Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE GONÇALVES | ||
Descritores: | SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA REVOGAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 01/16/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | CELORICO DA BEIRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 32º, 1 CRP, 51º,52º,54º CP , 495º CPP | ||
Sumário: | 1. Da análise do regime legal resulta que a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: suspensão simples; suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta); suspensão acompanhada de regime de prova. 2. A revisão de 2007 alterou o mencionado preceito, que passou a prever, apenas, a cumulação entre si dos deveres e regras de conduta, muito embora o artigo 54.º, relativo ao chamado «plano de reinserção social» em que assenta o regime de prova, admita a possibilidade de o tribunal impor deveres e regras de conduta. 3. Os deveres, visando a reparação do mal do crime, encontram-se previstos, de forma exemplificativa, no artigo 51.º, n.º 1, do C. P., enquanto as regras de conduta, tendo em vista a reintegração ou socialização do condenado, se encontram previstas, também a título exemplificativo, no artigo 52.º, do mesmo diploma. 4. Os deveres e as regras de conduta podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula rebus sic stantibus (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º2, do C. P, na redacção em vigor na data da decisão condenatória). 5. Qualquer interpretação do artigo 495, n.º2, do C.P.P., no sentido de não ser obrigatória a audição prévia do condenado antes de ser proferida decisão de revogação da suspensão da pena, com base na condenação por crime praticado no decurso da suspensão, será inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. 6. A revogação da suspensão da execução da pena de prisão, fundamentada na circunstância de o agente ter praticado, no decurso do período da suspensão, um novo crime pelo qual foi julgado e condenado, não envolve qualquer duplicação de julgamentos do agente pelos mesmos factos, não havendo violação princípio do non bis in idem. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1. No processo n.º 21/03.1GTGRD, do Tribunal Judicial de Celorico da Beira, A...foi condenado, por sentença de 14 de Fevereiro de 2003, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292.º, n.º1 e 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, na pena de oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos. 2. Por despacho de 9 de Julho de 2007, o tribunal a quo, invocando que o ora recorrente tinha sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez cometido no decurso do prazo de suspensão, decidiu revogar a suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada no âmbito deste processo, determinando o cumprimento da pena de prisão de oito meses 3. Inconformado, recorreu A...desse despacho, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1.ª Em 2003 - nestes autos - foi o arguido condenado a oito meses de prisão, pena suspensa por 4 anos. 2.ª Transitou a sentença. 3.ª Em 11 de Julho de 2006 transitou em julgado o Acórdão desta Relação que manteve a pena de 10 meses de prisão no processo 158/05.2 TBGRD - sentença da Guarda. 4.ª Esta pena foi agravada e não suspensa por ter o arguido para além do mais a pena suspensa nestes autos. 5.ª Ou seja: foi tida na devida conta esta condenação. 6.ª Cumprir a pena que havia sido suspensa representa mesmo uma violação do princípio “ne bis in idem”. 7.ª Voltar à cadeia é socialmente inaceitável, humanamente degradante e moralmente injusto, 8.ª Até porque o T.E.P. o considerou em condições de poder retomar a vida e o trabalho. 9.ªA solução legal passaria sempre por manter a suspensão da pena ou 10.ª Sem prescindir, realizar o cúmulo jurídico. 11.ª Existe violação do instituto da revogação da suspensão e, bem assim, do artigo 56° do C. Penal, 12.ª E má interpretação do regime do concurso de coimas - artigo 77° do C.P . 13.ª Além disso já não se verifica a necessidade da revogação da suspensão por ter acabado de cumprir uma pena de 10 meses de prisão. Revogando-se o douto despacho, mantendo-se a suspensão ou, sem prescindir, ser feito o cúmulo jurídico se fará JUSTIÇA.» 4. O recurso foi admitido e o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu, sustentando a sua improcedência. 5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá merecer provimento, concluindo da seguinte forma: «Face ao exposto, somos pois de parecer que o recurso do arguido deverá obter provimento, revogando-se assim o despacho que lhe revogou a suspensão da pena e determinou o cumprimento da mesma, o qual deverá ser substituído por outro que determine a audição pessoal do arguido, convocando-o para o efeito, bem assim possa eventualmente proceder a outras diligências mais precisas conducentes a determinar a sua exacta postura face à suspensão da pena que lhe foi concedida.» 6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. II – Fundamentação 1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Assim, as questões a decidir consistem em saber: se, com o fundamento do artigo 56.º, n.o1, alínea b) do Código Penal, estará ou não correcta a revogação da suspensão da execução da pena de prisão imposta ao recorrente; se o cumprimento de tal pena representa uma violação do princípio “non bis in idem”; se deverá ser realizado cúmulo jurídico de penas. 2. Os elementos relevantes para a decisão são os seguintes: 1) Por sentença de 14 de Fevereiro de 2003, transitada em julgado, o recorrente foi condenado, no processo n.º 21/03.1GTGRD, do Tribunal Judicial de Celorico da Beira, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292.º, n.º1 e 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, na pena de oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos. 2) Em 30 de Janeiro de 2006, no âmbito do Processo Abreviado n.º 158/05.2 GTGRD, que correu seus termos pelo Tribunal Judicial da Guarda, foi o recorrente condenado, por sentença que transitou em julgado, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, do Código Penal, na pena de dez meses de prisão, por factos ocorridos no dia 29 de Setembro de 2005. 3) Em 9 de Julho de 2007, o M.mo Juiz a quo proferiu o seguinte despacho: «Compulsado o CRC de fls. 79-83, bem como a certidão de fls. 61-74, constata-se que, no decurso do prazo de suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada nos presentes autos, o condenado cometeu e veio a ser condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, precisamente o mesmo tipo crime por cuja prática foi condenado nestes autos. Ora, é manifesto que, no caso vertente, a simples censura do facto e a mera ameaça da prisão não se mostraram suficientes nem adequadas para realizar as finalidades da punição. Assim sendo e perante a desnecessidade de operar contraditório em casos como o dos autos (cfr. fls. 77), ao abrigo do disposto no art. 56.°, n.º 1, al. b), do Código Penal, revogo a suspensão da execução da pena de prisão e, consequentemente, determino que o condenado cumpra a pena de 8 meses de prisão que lhe foi aplicada nestes autos. Notifique. Oficie como promovido e, após trânsito: a) no caso de o condenado já ter cumprido a pena de prisão que lhe foi aplicada no Processo referido a fis. 61, emita os competentes mandados de detenção e condução; b) no caso de não ter ainda cumprido, oficie ao Processo referido a fis. 61 para que, quando o arguido terminar o cumprimento da pena em que aí foi condenado, ser colocado à ordem destes autos, a fim de cumprir a pena de 8 meses de prisão » 4) Anteriormente, o M.mo Juiz havia proferido o seguinte despacho: «FIs.75: Salvo o devido respeito por entendimento diverso, é nosso entendimento que, diferentemente do que sucede quanto à infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta ou do plano individual de readaptação social, em que tal conduta poderá ser susceptível de justificação, aceitável, ou não, do condenado, nos casos em que o condenado comete novo crime doloso no decurso do prazo de suspensão - e, para mais, o mesmo tipo de crime -, a sua audição é perfeitamente inútil e, como tal, não há que operar qualquer contraditório. Assim sendo, solicite novo CRC do arguido e, uma vez junto, abra vista ao Ministério Público.» 5) No decurso do cumprimento da pena de 10 meses de prisão aplicada ao ora recorrente no processo mencionado supra sob o n.º2, cumprido o mínimo legal, foi-lhe concedida a liberdade condicional, em Abril de 2007, até ao termo da pena previsto para 16.08.2007 3. Decidindo 3.1. Enquadramento geral 3.1.1. Estando em causa, no presente recurso, a revogação de uma suspensão da execução de pena de prisão, mostra-se conveniente começar por tecer algumas considerações, ainda que breves, sobre o regime e natureza desta pena. O artigo 50.º, n.º1, do Código Penal (doravante designado de C.P.), na redacção vigente à data da condenação do recorrente, dispunha: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40.º, do C.P., a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos (não superior a 5 anos, actualmente, com a revisão do Código Penal operada pela Lei n.º59/2007, de 4 de Setembro), entendemos, com o apoio da melhor doutrina, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma (com elementos relevantes sobre a natureza de pena autónoma, de substituição, da pena suspensa, veja-se o Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proc. n.º 912/07-1, www.dgsi.pt). Já assim se devia entender face à versão originária do Código Penal de 1982, como se infere das discussões no seio da Comissão Revisora do Código Penal, em que a suspensão da execução da pena, sob a designação de sentença condicional ou condenação condicional (que no projecto podia assumir a modalidade de suspensão da determinação concreta da duração da prisão ou de suspensão da execução total da pena concretamente fixada) figurava como uma verdadeira pena, ao lado da prisão, da multa e do regime de prova, no art. 47.º do projecto de 1963, que continha o elenco das penas principais. No seio da Comissão, o Prof. Eduardo Correia, autor do projecto do Código Penal, teve a oportunidade de sustentar o carácter autónomo, de verdadeiras penas, da sentença condicional e do regime de prova, contrariando o entendimento de que seriam institutos especiais de execução da pena de prisão (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Separata do B.M.J. Tem particular interesse a discussão travada na 17:ª sessão, de 22 de Fevereiro de 1964, e bem assim na 22.ª sessão, de 10 de Março). O Prof. Figueiredo Dias, a propósito do projecto de 1963 e do Código Penal de 1982, recorrendo a algumas expressões que haviam sido utilizadas na discussão travada na Comissão Revisora, assinalou: «(…) as “novas” penas, diferentes da de prisão e da de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (art.º 72.º) -, que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou, ainda menos, “medidas de pura terapêutica social”. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena» (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 90). O mesmo autor, definindo a suspensão da execução da pena de prisão como “a mais importante das penas de substituição” (e estas são, genericamente, as que podem substituir qualquer das penas principais concretamente determinadas), chama a atenção para o facto de, segundo o entendimento dominante na doutrina portuguesa, as penas de substituição constituírem verdadeiras penas autónomas (cfr. ob. cit., p. 91 e p. 329). Nas suas palavras, «a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição» (cfr. ob. cit., p. 339). A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição». A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias. Assim, do ponto de vista dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas. 3.1.2. Partindo do pressuposto de que a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime a às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Por sua vez, constituía pressuposto formal de aplicação da suspensão da prisão, ao tempo da condenação do recorrente, que a medida desta não fosse superior a 3 anos (actualmente 5 anos). 3.1.3. O regime jurídico da pena de suspensão da execução da pena de prisão encontra-se previsto nos artigos 50.º a 57.º do C.P, e nos artigos 492.º a 495.º do C. P.Penal. Da análise do regime legal resulta que a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: suspensão simples; suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta); suspensão acompanhada de regime de prova. O n.º 3 do artigo 50.º, do C.P., previa a imposição cumulativa do regime de prova e dos deveres e regras de conduta. A revisão de 2007 alterou o mencionado preceito, que passou a prever, apenas, a cumulação entre si dos deveres e regras de conduta, muito embora o artigo 54.º, relativo ao chamado «plano de reinserção social» em que assenta o regime de prova, admita a possibilidade de o tribunal impor deveres e regras de conduta. Os deveres, visando a reparação do mal do crime, encontram-se previstos, de forma exemplificativa, no artigo 51.º, n.º 1, do C. P., enquanto as regras de conduta, tendo em vista a reintegração ou socialização do condenado, se encontram previstas, também a título exemplificativo, no artigo 52.º, do mesmo diploma. Os deveres e as regras de conduta podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula rebus sic stantibus (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º2, do C. P, na redacção em vigor na data da decisão condenatória). 3.1.4. No que concerne ao incumprimento das condições da suspensão, há que distinguir duas situações, em função das respectivas consequências. Quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de readaptação (que com a revisão de 2007 passou a ser designado de “plano de reinserção”), pode o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º do C. P., a saber: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão. Quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada (artigo 56.º, n.º 1, do C. Penal). A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença. Saliente-se que, conforme assinala o Prof. Figueiredo Dias, entre as condições da suspensão de execução da prisão, subjacente mesmo à chamada suspensão simples, avulta a de o condenado não cometer qualquer crime durante o período de suspensão. O cometimento de um crime no decurso do período de suspensão é a circunstância que mais claramente pode pôr em causa o juízo de prognose favorável suposto pela aplicação da pena de suspensão (ob. cit., p. 355). No que concerne ao crime cometido no decurso da suspensão, porque a lei não distingue, ele pode ser doloso, como pode ser negligente. Porém, nem mesmo o cometimento de crime desencadeia, de forma automática a revogação da suspensão, pois nos termos da alínea b), do n.º1, do aludido artigo 56.º, mesmo a condenação por um crime cometido no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão só implica a revogação da suspensão se tal facto infirmar, de modo definitivo, o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, se revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (neste sentido já se pronunciava Figueiredo Dias, na altura de jure condendo, ob. cit., p. 357). 3.1.5 Quando, decorrido o período da suspensão da execução da pena, não existam motivos que possam determinar a sua revogação, a pena é declarada extinta (artigo 57.º, n.º 1, do C. Penal). Se estiver pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação, ou estiver pendente incidente pelo incumprimento de deveres, regras de conduta ou do plano de readaptação, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e quando não haja lugar à revogação ou à prorrogação do período de suspensão (artigo 57.º, n.º 2, do C. Penal, na redacção em vigor na data da sentença condenatória). 3.2. Feito este excurso pela natureza e regime jurídico da pena de suspensão da execução da pena de prisão, há que analisar as questões a decidir no recurso. 3.2.1. No quadro das conclusões apresentadas, caracterizadas por quiçá excessiva vagueza e generalidade, é colocada a questão da violação do princípio non bis in idem. Se bem entendemos a questão colocada, o recorrente pretende que a circunstância de, na determinação da pena concreta que lhe foi imposta no processo do Tribunal Judicial da Guarda, ter sido ponderada a sua conduta anterior, designadamente a condenação imposta no processo n.º 21/03.1GTGRD, do Tribunal Judicial de Celorico da Beira, impõe que não lhe possa ser revogada a suspensão da execução da pena imposta neste processo, com base no cometimento do crime julgado naquele, sob pena de violação do non bis in idem. O artigo 29.º, n.º5, da Constituição da República, confere dignidade constitucional ao princípio clássico non bis in idem, com a seguinte formulação: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, este princípio comporta duas dimensões: a de direito subjectivo fundamental, garantindo ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, com a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores desse direito; a de princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva daquele direito fundamental), que obriga o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos do mesmo facto (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 497). Seguindo os mesmos autores, a Constituição da República proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pelo mesmo facto pretende tanto evitar a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime. A expressão “crime” utilizada no n.º5 do artigo 29.º da Constituição da República deve ser entendida «como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar» (Frederico Isasca, A alteração substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, Almedina, 1999, p. 221, nota). Ora, os factos pelos quais o recorrente foi julgado e condenado nos dois processos em causa são distintos – inequivocamente distintos, enquanto comportamentos espácio-temporalmente delimitados -, ainda que subsumíveis à mesma norma incriminadora. Os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, que possam constituir elementos relevantes para a determinação da medida da culpa e das exigências de prevenção, em particular de prevenção especial, integram o conjunto dos factores de medida da pena que o julgador deverá ponderar na árdua tarefa de determinação da pena concreta. A consideração da conduta anterior ao facto, designadamente quando essa conduta se traduziu em condenação do agente pela prática de um crime, pode ser relevante na determinação da pena enquanto índice de uma culpa mais grave - por desatenção à advertência contida na condenação anterior – e/ou de exigências acrescidas de prevenção. A ponderação da existência de condenação anterior do agente como factor de determinação da pena a aplicar pela prática posterior de um novo crime não significa que o agente seja julgado e penalizado duplamente pelos mesmos factos e, por conseguinte, em nada contende com o princípio constitucional do non bis in idem. Do mesmo modo, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, fundamentada na circunstância de o agente ter praticado, no decurso do período da suspensão, um novo crime pelo qual foi julgado e condenado, não envolve qualquer duplicação de julgamentos do agente pelos mesmos factos. Assim, temos como seguro que o recorrente carece de razão quando invoca a seu favor o princípio do non bis in idem. 3.2.2. Pretende o recorrente que o tribunal a quo, em vez de revogar a suspensão da execução da pena, a deveria manter ou realizar o cúmulo jurídico. Desde já podemos adiantar ser completamente desprovida de fundamento legal a alternativa colocada pelo recorrente. É pressuposto do concurso de penas, ainda que conhecido supervenientemente, que alguém tenha praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles (artigo 77.º do C.P.). Por seu lado, a revogação da suspensão da execução da pena com base no cometimento de crime, supõe que este haja sido praticado no decurso do período de suspensão, ou seja, em momento necessariamente posterior ao trânsito em julgado da condenação em que foi imposta a pena suspensa. É, assim, inequívoco que não há lugar a cúmulo jurídico de penas quando o agente, condenado anteriormente em suspensão da execução da pena de prisão, venha a sofrer condenação posterior por crime cometido no decurso da suspensão. Também, nesta parte, improcede a argumentação do recorrente. 3.2.3.Chegamos, agora, ao cerne da questão – devia ou não ser revogada a suspensão -, em que ganham relevo as considerações supra aduzidas a propósito da natureza e do regime da pena suspensa. Alega o recorrente no sentido da desnecessidade da revogação da suspensão, invocando ser socialmente inaceitável o seu regresso à cadeia, humanamente degradante e moralmente justo, até porque o T.E.P. o considerou em condições de poder retomar a vida e o trabalho. Vejamos: 3.2.3.1. Prescreve o artigo 56.º, n.º1, do C.P., na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro: «1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.» Como se disse supra, o cometimento de crime no decurso do período de suspensão não desencadeia, como causa necessária e automática, a revogação da suspensão. O próprio Prof. Figueiredo Dias, no debate travado no seio da Comissão Revisora do Código Penal, teve a oportunidade de salientar, face a reparos que foram dirigidos à alegada falta de clareza do texto que então se encontrava em discussão, que a questão da revogação centrava-se no especial impacto do crime na obtenção das finalidades que estavam na base da suspensão, tendo esclarecido que o conteúdo da parte final da alínea b) estabelece uma condição comum às duas alínea a) e b) e que, através da expressão “e revelar”, se assinala o carácter não automático dos elementos referidos nas alíneas (cfr. Actas n.º 6,8 e 41, das sessões de 3 de Abril de 1989, 17 de Abril de 1989 e 22 de Outubro de 1990, respectivamente, Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993). Assim, a condenação por crime cometido no decurso da suspensão não consente a revogação da suspensão da execução da pena de prisão como mero efeito automático, antes exigindo a mediação de um juízo fundamentado de concreta demonstração de que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. No seu propósito político-criminal de combater a pena de prisão, o legislador quis afastar qualquer automatismo formal na revogação da suspensão, subordinando-a a uma cláusula de ultima ratio, como medida extrema para lograr a consecução das finalidades da punição, em que avulta o desiderato de ressocialização do delinquente. O despacho recorrido, alicerçando-se, unicamente, na constatação de que o recorrente cometeu no decurso da suspensão e veio a ser condenado por um crime de condução em estado de embriaguez, para daí inferir, de modo imediatamente conclusivo e sem ponderação de qualquer outro elemento, no sentido da não realização das finalidades da punição, caracteriza-se, a nosso ver, pelo seu formal automatismo na revogação da suspensão. 3.2.3.2. O M.mo Juiz a quo entendeu que não havia que proceder à prévia audição do condenado – que seria, a seu ver, perfeitamente inútil -, o que reforça a inferência quanto ao carácter automático da revogação da suspensão a que procedeu. É sabido que a questão que consiste em saber se é obrigatória a audição prévia do condenado para que se proceda à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nas situações em que a revogação decorra da condenação pela prática de crime cometido no decurso da suspensão, não tem obtido resposta unânime da jurisprudência. Há quem entenda que a o n.º2 do artigo 495.º do C.P.P. – segundo o qual «o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado» (redacção anterior à revisão de 2007) – não se aplica aos casos em que a causa que pode levar à revogação da suspensão é a condenação por crime cometido no período da suspensão. Estriba-se este entendimento na inserção sistemática do referido n.º2 entre o n.º1 do mesmo artigo que prevê a situação do condenado que incumpre os «deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos» e o n.º3 que, separadamente, prevê a situação do condenado que é alvo de nova condenação «pela prática de qualquer crime cometido durante o período de suspensão». Assim, sustenta-se que, havendo condenação por crime praticado no decurso da suspensão, o tribunal decidirá com base, tão-somente, no teor da sentença condenatória, apenas se impondo a audição prévia do arguido quando estiver em causa o fundamento da alínea a) do n.º 1, do artigo 56.º do C.P. e não também quando o fundamento seja o da alínea b) (neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto, de 8.02.2006, Proc. n.º 0516093, www.dgsi.pt). Diversamente, outros perfilham o entendimento de que é obrigatória a audição prévia do condenado, referida no n.º2 do artigo 495.º do C.P.P., mesmo nos casos em que a revogação tenha fundamento na alínea b) do n.º1 do artigo 56.º, do C.Penal (Acórdãos: da Relação de Coimbra, de 30.04.2003, C.J., Ano, XXVIII, II, p. 50; da Relação de Coimbra, de 7.05.2003, Proc. n.º 612/03; da Relação de Évora, de 6.07.2004, Proc. n.º 1270/04-1; da Relação do Porto, de 31.05.2006, Proc. n.º 0640033; da Relação de Lisboa, de 1.03.2005, C.J., Ano XXX, II, p. 123. Os referidos apenas pela data e n.º podem ser consultados em www.dgsi.pt). Discutem-se, igualmente, as consequências da preterição da audição prévia – audição que, a nova redacção do n.º2 do artigo 495.º, inculca, a nosso ver, com clareza, dever ser pessoal e presencial - , nos casos de revogação da suspensão, que diversa jurisprudência enquadra como nulidade insanável e, por conseguinte, de conhecimento oficioso pelo tribunal, nos termos do disposto no artigo 119.º, alínea c), do C.P.Penal (assim decidiu a Relação de Évora, em Acórdão de 18.01.2005, Proc. n.º 1610/04-1; a mesma Relação, em Acórdão de 22.02.2005, C.J., Ano XXX, I, p. 267; a Relação de Lisboa, em Acórdão de 1.03.2005, C.J., Ano XXX, II, p. 123; a Relação de Lisboa, em Acórdão de 10.02.2004, Proc. n.º 946/2004-5, encontrando-se os acórdãos referidos apenas pela data e n.º disponíveis para consulta em www.dgsi.pt). Perfilhamos este último entendimento, quanto à obrigatoriedade da audição e à consequência da sua preterição, pelas razões que passamos a expor. Como já se disse, mesmo a suspensão simples encontra-se sujeita a uma condição que, a não ser cumprida, pode eventualmente desencadear a sua revogação: a condição de o condenado não cometer qualquer crime durante o período de suspensão. Conforme podemos ler no Acórdão desta Relação, de 30.04.2003 (C.J., Ano XXVIII, II, p. 50), um dos direitos de defesa, decorrente do próprio Estado de direito democrático, traduz-se na observância do princípio ou direito de audiência, «que implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção “carismática” do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem em situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma». Outro dos direitos de defesa traduz-se na observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32.º, n.º5, da Constituição da República, que, nos termos do citado Acórdão, se consubstancia «no direito/dever do juiz de ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais, em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os actos susceptíveis de afectarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica». O Tribunal Constitucional, a propósito do princípio do contraditório, teceu as seguintes considerações no seu Acórdão n.º 499/97 (Diário da República, 2.ª série, n.º 244, de 21 de Outubro de 1997): «Deste modo, o contraditório surge como regra orientadora da produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa, antes de mais, assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, subordinando todas as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam pessoalmente afectados (…) como emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática. É, assim, o princípio do contraditório expressão do Estado de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa.» O mesmo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 298/2005 (Diário da República, 2.ª série, n.º144, de 28 de Julho de 2005), a propósito da revogação de perdão de pena ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio – preceito que estabelecia que o perdão a que se referia esse diploma legal era concedido sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa nos 3 anos subsequentes à data da entrada em vigor da lei - , julgou inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes do mencionado artigo 4.º e do artigo 61.º, n.º1, alínea b), do C.P.P., interpretadas no sentido de não ser obrigatória a audição do arguido antes de ser proferida decisão de revogação do perdão de pena de que beneficiara. Nessa hipótese, também uma primeira leitura dos normativos em questão poderia inculcar que a revogação do perdão seria automática – operatividade ope legis -, apreciada unicamente face às condenações verificadas, dispensando a audição prévia do condenado, entendimento que o Tribunal Constitucional rejeitou. No caso da suspensão da execução da pena, atenta a natureza verdadeiramente autónoma da pena suspensa (ainda que se considere pena de substituição), a sua revogação traduz-se sempre no cumprimento pelo condenado de outra pena – a pena de prisão -, conquanto esta já estivesse determinada, no seu quantum de intimidação, na sentença condenatória. Afigura-se-nos que seria gravemente atentatório das garantias de defesa que a revogação da suspensão se pudesse processar completamente à revelia do condenado, ou seja, sem que este se pudesse pronunciar nos termos do artigo 495.º. n.2, do C.P.P., situação que constitui a nulidade insanável cominada no artigo 119.º, alínea c), do C.P.Penal. Assim, tendo como assente que a revogação da suspensão da execução da pena de prisão nunca é uma consequência automática da conduta do condenado e sempre depende da constatação de que as finalidades da punição se encontram comprometidas, a fazer mediante as diversas indagações que se julguem pertinentes – no pressuposto de que a prisão constitui sempre ultima ratio -, conclui-se que qualquer interpretação do artigo 495, n.º2, do C.P.P., no sentido de não ser obrigatória a audição prévia do condenado antes de ser proferida decisão de revogação da suspensão da pena, com base na condenação por crime praticado no decurso da suspensão, será inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. III- Dispositivo Por todo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar nulo o despacho recorrido e determinar que, ouvido o condenado e realizadas as diligências que se venham a revelar úteis, se decida em conformidade, com a prolação de nova decisão sobre a revogação, ou não, da suspensão da execução da pena. Sem custas. |