibam na previsão do artigo 380.º, também aplicáveis aos acórdãos proferidos em recurso, pelo que não se verifica qualquer lacuna que deva ser integrada com recurso ao artigo 4.º. III - A «omissão de pronúncia significa ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas … e as que sejam de conhecimento oficioso …», excepcionando-se as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras. IV - Não tendo sido suscitada no recurso a eventual aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, não tinha o tribunal de recurso que conhecer da questão, porque situada fora do seu objecto e da qual não cabia conhecer por via oficiosa, não incorrendo, portanto, omissão de pronúncia. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. Nos presentes autos de contra-ordenação n.º 50/22.6T8SAT, a correrem termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Sátão, notificado do acórdão proferido, em 10-07-2024, por este Tribunal da Relação, veio o arguido, …, «arguir a sua nulidade e, bem assim, a aclaração do mesmo», nos seguintes termos (transcrição): 2. O Ministério Público teve Vista nos autos, pronunciando-se … 3. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação Vem o arguido arguir a nulidade e requerer a aclaração do acórdão proferido por este Tribunal da Relação em 10-07-2024, invocando, para além do art. 380.º do CPP, que regula a correcção da sentença, o direito a arguir nulidades «e a pedir a própria reforma da sentença», fazendo apelo ao preceituado nos arts. 613.º, n.º 2, 616.º, n.º 2, e 666.º, todos do CPC. Importará, antes de mais, deixar claro que apesar de um dos efeitos da sentença consistir no esgotamento do poder jurisdicional do juiz que a profere (cf. art. 613.º, n.º 1, do CPC), ao nível do processo civil consagra-se, no art. 613.º, n.º 2, do CPC, a possibilidade de o juiz, para além da rectificação de erros materiais e do suprimento de nulidades, reformar a sentença. Já no âmbito do processo penal é nosso entendimento, em consonância com o que cremos ser maioritário no Supremo Tribunal de Justiça, que o Código de Processo Penal tem uma previsão completa dos casos em que a sentença pode ser modificada pelo tribunal que a proferiu, suprindo nulidades nos moldes previstos no art. 379.º, n.º 2, e procedendo às correcções que caibam na previsão do art. 380.º, em termos diversos dos estabelecidos para o processo civil, mas sem que tal signifique a existência de qualquer lacuna que deva ser integrada com recurso ao art. 4.º do CPP. Como com clareza se explica no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-11-2014[1], «I - Nos termos do n.º 1 do art. 613.º do CPC, norma aplicável ao processo penal por força do art. 4.º do CPP, «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa». O juiz pode, porém, introduzir-lhe modificações, em função da verificação de anomalias especificamente previstas. No processo civil, admite-se a rectificação de erros materiais, o suprimento de nulidades e a reforma da sentença, nos termos previstos nos arts. 614.º, 615.º e 616.º do CPC. No processo penal, prevê-se a correcção da sentença, nas situações indicadas no n.º 1 do art. 380.º, e o suprimento de nulidades, nos moldes previstos no art. 379.º, ambos do CPP. II - Assim, este diploma, sendo embora omisso no que se refere à afirmação do esgotamento do poder jurisdicional do juiz após a prolação da decisão, ponto em que por isso se recorre à regra enunciada no n.º 1 do art. 613.º do CPC, não o é no que se refere à tipificação e regulação dos casos em que a decisão pode ser modificada. Não existindo por isso lacuna nesse ponto, não há aí espaço para aplicação subsidiária das normas do processo civil. Nomeadamente, não tem lugar no processo penal a figura da reforma de sentença.»
Não sendo admissível a figura da reforma da sentença, em matéria de correcção da sentença penal rege (apenas) o art. 380.º do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, como estabelece o art. 425.º, n.º 4, do mesmo diploma. Atendo-nos àquela disposição legal, verificamos que na al. a) do seu n.º 1 se prevê a correcção da sentença quando a mesma enferme de alguma anomalia, por inobservância do disposto no art. 374.º, não consubstanciadora de nulidade, e na al. b) do mesmo número a sua correcção quando enferme de lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
In casu, embora no início do seu requerimento o recorrente aluda à aclaração do acórdão, não aponta, em lugar algum do mesmo, qualquer irregularidade por inobservância do preceituado no art. 374.º do CPP. E também não invoca qualquer obscuridade do acórdão nem solicita qualquer esclarecimento sobre o seu teor, designadamente sobre o sentido ou os fundamentos da decisão. Não podemos, pois, deixar de concluir que a referência à aclaração do acórdão – que também não peticiona a final – se deverá a mero lapso de escrita, pelo que nada haverá a referir sobre tal matéria.
Restará apreciar a invocada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, que o recorrente considera decorrer da circunstância de este Tribunal não ter ponderado a eventual aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, ponderação que, em seu entender, se impunha levar a cabo de forma oficiosa. Como é sabido, a «omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas: as questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertido quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.»[2]. Haverá, naturalmente, que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o art. 608.º, nº 2, do (N)CPC (Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06) e estabelecia anteriormente o art. 660.º, n.º 2 do CPC de 1961. E entende-se por questão «o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão»[3]. «A omissão de pronúncia traduz-se num non liquet em relação ao objecto contestado, à questão ou situação colocada, legalmente relevante, e que, por isso, tem de ser expressamente decidida. Mas, como bem salientou o acórdão deste Supremo Tribunal de 23-05-2007 (Proc. n.º 1405/07 - 3.ª), a pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença (vício de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso) – deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos e razões alegadas.», lê-se no Acórdão do STJ de 15-10-2008, proferido no Proc. n.º 2864/08 - 3.ª[4].
Ora, como é jurisprudência pacífica do STJ, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. Conforme consta do acórdão proferido por este Tribunal (concretamente a fls. 8-9 do mesmo), a única questão colocada pelo recorrente no seu recurso, e que dele constituiu objecto, era a de saber «se a decisão recorrida, ao manter a decisão administrativa impugnada e por conseguinte a aplicação do art. 148.º do C. Estrada, que padece de inconstitucionalidade, violou o disposto nos arts. 18.º, n.º 2, e 29.º, n.º 5, ambos da CRP, sendo consequentemente nulos «o despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença», devendo o primeiro ser substituído por outro que rejeite a acusação; ou, se assim não se entender, se a sentença deverá ser revogada e substituída por outra que não lhe aplique a sanção de cassação da carta de condução mas imponha a obrigação de frequência de acções de formação ou de obtenção de novo título de condução, mas de forma imediata.» Este Tribunal procedeu efectivamente à apreciação da referida questão, facto que o recorrente não questiona, prendendo-se, como já referimos, a invocada omissão de pronúncia com a não apreciação de questão não suscitada mas que o recorrente este entende que deveria ter sido oficiosamente analisada. Sucede que, no que respeita especificamente à questão da eventual aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, esse mesmo diploma determina, no seu art. 14.º, que a sua aplicação cabe, consoante os casos, ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal, ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação. Ora, este Tribunal da Relação não é o «juiz da instância do julgamento ou da condenação», pelo que a apreciação da eventual aplicação do disposto na Lei n.º 38-A/2023 sempre caberia ao Tribunal de 1.ª instância, onde o recorrente poderia ter suscitado tal questão[5]. Por outro lado, a apreciação dessa questão por parte deste Tribunal desde logo inviabilizaria a interposição de recurso sobre tal matéria, por força do disposto no art. 75.º, n.º 1, do RGCOC. Tratando-se de questão situada, como vimos, fora do objecto do presente recurso e da qual não competia conhecer por via oficiosa, é manifesto que o acórdão recorrido não incorreu em qualquer nulidade por omissão de pronúncia. Por todo o exposto, será de indeferir o requerido. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em indeferir a arguição de nulidade apresentada …. Custas a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC. Notifique. * * Coimbra, 09 de Outubro de 2024
[3] Cf., entre muitos outros, os Acórdão do STJ de 04-12-2008, Proc. n.º 2823/08 - 3.ª, 26-01-2011, Proc. n.º 39/96.9TBCNF.S1 - 3.ª, de 21-01-2009, Proc. n.º 111/09 - 3.ª, de 09-02-2012, Proc. n.º 131/11.1YFLSB - 3.ª, e de 10-05-2012, Proc. n.º 39/94.3JAAVR.L1.S1 - 5.ª, os dois primeiros ibidem e os demais in www.dgsi.pt. |