Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/21.0MAFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL
REQUISITOS GERAIS NEGATIVOS DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
ACTO IRREVOGÁVEL E VINCULATIVO ESTADO REQUERENTE
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 33.º, N.º 4, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 6.º, ALÍNEA F), E N.º 2, ALÍNEA A), DA LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO/LEI DA COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
Sumário: I - A cooperação judiciária internacional visa a boa administração da justiça, estabelecendo mecanismos, através da intervenção das autoridades ao mais alto nível do Estado, para desencadeaar os procedimentos conducentes à comprovação de um crime, à descoberta dos seus agentes e demais elementos indispensáveis à aplicação da lei penal, implicando a adopção pelos Estados de regras comuns no domínio do auxílio mútuo em matéria penal.
II - A transmissão de processos penais entre Estados é uma das formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal, regulada na Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que contempla requisitos gerais da cooperação entre Estados e as condições especiais atinentes a cada uma das formas de cooperação.

III - No que respeita aos requisitos gerais negativos da cooperação internacional, nos termos do artigo 6.º, alínea f), da lei, o pedido de cooperação é recusado quando «respeitar a infração a que corresponda pena de prisão ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração indefinida».

IV - Neste caso o pedido será, porém, concedido se o Estado requerente, por acto irrevogável e vinculativo para os tribunais e outras entidades competentes para a execução da pena, cumutar a pena de morte ou retirar o carácter perpétuo à pena que tenha aplicado ou se, relativamente a crimes a que corresponda, segundo o seu direito, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada.

V - Estas garantias pressupõem um expresso compromisso formal, judicial, governamental ou presidencial, do Estado requerente, não sendo suficiente presumir a não aplicação ou a não execução da pena de prisão perpétua por o Estado requerente habitualmente a não aplicar.

VI - O quadro normativo aplicável ao caso não respeita a normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia, nem nos autos se trata de expulsão, extradição e direito de asilo, pelo que não se lhe aplica nem o n.º 4 do artigo 33.º da Constituição da República Portuguesa, nem o regime jurídico relativo à execução de mandado de detenção europeu, aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

Decisão Texto Integral:

*

Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

No âmbito do processo de inquérito nº 18/21...., [que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal ..., 2ª Secção], a pedido do Ministério Público, que requereu a delegação do (respetivo) procedimento criminal nas autoridades do Grão-Ducado do Luxemburgo, por despacho da M.ma Juíza de Instrução [do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Instrução Criminal de Coimbra, Juiz ...], datado de 19.12.2017, por não se verificarem os requisitos da cooperação internacional previstos no art.º 6º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, foi julgado improcedente o requerido.

Inconformado recorreu o Ministério Público apresentando as seguintes conclusões:

«1. …

2. Investigam-se nos autos n.º ...1... junto do Cabinet d’Instruction du Tribunal d’Arrondissement de Luxembourg, pendente no Grão-Ducado do Luxemburgo, as circunstâncias em que ocorreu a morte de AA.

3. São suspeitos em ambos os processo BB, CC, DD e EE, co-autores de um crime de homicídio qualificado (artigo 132.º,

4. A factualidade subjacente ao presente inquérito é a mesma factualidade que é objeto de investigação no processo ...1... junto do Cabinet d’Instruction du Tribunal d’Arrondissement de Luxembourg, pendente no Grão-Ducado do Luxemburgo,

5. No dia 09.03.2022 aos aqui suspeitos foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva nos autos n.º ...1... junto do Cabinet d’Instruction du Tribunal d’Arrondissement de Luxembourg, encontrando-se, até ao de de hoje, sujeitos à referida medida de coação;

6. É no Grão-Ducado do Luxemburgo onde a investigação se encontra mais avançada.

7. É no Grão-Ducado do Luxemburgo onde os aqui suspeitos se encontram sujeitos à medida de coação de prisão preventiva desde 09.03.2022 até à presente data.

8. A infração à luz da legislação luxemburguesa corresponde em abstrato a uma pena de prisão ou medida de segurança com caráter perpétuo.

9. A ser aplicada prisão perpétua aos arguidos foi apresentada garantia pelas autoridades do Grão-Ducado do Luxemburgo de que será concedida liberdade condicional após um período de, pelo menos, quinze anos sendo a duração média da detenção das pessoas condenadas a prisão perpétua varia entre 20 e 25 anos.

10. As autoridades do Grão-Ducado do Luxemburgo ofereceram garantias de que a pena de prisão perpétua não será aplicada ou executada aos arguidos dos autos.

11. Mostram-se preenchidos os requisitos de transmissão dos presentes autos às autoridades do Grão-Ducado do Luxemburgo.

Pelo exposto, considerando-se que a Mm.ª Juiz de Instrução Criminal violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto no art.º 6.º da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto, deverá o despacho que declarou improcedente o pedido de delegação da continuação do procedimento penal no Estado do Grão Ducado do Luxemburgo ser revogado e proferida decisão que à luz do disposto no art.º 89.º e 6. Da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto defira a delegação da continuação do procedimento penal no Estado do Grão-Ducado do Luxemburgo.
Aguardamos a decisão de V. Exas que, é de certo, a mais justa!».

Notificados, os arguidos não responderam.

Nesta Relação, a Exm.ª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, escrevendo, designadamente, o seguinte:

«Em suma, o fundamento da recusa circunscreve-se ao entendimento de que não existem garantias de não vir a ser aplicada, nesse Estado, a prisão perpétua.

Contra-argumentou o Ministério Público e acompanhamos a sua motivação do recurso, sendo que, de útil, nada mais temos a acrescentar à discussão da questão jurídica controvertida.

Em conclusão, aderindo à muito bem fundamentada motivação apresentada pelo Ministério Público, somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente».

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

No caso em apreço, a questão a resolver é a de saber se as autoridades do Estado do Grão-Ducado do Luxemburgo ofereceram garantias de que a pena de prisão perpétua não será aplicada ou executada aos arguidos dos autos.

II. Despacho recorrido (transcrito na parte ora relevante)

«Requer o MP, nos termos do art.º 89.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, a transmissão dos presentes autos para as autoridades judiciárias do Grão-Ducado Luxemburguês.

Foi dado o contraditório aos suspeitos, nada por estes tendo sido dito.

Cumpre decidir.

A delegação num Estado estrangeiro da instauração ou continuação de procedimento penal encontra-se prevista no seu art.º 89.º e seguintes da referida Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Dispõe o art.º 89.º que:

Estabelece o art.º 90º que:

Dispõe o art.º 6.º da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto, sob a epígrafe “Requisitos gerais negativos da cooperação internacional” que:

Ora, investigam-se nos presentes autos as circunstâncias em que ocorreu a morte de AA, sendo BB, CC, DD e EE suspeitos da prática, em co-autoria, de um crime de homicídio qualificado (artigo 132.º, n.º 1 e 2 alíneas b), e), g), i), j) do Código Penal), um crime de roubo (artigo 210.º, n.º 1 e 3 do Código Penal) e um crime de acesso ilegítimo (artigo 6.ºda Lei n.º 109/2009, 15/09).

Nos autos n.º ...1... junto do Cabinet d’Instruction du Tribunal d’Arrondissement de Luxembourg, pendente no Grão-Ducado do Luxemburgo, investiga-se a prática, à luz da lei luxemburguesa, dos crimes de roubo por meio de chaves falsas (artigos 461.º e 467.º do Código Penal), conspiração penal (artigo 322° e seguintes do Código Penal), de um crime de homicídio (artigo 394.° do Código Penal), homicídio (artigo 393.° do Código Penal) e homicídio para facilitar o roubo (artigo 475° do Código Penal) e de um crime de intoxicação (artigo 397.° do Código Penal), crimes estes tendo por vítima AA.

Nesses autos foi aplicada, no dia 09.03.2022, aos aqui suspeitos BB, CC, DD e EE a medida de coação de prisão preventiva.

E como se nota na promoção antecedente, as condições estabelecidas no art.º 90º acima transcrito encontram-se verificadas no presente caso.

Assim, indubitavelmente, os factos investigados nos dois processos integram a prática de crimes segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado: à luz da legislação portuguesa a prática, em co-autoria, de um crime de homicídio qualificado (artigo 132.º, n.º 1 e 2 alíneas b), e), g), i), j) do Código Penal), de um crime de roubo (artigo 210.º, n.º 1 e 3 do Código Penal), e de um crime de acesso ilegítimo (artigo 6.ºda Lei n.º 109/2009, 15/09) e à luz da legislação luxemburguesa a prática de um crime de roubo por meio de chaves falsas (artigos 461.º e 467.º do Código Penal), de um crime de conspiração penal (artigo 322° e seguintes do Código Penal), de um crime de homicídio (artigo 394.° do Código Penal), de um crime de homicídio (artigo 393.° do Código Penal), de um crime de homicídio para facilitar o roubo (artigo 475° do Código Penal) e de um crime de intoxicação (artigo 397.° do Código Penal), crimes estes puníveis com penas de prisão de duração máxima superior a um ano de prisão.

Depois, os suspeitos são de nacionalidade portuguesa, todavia não mantêm quaisquer laços pessoais, laborais ou patrimoniais com o território português, já que residem no Grão-Ducado do Luxemburgo, onde desenvolvem a sua atividade profissional e mantêm relacionamentos inter-pessoais.

Acresce que a delegação se justifica pelo interesse da boa administração da justiça, já que a investigação no Luxemburgo está instruída com os elementos de prova decorrentes da investigação realizada em território luxemburguês e a as diligências realizadas em território português decorrente de Decisão de Investigação Europeia remetida às autoridades Portuguesas em 01.10.2021 que deram origem à Decisão de Investigação Europeia com o n.º 974/21...., estando os suspeitos do inquérito português presos preventivamente.

Contudo, o certo é que, contrariamente ao afirmado pelo MP na douta promoção que antecede, em face da letra do art.º 6.º não é admissível a transmissão dos presentes autos ao Estado do Grão-Ducado do Luxemburgo.

Efetivamente, da leitura dos normativos acima referidos do Código Penal Luxemburguês, convocados nos presentes autos resulta que o crime de homicídio é punido pela lei luxemburguesa com pena de prisão perpétua.

Tais normativos estão disponíveis nas seguintes hiperligações:

https://data.legilux.public.lu/filestore/eli/etat/leg/code/penal/20200320/fr/html

/eli-etat-leg-code-penal-20200320-fr-html.html

https://legilux.public.lu/eli/etat/leg/code/penal/20220501;

É certo que, relativamente à extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada, admitindo-se assim a cooperação.

No entanto, não se pode aplicar na presente situação, quer por analogia, quer por interpretação extensiva, tal disposição. No presente caso não só o requerente da cooperação não é o Grão Ducado do Luxemburgo como na realidade o processo que ali corre está ainda em investigação, não podendo pois ser dadas pelo Grão Ducado as garantias de que, vindo os suspeitos a ser condenados pela prática de um crime de homicídio, não lhes será aplicada a pena de prisão perpétua ou que esta não será executada.

E da declaração emitida pelas autoridades do Grão-Ducado do Luxemburgo nos termos do indicado artigo 6.º da Lei 144/99 de 31 de agosto consta que “ Gostaria de intervir numa investigação preparatória contra BB, CC e EE por rapto, sequestro, assassinato, se não homicídio por facilitar o roubo, envenenamento, associação de criminosos e roubo com a ajuda de chaves falsas.

Em resposta ao vosso e-mail de 12 de Abril de 2023 e ao acórdão do Tribunal Judicial de Coimbra, Juízo de Instrução Criminal de Coimbra, recusando a denúncia de factos criminais relacionados com a vida de AA nascido em ../../1975 no Luxemburgo, tenho o prazer de vos informar o seguinte:

O artigo 442-1 do Código Penal pune o sequestro com pena de prisão de quinze a vinte anos e de dez a quinze anos se a pessoa raptada ou confinada para cumprir uma ordem ou condição for voluntariamente libertada antes do quinto dia seguinte ao dia do rapto, prisão, detenção ou confinamento sem que a ordem ou condição tenha sido executada.

A pena é a pena de prisão perpétua, se o rapto, a detenção ou o sequestro tiverem sido seguidos da morte da pessoa raptada, detida ou sequestrada.

O artigo 393 do Código Penal estabelece que: "homicídio cometido com a intenção de matar é considerado homicídio. É punível com prisão perpétua".

O artigo 394 do Código Penal estabelece que "homicídio cometido com premeditação é qualificado como homicídio. É punível com prisão perpétua".

O artigo 397 do Código Penal prevê que "Os homicídios cometidos por meio de substâncias que possam causar a morte mais ou menos rapidamente, independentemente da forma como essas substâncias tenham sido envenenadas ou administradas, serão considerados como envenenamento. É punível com prisão perpétua".

Nos termos do artigo 467 do Código Penal, o roubo cometido com a ajuda de chaves falsas é punível com uma pena de prisão de cinco a dez anos.

O artigo 73 do Código Penal prevê que "se existirem circunstâncias atenuantes, as sanções penais serão reduzidas ou modificadas de acordo com as disposições pertinentes".

O artigo 74 do Código Penal prevê que "a prisão perpétua é substituída por uma pena de prisão não inferior a catorze anos".

Como Procurador-Geral do Estado, sou responsável pela execução de sentenças no Grão-ducado do Luxemburgo.

Desde 2018, os tribunais luxemburgueses trataram 263 processos penais e condenaram 376 pessoas a penas de prisão criminal.

Destas 376 pessoas apenas 7 pessoas foram condenadas a prisão perpétua.

A sentença de prisão perpétua é pronunciada em casos excepcionais devido a circunstâncias particularmente graves.

No Luxemburgo, as pessoas que foram condenadas a prisão perpétua por um ou mais homicídios ou homicídios são geralmente libertadas condicionalmente ou estão prestes a ser libertadas.

Com efeito, o artigo 687 Código de Processo Penal prevê que "a liberdade condicional pode ser concedida a uma pessoa condenada a prisão perpétua, apôs um período de pelo menos quinze anos".

Gostaria de acrescentar que a duração média da detenção das pessoas condenadas a prisão perpétua e com liberdade condicional varia entre 20 e 25 anos.

Terei todo o prazerem fornecer-lhe mais informações sobre o acima exposto.

Queira aceitar, Senhora, a garantia da minha mais elevada consideração.”

Ora, não são aqui dadas garantias de que não será aplicada aos arguidos a pena de prisão perpétua, sendo certo que nos parece claro que a garantia se há de referir à concreta não aplicação da pena de prisão perpétua ou então à sua não execução. O Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, terá de previamente ter comutado pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa. As referidas garantias pressupõem um expresso compromisso judicial, governamental ou presidencial, do Estado requerente, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, que garanta, caso a caso, o respeito pelos princípios a que o Estado requerido sujeita a entrega do extraditando. (Cfr. Acórdão TC nº 1/2001, in https:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20010001. Html; Ac. RL 13-10-2021, in www.dgsi.pt)

A declaração junta pelo Grão Ducado não constitui efetivamente uma garantia de não aplicação da prisão perpétua.

Em conformidade, e sem necessidade de mais considerações, por não se verificarem os requisitos da cooperação internacional previstos no art.º 6º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, julgo improcedente o pedido.

Notifique».


III. Apreciando e decidindo


A cooperação judiciária internacional visa a boa administração da justiça, estabelecendo mecanismos, através da intervenção das autoridades ao mais alto nível do Estado, para que sejam desencadeados os procedimentos conducentes à comprovação de um crime, à descoberta dos seus agentes e demais elementos indispensáveis à aplicação da lei penal, implicando a adoção pelos Estados de regras comuns no domínio do auxílio mútuo em matéria penal.

A transmissão de processos penais entre Estados é uma das formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal encontrando-se regulada na Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31/8 (alterada pelas Leis n.ºs 104/2001, de 25/8, 48/2003, de 22/8 e 48/2007, de 29/8).

A referida Lei contempla requisitos gerais da cooperação entre Estados e as condições especiais atinentes a cada uma das formas de cooperação.

No que respeita aos requisitos gerais negativos da cooperação internacional dispõe a Lei, no art.º 6.º al. f) que o pedido de cooperação é recusado quando «respeitar a infração a que corresponda pena de prisão ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração indefinida».

No entanto, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o disposto na referida alínea f) não obsta à cooperação:

«a) Se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado a pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa ou tiver retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança;

b) Se, com respeito a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada (…)».

No nosso caso, a questão a resolver é a de saber se as autoridades do Estado do Grão-Ducado do Luxemburgo ofereceram garantias de que a pena de prisão perpétua não será aplicada ou executada aos arguidos dos autos.

A respeito, aderimos ao entendimento, de que tais garantias pressupõem um expresso compromisso formal, judicial, governamental ou presidencial, do Estado requerente, por ato irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena.

Na verdade, face do disposto no artigo 6º do diploma sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal não basta presumir a não aplicação ou a não execução da pena de prisão perpétua, tem de existir uma garantia efetiva da não aplicação dessa pena.

A cooperação judiciária não é recusada se o Estado parte que a solicita, nos casos puníveis com pena perpétua, der garantias de aplicação concreta de sanções alternativas.

Mas se as garantias não forem fornecidas pelo Estado parte que solicita a cooperação, esta deve ser-lhe recusada.

Importa não esquecer que a Constituição da República Portuguesa não admite nem penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida (artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa).

A prisão perpétua foi abolida em Portugal há mais de 140 anos, pela Lei de 4 de junho de 1884.

É certo que o art.º 33º, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe, «Expulsão, Extradição e Direito de Asilo», prevê no n.º 4. que «Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada», acrescentando, no entanto, logo no n.º 5 que «O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia».

No entanto, o quadro normativo que ora nos ocupa não respeita a normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia, nem nos autos se trata de expulsão, extradição e direito de asilo.

E como assim é, falece a convocação pelo recorrente de jurisprudência que respeita à execução de mandado de detenção europeu (cujo regime jurídico foi aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23.08, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho, ou seja, no âmbito da União Europeia).

No nosso caso, resulta dos autos que no Grão-Ducado do Luxemburgo não é habitual a aplicação nem a execução da pena de prisão perpétua a casos semelhantes aos dos autos.

O que, por certo não decorre, é que tal aplicação ou execução se encontrem, em concreto, juridicamente vedadas.

Concluímos, portanto, que as autoridades do Estado do Grão-Ducado do Luxemburgo não ofereceram garantias de que a pena de prisão perpétua não será aplicada ou executada aos arguidos dos autos.

Face ao exposto, julgamos que não se verifica o requisito negativo da cooperação internacional previsto na alínea f) do art.º 6º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, improcedendo o recurso.


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.

Sem tributação.


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(Consigna-se que o Acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo ebpelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)

Coimbra,

Alexandra Guiné (relatora)

Cristina Branco (1.ª adjunta)

Ana Carolina Cardoso (2.ª adjunta)