Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/12.5TBCNT-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
PEDIDO DE SEPARAÇÃO DE BENS NA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 10/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 140.º, 1; 552.º, 7; 740.º, 1 E 748.º, 1, DO CPC
Sumário: I. A inércia da observância do ónus que impedia sobre os herdeiros do cônjuge do executado – o próprio executado e demais herdeiros habilitados – impõe o prosseguimento da execução sobre os bens comuns do casal que se encontrem penhorados, pois a garantia que o património do devedor executado constitui para o exequente não pode ser defraudada.

II. Não tendo o Recorrente alegado qualquer facto demonstrativo da verificação dos ónus que sobre si o art.º 740º, n.º 1, fazia impender, não podia o tribunal impor-lhe que alegasse factos cuja existência se desconhece ou que se pusesse a adivi­nhar factualidade só para preencher o vazio da alegação.

Decisão Texto Integral: Relator: Sílvia Pires
Adjuntos: Hugo Meireles
Francisco Costeira da Rocha

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                       Exequente: A..., Sucursal Em Portugal, SA

                       Executado: AA

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          Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Na execução comum para pagamento de quantia certa em que figura como executado e em que se encontra penhorado um prédio que integra o seu património conjugal do casamento entretanto dissolvido por óbito da sua mulher também executada e falecida na pendência dos autos, foi proferido, em 15.2.2024, na sequência de reclamação de ato da agente da execução efetuada pelo Executado, despacho com a seguinte decisão:
Destarte, julgando parcialmente procedente a reclamação deduzida pelo executado AA, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º e 547.º do CPC, determina-se que a Sr.ª AE suspenda as diligências de vendas do imóvel penhorado e notifique os executados/habilitados para, no prazo de 20 dias, querendo, exercerem a prerrogativa que lhes é conferida pelo art. 740.º do CPC, sob pena de a execução prosseguir quanto a tal bem.
Sem custas.
Notifique e comunique.

Por apenso à execução, em 26.3.2024, o Executado apresentou requerimento do qual consta:
6/ O ora requerente, notificado para o efeito na qualidade de herdeiro da referida BB, vem requerer a separação de bens ao abrigo da prerrogativa estabelecida no artigo 740º do CPC.
7/ Os presentes autos devem seguir a tramitação processual do incidente aqui suscitado.
8/ Termos em que se requer, atento o alegado, a separação de bens, suspendendo-se a presente execução até partilha por óbito de BB, a qual irá ser requerida no Tribunal ..., logo que deferido o apoio judiciário ao ora Requerente.
Nestes termos e nos mais de direito cujo douto e sábio suprimento se invoca, requer-se, ao abrigo do artigo 740º do CPC, a separação de bens alegada neste requerimento, devendo a execução ser suspensa até partilha dos bens por óbito de BB, falecida a 06.09.2021, que irá ser instaurada no prazo de trinta dias, no Juízo Local Cível ....

Este requerimento foi objeto de despacho de indeferimento liminar com os seguintes fundamentos:

Como se extrai do requerimento inicial, muito embora tenha sido tempestivamente apresentado e o seu introito o intitule de requerimento para separação de bens, o requerente limita-se a requerer a suspensão da execução e protestar instaurar inventário para partilha da herança aberta por óbito de BB. Vale por dizer que não procedeu de uma das duas formas legalmente preconizadas, requerendo a separação de meações (o que deverá observar as regras próprias do processo de inventário) ou comprovando a sua pendência. Em rigor, o presente incidente está esvaziado de conteúdo, já que com ele mais não visou o requerente do que obter a suspensão da execução e a concessão (legalmente infundada) de um prazo adicional de 30 dias para dar entrada de um inventário.

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O Executado AA, inconformado, interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
I- Por despacho nos autos principais de 15.02.2024, com a referência CITIUS 93137328, o qual foi notificado ao executado a 06.03.2024, foi julgada parcialmente procedente a reclamação deduzida pelo executado AA, ao abrigo do disposto nos artigos 6º e 547º do CPC, determinando-se que a senhora AE suspenda as diligências do imóvel penhorado e notifique os executados/habilitados para, no prazo de vinte dias, querendo, exercerem a prerrogativa que lhes é conferida pelo artigo 740º do CPC, sob pena de a execução prosseguir quanto a tal bem.
II- Por requerimento de 26.03.2024, com a referência CITIUS 48423665, veio o executado requerer a separação de bens e o prazo adicional de trinta dias para instauração do competente inventário, no Juízo Local Cível ....
III- Para efeito de instauração do inventário, foi requerido a 05.04.2024, apoio judiciário com dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, ao abrigo da Lei nº 34/2004, de 29 de julho, na sua versão actualizada.
IV- Apenas com o deferimento do apoio judiciário seria possível a instauração do inventário. Aliás, o Requerente AA beneficiava de apoio judiciário na execução.
V- O inventário por óbito de BB foi instaurado a 12.04.2024, correndo seus termos com o nº 384/24...., pelo Juízo Local Cível ....
VI- Por sentença notificada a 15.04.2024, com a referência CITIUS 93815083 foi indeferida a petição inicial do requerimento de 26.03.2024, ao abrigo do artigo 590º, nº 1 do CPC.
VII- Aquando da notificação da sentença, encontravam-se já instaurados os autos de inventário por óbito de BB, que corre seus termos com o nº 384/24.... pelo Juízo Local Cível ....
VIII- O paradigma do Código de Processo Civil constitui na prevalência da verdade material sobre a verdade formal.
IX- Cabia ao tribunal notificar a parte para sanar eventuais faltas no âmbito dos pressupostos processuais com vista à realização de atos necessários à regularização da instância.
X- O tribunal deveria ter lançado mão dos mecanismos estabelecidos nos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 2, al. c) e nº 3 do CPC, convidando a parte a praticar ato processual em falta ou informar se o inventário havia sido já requerido.
XI- Andou, assim, mal o tribunal ao indeferir a petição inicial ao abrigo do artigo 590º, nº 1 do CPC, impondo-se a revogação da decisão proferida, face à apresentação tempestiva do processo de inventário e ao prazo adicional requerido para o efeito, o qual era indispensável no âmbito do apoio judiciário requerido.
XII- Encontram-se, assim, violadas as normas constantes dos artigos 2º, 4º, 5º, 6º, nº 2, 547º, 590º, nº 1, nº 2, al. c) e nº 3 e 740º do CPC, 1º e 2º da Lei 34/2004 de 29.06 e 20º da CRP.
Termos em que deverá ser revogada a sentença proferida, suspendendo-se a execução até à homologação da partilha no inventário que corre seus termos com o nº 384/24.... pelo Juízo Local Cível ....

A Exequente apresentou resposta, concluindo pela seguinte forma:
1. O recorrente não apresentou qualquer requerimento nos termos e para efeitos do artigo 740º do Código de Processo Civil.
2. Como bem decidiu o Tribunal a quo, o requerimento não segue as regras do processo de inventario e, por outro lado, não junta certidão de ter sido requerida acção de separação de bens.
3. O recorrente limita-se a requerer a suspensão do prazo em curso, o que não é legalmente atendível, para dar entrada da acção de separação de bens.
4. Não tem lugar qualquer o convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, como bem decidiu o tribunal, uma vez que, não só o requerimento não cumpria os requisitos mínimos das normas do processo de inventario como, o recorrente, demonstrou não ser essa a sua intenção dando entrada da ação de separação de bens posteriormente, pese embora na mesma data, da referida ação.
5. A invocação do pedido de apoio judiciário para dar entrada da acção não tem a virtualidade de suspender qualquer prazo, dado que não pretende a nomeação de patrono, assim como está demonstrado nos autos que o recorrente deu entrada da acção pagando a respectiva taxa de justiça.
6. Como bem decidiu o tribunal o presente incidente está esvaziado de conteúdo, já que com ele mais não visou o requerente do que obter a suspensão da execução e a concessão (legalmente infundada) de um prazo adicional de 30 dias para dar entrada de um inventário.
Conclui defendendo a improcedência do recurso.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas a questão que cumpre apreciar é a de apurar se a execução deve ser suspensa como pretendido pelo Executado.

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2. Os factos
Os factos a considerar para a decisão deste recurso são os acima referidos acrescidos dos seguintes, por resultarem dos autos:
- Em 5.4.2023 o Executado dirigiu ao ISS, IP pedido de proteção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo com vista à propositura de um processo de inventário.
- Em 12.4.2024 o Executado, para partilha dos bens deixados por óbito da sua mulher, requereu processo especial de inventário no Juízo Local Cível ....
- O aqui Executado aquando da entrada em juízo do requerimento inicial do processo de inventário, procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida.

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3. O Direito aplicável
Nos autos de execução para pagamento de quantia certa em que o Recorrente figura como Executado e em que se encontra partilhado um bem que faz parte integrante do património comum do casal então formado por si e por BB e em que foram habilitados como herdeiros desta, além do Executado os filhos de ambos, foi determinada a notificação destes para, no prazo de 20 dias, querendo, exercerem a prerrogativa que lhes é conferida pelo art. 740.º do CPC, sob pena de a execução prosseguir quanto a tal bem.
O Executado, no último dia do prazo fixado apresentou, por apenso à execução, o requerimento acima transcrito, requerendo um aprazo adicional de 30 dias para requer o inventário e a suspensão, durante esse prazo do processo.
Este requerimento foi objeto de indeferimento com o fundamento que o Executado não procedeu de uma das duas formas legalmente preconizadas, requerendo a separação de meações (o que deverá observar as regras próprias do processo de inventário) ou comprovando a sua pendência.
No recurso em apreciação o Recorrente alega que, tendo em 5.4 pedido apoio judiciário para a instauração do processo de inventário, sendo certo que não invocou esse seu requerimento quando em 12.4.2024 deu entrada do inventário em juízo.
Não é colocado em crise o mérito do despacho quanto à manifesta desadequação do requerimento apresentado com vista ao cumprimento do art.º 748º, n.º 1 do C. P. Civil, porquanto não é junta certidão comprovativa da pendência do inventário nem comprovada a sua instauração.
A inércia da observância do ónus que impedia sobre os herdeiros do cônjuge do executado – o próprio executado e demais herdeiros habilitados – impõe o prosseguimento da execução sobre os bens comuns do casal que se encontrem penhorados, pois a garantia que o património do devedor executado constitui para o exequente não pode ser defraudada .[1]
O argumento invocado pelo Recorrente da pendência do pedido de proteção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e de outros encargos com o processo não assume qualquer valia para a defesa da sua pretensão, porquanto, como decorre cristalinamente do art.º 552º, n.º 7 do C. P. Civil é exigido que com a apresentação da petição inicial seja comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, não assumindo assim aquele pedido o efeito desejado pelo Recorrente.
Acresce que o prazo de 20 dias contido no art.º 740º, n.º 1 do C. P. Civil, como prazo processual que é e estabelecido pelo legislador, só seria prorrogável em caso de menção especial da lei – art.º 140º, n.º 1, do C. P. Civil –, o que não ocorre, pelo que a pretensão do Recorrente sempre estaria votada ao fracasso.
Também, perante o requerimento apresentado, não se impunha qualquer despacho de correção, pois, deste poder-dever, não se pode inferir, nem seria legítimo fazê-lo, que o juiz deva proferir um despacho de aperfeiçoamento quando o requerimento contenha uma factualidade incapaz de conduzir à procedência da pretensão deduzida, sem que dela resulte que essa incapacidade tenha origem numa deficiente tradução em palavras duma realidade existente.
Não tendo o Recorrente alegado qualquer facto demonstrativo da verificação dos ónus que sobre si o art.º 740º, n.º 1, fazia impender, não podia o tribunal impor-lhe que alegasse factos cuja existência se desconhece ou que se pusesse a adivi­nhar factualidade só para preencher o vazio da alegação.
Não compete, em nosso entender, ao juiz da 1ª instância, andar a imagi­nar as hipotéticas intenções das partes subjacentes aos articulados apresentados, nem tal resulta dos princípios da economia processual, inquisitório e cooperação.
Assim, tem de concluir-se, como se concluiu no despacho recor­rido, confirmando a decisão proferida.

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Decisão
Nos termos expostos, confirmando-se a decisão proferida, julga-se improcedente o recurso.

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Custas pelo Recorrente.

                                                           *
                                                                                                 8.10.2024



[1] Nesse sentido, Marco Gonçalves, in Lições de Processo Civil Executivo, 4ª ed., pág. 349, Almedina.