Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
224/20.4PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA LAMAS
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA PRISÃO SUBSIDIÁRIA
DIREITO DE AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 10/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: ANULADO O DESPACHO QUE DETERMINOU A REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA PRISÃO SUBSIDIÁRIA, POR OMISSÃO DE AUDIÇÃO DO CONDENADO
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 1 E 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 119.º, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Vigorando o direito de audição do arguido para todos os actos que possam afectar a sua posição, por maioria de razão e por imposição constitucional vigora quando estão em causa decisões judiciais que, de forma directa, têm como consequência a privação da sua liberdade.

II - Por tal razão, previamente à decisão de revogar a suspensão da prisão subsidiária, por incumprimento de uma das condições estabelecidas, deve proceder-se à audição presencial do condenado, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), do C.P.P.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo Sumário nº 224/20.4PBCLD do Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha, foi revogada a suspensão da execução da pena de 20 dias de prisão subsidiária imposta ao arguido … e, em conformidade, foi ordenado o cumprimento efectivo da mesma .

1.2.Os recursos

1.2.1. Das conclusões do arguido

Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

     

- O entendimento do douto despacho recorrido viola o disposto no artigo 49º nº 3 do C.P., ao considerar que o prazo de suspensão da prisão  subsidiária é avaliativo.

- Tal entendimento significaria que, mesmo encontrando-se cumprida a medida a que o Arguido ficou adstrito, ainda assim se deveria aguardar pelo decurso do prazo de modo a verificar se houve algum incumprimento com relevância criminal.

- Na realidade, os regimes de suspensão da prisão subsidiária previstos no artigo 49º nº 3, por um lado, e 50º e seguintes do C.P., por outro lado,  mormente o regime da revogação estatuído no artigo 56º, têm objetivos diferentes, não se podendo aplicar, em caso de incumprimento dos deveres estabelecidos como condição para a concessão da suspensão, os mesmos critérios.

- “Aliás, este preceito fala no cumprimento da “pena de prisão fixada na sentença” (n.º 2), o que claramente não é o caso da prisão subsidiária a que se referem os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 49.º.”

-  Enquanto o regime do artigo 49º nº 3 do C.P. tem uma vertente de constrangimento ao cumprimento da medida a que o condenado foi adstrito por via da suspensão da prisão subsidiária, o regime do artigo 56º tem uma finalidade preventiva, de caráter geral e especial, o que nos leva a concluir que as consequências do incumprimento serão reflexamente diferentes.

-  “O período de um ano de suspensão fixado no caso presente representa o prazo dentro do qual o condenado teria de cumprir a condição imposta e não um período de prova ou de avaliação da sua conduta em liberdade, no âmbito de um juízo de prognose positiva típicos da suspensão de uma pena de prisão aplicada na sentença ou acórdão, a qual também poderá, efectivamente, ser subordinada a condições ou deveres, além de acompanhada de regime de prova (arts. 50.º a 53.º do C. Penal).”

- Aliás, o próprio elemento literal do preceito nos ajuda a interpretar qual o real elemento teleológico: in fine está estatuído que se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos executa-se a “prisão subsidiária” (omitiu-se deliberadamente o termo “pena”) e, se o forem, a pena é declarada extinta.

- Outra diferença de regime reside na diferente ratio de ambos os regimes: o regime do artigo 49º 3 pretende salvaguardar, por um lado, a eficácia do jus puniendi estatal através do constrangimento, mas por outro lado, visa assegurar que a carência económica não seja um fator de condenação, desse modo garantindo a igualdade perante a Lei e não diferenciação dos cidadãos perante a Justiça por questões económicas.

- E, ainda que assim se não entendesse, sempre haveria lugar à aplicação do disposto no artigo 495º nº 2 do C.P.P., impondo-se, portanto, a audição do Arguido relativamente às razões que estiveram  subjacentes ao incumprimento.

- Deste modo, houve igualmente violação do disposto no artigo 495º nº 2 do C.P.P.

- Pelas razões acima expostas, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare extinta a pena e, ainda que assim não se entenda, convoque o condenado para audição antes de ser tomada a decisão de revogação da suspensão da execução da pena

1.2.2 Das conclusões do Ministério Público

Também recorreu o Ministério Público, concluindo da seguinte forma (transcrição) :

1. Por despacho datado de 15.09.2022 foi decidido suspender a pena de 20 dias de prisão subsidiária em que o arguido foi condenado pelo período de um ano sujeita ao cumprimento por parte do arguido dos seguintes deveres: não cometer novos crimes e participar na ação estruturada dinamizada pela DGRSP “licença.com” dirigida a condenados por crimes estradais;

2. O arguido frequentou a “licença.com” dinamizada pela DGRSP no dia 14 de outubro de 2022, tendo a DGRSP concluído no relatório de acompanhamento de execução da suspensão da prisão subsidiária, pelo cumprimento por parte do arguido com as obrigações que lhe foram fixadas;

3. Do certificado do registo criminal do arguido resulta que este no âmbito do processo n.º 393/22.9GBCLD, foi condenado por sentença proferida em 09.11.2022, transitada em julgado em 02.02.2023, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo disposto no artigo 3.º, n.ºs1 e2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, em 27.10.2022;

4. Por despacho datado de 1 de maio de 2024 foi decidido revogar a suspensão da execução da prisão subsidiária e determinar o cumprimento por parte do arguido da pena de 52 dias, nos termos dos artigos 49.º, n.º 3 e 56.º, n.º 2 do Código Penal;

5. A prisão subsidiária não é uma pena de substituição, nem se confunde com a pena de prisão enquanto pena principal;

6. Por isso, não é aplicável à suspensão de execução da prisão subsidiária o disposto no art.º 56. °, n.º 2, do Código Penal, mas apenas e só o disposto no art.º 49.º, n.º 3, do mesmo diploma legal;

7. Pois caso fosse sempre se imporia avaliar se o cometimento de crimes por parte do arguido abalou o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da prisão subsidiária, o que na negativa sempre levaria à extinção da pena, contudo na prisão subsidiária o juízo que é feito, é sobre as condições económicas, pelo que só a este cumpre atender;

8. A regra de conduta “não cometer crimes” a que ficou sujeita a suspensão da execução da prisão subsidiária, não é uma regra que se coaduna com o espírito da norma do artigo 49.º, n.º 3 que estabelece que a suspensão não pode ficar sujeita a regras ou deveres de conteúdo económico ou financeiro, pelo que foi incorretamente colocada como regra a que ficou subordinada a suspensão;

9. Assim, tendo o arguido cumprido com a condição para a suspensão da prisão subsidiária – frequência da “licença.com”, dinamizada pela DGRSP, mesmo que antes do termo do prazo fixado, terá a pena de multa que ser declarada extinta e ser averbado tal registo no CRC - cfr. art.º 49.º, n.º 3, do Código Penal;

10. Não sendo necessário o decurso do prazo integral da suspensão da execução da prisão subsidiária, na medida que este é um prazo que é concedido ao arguido para cumprir as condições impostas, e não um prazo avaliativo da sua conduta;

11. Ao não declarar extinta, por cumprimento, a pena de multa aplicada ao arguido, o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 49.º, n.ºs 1, 2 e 3, 56.º do Código Penal, art.º 475.º do Código de Processo Penal;

12. Em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que declare extinta, por cumprimento, a pena de multa a que o arguido foi condenado;

13. Caso assim, não se entenda deverá o referido despacho ser objeto de retificação ao abrigo do disposto no artigo 97.º e 380.º do Código de Processo Penal, e em consequência determinar-se que o arguido apenas tem a cumprir 20 dias de prisão subsidiária, conforme decorre do teor do despacho.

1.2.3. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, remetendo para os fundamentos do recurso por si interposto.

1.2.4. Na resposta do arguido ao recurso interposto pelo Ministério Público, aquele  acompanhou o Ministério Público quanto à revogação do despacho que revogou a suspensão da prisão subsidiária, acrescentando que, mesmo que tal se considerasse inevitável, ainda assim se tornaria necessária a audição presencial do Arguido, mas, considerando estar cumprida a condição imposta ao Arguido de frequentar as aulas de condução e que o prazo de suspensão da prisão subsidiária não é avaliativo, deve ser declarada extinta a pena de multa em que foi condenado, sem necessidade de cumprimento de 20 dias de prisão subsidiária.

1.2.5. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação apôs o seu visto no processo.

1.2.6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Assim, examinadas as conclusões dos recursos, são as seguintes as questões a conhecer (ultrapassada que está, através do despacho correctivo de 18/6/2024, a questão da rectificação do despacho recorrido levantada pelo Ministério Público) :

- saber se o arguido deveria ter sido previamente ouvido (questão levantada pelo arguido);

- saber se o despacho recorrido deve ser substituído por outro que declare a extinção da pena de multa pelo cumprimento (questão levantada por ambos os recorrentes).

III. FUNDAMENTAÇÃO

Definidas as questões a tratar, importa considerar o teor do despacho recorrido :

Nos presentes autos, foi o Arguido … condenado na pena de 95 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, num total de 475,00 €.

Em virtude do não pagamento da multa por parte do Arguido, foi, por despacho proferido a 23-03-2022, determinada a conversão da pena de multa em 20 dias de prisão subsidiária – cf. referência n.º 99704266.

Por despachos proferidos a 13-09-2022 e 15-09-2022, foi determinada a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária, pelo período de 1 ano, subordinada às seguintes regras de conduta:

a) Não cometer novos crimes;

b) Participar na ação estruturada dinamizada pela DGRSP «Licença.com» dirigida a condenados por crimes estradais, nomeadamente o de condução de veículo sem habilitação legal.

Tal despacho transitou em julgado a 26-10-2022, terminando o período de suspensão a 26-10-2023.

Resulta dos autos que o Arguido cumpriu com a segunda regra de conduta, a 14-10-2022 – cf. relatório da DGRSP de 05-04-2022, com a referência n.º 9635130. Contudo, após tal cumprimento o Arguido ausentou-se para paradeiro desconhecido, não mais colaborando com a DGRSP.

Por outro lado, resulta do Certificado do Registo Criminal do Arguido que, … o Arguido foi condenado, pela prática de factos ocorridos a 27-10-2022, que consubstanciaram um crime de condução sem habilitação legal, ou seja, um dia após o trânsito em julgado da decisão que determinou a suspensão da pena de prisão subsidiária, o mesmo praticou o mesmo crime pelo qual foi aqui condenado.

Neste sentido, veio o Ministério Público promover pela extinção da pena …


*

Dispõe o artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal que …

No presente caso, e como referido, o Tribunal entendeu que a pena de multa em que o Arguido foi condenado não foi paga por motivo que não lhe era imputável e decidiu suspender a execução dos 20 dias de prisão subsidiária, pelo período de 1 ano, subordinada aos deveres de não cometer novos crimes e de participar na ação estruturada dinamizada pela DGRSP «Licença.com» dirigida a condenados por crimes estradais, nomeadamente o de condução de veículo sem habilitação legal.

Compulsada a informação contida nos autos, constata-se que o Arguido, embora tenha cumprido com um dos deveres, não cumpriu com o outro, o de não cometer crimes.

Não se segue aqui o entendimento do Ministério Público que tal dever não poderia ter condicionado a suspensão da execução e que, por isso, deve ser totalmente ignorado. Diga-se, aliás, que é entendimento do Tribunal que o cometimento de crimes é sempre, em qualquer suspensão da execução, seja da pena de prisão principal seja da pena de prisão subsidiária, um dever que condiciona tal suspensão.

Dos elementos descritos, decorre, assim, que apesar de o Arguido ter cumprido com uma das condições, notoriamente não cumpriu com a outra, tendo sido condenado pela prática do mesmo tipo de crime durante a suspensão, revelando, desta forma, um total desinteresse pelo Direito e pelas decisões judiciais, podendo, a inação do Tribunal, com a consequente extinção da pena de multa, imbuir no Arguido um sentimento de impunidade que não pode, de todo, ser permitido.

A tudo isto acresce que o Arguido se ausentou para parte incerta, desinteressando-se do desfecho dos presentes autos, não colaborando nem com a DGRSP nem com este Tribunal.

Desta forma, conclui-se, conforme já aludido, que o incumprimento, pelo Arguido, da obrigação a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária é culposo.

Considera-se não ser necessária a audição presencial do Arguido, para determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão subsidiária – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2022, proferido no processo n.º 671/18.0PAPVZ.P1 (PAULO COSTA), disponível em www.dgsi.pt.


*

Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 49.º, n.º 3 e 56.º, n.º 2, do Código Penal, decide-se REVOGAR a suspensão da execução da pena de 20 (vinte) dias de prisão subsidiária, imposta ao Arguido e, em conformidade, ordenar o cumprimento efetivo da mesma.


IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

4.1. – Audição prévia do arguido :

A presente questão, de índole processual, procedimental, tem logicamente de preceder o conhecimento da questão, de fundo, da bondade do decidido quanto à não extinção da pena.

O arguido entende que o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 495º, nº 2 do C.P.P., ao ter decidido revogar a suspensão da execução da pena sem o ouvir relativamente às razões que estiveram subjacentes ao incumprimento da primeira regra de conduta fixada no despacho que determinou a suspensão da execução da prisão subsidiária, isto é, da regra de não cometer novos crimes .

Antes de nos debruçarmos sobre esta questão, importa deixar claro que tal regra de conduta foi fixada em despacho já transitado em julgado, e que nem sequer foi objecto de recurso, e que a mesma, nem é de cumprimento impossível ou irrazoável, nem viola os direitos fundamentais do arguido, nomeadamente não atenta contra a dignidade do recorrente.

Posto isto, importa recordar que o arguido foi condenado nestes autos na pena de 95 dias de multa à taxa diária de 5 euros, com o desconto de um dia de detenção.

Deferido que foi o seu pagamento em 10 prestações, verifica-se que o recorrente apenas procedeu ao pagamento de algumas das prestações, sendo que por despacho de 23/3/2022 foi convertida a pena de multa aplicada em 20 dias de prisão subsidiária.

Em 15/9/2022, dado que o incumprimento da pena não era imputável ao arguido foi decidido suspender a prisão subsidiária já fixada pelo período de 1 ano, sujeitando tal suspensão ao cumprimento dos seguintes deveres/regras de conduta :

- não cometer novos crimes;

- participar na acção estruturada dinamizada pela DGRSP «licença.com» dirigida a condenados por crimes estradais, nomeadamente o de condução de veículos sem habilitação legal.

Em 5/4/2023 a DGRSP juntou aos autos um relatório de incumprimento, afirmando que o arguido frequentou a acção «licença.com», mas alterara a sua residência para local desconhecido sem informar o técnico responsável pelo acompanhamento.

Foi então ordenada a sua notificação, bem como do seu defensor, para que justificasse o motivo do incumprimento ou comparecer de imediato na DGRS.

Nunca foi possível notificar pessoalmente o recorrente, não obstante as diversas diligências encetadas nesse sentido, e o seu defensor nada veio dizer aos autos.

Foi junto ao processo o CRC actualizado do arguido e certidão da sentença condenatória proferida no processo sumário 393/22.9gbcld.

O Ministério Público promoveu que a pena aplicada ao arguido fosse declarada extinta pelo cumprimento e de seguida foi proferido o despacho recorrido.

Efectivamente, antes de ser proferido o despacho sob recurso o tribunal não determinou a audição do arguido, concretamente para o confrontar com aquele que veio a ser o fundamento da revogação da suspensão da prisão subsidiária .

Estatui o nº 2 do artigo 495º do C.P.P., sob a epígrafe «Falta de cumprimento das condições da suspensão» que :

«2 - O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.».

Esta norma foi interpretada de forma não unânime pela Jurisprudência :

- Há acórdãos que defendem que a audição pessoal do condenado apenas é obrigatória quando esteja em causa a revogação da suspensão da pena de prisão com fundamento na falta de cumprimento das condições de suspensão, tendo por base a epígrafe do artigo, «Falta de cumprimento das condições de suspensão», e a circunstância de o nº 2 do artigo 495º aludir à presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão.

Vão, neste sentido, por exemplo, os Acórdãos da Relação do Porto de 26/6/2013, processo 45/09.5ptvrl.P1, relatado por Eduarda Lobo; da Relação de Guimarães de 9/1/2017, processo 2/12.4pebrg.G2, relatado por Ausenda Gonçalves; e os desta Relação de Coimbra de 30/10/2013, processo 707/08.4pbavr.C1, relatado por Elisa Sales, de 2/4/2014, processo 883/07.3tacbr.C1, relatado por Isabel Valongo, de 4/11/2015, processo 9/05.8galsa.C1, relatado por Maria Pilar de Oliveira, e de 7/4/2016, processo 26/14.7gctnd.C1, relatado por Orlando Gonçalves, todos in www.dgsi.pt.

Deste modo, quando está em causa a possível revogação da suspensão da execução da pena de prisão com base na prática de crime durante o período da suspensão, o respeito pelo contraditório basta-se com a notificação do condenado para se pronunciar.

Em apoio desta tese, ver Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e comentários, 3ª edição, Quid Iuris, p. 1145-1146.

- Outras decisões existem que entendem ser absolutamente obrigatória a presença do arguido sempre que esteja em causa a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, quer o fundamento da revogação respeite à falta de cumprimento das condições da suspensão, quer consista na condenação de crime cometido durante o período da suspensão. Para tanto, fundam-se no disposto no artigo 61º, nº 1, al. b), do C.P.P. que consagra o direito de o arguido ser ouvido pelo tribunal sempre que este deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete.

Neste sentido, ver, a título de exemplo, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 6/2/2019, processo 221/14.9sbgrd-A.C1, relatado por Helena Bolieiro; e da Relação de Guimarães de 11/2/2019, processo 663/09.1japrt.G1, relatado por Mário Silva; igualmente acessíveis in www.dgsi.pt.

Fosse qual fosse a interpretação adoptada, temos que no caso em apreço o despacho recorrido foi proferido sem se ter concedido ao condenado a oportunidade para se pronunciar, seja presencialmente, seja por escrito. Na verdade, não houve qualquer notificação, sequer ao seu defensor, para o efeito.

Importa então averiguar qual a consequência jurídico-processual de tal omissão :

De acordo com o disposto no artigo 118º do C.P.P., que consagra o princípio da legalidade, «A violação ou a inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei».

Ora, o vício decorrente da omissão de observância do contraditório não vem previsto na lei como nulidade, nem insanável, nem dependente de arguição.

Nos casos em que não cominar a nulidade, o acto ilegal é meramente irregular – artigo 118º, nº 2, do C.P.P..

Dispõe o artigo 123º, nº 1, do mesmo código, que as irregularidades só determinam a invalidade dos actos quando tiverem sido arguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificadas para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado. Se não forem arguidas nos termos referidos, o acto produzirá todos os efeitos jurídicos como se fosse perfeito.

Analisando os autos, verificamos que, caso se tratasse de uma irregularidade – que não é, como trataremos infra -, a mesma havia sido tempestivamente arguida :

O despacho recorrido foi proferido em 1/5/2024, foi comunicado ao defensor do recorrente por carta de 3/5/2024, sendo que nesta data foi enviada carta com prova de depósito ao recorrente, a qual foi recebida por este em 7/5/2024, e recurso foi por ele interposto em 5/5/2024.

Porém, a não audição do arguido consubstancia a nulidade prevista no artigo 119º, al. c) do C.P.P.

Entre os direitos de defesa que o processo criminal deve assegurar, nos termos do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, conta-se «o direito do arguido “a ser ouvido”», ou seja, o acesso à possibilidade de efectivamente intervir no processo para discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões que o afetem.

A C.R.P. também consagra o princípio do contraditório no artigo 32º, nº 5.

Ora, a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão contende de forma clara com a liberdade do condenado !

  Assim, se o direito de audição se aplica a todos os actos que possam afectar a posição do arguido, por maioria de razão e por imposição constitucional, tal direito é imprescindível quando estão em causa decisão judiciais que, de forma directa, têm como consequência a privação da liberdade daquele .

Permitir-se que o arguido seja privado da possibilidade de ser ouvido e de se defender, previamente à decisão de revogação da suspensão da prisão, e que tal omissão de audição seja sanável ao fim de 3 dias, ofende o núcleo essencial do princípio do contraditório, tal como consagrado na nossa Constituição.

Deste modo, a não audição do condenado constitui a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. c) do C.P.P. : «ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência».

Entretanto, no passado dia 10/9/2024, foi publicado no Diário da República, 1ª série, o Acórdão do S.T.J. nº 11/2024, que fixou a seguinte Jurisprudência : «O despacho previsto no art. 495.º, n.º 2, do CPP, com fundamento no disposto no art. 56.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, deve ser precedido, salvo em caso de ausência por facto que lhe seja imputável, de audição presencial do condenado, nos termos dos arts. 495.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código de Processo Penal, constituindo a preterição injustificada de tal audição nulidade insanável cominada no art. 119.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal».

Aqui chegados, importa analisar se esta solução se aplica integralmente ao caso dos autos, dado não estarmos em face da revogação da suspensão da execução da pena de prisão, mas perante a revogação da suspensão da prisão subsidiária .

Isto, na medida em que aquela, ao contrário desta, tem a natureza de uma pena de substituição e, nessa medida, é uma pena autónoma .

  Como salienta André Lamas Leite, «As penas de substituição e figuras afins», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 30, nº 2, Maio-Agosto 2020, separata, p. 331, «as penas substitutivas surgem logo determinadas na decisão judicial e são de aplicação imediata, apenas sendo revogadas aberto um incidente processual de incumprimento».

A circunstância de poder vir a ser revogada não altera a sua natureza, de pena de substituição, de pena não privativa da liberdade . Aliás, o próprio legislador processual penal assim a qualificou ao integrar no título III do livro X, sob a epígrafe «Da execução das penas não privativas da liberdade», a execução da pena suspensa.

Já a prisão subsidiária não constitui uma pena de substituição, mas antes uma «sanção de constrangimento, visando, de facto, em último termo, constranger o condenado a pagar a multa» - cfr. Maria João Antunes, in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2 ª edição, p. 131.

No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 147; e Nuno Brandão, «Liberdade condicional e prisão (subsidiária) de curta duração», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 4, 2007, p. 673 e ss; e a Decisão Sumária de 6/11/2023 de Olga Maurício (Relação de Coimbra), processo 505/22.2txcbr-C.C1, in www.dgsi.pt, e jurisprudência aí citada.

Em suma, está sempre em causa a pena de multa, que foi aplicada na sentença, de tal modo que o condenado a pode pagar «a todo o tempo», evitando a execução da prisão subsidiária – cfr. o nº 2 do artigo 49º do C.P. e o artigo 491º-A do C.P.P..

Não obstante esta diferente natureza, entendemos que as razões determinantes da consideração como nulidade insanável da omissão de audição do condenado no caso da revogação da suspensão da execução da pena de prisão, se verificam no caso da revogação da suspensão da prisão subsidiária, pois em ambas as situações está em causa a efectiva privação da liberdade .

Ou seja, se é verdade que no caso da prisão subsidiária a sua execução pode ser evitada pelo pagamento da multa – o que não sucede com a execução da pena de prisão -, tal é irrelevante para o condenado que, por insuficiência económica, anteriormente viu ser-lhe suspensa a execução da prisão subsidiária, suspensão que agora lhe é revogada . 

Em suma, estamos em face da nulidade prevista no artigo 119º, al. c) do C.P.P., que invalida o despacho recorrido.

A procedência desta questão prejudica o conhecimento da outra questão acima enunciada .

V. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em:

a)         julgar verificada a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. c) do C.P.P. e anular o despacho datado de 1/5/2024, devendo o tribunal de primeira instância dar cumprimento à omitida audição do condenado;

c)         consequentemente, julgar prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada nos recursos.

Sem custas.

Coimbra, 9 de Outubro de 2024


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(Helena Lamas - relatora)



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(Maria José Matos)



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(Jorge Jacob)