Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1023/24.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
FASES DO PROCESSO
ANTERIOR RECUSA DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
NOVO PEDIDO DE EXONERAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
EXCEÇÃO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 577.º, AL.ª I), 581.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 17.º, N.º 1, E 27.º, N.º 1, AL.ª A), DO CIRE
Sumário:
I – O efeito jurídico visado com a propositura da ação especial de insolvência (pedido) é o reconhecimento judicial da situação de insolvência em que se encontra o devedor.

II – Sendo o processo de insolvência composto por uma fase inicial declarativa (constitutiva) e por uma posterior fase executiva, o modo de satisfação dos credores – através da aprovação de um plano ou através do produto da massa insolvente –, só à fase executiva dizem respeito, sendo irrelevante à identidade do pedido a formulação (ou não) de um plano de pagamentos ou de pedido de exoneração do passivo restante.

III – Correspondendo o “estado atual” dos requerentes, ao passivo não satisfeito no âmbito do anterior processo de insolvência (no qual viram ser recusada a concessão do benefício da exoneração do passivo restante aí por si formulado), sem que aleguem a aquisição de qualquer ativo, tal estado encontra-se abrangido pela declaração de insolvência então decretada.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 1023/24.0T8LRA.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2º Adjunto: Arlindo Oliveira

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA e BB intentam a presente ação especial de insolvência, requerendo a declaração do seu estado de insolvência, com apresentação de plano de pagamentos, ou, para o caso de o mesmo não vir a ser aprovado, requerendo a concessão da exoneração do passivo restante.

Notificados para se pronunciarem quanto à eventual verificação da exceção dilatória do caso julgado (cfr. artigo 577.º, al. i), do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1, do CIRE), pelo facto de já terem sido declarados insolventes – no âmbito do processo n.º 3261/14...., por sentença proferida a 18/12/2013, não tendo sido concedida a exoneração do passivo restante por decisão proferida a 11.02.2023 –, os requerentes negaram a verificação de tal exceção, com a seguinte alegação:

não se verificam os pressupostos do caso julgado entre o processo anterior e o presente, pois o processo atual, ao contrário do anterior, prevê um Plano de Pagamentos;

apesar das dividas anteriores, factos supervenientes tornaram a situação dos requerentes mais difícil e grave, tendo a sua situação profissional e pessoal sofrido alterações;

embora não diga diretamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da al. c) do nº1 do art. 128º do CIRE;

os requerentes não baseiam o seu pedido exclusivamente em dívidas anteriores ao processo de insolvência, mas sim, ao estado – atual – devido a não ter beneficiado da exoneração do passivo restante e ao agravar da sua situação financeira.


*

Pelo juiz a quo foi proferido despacho que, julgando verificada a exceção dilatória do caso julgado, indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência formulado pelos devedores, ao abrigo do disposto no artigo 27.º, n.º1, al .a), do CIRE.

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Inconformados com tal decisão, os Requerentes dela interpõem recurso de apelação, sintetizando a respetiva motivação, nas seguintes conclusões:

A decisão de que se recorre violou o disposto no artigo 238.º, n.º 1 d) do CIRE.

1. O facto de os insolventes virem interpor novo processo de insolvência não significa existir exceção de caso julgado.

2. Se a lei permite quem tenha sido declarado insolvente o possa voltar a ser posto ocorrerem factos conducentes a tal situação, também os insolventes poderão dispor de tais mecanismos processuais.

3. In Casu, sequer se verificam as mesmas circunstâncias porquanto os insolventes requerem inclusive aprovação de Plano de pagamentos.

4. A situação profissional é significativamente diferente e factos posteriores e supervenientes, tornaram a situação dos Requerentes mais difícil e grave.

5. A referência à identidade da causa de pedir não colhe, porquanto, a alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê que passados dez anos, o insolvente que não tenha beneficiado da exoneração, possa interpor novo processo de insolvência e requerer a sua exoneração.

6. Assim, o novo processo que a Lei permite seja interposto, mais não pretende que, obter o mesmo objetivo do processo anterior: exonerar-se.

7. Consequentemente, é a Lei que expressamente permite, seja interposto novo processo de insolvência para obtenção do mesmo fim, sem que tal seja obstáculo aos Requerentes a utilizarem tal mecanismo processual.

8. Não existe por isso caso julgado pelo que, deve o processo ser aceite e prosseguir os seus termos.

Nestes termos, deve ser julgado procedente o recurso apresentado revogando-se a douta decisão recorrida, admitindo-se o Plano de Pagamentos apresentado pelos recorrentes.


*
Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos legais, nos termos do nº 4 do artigo 657º CPC, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, nº4, e 639º, do Novo Código de Processo Civil, as questões a decidir, são as seguintes:
1. Se o pedido de exoneração do passivo restante podia ser indeferido liminarmente com fundamento na verificação de caso julgado.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A decisão recorrida veio a indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência formulado pelos devedores/requerentes, ao abrigo do artigo 27º, nº1, al. a), do CIRE, com fundamento na verificação de caso julgado, pelo facto de os requerentes terem já sido declarados insolventes no âmbito do processo nº 3261/14...., por sentença proferida a 06.08.2014.

Para tal, partiu o tribunal recorrido da seguinte matéria de facto, que teve por relevante:

1 - Por ação apresentada em juízo a 13.03.2024, neste Juízo de Comercio, AA e BB requereram a declaração do seu estado de insolvência, com apresentação de plano de pagamentos, nos termos do disposto nos artigos 252.º e ss, CIRE pedido de exoneração do passivo restante.

2 – Na lista de credores que acompanhou a petição inicial, pela Requerente foram indicados os seguintes credores e pelos seguintes montante:

a) Banco 1..., S.A., um crédito no valor de € 55.705,81, contrato datado de novembro 2007, fundamento do crédito: outros créditos, incumprimento datado de 11.05.2014

b) Banco 1..., S.A., um crédito no valor de € 7.043,76, contrato datado de 2 novembro 2007, fundamento do crédito: habitação; incumprimento datado de 11.05.2014.

c) Banco 1..., S.A., um crédito no valor de € 1.114,43, contrato datado de novembro 2007, fundamento do crédito: cartão de crédito, incumprimento datado de 11.05.2014;

d) A..., um crédito no valor de € 4.430,61, contrato datado de 7 de agosto 2012, fundamento do crédito: crédito renovável, incumprimento datado de 01.04.2014;

e) B..., um crédito no valor € 772,02, locação financeira mobiliário, contrato datado de 25.02.2010, incumprimento datado de 20.06.2014;

f) Banco 2..., S.A., um crédito no valor de € 11.302,12, crédito automóvel; contrato datado de 19.11.2013, incumprimento datado de 23.06.2014

g) Banco 3..., crédito no valor de € 203,75, conta DO negativo;

h) C..., Lda., crédito no valor de € 3.075,00, de novembro de 2023

3 – Os Requerentes declararam não ser proprietários de quaisquer bens.

4 - Os Requerentes foram já declarados insolventes no âmbito do processo que correu termos neste Juízo de Comércio, sob o n.º3261/14...., por sentença proferida a 06.08.2014, na sequência de apresentação pelos Requerentes à insolvência.

5 – Nos referidos autos de insolvência foi igualmente apresentado pedido de exoneração do passivo restante, que foi objeto de despacho de admissão, por decisão proferida a 20.04.2015.

6- Por decisão proferida nos identificados autos de insolvência a 11.02.2023 veio a ser recusada a exoneração do passivo restante.

6 – Os autos de insolvência que correram termos sob o n.º3261/14.... foram encerrados por realização do rateio final.

7- Nesses autos de insolvência foram reconhecidos os seguintes credores e pelos seguintes montantes:

a) Banco 2..., S.A., um crédito no valor de € 9.303,14, contrato de mútuo, com data de incumprimento a 08.08.2014;

b) Banco 4..., S.A.., um crédito no valor de € 4.432,84;

c) Banco 5..., S.A., um crédito no valor de € 2.698,41, com data de incumprimento a 25.05.2014;

d) Banco 1..., S.A., um crédito no valor de € 115.161,98, com data de incumprimento a 11.05.2014;

e) A...., um crédito no valor de € 4.782,46, com data de incumprimento a 01.04.2014.

8 – Nos identificados autos de insolvência, em sede de rateio final, apenas o credor Banco 1..., S.A., na qualidade de credor garantido, obteve pagamento do valor de € 47.391,52 por conta do respetivo crédito.


*

Partindo de tal circunstancialismo, o tribunal recorrido considerou verificada a exceção de caso julgado, reconhecendo a existência da tríplice identidade, de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, nos termos do artigo 581º do Código de Processo Civil, entre a primeira ação, na qual foi declarada a insolvência dos aqui requerentes, e a presente ação, na qual se apresentam novamente à insolvência.

 Não pondo em causa a identidade de sujeitos entre as duas ações, os Apelantes negam a existência de caso julgado, por não se verificar uma repetição do pedido e da causa de pedir, pelos fundamentos já por si alegados em momento anterior, quando para tal convidados pelo tribunal:
- a lei permite que quem tenha sido declarado insolvente o possa voltar a ser, sendo que as circunstâncias não são as mesmas, porquanto os insolventes agora requerem inclusive a aprovação de um plano de pagamentos;
- os requerentes não baseiam o seu pedido exclusivamente em dívidas anteriores ao primeiro processo de insolvência, mas sim ao estado em que atualmente se encontram devido a, não tendo beneficiado da exoneração do passivo restante, tendo visto agravar-se a sua situação financeira;
- não se verifica a identidade de causa de pedir, porquanto a al. c), do nº1, do artigo 238º do CIRE, prevê que passados 10 anos, o insolvente que não tenha beneficiado da exoneração possa interpor novo processo de insolvência e requerer a sua exoneração.

Cumpre apreciar, desde já adiantando não ser de dar razão aos Apelantes.

Tratando-se da argumentação já anteriormente invocada pelos Apelantes, em resposta ao convite para se pronunciarem sobre a exceção de caso julgado, a decisão recorrida, depois de expor os princípios gerais que o caso julgado, fez dela a seguinte a apreciação:

“(…)

Vejamos agora se existe identidade de pedido e causa de pedir.

Inexistem quaisquer dúvidas em como o efeito jurídico que se pretende obter nesta ação é formalmente idêntico àquele que se pretendia obter – e foi efetivamente obtido – na anterior ação de insolvência, a saber, a declaração de insolvência.

Refira-se a este propósito que o facto dos devedores se apresentarem agora com plano de pagamento, o efeito jurídico pretendido continua a ser o mesmo, a saber, a declaração da sua situação de insolvência.

Mas essa identidade formal não equivale necessariamente a uma identidade material, uma vez que a declaração de insolvência com referência a uma determinada realidade ocorrida em determinado momento temporal não corresponde, em termos substanciais, à declaração de insolvência com referência a realidade diferente e ocorrida em qualquer outro período temporal; ainda que formalmente idênticos, os efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma dessas situações são substancialmente diferentes porque se reportam a realidades diferentes e ocorridas em momentos temporais distintos. Será, portanto, a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta ação é idêntica àquela que já foi obtida na anterior ação.

Dispõe o artigo 3º, nº 1, que se considera em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. A causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponde, por regra, ao concreto passivo e ativo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o ativo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido.

A pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na ação anterior se a realidade a que se reporta for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro ativo tiver acrescido àquele que existia naquele momento.

Ora, no caso dos autos entendemos que a pretensão aqui formulada é idêntica à pretensão que já foi obtida nos anteriores autos de insolvência por via da declaração de insolvência.

Na verdade, confrontando os credores e créditos agora indicados com os credores e créditos reconhecidos no processo anterior, conclui-se que o passivo que determinou a declaração de insolvência do devedor coincide com o passivo indicado no âmbito dos presentes autos e que consubstancia a respetiva situação de insolvência.

Por seu turno, no âmbito dos presentes autos inexiste a indicação de qualquer património para liquidar.

A situação de insolvência que é invocada nos presentes autos é exatamente a mesma que já se configurava no primeiro processo, na medida em que se reconduz à impossibilidade de cumprir obrigações que já existiam naquela data; tal impossibilidade é a mesma que existia anteriormente e que fundamentou a declaração de insolvência no anterior processo sem que tivesse ocorrido qualquer outro facto que fosse suscetível de determinar qualquer alteração da situação.

Sabemos que uma pessoa declarada insolvente pode voltar a ser declarada insolvente, pois a lei assim o permite. Mas, para que tal aconteça, é necessário que esteja em causa uma realidade fáctica diferente que configure uma situação de insolvência distinta (porque se reporta a momento temporal distinto e envolve passivo ou ativo diferentes e não coincidentes com os que existiam à data da anterior declaração de insolvência).

A não se entender assim estaríamos a permitir que um devedor, com base no mesmo passivo e ativo, recorresse, sucessivamente, a processos de insolvência até alcançar o desiderato final, ou seja, a concessão final da exoneração do passivo restante.

Mal se compreenderia que ao devedor que visse o pedido de exoneração do passivo restante rejeitada fosse facultada a possibilidade de se apresentar sucessivamente à insolvência e renovar tal pedido, até obter uma decisão favorável. Tal representaria uma intolerável lesão dos valores da boa administração da justiça e da funcionalidade dos tribunais que o caso julgado visa precisamente evitar.”

Tal como é reconhecido na decisão recorrida, é incontroverso que a declaração de insolvência de um devedor/pessoa singular, com trânsito em julgado, não o impede de vir a ser objeto de nova declaração de insolvência, desde que, baseada numa realidade fáctica distinta, que o fizesse incorrer em novo estado de insolvência – visto este enquanto situação de insuficiência patrimonial, de incapacidade de um património pagar as suas dividas ou situação deficitária do património do devedor.

Os limites do caso julgado material reportam-se à medida em que a decisão transitada em julgada possa obstar à proposição de uma nova ação sobre a mesma questão já julgada.

O novo pedido de declaração de insolvência não pode, assim, consistir na mera repetição da ação anterior, sendo que uma causa considerar-se-á repetida quando é proposta uma outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 581º, nº1, CPC).

O objeto da ação é definido pela providência concretamente solicitada em juízo (pedido), como, sobretudo da situação jurídica material causa de pedir (ato ou facto jurídico de que dimana o pedido), desempenhando esta a função de individualização da pretensão material.

Segundo o nº2 do artigo 581º, do CPC, “identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”.

E, tal como foi referido na decisão recorrida, não é pelo facto de, com o novo pedido de declaração de insolvência, terem apresentado um plano de pagamento, que a pretensão exercida se pode considerar distinta.

Com a instauração de um processo de insolvência, a pretensão do requerente, seja ele o devedor, seja um credor (ou qualquer outro sujeito a que a lei atribua legitimidade para tal), “é, invariavelmente, a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criadas pela situação[1]”.

O efeito jurídico visado com a propositura da ação especial de insolvência é o reconhecimento judicial da situação de insolvência em que se encontra o devedor[2].

Tal como declara o nº1 do artigo 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Sendo o processo de insolvência composto por uma fase inicial declarativa (constitutiva) e por uma posterior fase executiva, o modo de satisfação dos credores – através da aprovação de um plano ou através do produto da massa insolvente –, só à fase executiva dizem respeito.

Como tal, não é pela circunstância de, num processo, ter sido requerida a exoneração do passivo restante ou ter sido, pelo devedor, apresentado um plano de pagamentos, que nos encontramos, para este efeito, perante um “pedido” diferente.

Quanto à causa de pedir, e face à assunção pela decisão recorrida de que a situação de insolvência dos devedores é exatamente a mesma que já se configurava no mesmo processo – o passivo que determinou a declaração de insolvência do devedor coincide com o passivo indicado nos presentes autos, sendo que nos presentes autos inexiste a indicação de qualquer património a partilhar –, alegam os Apelantes que não baseiam o seu pedido exclusivamente em dividas anteriores, mas sim ao estado em que atualmente se encontram devido a, não tendo beneficiado da exoneração do passivo restante, terem visto agravar-se a sua situação financeira.

De tal alegação, em conjugação com os factos dados como provados pelo tribunal a quo, constata-se que o alegado “estado atual” dos requerentes, corresponde ao passivo não satisfeito no âmbito do anterior processo de insolvência (no qual viram ser recusada a concessão do benefício da exoneração do passivo restante aí por si formulado), sem que aleguem ter adquirido qualquer novo bem.

Quanto à alegação de que se tem vindo “a agravar a sua situação financeira”, é perfeitamente conclusiva e irrelevante para configurar um novo estado de insolvência: sendo o passivo exatamente o mesmo e não tendo adquirido qualquer outro património, o facto de, eventualmente, se encontrar em pior situação (por ex., encontrar-se agora desempregada, terem aumentado as suas despesas), agravamento que também não concretiza em quaisquer factos, em nada altera o seu estado de insolvência.

Como tem sido entendimento da jurisprudência, na ausência de passivo constituído posteriormente à declaração de insolvência e de aquisição de novos ativos, não pode ser formulado novo pedido de declaração de insolvência, uma vez que a situação de insolvência em que o devedor permanece foi já apreciada com força de caso julgado: “a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponde, por regra, ao concreto passivo e ativo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o ativo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido[3]”.

A tal respeito se pronunciou o Acórdão de TRC de 24-01-2023, relatado por Maria Catarina Gonçalves[4],  onde se afirma que “A pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão obtida na ação anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo ativo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse ativo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data anterior de declaração de insolvência e se nenhum outro ativo tiver acrescido àquele que existia naquele momento”.

Também o Acórdão do TRC de 05-04-2022, relatado por Arlindo Oliveira[5], considera verificada a exceção de caso julgado, não servindo de fundamento a novo pedido de insolvência, se o devedor “não invoca novo passivo, mas apenas a existência e quantificação do passivo já considerado na anterior insolvência, o qual se mantém, com a impossibilidade de o pagar”.

A realidade fáctica que constituiu a causa de pedir desse primeiro processo e que determinou a declaração de insolvência, manteve-se a mesma – não há qualquer alteração relevante no passivo e no ativo do devedor (o passivo aqui alegado é o passivo não satisfeito no âmbito da sua declaração de insolvência, sem que tenha adquirido qualquer bem desde então)[6] –, encontrando-se abrangida pela declaração de insolvência aí decretada.

Por fim, os Apelantes invocam a seu favor o disposto no artigo 238º, nº1, al. c) do CIRE – segundo o qual “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido (…) se o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restantes nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência – daí retirando a ilação de que tal norma permite que o insolvente que não tenha beneficiado da exoneração possa, passados 10 anos, interpor novo processo de insolvência e requerer a sua exoneração.

Não é esse, contudo, o alcance de tal norma. Dela se retira unicamente que, em novo processo de insolvência, se o devedor não tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos últimos 10 anos, poderá neste formular pedido de exoneração do passivo restante. Ou seja, é um mero pressuposto negativo de admissibilidade do pedido de concessão do beneficio da exoneração do passivo restante.

Tal norma nada nos diz sobre as condições em que um devedor pode vir a ser sujeito a novo processo de insolvência, mas, tão só, que, interposto validamente novo processo de insolvência, pode o devedor formular pedido de exoneração do passivo restante caso dele não tenha beneficiado nos 10 anos anteriores ao pedido de declaração de insolvência.

Dito por outras palavras, prescreve-se que o devedor que haja beneficiado da concessão do beneficio da exoneração do passivo restante, fica impedido de formular novo pedido por 10 anos.
A Apelação é de improceder.

*
IV – DECISÃO
 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelos Apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.                    

                                                                            Coimbra, 18 de junho de 2024


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7, do CPC.
(…).



[1] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p. 104.
[2] É uma ação declarativa constitutiva por criar uma situação jurídica nova, um estado de insolvência.
[3] Acórdão do TRC de 03-12-2019, relatado por Maria Catarina Gonçalves, e em que a aqui relatora foi 1ª adjunta, https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/8769809cc13483f0802584ef00539c2d?OpenDocument.
[4] Acórdão em que foi adjunta a aqui relatora, disponível in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/7a68114bc55dd6428025894e003dbb48?OpenDocument.
[5] Acórdão disponível in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/d6276646fc3f56298025883600350580?OpenDocument.
[6] Para além do crédito reclamado pela Banco 1... ter sido parcialmente satisfeito pela liquidação de um imóvel no âmbito do anterior processo de insolvência.