Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1153/21.0T9FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA EM RAZÃO DA IDADE E DOENÇA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: O ARTIGO 50.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - A suspensão da execução da pena só tem lugar quando for possível fazer um juízo de prognose favorável ao arguido e não deve ser utilizada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
II - Revestindo a inexistência de antecedentes criminais a obrigação de qualquer cidadão, a primariedade não reveste excepcionalidade para justificar, sempre, a aplicação da suspensão da execução da pena.

III - Revelam uma enorme ilicitude e uma personalidade deformada, cruel e sem qualquer empatia pelo próximo, o facto de a arguida, única familiar do ofendido, seu pai, nascido em 13-2-1934, que, devido à idade muito avançada e doenças incapacitantes de que padecia, estava completamente dependente do auxílio de terceiros, situação que a arguida bem conhecia, ter deixado de o visitar e lhe telefonar desde 29-4-2020, data da morte da mãe, até à morte deste, ocorrida em 31-3-2024, ter deixado de o acompanhar a consultas médicas, não providenciar pela alimentação e higiene sua pessoal, pela limpeza da habitação, pela lavagem da roupa, e pelo pagamento das contas da água, da electricidade e do gás a partir de certa altura, não providenciar pela contratação de instituição ou terceira pessoa que prestasse ao seu pai os referidos apoios, recusando o pagamento de tais serviços, recusando a intervenção de qualquer entidade de apoio social, alegando ser essa intervenção completamente desnecessária, e, a partir de 9-6-2020, data da emissão do cartão bancário associado à conta que o pai tinha, emitido em nome da arguida, cotitular da conta, ter passado a usar em exclusivo proveito próprio as quantias de 320,68 € e de 390,53 €, mensalmente depositadas a titulo de pensões recebidas pelo ofendido.

IV - Sendo a arguida licenciada em psicologia, não tendo mostrado qualquer arrependimento, não assumindo os actos que praticou e não revelando qualquer capacidade de autocrítica, não é possível qualquer juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                            

I. Relatório:                                                 

           A) No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) n.º 1153/21.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Criminal de Coimbra – J..., a 19/4/2024, foi proferido Acórdão, cujo Dispositivo é o seguinte:

IV. DECISÃO

Pelo exposto, julgando-se a acusação pública parcialmente provada e procedente:

- Absolve-se a arguida AA do crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.º 1-d) C.P., por que vem acusada nos presentes autos;

- Condena-se a arguida AA, como autora material de um crime de exposição ou abandono, p. e p. no art. 138º/n.ºs 1-b) e 2 C.P., na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

- Condena-se a mesma arguida AA, como autora material de um crime de abuso de confiança agravada, p. e p. no art. 205º/n.ºs 1 e 4-b) C.P., na pena de 3 (três) anos de prisão;

- Operando-se o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios previstos nos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.ºs 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a personalidade revelada pela mesma), condena-se a arguida AA na pena única de 5 (cinco) anos de prisão;

- Condena-se ainda a arguida nas custas do processo (presente parte-crime), com 5 U.C. a título de taxa de justiça.

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Sustentado no disposto nos arts. 50º, 51º/n.º 1-a) e c), 53º e 54º, todos C.P., e esperando (pelos motivos acima alinhados) que a ameaça de prisão a afaste da prática de novos ilícitos criminais, decide o Tribunal suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida AA pelo período de 5 (cinco) anos, acompanhada de um regime de prova assente em plano individual de reinserção social [nos moldes a definir mediante plano a elaborar pelos serviços de reinserção social e a aprovar pelo Tribunal; para os efeitos ora apontados, deve ainda a arguida apresentar-se e(ou) responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe venham a ser feitas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social, e sem prejuízo de o apontado plano poder vir a ser completado posteriormente pelos aludidos serviços]; do mesmo modo, é igualmente imposta à arguida a condição de, findos 3 (três) meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, comprovar nos autos haver entregado à demandante “A..., Instituição Particular de Solidariedade Social” a quantia de € 2.987,04 (dois mil, novecentos e oitenta e sete euros e quatro cêntimos) e respetivos juros de mora, relativos à indemnização daqui a pouco fixada a favor de tal demandante; é também imposta à arguida a condição de, findos 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado desta mesma decisão, comprovar nos autos haver entregado à Delegação da ... da Cruz Vermelha Portuguesa o montante de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros); e, por fim, é imposta à arguida a condição de, findo 1 (um) ano a contar do trânsito em julgado desta decisão, comprovar nos autos haver entregado à Casa do Povo de ... a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros).

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            (…).

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B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, a 20/5/2024, o Ministério Público, pedindo a sua revogação, na parte em que decidiu suspender a pena de prisão aplicada, pugnando no sentido de que a arguida deve ser condenada em pena efetiva, extraindo da motivação as seguintes conclusões:  

            …

2- A prática de crimes, como os em causa nos presentes autos, que consubstanciam violência exercida sobre idosos, materializada em condutas que causam danos psicológicos, negação do afeto, a não satisfação das necessidades básicas de alimentação, higiene, saúde segurança e cuidados médicos, bem como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro e exploração financeira, sobretudo quando cometidas no seio do núcleo familiar próximo, …

3- São crimes que se revestem de censurabilidade acrescida por atentarem contra valores absolutamente fundamentais de coesão familiar, de solidariedade e respeito aos mais velhos, de dignificação da sua condição e da sua não discriminação em função da sua idade ou condição física e psíquica, que são valores constitucionais inspiradores dos direitos humanos fundamentais e do Estado de Direito Democrático em que vivemos.

4- Por isso são necessárias particulares cautelas na opção pela suspensão da execução de pena imposta por esses crimes, ditadas sobretudo por razões pertinentes às finalidades da punição, assim se procurando afastar a perceção da impunidade da conduta, também ela animadora desta forma de criminalidade.

7- A factualidade dada como provada no douto acórdão revela-se de extrema gravidade, elevada ilicitude e intensa censurabilidade, denotando a conduta da arguida, reiterada ao longo de vários anos (de 2020, data da morte da mãe até 2023, data do falecimento do pai), um absoluto alheamento pela integridade física e psíquica, pelo bem-estar do ofendido, seu pai.

8- A arguida não só negou a prestação de cuidados básicos ao seu progenitor, como procurou impedir que terceiros, vizinhos e instituições de solidariedade social, assumissem essa sua obrigação legal (resultante da sua qualidade de filha e do contrato de doação) e, para além disso explorou economicamente o seu pai, gastando a reforma e a pensão de sobrevivência que lhe foram atribuídas para satisfazer os seus gastos pessoais, votando-o a um total abandono

9- Para além de que, a arguida não revelou a menor empatia ou sensibilidade em relação ao sofrimento que causou à vítima, assumiu, em audiência de julgamento uma postura de distanciamento perante os factos e de auto desresponsabilização, desprezando os deveres que sobre si impendiam, assumindo         um discurso desculpabilizador, manipulador e autocentrado.

10- Como salienta o Relatório Social, referência Citius n.º 8602430, de 18.04.2024: «AA não identifica quaisquer repercussões causadas pelo presente processo. Não se reconhece na condição de arguida e não apresenta sentido crítico em relação aos fatos pelos quais encontra indiciada, não reconhecendo como precárias as condições de vida do seu pai e mantendo um discurso de não ser necessário qualquer apoio externo/institucional. Face ao avaliado, verificamos que AA apresenta indicadores de desinserção laboral e consequente ausência de autonomia económica, bem como dificuldades relacionais no contexto familiar, com demonstrações de pouca capacidade crítica em relação aos factos em apreciação e desvalorização dos mesmos».

11- Ora a opção pela suspensão da execução da pena, que, como se disse antes, é uma medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só fará sentido se for possível concluir que o agente do crime terá capacidade para interiorizar dessa forma a desvalia da sua conduta e para se determinar no futuro de acordo com o direito. A pedagogia e a reeducação apenas podem ser exercidas em relação a quem for sensível a esse tipo de apelo.

12- É certo que a arguida não tem antecedentes criminais, mas tal nada mais constitui do que a consagração do dever geral que impende sobre todos os cidadãos, circunstância que, por isso, não reveste excecionalidade bastante para, face às demais, afastar a perceção, pela comunidade em geral, da impunidade da conduta.

13- Sendo, também certo, que se é pacífico que a socialização do arguido deve ser uma preocupação sempre presente na decisão de suspensão da execução da pena de prisão, ela não é, ao invés do que parece resultar das razões expostas no douto acórdão, o objetivo primeiro nessa delicada tarefa, pois há limites inultrapassáveis que importa observar: a socialização não pode sobrelevar a prevenção.

14- A arguida evidenciou uma personalidade não adequada aos valores éticos e morais indispensáveis, à subsistência de uma sociedade livre e merecedora de tutela penal. Ofendeu sobremaneira princípios constitucionalmente previstos e fundamentais dum Estado de Direito democrático, vitimando o seu progenitor nos últimos anos da sua vida, com tratamento degradante, privando-o dos mais elementares cuidados básicos de alimentação, higiene e saúde e explorando-o economicamente.

15- Às aludidas razões que tornam intensas as exigências de prevenção especial, acrescem fortes necessidades de prevenção geral de integração pelo que a manutenção da suspensão da pena, no caso, colocaria em crise as expectativas comunitárias na validade das normas jurídicas.

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C) O recurso, a 28/5/2024, foi admitido.

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D) A arguida, a 5/7/2024, respondeu ao recurso, defendendo que não merece provimento.

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E) Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a 7/8/2024, emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

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F) Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo a arguida, a 21/8/2024, exercido o direito de resposta, momento em que reiterou o anteriormente alegado.

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G) Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. DECISÃO RECORRIDA (com relevo para a questão a apreciar):

            “(…).

            II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1 – a arguida é filha de BB e de CC, nascido a 13 de Fevereiro de 1934;

2 – tendo residido o aludido CC na Rua ..., no ... do prédio urbano ali existente, sito na ...;

3 – habitando só, desde a morte da sua mulher, ocorrida em 29 de Abril de 2020;

4 – sendo a arguida o seu único familiar vivo;

5 – a arguida, por sua vez, habita no mesmo concelho, na localidade de ..., é casada, não exerce qualquer atividade profissional e não tem filhos ou outras pessoas necessitadas de especiais cuidados a seu cargo;

6 – o referido CC careceu de cuidados, apoio e acompanhamento regular (diário);

7 – com efeito, para além da debilidade física, própria da sua idade, o dito CC padeceu ainda das seguintes doenças, devidamente diagnosticadas: diabetes mellitus tipo 2, dislipidémia, colelitíase, microlitíase renal, e declínio cognitivo associado à idade (demência);

8 – entre essas doenças, avultou o seu declínio cognitivo, que tornou o idoso completamente dependente do auxílio de terceiros;

9 – e, bem assim, totalmente alheado quanto à sua real situação de vida;

10 – ao contrário do que fazia até então, desde a morte da sua mãe deixou a arguida de visitar ou telefonar ao referido CC;

11 – do mesmo modo, desde a morte da sua mãe que a arguida deixou de acompanhar o progenitor a consultas médicas, não providenciando pela respetiva higiene pessoal nem pela limpeza da habitação, nada fazendo pela lavagem da roupa nem pela alimentação do idoso;

15 – dada a precariedade das condições de vida do idoso – sem qualquer apoio, acompanhamento e, também, desprovido de recursos económicos –, a sua situação foi sinalizada (como emergência social) ao Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da ..., no ano de 2021;

16 – constatou-se, então, que a habitação do dito CC apresentava inadequadas condições de higiene, persistindo no ar um cheiro nauseabundo – proveniente, designadamente, da urina do gato do idoso e também deste, e da falta de limpeza geral da habitação –, o seu frigorífico se encontrava vazio, toda a sua roupa se mostrava suja e maltratada, sendo ainda notório que permanecia ele meses sem tomar qualquer banho ou efetuar outro tipo de higiene corporal;

17 – no contexto acabado de expor nos pontos 15 e 16 (desta factualidade assente), as técnicas do Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da ... contactaram a arguida por diversas vezes, referindo a esta, de jeito repetido, a necessidade de apoio e acompanhamento diário ao seu pai, e bem assim a necessidade de a mesma providenciar – uma vez que a própria não se disponibilizou a prestar pessoalmente tal acompanhamento e apoio – no sentido de o idoso passar a beneficiar de apoio domiciliário ou ser integrado em um centro de dia para pessoas idosas;

18 – no entanto, a arguida recusou a possibilidade de intervenção de qualquer entidade de apoio social ao seu pai, alegando ser essa intervenção completamente desnecessária;

19 – não providenciando a arguida, por outro lado, por contratar os serviços de qualquer instituição que prestasse apoio domiciliário a idosos ou a integrá-lo em um centro de dia para idosos, da sua própria escolha, ou, até, contratar os serviços de terceira pessoa que pudesse prestar o mesmo tipo de apoio domiciliário ao seu pai;

21 – acresce que o idoso auferia mensalmente duas pensões de velhice, uma delas proveniente de França (país onde esteve emigrado durante alguns anos), no valor de cerca de € 320,68, e a outra paga pela Segurança Social portuguesa, na quantia de cerca de € 390,53;

22 – as duas pensões acabadas de mencionar eram depositadas mensalmente na conta bancária do referido CC (a que corresponde o número de identificação bancária  ...46), sedeada na instituição bancária “Banco 1..., S.A.”, na agência do Largo ..., na ...;

23 – no entanto, o idoso ficou desprovido de cartão bancário que lhe permitisse movimentar a aludida conta;

24 – sendo que o único cartão de crédito e-ou débito que se encontrava associado à dita conta bancária (cartão com o n.º ...27), emitido em ../../2020, e com validade até ../../2025, o foi em nome da arguida, cotitular da respetiva conta, e que esteve sempre na sua posse (até ser aplicada a esta mesma arguida, no âmbito dos presentes autos, a medida coativa que a impediu de movimentar a aludida conta e a obrigou a entregar o cartão bancário em causa);

25 – ora, a arguida fez uso do referido cartão – e das quantias monetárias disponíveis na mencionada conta bancária –, diariamente, para pagamento das suas próprias despesas pessoais, tendo-se apropriado, em seu proveito próprio, desde a morte da sua mãe até à prolação da acusação pública, e pelo menos, de € 27.025,98 (€ 320,68, + € 390,53 x 38 meses);

26 – as únicas despesas relativas ao ofendido que a arguida suportou durante alguns meses foram algumas contas do fornecimento da água, da eletricidade e do gás;

27 – não obstante, mesmo em relação a essas despesas, a arguida deixou de efetuar os respetivos pagamentos em diversos momentos, sendo que em Julho de 2020 se verificou um corte no fornecimento da água ao domicílio do pai, tendo sido o Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da ... a diligenciar no sentido da reativação do contrato e do pagamento dos valores devidos, no montante de € 87,25;

28 – por outro lado, também pelo menos em duas ocasiões ficou o idoso privado de gás na sua habitação, tendo sido socorrido por um seu vizinho, que tratou de lhe adquirir e entregar as referidas botijas de gás;

29 – no mais, nunca utilizou a arguida os fundos existentes na mencionada conta bancária para fazer face aos custos dos serviços de qualquer instituição ou pessoa que prestasse apoio domiciliário ao seu pai;

30 – o idoso não tinha condições de saúde (nem apoio de outrem) para abandonar a sua habitação, muito menos para gerir a sua conta bancária, ou para se dirigir, sequer, à agência bancária onde se encontra domiciliada a sua conta, a fim de levantar dinheiro para fazer a aquisição de bens ou serviços, géneros alimentícios e medicação absolutamente indispensáveis à sua sobrevivência;

31 – a arguida não se inteirou, sequer, das questões relacionadas com a saúde do seu pai, não o acompanhando a consultas e tratamento – designadamente a tratamento de úlceras nas pernas –, recusando, até, qualquer tipo de contacto que lhe fosse efetuado pelo Centro de Saúde da área de residência do seu pai (Centro de Saúde ...);

32 – acresce que, durante o período de pandemia por efeito do vírus da denominada “Covid-19”, o idoso realizou três doses de vacinação, apenas devido à colaboração do Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da ...;

33 – em uma ocasião, tendo sido solicitada à arguida que acompanhasse o seu pai a uma consulta de neurologia no Hospital ..., aquela recusou-se a fazê-lo;

34 – atento o estado do aludido CC, o Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da ... solicitou, entretanto, a colaboração do serviço de apoio ao domicílio do Centro Social e Paroquial de ..., ..., para a entrega da refeição de almoço na habitação do idoso, tendo-se fixado, subsequentemente, o montante de € 180 mensais para pagamento desse serviço;

35 – contatada a arguida para obter da mesma a garantia do pagamento de tais serviços, esta recusou terminantemente que o seu pai passasse a beneficiar de tal apoio domiciliário, negando-se ainda a proceder a qualquer pagamento dos referidos serviços;

36 – contudo, e uma vez que a arguida não providenciou pessoalmente, no sentido de disponibilizar as refeições, limpeza da casa e cuidados de higiene ao seu pai, o idoso continuou a beneficiar de apoio domiciliário e refeições, …

37 – apoio e serviços esses que permanecem ainda sem qualquer pagamento;

38 – as quantias monetárias provenientes das pensões de velhice que lhe foram atribuídas eram em quantum bastante para fazer face aos pagamentos dos serviços (mínimos) de que o CC foi beneficiando;

39 – o idoso não se encontrava em condições – e até de saúde, designadamente a nível mental – que lhe permitissem prescindir (conscientemente) dos montantes pecuniários correspondentes a tais pensões a favor da sua filha;

42 – o apartamento onde o idoso residiu era propriedade deste e da sua falecida mulher, que o doaram à arguida, a qual aceitou tal doação, através de escritura pública celebrada no ... Cartório Notarial ..., em 7 de Dezembro de 1993, com a reserva de usufruto a favor dos doadores, a extinguir-se, no todo, à morte do último dos doadores, ficando imposta à arguida, enquanto donatária, a obrigação de tratar convenientemente os seus pais, a eles proporcionando tudo quanto necessário fosse à respetiva subsistência, designadamente habitação, alimentação e vestuário e, sendo disso caso, assistência hospitalar, médica e medicamentosa, tendo os doadores a faculdade de resolver a doação se a donatária não cumprisse a dita obrigação a ela imposta;

43 – encontram-se registadas duas hipotecas sobre o mencionado imóvel, a favor de uma instituição bancária;

44 – a arguida atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que era o único familiar do seu pai CC, residindo ambos no mesmo concelho ..., não trabalhando e não possuindo outras solicitações que a ocupassem diariamente, de tal forma que a impossibilitassem de prestar os cuidados, atenção e acompanhamento mínimos devidos ao progenitor, sem os quais o mesmo não podia sobreviver, quer por via da sua idade, quer por força das patologias mentais e físicas acima descritas;

45 – só sobrevivendo o idoso devido às instituições de apoio social identificadas, que, tendo tomado conhecimento das condições em que se encontrava, sozinho, no seu domicílio, lhe prestaram o apoio domiciliário, alimentar e de saúde, sem perceber qualquer retribuição pelos seus serviços;

46 – a arguida conhecia perfeitamente toda a situação pessoal do seu pai e, bem assim, a vulnerabilidade existencial do mesmo;

56 – a arguida casou em 2007, tendo começado por residir, com o seu marido, em casa dos pais da arguida;

57 – todavia, o marido da arguida desenvolveu com o falecido CC uma relação de inimizade e antipatia, tal levando a que, alguns anos após a celebração do seu casamento, a arguida e o marido, a impulso deste, saíssem da residência dos pais daquela, passando a viver autonomamente;

58 – para além do apartamento aludido no ponto 42 (desta factualidade provada), através da escritura pública ali também referida, os pais da arguida doaram a esta, com reserva de usufruto para aqueles, nos moldes mencionados para o apartamento, duas frações autónomas correspondentes a duas garagens existentes na cave do mesmo prédio urbano;

59 – a arguida não tem antecedentes criminais.

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            Inexistem factos não provados, com relevo para a decisão da causa.

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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            “(…).

Como é sabido, impõe o art. 50º C.P. a análise judicativa da especificidade de cada hipótese por forma a poder concluir-se (ou não) por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, isto é, por forma a entender-se (ou não) que a «(…) censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (…) “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade” (…)». E «para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o Tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto». Mas a lei torna também claro que, «(…) na formulação do aludido prognóstico, o Tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime” citado, pág. 343; a propósito, cfr. ainda o Ac. Rel. Guimarães de 10/5/2010, in www.dgsi.pt).

O preceito referido – art. 50º C.P. – consagra um verdadeiro poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os pressupostos necessários (Ac. Rel. Porto de 30/11/2011, in www.dgsi.pt).

Para o efeito em questão será então necessário que o julgador possa fazer o tal juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do agente, no sentido de que a ameaça da pena se mostrará adequada e bastante para realizar os fins punitivos e, consequentemente, a ressocialização (em liberdade, note-se) do mesmo agente.

Pois bem, o que se passa no nosso caso?

Passa-se existirem, apesar de tudo – e da gravidade objetiva do comportamento da arguida –, fundamentos susceptíveis de sustentarem a formulação do dito juízo de prognose social favorável.

De facto, e reafirmando uma convicção que já tentámos expressar no presente acórdão, crê-se que a situação concreta parece representar um óbvio (e muitíssimo lamentável) “desvio negro” a uma vida de fidelidade a modelos comportamentais adequados e não censuráveis pela ordem jurídico-penal, militando a favor desta ideia a ausência de antecedentes criminais e o não conhecimento de outros focos de censura da sua postura existencial, relativamente a cujas presença e deambulação social não são propriamente conhecidos sentimentos gerais de rejeição comunitária. Parecendo, pois, a arguida uma pessoa que, sem autonomia (económica?) perante o seu marido, e porventura com ele “motivada” e “irmanada” nos ressentimentos advindos do respetivo relacionamento com o idoso, “concentrou” no (muito censurável) modo de abandono e aproveitamento económico-financeiro a que votou o seu pai a única (e, repetimo-lo, muito grave) atitude antijurídica que se lhe conhece.

Pensa-se, portanto, que, não obstante o carácter bastante censurável da atuação em análise, teremos de perceber estar aqui em causa um comportamento que poderá ainda admitir, em termos dos sentimentos gerais da comunidade jurídica, uma não efetividade no cumprimento da pena de prisão à arguida cominada.

Porque o ponto, se bem perspetivamos a situação, é este: a gravidade objetiva do caso decidendo deveria ou não sobrelevar à possibilidade de uma análise do percurso de vida pregresso e atual da arguida e aquilo que tem sido a sua apontada postura vivencial de, tanto quanto conhecemos, “fidelidade ao direito”? Dito de outro modo, porventura mais claro: quem comete os crimes que a arguida cometeu – e nas circunstâncias em que o cometeu – não poderia aspirar a uma suspensão de execução, porquanto o ilícito penal perpetrado impediria, em si mesmo, um qualquer prognóstico realista de afastamento futuro de novos crimes?

Cremos, salvo o devido respeito (e sob pena de cairmos na hipotética lógica de algo de semelhante a uma “incaucionabilidade” de determinados crimes, no estrito sentido de que apenas permitiriam a efetiva execução da pena de prisão), impelir o mecanismo contido no art. 50º C.P. a um outro momento – posterior –, relativamente ao do juízo de severidade que, aquando da fixação da medida concreta da pena, já ocorreu. E esse novo momento, conexo ao do n.º 1 do art. 50º C.P., deverá reger-se pela possibilidade de, em concreto, aquando da prolação da decisão, «(…) atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (…)», o julgador «(…) concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», ou seja, «(…) a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1 do art. 40º do mesmo diploma legal – sobre isto, e enfatizando que, dentro das chamadas penas de substituição, sem embargo das exigências de prevenção geral de integração, o ponto primacial se prende com a opção da pena que concretamente se revele como a mais adequada à consecução, antes do mais, dos objetivos de prevenção especial, “Atas e Projeto da Comissão de Revisão”, pág. 20, e, até já antes da Revisão de 1995, Prof. Anabela Miranda Rodrigues, “Critérios de escolha das penas de substituição no Código Penal Português”, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”, Coimbra, 1988, págs. 22 e 23, e 31 e ss.).

Ora, pelas razões há pouco enunciadas, afigura-se-nos estar ainda presente o pressuposto fundamental de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão (o juízo de prognose favorável no tocante ao comportamento futuro, desde que devidamente acompanhada – art. 50º/n.º 1 C.P.), lidando nós com uma pessoa com oportunidade para infletir o rumo tomado no episódio sub judicio. Assim a arguida o deseje de modo real e sem cedências a novas e eventuais “tentações”… pois que lhe serão as mesmas, a acontecerem, inapelavelmente “fatais”…

Mister será, no entanto, submeter a arguida a um complementar e apertadíssimo regime de prova, por forma a desviá-la do tipo de comportamentos em questão nos presentes autos, tal como à obrigação de proceder à satisfação pecuniária da demandante “A..., Instituição Particular de Solidariedade Social”, e às demais contribuições pecuniárias a favor das entidades de solidariedade social abaixo melhor identificadas (também com ação no apoio à terceira idade), nos termos aí igualmente descritos, enquanto condições da mencionada suspensão de execução [tudo em adaptação à especificidade da situação vivencial da arguida, não deixando ainda de notar-se que, se as condições de que ora cuidamos não podem traduzir-se em encargos impossíveis de cumprir pela condenada, também não devem converter-se em “cómodos” e “suaves” gravames, que em nada belisquem o seu habitual modo de vida e dela não exijam sacrifícios e, se necessário, algumas privações suportáveis…, tanto mais que, além de a seu tempo se ter locupletado com o dinheiro do pai, o infeliz decesso deste levou à extinção do usufruto – art. 1476º/n.º 1-a) C.C. – dos imóveis de que é proprietária…], a fim de que a mesma reflita, de modo sério, nos contornos, características e efeitos humanos e sociais dos crimes por si cometidos.

Tudo sopesado, decide-se, pois, suspender, pelo mesmo período de 5 anos, a execução da pena de prisão cominada à arguida, subordinada ainda ao cumprimento das condições abaixo discriminadas.”

(…).”

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III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se a pena de prisão aplicada à arguida deve ter a sua execução suspensa ou se, pelo contrário, deve ser efetiva.

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Vejamos.

O atual artigo 50.º, do Código Penal, estabelece que o tribunal decretará a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições de sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Encontramo-nos face a um poder-dever, sendo certo que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.

A suspensão da execução da pena «une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal ao chamamento, pela ameaça de executar no futuro a pena, à própria vontade do condenado para reintegrar-se na sociedade». É uma pena, porque oriunda de condenação produtora de antecedentes criminais. É uma medida de correção, enquanto busca, a reparação do delito ou «prestações socialmente úteis». Aproxima-se das medidas de ajuda social, se no domínio respetivo se desenham instruções que «afetam o comportamento futuro do condenado». E tem uma coloração sócio-pedagógica ativa, pelo «estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade» (Jescheck, Tratado, versão espanhola, vol. II, págs. 1152 e 1153).

Ora, a suspensão da execução de uma pena só tem razão de ser quando for possível fazer um juízo de prognose favorável ao arguido.

Como tem vindo a ser entendido pelos nossos tribunais superiores, “na suspensão da execução da pena de prisão, não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições de vida, o seu comportamento e bem assim as circunstâncias de facto que permitam ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas”, conforme Acórdão do STJ, de 25/6/2003, CJ, Acs. do STJ, ano XXI, tomo II, pág. 21.

Mais, a suspensão da execução da pena não deverá ser utilizada pelo julgador se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.

Na realidade, o valor da socialização em liberdade tem que estar balizado por exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, de acordo com o que defende Figueiredo Dias, Direito Penal Português, pág. 344.

Em nenhum outro momento o Juiz incorpora tão dramaticamente a Justiça, como quando fixa a pena aplicável, sendo certo que a lei não conhece indivíduos, prevendo apenas espécies – cf. R. Salleilles, “ La Individualisation de la Peine”, Étude de Criminalité Sociale, Paris, 1927, pág. 267.                    

Conforme disse Montesquieu, «a justiça das penas, mais do que a sua severidade, é o que consagra a força das leis», sendo certo que uma pena não deve visar a retaliação sobre quem cometeu um crime, antes deve dirigir-se, sempre que possível, para a respetiva ressocialização.                          

É indubitável que os factos que ficaram provados são graves e socialmente muito condenados.

A pena única de cinco anos de prisão, como consequência das considerações sobre a culpa da arguida, disso mesmo dá conta, pois, de modo algum, pode ser considerada leve.

           Neste momento, no entanto, há apenas, em sede de juízo prognóstico, apreciar se deve a arguida cumprir, ou não, a pena em estabelecimento prisional.

Ouçamos o Acórdão do STJ nº 8/2012 de 24-10-2012:

“(…) a aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do artigo 50.º.

Circunscrevendo-se estas, a partir de 1 de outubro de 1995, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas - prevenção geral e especial - que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.

Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518, pp. 342-343, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade».

E acrescentava: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
     Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao
momento da decisão, não ao momento da prática do facto.
     Adverte ainda o citado Professor - § 520, p. 344 - que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».

    Reafirma que «estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa».
     Como refere Hans Heinrich Jescheck, Tratado, Parte Geral, versão espanhola, vol. II, pp. 1152 e 1153, «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade».

Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza - assumida sem ausência de risco - de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência séria e solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito”.

Ora, no presente caso, importa sobretudo ponderar os seguintes fatores:

· a elevada ilicitude do facto, atendendo ao modo de execução do crime em apreço e suas consequências, o que se repercute negativamente ao nível da culpa da arguida e das exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração;

· as elevadas exigências de prevenção geral decorrentes da frequência com que, lamentavelmente, fenómenos deste tipo vêm ocorrendo na nossa sociedade, e que, por isso, importa reprimir eficazmente, reforçando a crença comunitária na validade da norma violada (as vítimas crianças e idosas pouca ou nenhuma voz têm e o Estado é obrigado a exigir dos seus cidadãos comportamentos exemplares que defendam aquelas vítimas sem voz dos atropelos intoleráveis à sua dignidade);

· favoravelmente à arguida, anotamos apenas a circunstância de não apresentar antecedentes criminais, nada mais constando de relevante do elenco de factos provados – note-se que a pretensa influência conjugal no seu comportamento abandónico (cfr. facto nº 57) não está vertido no elenco de factos provados, sendo temerário lançar mão desse argumento que poderia, à partida, justificar o injustificável, mas que, no caso vertente, nada explica;

O Tribunal Coletivo, na sua fundamentação, escreve:

«Antes, porém, importa perceber que existem situações, como aconteceu precisamente neste processo, nas quais as declarações negatórias do visado por uma acusação quanto ao sentido essencial da tese acusatória tornam ainda mais evidente o bom fundamento de tal tese. Exatamente, repete-se, como aconteceu nos presentes autos, com a arguida e as breves declarações por si prestadas na parte final da audiência de discussão e julgamento, absolutamente desfasadas de tudo o que prima facie pudéssemos imaginar como possível… (desde logo, do senso e da realidade das coisas e, já agora, de algum sentido de vergonha supostamente inato à generalidade das pessoas…).

Assim, e em síntese, afiançou a arguida ter sempre gostado muito do pai e pensar estar por ele a “fazer” o melhor, mais acrescentando que, por vontade da própria, estaria o progenitor na residência da declarante, tal só não acontecendo porquanto o marido desta se incompatibilizou com o idoso há alguns anos atrás, nada podendo ela para alterar tal estado de coisas. Rematando (de jeito bastante solene, diga-se…) no sentido de que, quando necessitada, não disporá a arguida (nem terá a sorte, presume-se…) de alguém que venha a tratar de si de modo idêntico ao que foi empregando em relação ao progenitor…

Só que o suposto desvelo no tratamento, dado a entender nas declarações acabadas de mencionar, não poderia (infelizmente) estar mais longe da verdade e da genuinidade das coisas…».

Por aqui, se retira que esta arguida não mostrou qualquer arrependimento, inexistindo, assim, o exigível juízo de prognose favorável.

Trata-se de uma pessoa – letrada - que nem sequer assume os atos que praticou e muito menos revela qualquer capacidade de autocrítica (o que desde logo levanta dúvidas sobre a capacidade de a decretada suspensão ter úteis efeitos).

Pergunta-se: perante este grau de ilicitude e as necessidades de prevenção geral, bastará ser primária?

Não, respondemos nós – não tem ela quaisquer atenuantes, sendo apenas primária, o que é a obrigação de qualquer cidadão, circunstância que, por isso, não reveste excecionalidade bastante para, face às demais, afastar a perceção, pela comunidade em geral, da impunidade da conduta.

Dá que pensar:

Se esta situação tivesse ocorrido numa cidade de maiores dimensões, em que os vizinhos não se conhecem e nem se apercebem do que se passa, ou não se importam, nem teria havido qualquer auxílio de terceiros e redundaria, provavelmente, era mais um caso em que, alertados os vizinhos por um cheiro nauseabundo, as autoridades iriam encontrar um idoso morto em casa há semanas – desta feita, não por não ter familiares próximos mas por ter uma filha maltratante por omissão.

Pelo que se nos afigura NÃO ser possível efetuar-se uma prognose favorável a esta arguida, sendo a ameaça da pena insuficiente para evitar que a mesma volte a cometer este, ou qualquer, outro tipo de crime (não se venha dizer que já não pode mais abandonar os pais pois os mesmo já faleceram, pois pode continuar a abandonar outros familiares a quem, no futuro, possa dever colo e apoio).

Tendemos, assim, a concordar com o que o MP alega em sede de parecer nesta Relação, quando sublinha que o acórdão até parece de alguma forma contradizer-se, acrescentando-se ainda que o dito aresto, a fls. 14, parece até sentir necessidade de, para fundamentar a suspensão, esboçar uma tentativa de «explicação» para o comportamento da arguida (que seria porventura por se sentir irmanada nos ressentimentos do marido), o que não tem qualquer sustento nos factos provados, como já se viu.

Não estamos perante um comportamento isolado, mas que durou anos, sendo de uma enorme ilicitude e revelando uma personalidade deformada, cruel e sem qualquer empatia pelo próximo.

Suspendendo a execução desta pena de prisão, damos um sinal errado à sociedade de que o crime até compensa (acabaria ela por pagar em termos indemnizatórios montantes que ficam muito aquém da quantia – propriedade do seu malogrado pai - que foi por si apossada sem legitimidade), ficando, assim, seriamente comprometida a prevenção geral.

Por tais motivos, só uma pena efetiva de prisão é cogitável neste caso, havendo que dar total procedência ao recurso intentado pelo MP.

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            IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, indo, em consequência, a arguida condenada na pena de cinco anos de prisão efetiva.        

Sem tributação.

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            (Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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               Coimbra, 11 de setembro 2024

José Eduardo Martins
Paulo Guerra
 Cristina Pêgo Branco