Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1525/23.5T8SRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PIRES ROBALO
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
TÍTULO EXECUTIVO
PORTARIA 28/2000 DE 27/1
Data do Acordão: 10/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8º DA CRP
ARTIGO 65.º, DO CÓDIGO DO IMPOSTO DE SELO
ARTIGOS 75.º E 76.º DA LULL
ARTIGOS 10.º, 5 E 703.º, 1, C), DO CPC
Sumário: 1. A desconformidade do modelo de impresso desta livrança com o modelo criado pela Portaria n.º 28/2000 e com o artigo 65.º do Código do Imposto de Selo não afecta a sua validade como livrança e como título executivo;

2. A utilização ou não do modelo de impresso aprovado pela dita Portaria para criar uma livrança em nada interfere com os princípios constitucionais plasmados nos art.s 2.º, 9.º, al. d), 60.º e 81.º, al. h), da Constituição da República Portuguesa, desde logo porque, como dissemos, o dito modelo de impresso visa meras finalidades burocráticas, de natureza fiscal e informática, e não interfere minimamente com o exercício e a protecção de direitos de natureza pública ou privada, seja atinentes às relação com o Estado, seja às relações entre os particulares.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra     

Proc.º n.º 1525/23.5T8SRE.C1

                                               1.- Relatório

1.1.- A exequente A... – Soc. Unipessoal, Lda., instaurou a presente execução contra o executado, com base em “livrança”, cujo original se mostra junto aos autos.

                                                                       ***

1.2. – Em 4/10/2023 foi proferido despacho a indeferir liminarmente a presente acção executiva, por falta de título executivo – cf. artigo 726, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil.

                                                           ***

1.3. – Inconformado com tal decisão recorreu a exequente, invocando entre o mais a violação do contraditório, referido que o Tribunal “a quo” proferiu decisão, se a notificar da decisão que iria tomar.

                                                           ***

1.4. – Em 6/11/2023 foi proferido despacho a receber o recurso.

                                                           ***

1.5. – Em 18/1/2024 foi proferida decisão singular, a remeter os autos à 1.ª instância para se proceder ao contraditório, a fim de evitar decisão surpresa.

                                                           ***

1.6. – Em 8/3/2024 o Tribunal “a quo” proferiu despacho do seguinte teor:

Assim, notifique a exequente para se pronunciar quanto à eventual falta de título executivo, que poderá constituir fundamento para indeferimento liminar do requerimento executivo - cf. art. 3.º, n.º 3 e 726.º, n.º 2, al. a) do CPC”.

                                                           ***

1.7. – Notificada de tal despacho a exequente, apresentou requerimento datado 13/3/2024, onde refere, para o que importa, que o requerimento apresentado deve ser admitido, pois a letra constituiu titulo executivo. Alicerça o seu entendimento, em três arestos deste Tribunal Acórdãos proferido nos processos 694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020, 694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020 e 694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020.

                                                    ***

1.8. - Em 5/4/2024, foi proferido despacho a indeferir liminarmente a presente acção executiva, por falta de título executivo, nos seguintes termos:

A exequente A... – Soc. Unipessoal, Lda., instaurou a presente execução com base em “livrança”, cujo original se mostra junto aos autos.

Notificada para exercer o contraditório quanto à eventual falta de título executivo, a exequente argumentou que o título dado à execução, independentemente de obedecer ou não, na integra ao modelo e características previstas na Portaria 28/2000, obedece aos requisitos formais prescritos pela Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças – LULL, pelo que constitui título executivo válido.

Conhecendo:

A livrança constitui um título de crédito e consubstancia uma promessa de pagamento, por via da qual o seu emitente e subscrito se obriga a pagar a quantia nela inscrita em determinada data, igualmente vertida no documento. Enquanto “título de crédito” reveste das características de literalidade (por valer com o conteúdo e extensão que dele consta), autonomia (por, quando dela seja portador um terceiro de boa fé, ser independente da relação subjacente de que emerge) e abstracção – v., por todos Ferrer Correia, “Letra de Câmbio”, Universidade de Coimbra, 1975, p. 23).

Como ensina Marco Carvalho Gonçalves, com amparo na lição de Ferrer Correia, as livranças «traduzem-se numa “promessa pura e simples”, ou seja, incondicional, feita por uma pessoa, isto é, pelo devedor (subscritor), de pagar uma determinada quantia pecuniária a uma outra pessoa ou à ordem dela. Assim, diversamente do que sucede com a letra e com o cheque, a livrança “não enuncia uma ordem de pagamento de uma pessoa a outra e a favor de uma terceira, mas simples e directamente uma promessa de pagamento.”» - “Lições de Processo Executivo”, 5.ª Ed., Almedina, p. 104 e 105.

Sintetizando, a livrança é um título de crédito, passado e assinado por um subscritor (cfr. art. 75.º, n.º 7, da LULL), a favor ou à ordem de outra pessoa (cfr. art. 75.º n.º 5, da LULL), por via da qual o primeiro assume, perante o segundo, a obrigação de pagar a quantia nela aposta na data do vencimento (cfr. arts. 78º e 28º, ambos da LULL).

Mercê das suas características e facilidade de circulação, compreende-se que a livrança (ou qualquer outro título que incorpore uma obrigação cartular) deva revestir de determinadas características de índole formal, já que só dessa forma se garante a segurança do comércio jurídico. E, sem embargo dos requisitos externos plasmados no art. 75.º da LULL, a existência da livrança enquanto tal, depende da obediência precípua às exigências legais atinentes à sua edição.

Neste conspecto, importa atender ao disposto no art. 65.º, n.º 10 do Código do Imposto de Selo (Lei 150/99, de 11/09), no qual se prevê claramente que “[a]s livranças são exclusivamente editadas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras.”.

Sem esquecer que, nos termos da Portaria nº. 28/2000, de 27/01, “Manda o Governo, pelo Ministro das Finanças, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 30.º do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, o seguinte:

(…)

2.3 - Impressão:
2.3.1 - Os modelos de livranças têm o fundo geral de segurança, cobrindo o sector

superior, com as dimensões de 211 mm x 86 mm, e o texto geral, conforme referido no n.º 2.2.1, ambos impressos em offset.

2.3.2 - No modelo de livrança em euros, o símbolo desta moeda será impresso com as dimensões e localização apresentadas no anexo VI.

2.4 - Cores:

2.4.1 - Os modelos de livranças (anexos V e VI) têm o fundo geral de segurança e texto, conforme o n.º 2.2, em cores diferentes entre livranças em euros e em escudos, de acordo com a escolha da entidade emissora ou tomadora.

2.4.2 - Símbolo do euro, conforme o n.º 2.3.2, em cor azul-escura ou preta, contrastante com o fundo.

2.5 - Tintas - os modelos de livranças têm o fundo geral impresso em tinta litográfica de segurança antirasura, devendo a mesma ser compatível com a utilização de tecnologias de tratamento de imagem, nomeadamente o reconhecimento inteligente de caracteres 2.6 - Papel - os modelos de livranças devem ser impressos em papel branco, liso, com gramagem contida entre 85 g/m2 e 95 g/m2.”.

Na situação em tela, resulta da análise do título dado à execução (incluindo em suporte físico) que o mesmo configura um formulário idêntico, em termos estéticos, ao modelo de livrança legalmente vigente. Mas não se pode confundir com uma livrança.

Primeiro, e mais importante, a exequente não é uma instituição de crédito ou uma sociedade financeira, nem tal tão-pouco foi alegado. Irreleva que a exequente possa ter a natureza de intermediária de crédito, como refere, já que o “intermediário de crédito não está autorizado a conceder crédito, nem a intervir na comercialização de outros produtos ou serviços bancários, como, por exemplo, depósitos a prazo ou serviços de pagamento” (cf. sitio do Banco de Portugal https://clientebancario.bportugal.pt/pt-pt/intermediarios-de-credito-o-que-sao) .

Logo, ocorre uma ostensiva violação do art. 65.º, n.º 10 do CIS citado, por si só suficiente para fazer soçobrar esta acção executiva.

Em segundo lugar, o documento dado à execução é desprovido dos requisitos gráficos e materiais acima enunciados, já que não passa de uma impressão do modelo oficial de livrança numa folha branca.

Assim, o documento apresentado como livrança não preenche os requisitos externos para poder valer como título cambiário, pois foi emitido ou impresso num papel branco pela exequente não por uma instituição financeira.

Com o devido respeito por opinião diversa, não aderimos ao entendimento de que, pelo facto de os únicos requisitos formais das livranças plasmados na LULL serem os que constam do art. 75.º da LULL se pode concluir que qualquer papel em que esses elementos estejam inscritos configura uma livrança. Se assim se entendesse cairíamos na pura arbitrariedade num domínio em que o lastro formal é axial, dadas as características de literalidade, autonomia e abstracção de qualquer título de crédito e a facilidade da sua circulação (veja-se que, também a LUCH nada diz quanto à forma de edição dos cheques e nem por isso é entendido que qualquer papel que cumpra os requisitos do art. 1.º da LUCH constitui um cheque).

Pese embora aquele instrumento de Direito Internacional se sobreponha ao direito interno, ele nada prevê quanto aos requisitos da concreta edição dos formulários de livrança, isto é, quanto à forma como poderão ser fisicamente materializados, de existirem no mundo jurídico. O art. 75.º da LULL elenca os requisitos de ordem formal que o suporte material “livrança” deve conter, mas não chamou a si a regulação da sua forma de edição.

Não cremos a uniformização de legislações empreendida pela LULL visasse mais do que fomentar a sua circulação entre os Estados signatários, o que alcançou, no plano formal, através da definição de requisitos cujo preenchimento conduz à validade e eficácia do documento, enquanto título de crédito, em qualquer dos territórios. Daqui não se pode concluir que este instrumento de direito internacional tenha destituído os Estados signatários do seu poder soberano de legislar quanto a aspectos concomitantes, mas exclusivamente relacionados com o direito interno, como seja quanto ao Imposto de Selo e, no seu âmbito, a definição das entidades habilitadas a editar o formulário de livrança. É a cada Estado que compete, no plano interno, definir quem tem tal competência, o que não colide com o regime da Lei Uniforme e, evidentemente, não afecta a harmonização almejada, já que não se trata de acrescer requisitos formais à livrança (esses são definidos pela LULL), mas sim de definir regras internas para a elaboração do respectivo suporte físico. Regras essas que apenas poderão ser aplicadas aos títulos emitidos em território nacional, evidentemente.

Veja-se, a este propósito, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/04/1996, assim sumariado: “I – O modelo uniforme de livrança é de utilização obrigatória em Portugal. II – Não contendo a LULL qualquer preceito que regule a forma, modelo, impressão e cores que hão-de revestir o documento comprovativo da livrança, isso só pode significar que não entendeu considerar tal questão como essencial; daí cada Estado contratante poderá determinar essas questões da sua legislação nacional. III – Pelo que o Estado Português, ao proceder a tal regulamentação, não alterou as disposições da LULL, nem agiu de modo inconstitucional” (CJ, 1996, II, p. 113).

Deste modo, por todo o exposto, ficando claro que a exequente, ao munir-se de um vulgar papel em que imprimiu o formulário esteticamente idêntico ao definido na Portaria 28/2000, não é portadora de uma livrança, mas sim de um documento assemelhado, que não cumpre as exigências legais de edição.

Verifica-se, pois, a falta de título de executivo para a execução, nos termos previstos no artigo 726, nº. 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
*

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições supracitadas, decido indeferir liminarmente a presente acção executiva, por falta de título executivo – cf. artigo 726, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil.
**

Custas a cargo da Exequente, com taxa de justiça que se fixa em uma UC (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do CPC, e artº. 7, nº. 4, do RCP).
*

Notifique e registe.

Valor da execução: €7.536,45.

Comunique ao AE.”

                                                           ***

1.9.- Inconformado com tal decisão dela recorreu a exequente - A... – Soc. Unipessoal, Lda - terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

I- Em 31/05/2023, a Exequente deu entrada em juízo do Requerimento Executivo que deu origem aos presentes autos.

II- A Exequente dedica-se à atividade de: “Divulgação e comércio a retalho por correspondência ou via internet de louças, cutelarias e artigos para o lar Comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos, em estabelecimentos especializados”.

III- A par desta atividade e no âmbito da mesma, a Exequente preta serviços de

intermediação de crédito, conforme consta do Registo do Banco de Portugal (registo n.º ...26).

IV- O referido Requerimento Executivo é sustentado pela Livrança junta aos autos como titulo executivo.

V- Sucede que, por despacho datado de 04/10/2023, veio o douto Tribunal,

indeferir liminarmente a ação executiva, por considerar que inexiste titulo executivo – artigo 726.º, n.º 2, al.a) do CPC.

VI- Salvo o devido respeito por melhor opinião, entende a Recorrente que o

Tribunal "a quo" ao decidir como decidiu não fez correta aplicação do direito.

VII- A Apelante está, pois, convicta que Vossas Excelências, reapreciando a

matéria dos autos e, subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tudo no mais

alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a referida decisão proferida

pelo Tribunal de Primeira Instância.

VIII- Sempre deveria atender-se ao facto da Exequente dedicar-se à atividade de: “Divulgação e comércio a retalho por correspondência ou via internet de

louças, cutelarias e artigos para o lar. Comércio a retalho de computadores,

unidades periféricas e programas informáticos, em estabelecimentos especializados” e ao facto de prestar serviços de intermediação de crédito.

IX- Ora, as Ações Executivas são suportadas por um titulo executivo, conforme

resulta do n.º 5 do artigo 10.º do CPC, estando os mesmos tipificados no artigo 703.º do CPC.

X- Nesse sentido, os títulos de crédito encontram-se previstos na al. c) do n.º 1

do referido artigo 703.º do CPC., entre os quais se encontram as livranças, as quais, para que se possam apresentar como título executivo terá que revestir natureza cambiária ou cartular.

XI- A própria Lei Uniforma sobre Letras e Livranças (LULL) refere no artigo 75.º os requisitos essenciais que a Livrança deve cumprir, sob pena de não produzir os efeitos da Livrança, nos termos do artigo 76.º do mesmo diploma legal.

XII- Apesar de mencionar os requisitos exigidos, não faz qualquer menção, nem

regula o modelo e as caraterísticas que devem obedecer aos documentos em papel que corporativizem as livranças – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020.

XIII- É na Portaria 28/2000, de 27/01 que encontramos o modelo que devem

obedecer as livranças, regulando o tipo, formato e dimensões do papel, texto, impressão, cores, entre outras caraterísticas.

XIV- No entanto, apesar de constar da referida portaria as “regras” a que deve

obedecer a corporatização das livranças, certo é que em nenhum momento é referido qualquer a sanção – nomeadamente nível de validade ou da força executiva - para as livranças que não obedeceram aos modelos de impresso em vigor .

XV- Conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc.

694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020:

(...)

“E sendo assim - e tal como vem constituindo entendimento claramente prevalecente na nossa doutrina e jurisprudência –, uma livrança ou uma letra de câmbio não deixaram de o ser pelo facto de ter sido utilizado para a sua emissão um papel diferente do impresso oficial ou do modelo estabelecido para a sua emissão particular, desde que contenham em si a indicação dos requisitos essenciais enunciados na LULL (cfr. artº. 75º para as livranças, e artº. 1º para as letras).”

(...)

XVI- Nesse sentido, entendemos que, no caso em apreço, a Livrança entregue

pela Exequente como titulo executivo obedece aos requisitos previstos no artigo 75.º da LULL,

XVII- o que, por esse motivo, independentemente de obedecer ou não, na

integra ao modelo e caraterísticas previstas na Portaria 28/2000, não pode deixar de ser considerado titulo executivo, pois está em causa uma Livrança válida.

XVIII- Nesse sentido, resulta o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020:

“Desde que contenha os requisitos essenciais elencados no artº. 75º da LULL, uma livrança dada a execução não deixa de ser válida e estar munida de foça executiva pelo facto de a mesma não corresponder inteiramente ao modelo de impresso legalmente aprovado (pela Portaria nº. 28/2000, de 27/01).”

XIX- De todo o exposto, verifica-se que o Tribunal a quo não decidiu bem, sendo que a decisão proferida nos autos deve ser revogada e substituída por outra

que ordene o recebimento do título executivo e o normal prosseguimento dos autos.

XX- Pelo que, ao assim não ter procedido, a decisão em crise fez uma desadequada aplicação do Direito, designadamente dos artigos 550.º, n.º 2, al. d) e 855.º; artigo 726.º; artigo 734.º; artigo 3.º, n.º 3; artigo 195.º, n.º 1; artigo 10.º, n.º 5;

artigo 703.º, n.º 1, al.c); artigo 590.º - todos do CPC; artigos 28.º; 75.º e 78.º da LULL; artigos 30.º, n.º 2 e 65.º, n.º 10 do Código do Imposto de Selo e a normas previstas na Portaria 28/2000 de 27 de janeiro.

XXI- Pugna pela revogação da decisão, a qual deve ser substituída por outra que admita o título executivo e ordene o normal prosseguimento dos autos.

TERMOS EM QUE E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DANDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO E REVOGANDO A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA POR OUTRA QUE DECIDA NOS TERMOS ORA PROPUGNADOS FARÃO COMO SEMPRE, INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA.

                                                           ***

            1.10. – Foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

            “ O exequente interpôs recurso do despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo.

Por legal, tempestivo e interposto por quem tem legitimidade, admito o recurso apresentado pela exequente – artigos 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1 e 853.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil.

O recurso é de apelação, com subida nos próprios autos e tem efeito devolutivo – artigos 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1 al. a), 647.º, n.º 1, 852.º e 853.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

Notifique e subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

Autoriza-se desde já o acompanhamento electrónico dos autos, caso venha a ser solicitado.
*

Notifique o exequente.

Notifique a Sr.ª Agente de Execução para que notifique o executado (que já se mostra citado) nos termos e para os efeitos previstos no art. 641.º, n.º 7 CPC, para os termos da acção executiva (art. 726.º, n.º 6 CPC) e para os termos do recurso (art. 638.º, n.º 5 CPC).

Deverá a Sr.ª Agente de Execução advertir o executado de que, em caso de revogação do despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, por aplicação do art. 569.º n.º 1 CPC, o prazo para a eventual apresentação de embargos de executado apenas se inicia com a notificação pelo Tribunal de 1.ª Instância da decisão de revogação proferida pelo Tribunal Superior.
*

Juntas as contra-alegações ou decorrido o respectivo prazo, proceda à remessa electrónica do processo e ao envio do suporte físico autuado em papel para o Tribunal da Relação de Coimbra (art.º 15.º, n.º 1 da Portaria n.º 280/2013, de 26/08).

                                                           ***

1.11. – Feita a notificação não houve resposta.

                                                           ***

1.7. – Com dispensa de vistos cumpre decidir.

                                                           ***

                                                 2. Fundamentação

Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório, supra.

                                                           ***

   3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que a questão a decidir consiste em saber - se a decisão recorrida deve ser revogada, por acórdão, e substituída  por outra que ordene o recebimento do título executivo e o normal prosseguimento dos autos.

                                                           *

A recorrente em oposição oposta ao defendido na sentença recorrida, refere no mais, que a letra dada à execução tem a virtualidade de ser considerada título executivo.

Por um lado, a exequente presta também serviços de intermediação de crédito, por outro, e, estribando-se no Ac. desta Relação, proc. 694/19.3T8SRE.C1, de 25/05/2020, refere muito embora seja na Portaria 28/2000, de 27/01 que encontramos o modelo que devem obedecer as livranças, regulando o tipo, formato e dimensões do papel, texto, impressão, cores, entre outras caraterísticas, ou seja, ser na referida Portaria que constam as “regras” a que deve obedecer a corporatização das livranças, certo é que em nenhum momento é referido qualquer a sanção – nomeadamente nível de validade ou da força executiva - para as livranças que não obedeceram aos modelos de impresso em vigor.

Apreciando.

A questão que temos “entre mãos, consiste em saber, se a letra dada à execução, tem ou não a virtualidade, de ser considerada como título executivo.

Conforme se dispõe no art.º 10.º, n.º 5, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva.

O título executivo – que, como se sabe, não se confunde necessariamente com a causa de pedir -, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume, assim, uma função delimitadora (por ele se determinando o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva. Todavia, não se confundido com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação é executiva, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma.

No campo dos títulos executivos vigora entre nós o princípio da legalidade/tipicidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

As espécies de títulos executivos encontram-se elencadas no art.º 703º do CPC.

Dentre o elenco daqueles ali taxativamente tipificados, são títulos executivos “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.” (art.º 703.º, nº. 1 al. c), do CPC) (sublinhado nosso).

Como é sabido, as livranças (tais com as letras e os cheques) encontram-se entre esses títulos de crédito revestidos de força executiva.

Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares ou cambiários, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo agora (naquilo que constitui hoje entendimento claramente dominante da nossa doutrina e jurisprudência, embora com algumas vozes discordantes) sê-lo ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo, ou seja, desde que, nesse caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. (cfr. ainda, além do citado normativo legal, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º., Coimbra Editora, 1999, pág. 90” e in “A Acção Executiva, 5ª ed., Coimbra Editora, pág. 59”, e Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª ed., Almedina, pág. 35”).

Quando a livrança se apresenta à execução, como título executivo, na sua veste cambiária ou cartular, é considerado como um título de crédito próprio, porém, se é ali apresentado despido dessa veste cambiária, ou seja, apenas como documento particular, é considerado como um título de crédito impróprio (cfr., por todos, o Ac. do STJ, de 12/09/2019, proc. 125/16. 0T8VLF-A.C1.S1, relatado por Maria Rosa Oliveira Tching).

Ressalta do requerimento executivo que o documento dado à execução pelo exequente o foi, antes de mais, na veste de livrança, enquanto documento cartular ou cambiário.

Vejamos, então, se o referido documento configura ou tem a natureza (jurídica) de uma livrança.

Diga-se, desde já, que a Portaria n.º 28/2000, de 27/01 não veio criar uma nova livrança ou um novo modelo de livrança. O único modelo legal de livrança, enquanto título cambiário, é o que se encontra definido no art.º 75.º da LULL e não pode ser alterado unilateralmente pelo Estado Português enquanto estiver vinculado à Convenção de Genebra relativa à Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, de 7 de Junho de 1930, aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de 1934.

A intervenção legislativa que neste domínio tem ocorrido incide apenas sobre o modelo de impresso a adoptar como letra e livrança. Modelo que visa tão só os aspectos relativos ao tipo, ao formato e às dimensões do papel, bem como à cor, à tinta e ao tipo de impressão e outros caracteres similares. Sem qualquer interferência nos requisitos formais e substanciais da livrança como título cambiário, a que alude o art. 75.º da LULL.

E tal intervenção é justificada por motivos meramente burocráticos e de natureza fiscal, completamente à margem das características cambiárias da letra e da livrança.

Motivos que têm que ver com a sua adaptação a tratamento informático e à cobrança do imposto de selo, como expressamente é enunciado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 387-G/87, de 30 de Dezembro, que refere que “as alterações introduzidas pelo presente diploma visam a adaptação da Tabela Geral do Imposto de Selo à normalização da letra, tendo em vista o seu tratamento informático”. As mesmas finalidades têm sido realçadas nos preâmbulos das diversas portarias que, entretanto, têm sido publicadas com as alterações a esses modelos, de que são exemplo as Portarias n.º 142/88, de 4 de Março, 545/88, de 12 de Agosto, 233/89, de 27 de Março, n.º 1042/98, de 19 de Dezembro, e 28/2000. E por isso é que os ditos modelos têm variado com uma rapidez típica da voragem legislativa de cada momento, de tal modo que só no ano de 1988 sofreu três alterações. Imagine-se os contratempos que ocorreriam para a actividade bancária, por exemplo, se os novos modelos viessem inutilizar os títulos emitidos anteriormente.

É neste âmbito que o preâmbulo da Portaria n.º 28/2000 também refere que “em consequência da entrada em vigor do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, e respectiva Tabela Geral, resulta a abolição definitiva da forma de arrecadação do imposto do selo por meio de papel selado, ainda subsistente na espécie de papel para letras, e a sua substituição por meio de guia. Torna-se, pois, necessário adequar a esta realidade os modelos das letras e livranças”.

Esta interpretação também decorre do art. 65.º do Código do Imposto de Selo, cujo n.º 1 dispõe, de forma bem expressiva, que as letras e as livranças “obedecerão aos requisitos previstos na lei uniforme relativa a letras e livranças”. Como não podia deixar de ser, atenta a vinculação do Estado Português à Convenção acima referida e o disposto no art. 8.º da Constituição da República Portuguesa.

Acresce a tudo isso que, nem o Código do Imposto de Selo, nem qualquer das Portarias que criam e recriam os modelos de impresso das letras e das livranças, preveem qualquer sanção para as letras e livranças emitidas em desconformidade com os modelos de impresso que vigoram em cada momento. Designadamente ao nível da sua validade como letras e livranças, ou ao nível da sua força executiva.

Por isso, como escreve Pinto Furtado (em Títulos de Crédito, Almedina, 2000, p. 141), referindo-se à letra de câmbio, mas que tem plena aplicação relativamente à livrança: “a clássica letra de câmbio é, como qualquer título de crédito, antes de mais, um pedaço de papel onde se inscrevem os elementos literais e o tributário … Estes não se compreenderão plenamente, se dissociados da realidade material que lhes serve de corpus mechanicum e que alguns autores qualificam de novo e autónomo elemento, a acrescer àqueles: o instrumentum. (…) A obrigatoriedade do emprego de impressos nas condições oportunamente referidas, para servirem de instrumentum a uma letra de câmbio, é obviamente de natureza tributária, não afectando a sua violação, por isso, a validade das obrigações cambiárias respectivas”.

Com efeito, nos termos do art.º 76.º da LULL, o escrito só deixará de valer como livrança quando lhe faltar algum dos requisitos mencionados no art.º 75.º da mesma Lei, com a ressalva das excepções ali previstas. Sucede que o art.º 75.º da LULL não se refere a nenhum modelo específico de impresso de livrança. E, por isso, qualquer documento escrito que satisfaça todos os requisitos previstos no art.º 75.º da LULL vale como livrança. Mesmo que esse documento não corresponda ao modelo de impresso criado por Portaria.

É, aliás, esta a posição claramente dominante na doutrina e na jurisprudência /cfr, neste sentido, entre outros, acórdão do STJ de 03-12-1998, no BMJ n.º 482, p. 250, dois acórdãos da Relação de Lisboa de 27-01-1998 ambos sumariados em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ procs. n.º 0010741 e 0093661 e um terceiro de 21-09-2006, em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ proc. n.º 5455/2006-8. Entre todos, destaca-se o acórdão da Relação de Lisboa de 27-01-1998, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1998, Tomo I, p. 95, e também na Revista da Ordem dos Advogados, ano 60, janeiro 2000, vol. I, com comentário favorável de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, bem como os Ac. desta Relação, citado pela recorrente, relatado por Isaías Pádua, decisão singular proferida em 19/11/20195, por Luiz José Falcão de Magalhães em proc.º n.º 380/19.4T8CBR.C1 e AC. desta Rel. de 6 de Fevereiro de 2024, proc.º n.º 1272/23.8T8SRE.C1, relatado por Luís Manuel de Carvalho Ricardo.

De tudo o exposto, temos para nós, poder concluir-se, sem margem para dúvidas, que:

1) A desconformidade do modelo de impresso desta livrança com o modelo criado pela Portaria n.º 28/2000 e com o artigo 65.º do Código do Imposto de Selo não afecta a sua validade como livrança e como título executivo;

2) A utilização ou não do modelo de impresso aprovado pela dita Portaria para criar uma livrança em nada interfere com os princípios constitucionais plasmados nos art.s 2.º, 9.º, al. d), 60.º e 81.º, al. h), da Constituição da República Portuguesa, desde logo porque, como dissemos, o dito modelo de impresso visa meras finalidades burocráticas, de natureza fiscal e informática, e não interfere minimamente com o exercício e a protecção de direitos de natureza pública ou privada, seja atinentes às relação com o Estado, seja às relações entre os particulares.

Assim, face ao exposto, temos para nós, que o documento, livrança, dada à execução, seja quanto à sua caracterização como livrança, nos termos do art.º 75.º da LULL, seja quanto aos requisitos de exequibilidade, nos termos do art.º 703, n.º 1, al.ª c), do C.P.C., pelo que, assiste razão à recorrente.

Dito isto, e tendo a letra em causa a virtualidade de ser enquadrada na alínea c), do n.º 1, do art.º 703.º, do C.P.C., questão chave, no caso em apreço, torna-se inútil apreciar os demais argumentos invocados pela recorrente.

Face ao exposto, revoga-se a decisão recorrida e por acórdão decide-se dar à letra em causa a virtualidade de título executivo, prosseguindo os autos o seu normal prosseguimento.

                                                               ***

                                                           4. Decisão

Face ao supra exposto, decide-se, por acórdão, julgar o recurso procedente, nos termos expostos, revogar a decisão recorrida, conceder à livrança em causa a virtualidade de título executivo, prosseguindo os autos o seu normal prosseguimento.

Custas a final, a cargo de quem deu causa à ação, ou não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. (art.º 527.º, n.º 1, do C.P.C.)

Coimbra 8/10/2024

Pires Robalo (relator)

Cristina Neves (adjunta)

Luís Manuel Carvalho Ricardo (adjunto)