Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1744/20.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: FACTOS COMPLEMENTARES NÃO ALEGADOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MANOBRA CAUSAL DO ACIDENTE
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 09/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 2, 12.º, N.º 2, 24.º, N.º 1, 25.º, N.º 1, ALÍNEA C), 31.º, N.º 1, ALÍNEA A), 35.º, N.º 1, DO CÓDIGO DA ESTRADA, 483.º, N.º 1, E 487.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada se os elementos probatórios carreados para os autos o impuserem de forma inequívoca.

II – Determinada matéria, não alegada pelos litigantes, que se inclui na categoria de factos complementares, não pode ser incluída no acervo factual provado se as partes não tiverem tido a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma.

III – Um condutor médio, no exercício de uma actividade que comporta riscos evidentes (condução de veículos automóveis), deve actuar de forma prudente ou cautelosa, avaliando, em cada momento, todo o circunstancialismo envolvente, de forma a adequar a condução a esse conjunto de circunstâncias e evitar, de acordo com a avaliação que faz das mesmas, sinistros rodoviários.

IV – Deve imputar-se ao lesado a responsabilidade pela ocorrência de um acidente de viação quando a manobra que o mesmo efectuou está na origem do despiste de uma viatura por si conduzida (manobra causal do acidente).


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

AA, solteiro, contribuinte fiscal n.º ...44, titular do cartão do cidadão n.º ...90 ZX6, beneficiário da segurança social n.º ...97, com residência no Largo ..., ... ...,

instaurou no Juízo Central Cível de Leiria acção comum contra

A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., titular do número de identificação e de pessoa coletiva ...09, com sede social na Rua ..., ...,

pedindo, com base no acidente de viação melhor descrito na petição inicial, que a ré seja condenada a pagar ao autor:

a) A quantia global de 12.644,60 € (doze mil, seiscentos e quarenta e quatro euros e sessenta cêntimos) a título de danos de natureza patrimonial sofridos pelo autor, acrescida das quantias vincendas devidas a título de privação de uso do veículo do autor., todas estas acrescidas dos competentes juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento;    

b) Uma quantia não inferior a 80.000,00 € (oitenta mil euros), devida a título de indemnização pelo dano biológico (défice permanente da integridade física e psíquica), acrescida dos juros de mora deste a citação até efetivo e integral pagamento;

c) Uma quantia não inferior a 50.000,00 € (cinquenta mil euros) para compensação/indemnização de todos os demais danos de natureza não patrimonial (dano estético, quantum doloris, prejuízo da afirmação pessoal, dano sexual…), acrescida dos juros de mora a contar desde a data da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento.


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A ré contestou, impugnando, de forma motivada, uma parte substancial da factualidade alegada pelo autor, quer no que diz respeito à responsabilidade pelo sinistro que se discute nos autos, quer no que se refere aos danos daí resultantes.


***

Em 9/10/2020, foi proferido despacho que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, após o que se procedeu à realização de perícia médico-legal, com vista a apurar as lesões/sequelas que o autor sofreu em consequência do acidente em que esteve envolvido.

***

Após ter sido realizada audiência final, em 6/12/2023, foi proferida sentença, cujo dispositivo apresenta o seguinte teor:

1. Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condena-se a Ré A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor AA a quantia de €7.523,04 (sete mil, quinhentos e vinte e três euros e quatro cêntimos) [correspondentes a 70% dos danos patrimoniais sofridos de €10.747,20 (dez mil, setecentos e quarenta e sete euros e vinte cêntimos)], a que acrescem ainda as quantias vincendas devidas a título de privação de uso do veículo do Autor à razão diária de €14,00 (= 70% de €20,00), contadas desde a entrada da P.I. até efectivo e integral pagamento de toda a indemnização, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

3. Condena-se a Ré A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor AA a quantia de €21.000,00 (vinte e um mil euros) [correspondentes a 70% da quantia de €30.000,00 (trinta mil euros)], a título de dano biológico na vertente patrimonial, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

4. Condena-se a Ré A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor AA a quantia de €28.000,00 (vinte e oito mil euros) [correspondentes a 70% de €40.000,00 (quarenta mil euros)], para compensar o Autor de todos os referidos danos não patrimoniais, que já incluem a vertente não patrimonial do dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.

5. Absolve-se a Ré do restante pedido. (…)”.


***

Não se conformando com a decisão proferida, a ré interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

(…).


***

O autor contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

(…).


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Questões objecto do recurso:

- Alteração da matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal recorrido;   

- Enquadramento jurídico da causa, face à factualidade que vier a ser julgada relevante.


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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

1. No dia 5 de agosto de 2019, pelas 20:30 horas, o A. conduzia o veículo da marca Renault, modelo ..., de matrícula ..-..-VD, de sua propriedade, na Estrada Municipal ...17, no sentido ... – ....

2. Naquela circunstância, o veículo ..-..-VD circulava a uma velocidade instantânea não apurada, não inferior a 60 km/h.        

3. No momento em que o Autor passa a curva à direita junto ao ilhéu que permite a saída da EM ...17 e a entrada na via que permite o acesso às localidades vizinhas, encontrava-se em movimento o veículo de marca Peugeot, modelo ..., de cor Branca, e de matrícula ..-..-RA, proveniente de uma moradia, a entrar perpendicularmente na via, começando a atravessar a via onde vinha a circular o veículo ..-..-VD, porque pretendia dirigir-se para ..., passando a circular em sentido contrário ao do Autor.

4. Nesse mesmo instante, apercebendo-se disso, para evitar o embate com o veículo de matrícula RA, o Autor desviou a sua marcha para a via de circulação contrária, transpondo o eixo da faixa de rodagem, passando a linha longitudinal contínua.

5. No mesmo instante, a viatura de matrícula RA, que continuou a avançar, passou ainda a ocupar parte da via destinada ao trânsito em sentido contrário, na qual o veículo ..-..-VD tinha passado a circular.

6. Para evitar o embate no RA, o veículo ..-..-VD desviou-se ainda mais para a sua esquerda e passou a ocupar uma parte da berma da via contrária, despistou-se e foi embater nos eucaliptos que ladeavam aquela via.     

7. O local em que o Autor passou a circular na faixa contrária e se veio a despistar é uma estrada composta por duas vias de trânsito, separadas entre si por linha longitudinal contínua que constitui o eixo da faixa de rodagem, ladeada por duas moradias unifamiliares e eucaliptos do lado direito ao que animava o A. e, no lado esquerdo, só por eucaliptos.

8. Existindo um ilhéu, próximo do local do acidente, na margem esquerda da faixa de rodagem que permite aos veículos que circulam na EM ...17, sair desta em direção às localidades de ..., ..., ..., ... e

9. O Autor, no momento do acidente, conduzia com uma taxa de alcoolemia de 1,13 g/l.

10. O local onde ocorreu o acidente uma zona urbana.

11. No sentido de trânsito do veículo do Autor, antes do local do acidente a via configura uma curva à direita, a qual dista aproximadamente 70 metros do local do embate.

12. O piso encontrava-se seco e limpo.

13. Do evento resultou traumatismo crânio encefálico com perda momentânea dos sentidos, recuperados ainda no local, traumatismo da cabeça (escoriações), da coluna lombar e do membro superior esquerdo (escoriações).

14. Na sequência do evento o Autor foi assistido no local pelos bombeiros e VMER, tendo sido transportado, em plano duro, para o serviço de urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), onde foi observado.

15. O Autor realizou numerosos exames complementares de diagnóstico, incluindo TAC cranioencefálica e da coluna, que revelaram focos de hemorragia subaracnoideia ao nível do encéfalo e fratura do corpo vertebral de L3.

16. O Autor ficou internado no serviço de ortopedia, vindo a ser operado no dia 27/08/2019, para fixação transpedicular L2-L3-L4, manteve internamento até ao dia 02/09/2019, tendo tido alta para o domicílio com indicação de uso de dorsolombostato, que manteve até fevereiro de 2020.          

17. No dia 1 de março de 2020 o Autor retomou as funções de Guarda.

18. À data do sinistro o autor tinha 30 anos, exercia funções de Guarda da Guarda Nacional Republicana e auferia a remuneração mensal líquida no valor de € 1.129,65 (mil, cento e vinte e nove euros e sessenta e cinco cêntimos).

19. O A. é dono e legítimo proprietário da viatura da marca Renault, modelo ..., de matrícula ..-..-VD, e com o quadro n.º VF1...10.

20. Em consequência do acidente o Autor ficou impedido de exercer a sua atividade profissional de Guarda Nacional Republicano desde o dia 5 de agosto de 2019 até ao dia 1 de março de 2020, data em que regressou ao serviço.

21. Circunstância que lhe causou perda de retribuição na quantia global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros), tendo em consideração que apenas voltou a receber o salário e demais prestações sem descontos nos dois meses seguintes ao regresso ao serviço, ou seja, em maio de 2020.

22. No período de convalescença o A. gastou a quantia de, pelo menos, € 20,78 (vinte euros e setenta e oito cêntimos), na aquisição de mediação clinicamente prescrita, designadamente, por conta da aquisição de Zaldiar Efe 37,5/325 mg X 20 cmp. eferv; Miodia 30 mg X 30 cáps lib prol; Metamizol Cinfa MG 575 mg X 20 Cáps.

23. Suportou, ainda, despesas na quantia global de € 22,50 (vinte e dois euros e cinquenta cêntimos) por conta das várias consultas médicas a que foi sujeito em 2 de outubro de 2019, 4 de novembro de 2019, 2 de dezembro de 2019, 2 de janeiro de 2020 e 31 de janeiro de 2020.

24. Valores a que deverão acrescer as despesas de deslocação suportadas pelo A. em virtude de duas consultas em que compareceu que teve no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra no dia 6 de novembro de 2019 e no dia 5 de fevereiro de 2020.

25. Consultas que o A. teve de fazer em viatura própria, percorrendo uma distância de 53km da sua residência até ao CHUC, ou seja, 212 (duzentos e doze quilómetros no total), devendo, por conseguinte, ser indemnizado pela R. na quantia de € 76,32 (setenta e seis euros e trinta e seis cêntimos). [212X0,36€]

26. O veículo do A. ficou destruído, considerando-se perda total, com o valor venal de €2.225,00 e o salvado €190,00.

27. Desde o dia do sinistro, ou seja, do dia 5 de agosto de 2009, que o A. e seu agregado, se encontram impedidos de usar, fruir de beneficiar das utilidades que o veículo VD lhes conferia.

28. Desde o momento do acidente até ao presente não foi disponibilizado ao A. veículo de substituição.

29. O Autor entrou no Serviço de Urgência do CHUC às 22:45 horas de 05/08/2019, na sequência de acidente de viação (colisão frontal). Negava perda de consciência ou amnésia para a o vento. Mencionava ter sido retirado da viatura e imobilizado por equipa de emergência. Muito queixoso a nível lombar. Referia TCE (com cefaleia). Relatava ingestão de bebidas alcoólicas.

30. O Autor estava consciente, orientado, queixoso; hemodinamicamente estável; sem alterações neurológicas; auscultação cardiopulmonar sem alterações; sem dor à compressão torácica; sem enfisema subcutâneo; sem crepitação óssea; sem dor à palpação abdominal e à compressão da bacia; dor à palpação lombar; movimentava membros sem dificuldade; sem perda de sensibilidade.

31. O Autor realizou exames radiográficos da bacia, tórax, coluna (cervical, dorsal, lombar e sagrada), ecografias abdominal e renal, análises com alcoolémia, TAC cranioencefálica e analgesia.

32. Ecografia – sem lesões traumáticas do fígado, baço, pâncreas ou rins; vesícula biliar e bexiga sem alterações relevantes; sem derrames peritoneal, pleural ou pericárdico.

33. Radiografia do tórax – sem alterações.

34. TAC cranioencefálica – focos hemorrágicos contusionais frontais inferiormente, à esquerda. Duvidosa hemorragia subaracnoideia em sulcos frontais inferiores, à direita. Sem outras alterações.

35. Observação por Neurocirurgia – com colar cervical; dor referida aos membros inferiores; sem cefaleia, náuseas ou vómitos; sem alterações neurológicas. Indicação para repetir TAC no dia seguinte.

36. Observação por Ortopedia – dor à palpação local da coluna lombar; sem défices sensitivos ou motores. Radiografia – aparente fratura de L3. Requisitada TAC para caraterização da lesão. Analgesia.      

37. TAC lombar – múltiplas fraturas envolvendo o corpo vertebral de L3, com atingimento do muro posterior e com recuo para o canal vertebral condicionando marcada redução do seu diâmetro ântero-posterior e compressão do saco dural; fratura do arco posterior adjacente à base da apófise espinhosa com extensão à lâmina esquerda; fratura das apófises transversas esquerdas de L1, L2 e L3, com desalinhamento ósseo. Achatamento da plataforma vertebral superior do corpo de D12, sem traços de fratura identificáveis, eventualmente em relação com fratura antiga, não se podendo excluir em definitivo que se possa tratar de fratura recente.

38. Depressão da plataforma vertebral superior de D11, com caraterísticas sobreponíveis às de D12 (embora menos acentuada).

39. Observação por Neurocirurgia, no dia seguinte ao do acidente – sem alterações neurológicas. TAC cranioencefálica de controlo – sem sinais de ressangramento (sobreponível ao anterior). Sem necessidade de cuidados por Neurocirurgia. Alta da Neurocirurgia.

40. O Autor foi internado no Serviço de Ortopedia A, para orientação terapêutica.          

41. Relatório de alta do serviço de ortopedia do CHUC:

a. Internamento – de 06/08/2019 a 02/09/2019. Diagnóstico – fratura do corpo vertebral de L3. Tratamento – tratamento médico de suporte e cirúrgico (fixação transpedicular percutânea L2-L3-L4 com sistema Viper, a 27/08/2019). Orientação – cuidados de penso em dias alternados; retirar agrafos ao 14º dia de pós-operatório no centro de saúde; levante e marcha com dorsolombostato de acordo com ensinos na enfermaria. Consulta externa de Ortopedia em 2 meses, fazendo radiografia antes da consulta.

b. Ofício do Gabinete de Resposta a Relatórios Clínicos, datado de 02/02/2021: “(…) AA (….) Utente acompanhado desde 06/08/2019, com entrada pela Urgência a 5, vítima de acidente de viação (despiste), com TCE por embate frontal, apresentando dor à palpação local da coluna lombar, sem défices neuromusculares. Após estudo (TC lombar: múltiplas fraturas do corpo vertebral de L3, com atingimento do muro posterior e recuo para o canal vertebral, condicionando marcada redução do seu diâmetro ântero-posterior e compressão do saco dural; fratura do arco posterior adjacente à base da apófise espinhosa, com extensão à lâmina esquerda; fratura da apófise transversa esquerda de L1, L2 e L3, com desalinhamento ósseo; achatamento da plataforma vertebral superior do corpo de D12, sem traços de fratura, com relação eventual com fratura antiga e/ou fratura compressiva recente; discreta depressão da plataforma vertebral superior de D11, de caraterísticas sobreponíveis a D12, embora menos acentuadas). Internado, foi operado a 27/08, por fratura explosiva, tipo A3, do corpo vertebral de L3 – fixação transpedicular percutânea L2-L3-L4 com sistema minimamente invasivo Viper, tendo saído com alta clínica em 02/09/2019, usando dorsolombostato.

42. Observado em consultas de post operatório a partir de 06/11/2019, regista-se que fazia marcha autónoma, sem dores, indicando-se “desmame” do dorsolombostato. No seguimento a situação mantinha-se sem alterações, com boa evolução clínica e radiológica, tendo sido feita proposta para extração de material na última consulta, datada de 17/09/2020.”.

43. Baixa por doença direta (com internamento) entre 06/08/2019 e 02/09/2019. Baixa (sem internamento) entre 03/09/2019 e 29/02/2020.

44. O Autor foi a consultas de ortopedia do Hospital Distrital da Figueira da Foz (HDFF) nos dias 01/04/2021, 25/05/2021 e 22/06/2021 e em consulta de anestesiologia do mesmo hospital no dia 15/04/2021.

45. Internamento no serviço de Ortopedia de ambulatório do HDFF no dia 29/04/2021 para intervenção cirúrgica.

46. Certificados de Incapacidade Temporária para o Trabalho Habitual passados pelo Hospital Distrital da Figueira da Foz de 29/04/2021 a 24/06/2021.

47. Dos registos da consulta de Ortopedia do HDFF do dia 22/6/2021 resulta “Doente operado a coluna lombar por fratura de L3 (CHUC). Fixação pedicular percutânea L2-L3-L4 com sistema Viper (Fratura tipo A1 de L3). Clinicamente bem e sem sinais de alarme. Deve evitar esforço físico excessivo durante mais de 2 meses.”.         

48. O Autor apresenta as seguintes sequelas:

a. − Pescoço: sem limitações das mobilidades; sem evidência de contraturas da musculatura paravertebral bilateralmente; sem referência a dor à palpação dos processos espinhosos.

b. − Ráquis e Membros inferiores: 4 cicatrizes operatórias rosadas, longitudinais, paravertebrais lombares (as duas mais superiores de medindo entre 2cm e 2,5cm de comprimento e as inferiores entre 4cm e 4,5cm de comprimento); contractura paravertebral bilateral, muito mais acentuada à direita, condicionando ligeira limitação das mobilidades: flexão anterior limitada (índice de Schober 14/15); extensão, rotação e inclinação lateral direita conservadas; rotação e inclinação lateral esquerdas ligeiramente limitadas; mobilidades das articulações coxofemorais aparentemente conservadas e simétricas, com sinais de Laségue e Bragard negativos.

49. Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano.

50. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 22/08/2021, tendo em conta o tipo de lesões resultantes, o tipo de tratamentos efetuados e as indicações expressas na ultima consulta de ortopedia de que temos registo.

51. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, os seguintes:

a. - Défice Funcional Temporário (corresponde ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, excluindo-se aqui a repercussão na atividade profissional).

b. − Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), que se terá situado entre 05/08/2019 e 02/09/2019, e entre 29/04/2021 e 30/04/2021 sendo assim fixável num período total de 31 dias, correspondendo aos períodos de internamento hospitalar.

c. − Défice Funcional Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), que se terá situado entre 03/09/2019 e 28/04/2021 e entre 01/05/2021 e 22/08/2021, sendo assim fixável num período total de 718 dias, correspondendo ao período que decorreu entre os internamentos hospitalar e a data da consolidação médico-legal.           

d. - Repercussão Temporária na Atividade Profissional (correspondendo ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual).

e. − Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), que se terá situado entre 05/08/2019 e 29/02/2020 e entre 29/04/2021 e 26/04/2021, sendo assim fixável num período total de 266 dias, nos quais o examinando se encontrou de baixa médica.

f. − Repercussão Temporária na Actividade Profissional Parcial (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Parcial, correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas actividades, ainda que com limitações), que se terá situado entre 01/03/2020 e 28/04/2021 e entre 25/06/2021 e 22/08/2021, sendo assim fixável num período total de 483 dias, correspondendo aos restantes períodos até à data de consolidação médico-legal.

g. - Quantum doloris (corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões); fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo, os tratamentos efetuados e o sofrimento psicológico vivenciado pelo examinando.

52. 4. No âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes:

a. − Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica (refere-se à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, e sendo independente das atividades profissionais, corresponde ao dano que vinha sendo tradicionalmente designado por Incapacidade Permanente Geral - nomeadamente no Anexo II do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro, e referido na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, como dano biológico). Este dano é avaliado relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos), considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida) e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, tendo como elemento indicativo a referência à Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil (Anexo II do Dec-Lei 352/07, de 23/10). Assim, consideraram-se os danos permanentes constantes da tabela seguinte:          

b. − Rigidez da coluna lombar, pós fratura do corpo de L3, implicando terapêutica ocasional, enquadrável em Md0905.

53. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 29/02/2020.

54. Défice Funcional Temporário Total fixável num período total de 31 dias.

55. Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período total de 718 dias.

56. Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável num período total de 266 dias.      

57. Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável num período total de 483 dias.

58. Quantum Doloris fixável no grau 4/7.

59. Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 5 pontos.

60. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

61. Dano Estético Permanente fixável no grau 1/7.

62. Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7.

63. Antes do acidente o A. era uma pessoa ativa, sadia, bem-disposta, e gozava de boa saúde, ao ponto de realizar atividades desportivas quase todos os dias, designadamente, correr, trail, bicicleta e natação.

64. Viu todas estas capacidades afectadas, deixando de praticar desporto do mesmo modo que antes.

65. Sendo caçador, além de não poder usufruir da prática na época venatória 2019/2020, teve, ainda assim, de pagar as respetivas licenças e os seguros dos quais, por via da sua condição, não pôde beneficiar.

66. Tinha um pequeno número de ovelhas das quais não pôde tratar, tal como dos seus cães, sendo obrigado a pedir auxilio ao seu irmão para que os animais não morressem por falta de cuidados básicos.

67. Frequentemente, nos tempos livres, manobrava um trator amanhando as terras, o que fazia além do mais, por prazer.

68. Circunstâncias que o desanimaram e angustiaram.

69. Sentiu durante todo o período de convalescença, e ainda sente, dores lombares.

70. Poucos dias antes do sinistro, o autor tomou conhecimento da feliz notícia de que ia ser pai.

71. Recebeu a novidade com entusiamo já que era uma realidade há muito desejada quer pelo autor, quer pela sua companheira.

72. Sucede que, por causa do acidente, o autor não consegui acompanhar a gravidez com a presença e dedicação que pretendia e que tinha perspetivado.

73. Sentindo-se frustrado por não poder ter oferecido o acompanhamento que a sua companheira precisava, ao passo de nem poder ter assistido à 1.º ecografia já que se encontrava acamado.

74. Os primeiros tempos em casa revelaram-se particularmente difíceis, uma vez que o autor perdeu toda a sua autonomia, necessitando da ajuda da sua companheira, na altura grávida, e do seu irmão, quer para o levantar da cama, quer para fazer a sua higiene pessoal, e ainda, para colocar o colete com que andou durante largo período de tempo.

75. Tudo isto o deprimiu, ao ponto de ter necessidade de recorrer a apoio psicológico.

76. Quando antes era uma pessoa ativa, apresenta-se hoje como uma pessoa entristecida, sempre com dores, as quais variam com a mudança do tempo, isolando-se da sua família mais próxima e dos seus amigos.

77. Deixou de passear, e de ter qualquer atividade desportiva e/ou de lazer nos moldes anteriores.

78. Frequentemente, aos fins-de-semana, antes do acidente, corrida e praticava BTT.

79. Atividades que, agora, não consegue praticar do mesmo modo.

80. No dia 5.8.2019 a responsabilidade civil por danos emergentes da detenção e circulação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-RA encontrava-se transferida para a ré, por contrato de seguro do ramo “Seguro Automóvel”, titulado pela apólice n.º ...1... Ré extrajudicialmente entendeu propor a regularização do sinistro através de uma divisão de responsabilidade, na proporção de 70 % - 30 % desfavorável à sua segurada, a qual foi recusada.


***

2.2. Factos não provados.


Pelo Tribunal a quo foram considerados não provados os seguintes factos:

a) As duas vias de trânsito do local do acidente estão separadas entre si por uma linha longitudinal descontínua.

b) O local onde ocorreu o sinistro é caracterizado como sendo fora de localidade, a velocidade máxima instantânea estava limitada à velocidade de 90 km/h.  

c) A condutora do veículo seguro olha para ambos os lados e, verificando que não se aproximava qualquer veículo, inicia a marcha.

d) Ainda que o RA tenha saído de um local privado, quando acede à faixa de rodagem o veículo do A. não era visível.

e) A condutora do veículo seguro, quando ainda não tinha ingressado na via da direita, verifica que se aproxima um “veiculo branco”.

f) Qual a velocidade concreta a que circulava o veículo do Autor.

g) O veículo do Autor esboça uma travagem.

h) Ainda que o RA tenha saído de um local privado, quando acede à faixa de rodagem o veículo do A. não era visível.

i) O Autor tinha duas colmeias de abelhas que, sem assistência, e sem que o autor tivesse alguém com formação para a sua manutenção, acabaram por morrer no período de convalescença do A..

j) O Autor sofreu outros danos para além dos referidos nos factos provados.

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2.3. Impugnação da matéria de facto.

O primeiro conjunto de factos que a apelante vem impugnar no presente recurso reporta-se à dinâmica do acidente de viação a que os autos dizem respeito, sendo defendido que as declarações de parte do autor, conjugadas com o depoimento da testemunha BB, as fotografias recolhidas do Google Maps em audiência de julgamento e o auto de ocorrência, impõem a eliminação dos factos não provados que vêm incluídos nas alíneas c), d), e) e h).

Paralelamente, é sustentado que deve ser reformulada parte da factualidade que se mostra assente, em particular no que diz respeito ao acervo que ficou a constar nos pontos 3 e 7 dos factos provados, e, ainda, proceder-se ao aditamento de  matéria relevante para a decisão da causa que não foi levada em consideração por parte do Tribunal a quo.

Vejamos.

A factualidade que a 1ª instância considerou não assente e que apelante entende resultar provada é a seguinte:

c) A condutora do veículo seguro olha para ambos os lados e, verificando que não se aproximava qualquer veículo, inicia a marcha;

d) Ainda que o RA tenha saído de um local privado, quando acede à faixa de rodagem o veículo do A. não era visível.

e) A condutora do veículo seguro, quando ainda não tinha ingressado na via da direita, verifica que se aproxima um “veiculo branco”.

h) Ainda que o RA tenha saído de um local privado, quando acede à faixa de rodagem o veículo do A. não era visível.

Sem embargo de a alínea h) reproduzir, nos seus precisos termos, matéria que já constava na alínea d), importa apurar se os factos que a recorrente põe em relevo se encontram ou não provados face aos referidos elementos probatórios.

Mas antes, é necessário referir a motivação que o Tribunal recorrido exarou a propósito da dinâmica do sinistro, pois só desse modo se consegue compreender se foi correcto o entendimento segundo o qual os factos em questão não se mostram provados.

Nessa sede – motivação – ficou a constar o seguinte:

 “Foram valoradas as declarações de parte do Autor AA (militar da GNR, residente em ..., concelho ...), o qual refere a sua versão sobre a dinâmica do acidente, referindo que conhecia bem o local por ali circular todos os dias.

Foi valorado o depoimento da testemunha BB (nascida em ../../1998, solteira, estudante, residente em ..., Alemanha – a condutora do veículo seguro), que relatou a sua versão dos factos.

Considerando que as declarações e depoimento das únicas pessoas que intervieram ou presenciaram o acidente (o Autor e a testemunha BB) são parcialmente contraditórias, apenas foi possível dar como provado aquilo em que era coincidente entre ambas.

Destaca-se que não se logrou apurar em que momento exato os condutores se avistaram um ao outro e se um avistou o outro primeiro ou se foi em simultâneo, nem em que lugar exacto da faixa de rodagem se encontrava o veículo seguro, total ou parcialmente, quando o Autor passou a curva – não foi possível apurar estes elementos, não existindo elementos suficientes para, neste aspecto, dar credibilidade a algum dos condutores.”.

Sendo certo – e aqui concordamos com o Tribunal a quo, após termos ouvido as declarações prestadas pelo autor e o depoimento da condutora do veículo seguro na ré, ora apelante – que existe um conjunto de factos sobre os quais existe consenso, não se verificando divergências de fundo relativamente às características do local do sinistro, ao sentido em que circulavam os veículos e, mesmo, à manobra ou às manobras que foram efectuadas por parte de ambos os condutores.

A matéria não apurada, no entender da 1ª instância, diz respeito ao momento em que os condutores se avistaram e ao local exacto em que se encontrava o veículo seguro quando o autor passou a curva que vem referida nos autos.

Não foi minimamente esclarecido, pelo Tribunal a quo, por que motivo as versões apresentadas pelo sinistrado, ora recorrido, e pela condutora do veículo seguro não mereceram, na parte em que não coincidem, credibilidade, sendo de presumir, na ausência de elementos que nos levem a firmar um entendimento contrário, que ambos os relatos se baseiam na percepção que os intervenientes tiveram do acidente em que estiveram envolvidos, tanto mais que a descrição (factual) apresentada não viola regras de experiência comum.

Aqui chegados, cumpre referir que os factos a que se reportam as alíneas c), d), e) e h) – com a ressalva que apontámos relativamente a esta última – resultam, à evidência, do depoimento da testemunha BB, sendo certo – e aqui também discordamos do Tribunal recorrido – que não existe qualquer contradição ao nível das declarações prestadas, dado que o autor não se referiu a essa matéria e não colocou em causa o que a mencionada testemunha relatou a propósito dos factos em questão.

Trata-se, aliás, de um conjunto de factos que dizem respeito, exclusivamente à condutora do veículo segurado e que o autor, salvo melhor opinião, não poderia percepcionar.

Pelas razões apontadas, deve a referida factualidade ser excluída dos factos não provados, passando a integrar a matéria assente da seguinte forma:

- 6a. A condutora do veículo de matrícula ..-..-VD olhou para ambos os lados e, verificando, que não se aproximava qualquer veículo, iniciou a marcha;

- 6b. Sendo que quando acedeu à faixa de rodagem, o veículo do autor não era visível.

- 6c. Quando ainda não tinha ingressado na via da direita, a referida condutora verifica que se aproxima um “veiculo branco”.


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Defende a apelante que o ponto 3 dos factos provados, nos termos em que se encontra redigido, carece de reformulação, uma vez que não permite compreender, em toda a sua plenitude, a forma como o sinistro ocorreu.

É sugerida, para o efeito, uma nova redacção da respectiva factualidade, mais sendo sugerido um aditamento a esse ponto de forma a incluir matéria que esclarece ou complementa o circunstancialismo relativo às causas do acidente.

No ponto 3 consta o seguinte: “No momento em que o Autor passa a curva à direita junto ao ilhéu que permite a saída da EM ...17 e a entrada na via que permite o acesso às localidades vizinhas, encontrava-se em movimento o veículo de marca Peugeot, modelo ..., de cor Branca, e de matrícula ..-..-RA, proveniente de uma moradia, a entrar perpendicularmente na via, começando a atravessar a via onde vinha a circular o veículo ..-..-VD, porque pretendia dirigir-se para ..., passando a circular em sentido contrário ao do Autor.”.

Por sua vez, a recorrente sugere a seguinte redacção, que inclui um aditamento (ponto 3a) aos factos já fixados:

3. No momento em que o Autor passa a curva à direita junto ao ilhéu que permite a saída da EM ...17 e a entrada na via que permite o acesso às localidades vizinhas, encontrava-se em movimento da direita para a esquerda, e na perpendicular, ocupando pelo menos metade da via, o veículo de marca Peugeot, modelo ..., de cor Branca, e de matrícula ..-..-RA,

3 A. O veículo RA era proveniente de uma moradia, situada do lado direito da via considerando o sentido de transito do Autor, e pretendia dirigir-se para ..., para o que mudava de direção à esquerda para passar a circular em sentido contrário ao do Autor.     “.

Atentas as declarações prestadas pelo autor e pela condutora do veículo segurado, constata-se que a redacção proposta pela apelante retrata, de forma mais rigorosa, o circunstancialismo atinente à dinâmica do acidente, em particular no que diz respeito ao local de onde o veículo segurado provinha e à manobra que a respectiva condutora efectuava.

Deste modo, determina-se a reformulação do ponto 3 e o aditamento do ponto 3a, nos seguintes moldes:

3. No momento em que o autor passa a curva à direita junto ao ilhéu que permite a saída da EM ...17 e a entrada na via que permite o acesso às localidades vizinhas, encontrava-se em movimento da direita para a esquerda, e na perpendicular, ocupando pelo menos metade da via, o veículo de marca Peugeot, modelo ..., de cor Branca, e de matrícula ..-..-RA.

3a. O veículo RA era proveniente de uma moradia, situada do lado direito da via considerando o sentido de transito do autor, e pretendia dirigir-se para ..., para o que mudava de direção à esquerda para passar a circular em sentido contrário ao do autor.“.


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No ponto 7 da factualidade assente foi consignado que “O local em que o Autor passou a circular na faixa contrária e se veio a despistar é uma estrada composta por duas vias de trânsito, separadas entre si por linha longitudinal contínua que constitui o eixo da faixa de rodagem, ladeada por duas moradias unifamiliares e eucaliptos do lado direito ao que animava o A. e, no lado esquerdo, só por eucaliptos.”.         

A apelante, a este propósito, sustenta que o Tribunal a quo incorreu num lapso manifesto ao fazer alusão a uma linha contínua no local do acidente, dado que a mesma, nessa zona, é descontínua.

Assiste razão à recorrente.

Com efeito, resulta dos suportes documentais inseridos na acta da audiência (imagens do local do sinistro extraídas do Google Maps), da participação de acidente de viação elaborada pela GNR, cuja cópia integra o documento nº3 junto com a contestação, e de um conjunto de fotos também incorporadas no documento nº3, que na zona onde ocorreu o acidente (local de onde saiu a viatura segurada e local onde o autor embate, após se despistar) a linha longitudinal é descontínua, sendo certo que alguns metros antes  a linha é contínua.

Alias, as declarações prestadas pelo autor em audiência final vão no mesmo sentido.

Assim, o ponto 7 da matéria assente passa a ter a seguinte redacção:

7. O local em que o autor passou a circular na faixa contrária e se veio a despistar é uma estrada composta por duas vias de trânsito, separadas entre si por linha longitudinal descontínua que constitui o eixo da faixa de rodagem, ladeada por duas moradias unifamiliares e eucaliptos do lado direito ao que animava o autor e, no lado esquerdo, só por eucaliptos.


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Sustenta, por último, a apelante, no que diz respeito ao acervo factual relativo às circunstâncias do acidente, que deve ser aditado ao ponto 1 dos factos provados a seguinte matéria, referente ao conhecimento que o autor tinha do local onde o sinistro ocorreu:

1.A O Autor passava diariamente naquele local, residindo a cerca de três km.”

Conforme resulta da motivação inserida na sentença recorrida, a matéria em apreço foi aflorada pela 1ª instância, embora não tenha sido incluída, como pretende a recorrente, no conjunto de factos provados [1].

Trata-se de factualidade, não alegada em sede de articulados (mormente na contestação), que não integra a categoria prevista no art. 5º, nº1, do C.P.C. (factos essenciais) [2], sendo certo, em nosso entender, que também não se insere na previsão legal inserida no nº2, alíneas a) e c), do mesmo art. 5º (factos instrumentais, factos notórios e factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções) [3].

A referida matéria fáctica, de acordo com o nosso entendimento, enquadra-se espécie a que alude o art. 5º, nº2, alínea b), do C.P.C. (factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa) [4], um vez que diz respeito ao conhecimento, por parte do autor, das características do local do sinistro e, consequentemente, à sua actuação culposa, em face da percepção que o mesmo tinha dessas características.

Para que o Tribunal possa utilizar factos incluídos nessa categoria, o art. 5º, nº2, alínea b), atrás referido impõe que as partes tenham tido possibilidade de se pronunciar sobre os mesmos.      

No caso vertente, a 1ª instância não comunicou aos litigantes que pretendia utilizar tal factualidade, embora feita referência à correspondente matéria, na sentença impugnada, em sede de enquadramento jurídico.

Deste modo, ainda que os factos em apreço possam resultar das declarações prestadas pelo autor, não podem os mesmos ser incluídos no acervo factual provado, atento o incumprimento da regra prevista no art. 5º, nº2, alínea b), do C.P.C..


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Relativamente aos danos resultantes do sinistro, foi sustentado por parte da apelante que existe notória contradição entre o facto provado incluído no ponto 25 e o que resulta do ponto 27, situação que configura uma nulidade insanável, nos termos previstos no art. 615º, nº1 alínea c), do C.P.C. [5].

Defende ainda a recorrente, que, independentemente de existir a referida contradição, o autor não fez prova do prejuízo aludido ponto 27, pelo que a correspondente matéria deve ser considerada não assente.

No ponto 25 refere-se que o autor se deslocou a consultas em viatura própria [6],   sendo que no ponto 27 é mencionado que o autor e o seu agregado se encontram impedidos usar a viatura sinistrada desde a data do acidente [7].

A contradição, a nosso ver, salvo melhor entendimento é aparente, pois o facto de o autor ter ficado impedido de utilizar o veículo que esteve envolvido no sinistro não significa que não possua outra viatura para circular [8].

No que diz respeito à prova da matéria vertida no ponto 27, a apelante não indicou qualquer meio probatório que infirme a conclusão a que o Tribunal recorrido chegou [9], devendo apenas acrescentar-se que o acervo factual em apreço teria de presumir face ao que resulta do ponto 26, uma vez que aí consta que o veículo do autor ficou destruído, considerando-se perda total.

Esclarecidas as questões de ordem factual, cumpre efectuar o enquadramento jurídico da correspondente matéria, de forma a apurar se merece provimento a tese que a ré, ora apelante, carreou para os autos, nomeadamente no que diz respeito à responsabilidade pela ocorrência do sinistro que está no cerne do litígio.


***

2.4. Enquadramento jurídico.


Sustentou o Tribunal recorrido, com base no conjunto de factos que integram a sentença impugnada, que o acidente rodoviário em causa tinha resultado de uma actuação culposa do autor e da condutora da viatura segurada na ré, tendo sido repartida a responsabilidade, após análise das normas consideradas relevantes, na proporção de 30% para o autor e 70% para a referida condutora.  

Embora se tenha entendido que existia excesso de velocidade por parte do ora recorrido e que a manobra que o mesmo efectuou [10] foi temerária [11], considerou-se que era mais gravosa a conduta adoptada pela condutora do veículo seguro na apelante, conduta essa que se traduziu, de acordo com a tese sufragada em 1ª instância, no desrespeito da regra de cedência de passagem prevista no art. 31º, nº1, alínea a), do Código da Estrada.

Tal norma prescreve que “Deve sempre ceder a passagem o condutor: a) Que saia de um parque de estacionamento, de uma zona de abastecimento de combustível ou de qualquer prédio ou caminho particular [12];

O pressuposto que está na base da posição adoptada consiste no facto de a condutora do veículo de marca Peugeot, de acordo com o Tribunal a quo, ter avistado a viatura do autor a circular na via onde ocorreu o sinistro e, apesar disso, ter continuado a avançar, ou invés de parar ou recuar, assim contribuindo culposamente para o acidente.

O raciocínio expendido a este propósito poderia estar correcto na ausência da factualidade que foi alterada no presente recurso, embora, deva acrescentar-se, do acervo factual originariamente fixado não resulte em que momento a condutora da viatura segurada se apercebeu da existência de uma viatura que circulava na via onde pretendia entrar.

A matéria atinente à visualização (ou avistamento) do veículo propriedade do autor, independentemente do momento em que ocorre, não consta, aliás, do acervo factual que o Tribunal recorrido considerou provado, pelo que os argumentos expendidos a propósito deste aspecto essencial devem resultar, muito provavelmente, de uma presunção extraída dos factos referentes à dinâmica do sinistro.

Ora, ficou demonstrado, para além da factualidade já fixada em 1ª instância, que:

- 6a. A condutora do veículo de matrícula ..-..-VD olhou para ambos os lados e, verificando, que não se aproximava qualquer veículo, iniciou a marcha;

- 6b. Sendo que quando acedeu à faixa de rodagem, o veículo do autor não era visível.

- 6c. Quando ainda não tinha ingressado na via da direita, a referida condutora verifica que se aproxima um “veiculo branco”.Ddd

Este conjunto factual tem uma importância decisiva no caso vertente, pois do mesmo resulta que a condutora do veículo seguro na ré não actuou de forma negligente, sendo, consequentemente, o sinistro inteiramente imputável ao autor.

Vejamos.

A responsabilidade civil por factos ilícitos tem como pressuposto, entre outros requisitos legais, a culpa do agente, ou seja, a imputação a determinada pessoa, de uma conduta danosa, que pode ser praticada a título doloso ou por simples negligência.

É o que resulta do art. 483º, nº1, do Código Civil, o qual estabelece que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilìcitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” [13].

De harmonia com o preceituado no art. 487º, nº2, do mesmo Código, “A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.”.     

Trata-se de um critério geral que, transposto para o domínio rodoviário, significa que um condutor médio, no exercício de uma actividade que comporta riscos evidentes, deve actuar de forma prudente ou cautelosa, avaliando, em cada momento, todo o circunstancialismo envolvente (características da via, velocidade, circulação de peões, manobras que outros veículos efectuam, etc.), de forma a adequar a condução a esse conjunto de variáveis e evitar, de acordo com a avaliação que faz de tais circunstâncias, acidentes de viação.  

Como se salienta no Acórdão do STJ de 23/2/2016 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/3F33BD87C0A6EFCA80257F6400395380) “O critério legal de apreciação da culpa é um critério abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal.”.    

Por sua vez, no Acórdão da Relação de Guimarães de 16/11/2017 (Aresto que se encontra disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2017:833.15.3T8BGC.G1), observa-se, como toda a pertinência que “O condutor diligente e prudente, o bom pai de família, é aquele que, em cada momento, atende aos diversos fatores que envolvem a atividade em curso, nomeadamente tendo em atenção as características da viatura que conduz e o contexto ou envolvente em que esta se situa ou circula, exigindo esse processo etapas de perceção, avaliação e decisão que não podem ser ultrapassadas, sob pena de se incumprir o dever de cuidado exigido;”.

Na mesma linha de orientação, refere-se no Acórdão da Relação de Évora de 10/4/2014 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/F7AECA78EB44C9BC80257CDF005607B3) que “a diligência relevante para a determinação da culpa há-de ser a de uma pessoa normal colocada perante o circunstancialismo do caso concreto.”.

A corrente jurisprudencial que citámos – e que também seguimos – funda-se, por um lado, nas normas de carácter geral previstas no nosso Código Civil e, por outro, no quadro normativo inserido no Código da Estrada (CE), diploma que integra um conjunto de princípios e regras que, de forma mais específica e detalhada, se ocupam desta matéria.

Estamos a referir-nos, concretamente, aos arts. 3º, nº2, 12º, nº2, 24º, nº1 e 25º, nº1, alínea c), e 35º, nº1, todos do CE, os quais apresentam a seguinte redacção:

- Art. 3º, nº2 do CE: “As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis.”. 

- Art. 12º, nº1, do CEOs condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.”.

Artigo 24.º, nº1, do CE: “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”.    

- Artigo 25.º, nº, alínea c), do CE: “Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: (…) c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações;”.

- Artigo 35.º, nº1, do CE: “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”.

Do conjunto de normas citadas – e transcritas – resulta que os condutores, na realização de qualquer manobra, devem adoptar as providências necessárias para evitar acidentes, sendo que o legislador vai mais longe, uma vez que pretende evitar, desde logo, situações que possam causar perigo [14] para todos aqueles que circulavam nas vias sujeitas ao quadro legal que rege este domínio.

Revertendo para o caso concreto, afigura-se, salvo melhor entendimento, que a condutora do veículo segurado actuou de forma diligente quando iniciou a manobra que pretendia efectuar, pois certificou-se de que não circulava nenhum veículo na estrada municipal identificada nos autos e só depois, após constatar que a via se encontrava desobstruída, é que iniciou a marcha, com o propósito de se dirigir para a mencionada localidade de ....

No decurso dessa manobra, quando a viatura já se encontrava na  estrada municipal, é que surge o automóvel conduzido pelo autor, sendo que este, em face da presença da referida viatura, tomou a opção – errada, como veio a constatar-se – de se desviar para o lado esquerdo da via, passando a circular junto à berma, facto que veio a determinar o despiste e consequente embate num eucalipto que ladeava a estrada.

A manobra que o autor efectuou, em nosso entender foi temerária e está na causa do acidente que veio a ocorrer, sendo que, face às características do local e ao modo como a referida condutora entrou na via de circulação, o autor poderia – e deveria – ter reduzido a velocidade de que vinha animado, pois não há notícia nos autos de que os órgãos de travagem da viatura sinistrada padecessem de qualquer deficiência que impossibilitassem a respectiva utilização.

A condutora da viatura segurada na ré não contribuiu, com a sua actuação, para o despiste do veículo sinistrado, devendo, por isso, atentos os elementos fácticos carreados para o processo, concluir-se que o acidente resultou de um erro de avaliação do autor, o qual, perante um automóvel que se encontrava a realizar uma manobra regular, optou por se desviar para o lado da via destinado ao trânsito que seguia em sentido contrário, invadindo, logo após, a respectiva berma e indo embater, após perda de controlo do veículo, na árvore supra mencionada.          

Duas notas finais impõem-se, atento o suporte factual que ficou demonstrado nos autos.

A primeira, é para referir que se concorda com o entendimento expresso pelo Tribunal a quo no sentido de que a TAS que o autor apresentava (1,13 g/l) contribuiu para o sinistro em causa, dado que o valor apresentado, que se situa muito próximo do limite a partir do qual essa actuação configura um ilícito criminal (1,2 g/l) [15], aumenta várias vezes o risco de acidente (cf. as informações disponibilizadas pelo IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., em https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/EnsinoConducao/ManuaisEnsinoConducao/Documents/Fichas/FT_Alcool_Medicamentos_SubPsicotropicas.pdf e pela Prevenção Rodoviária Portuguesa em https://prp.pt/portfolio-items/alcool/).

O art. 81º, nºs1 e 2, do CE rege esta matéria nos seguintes moldes:

1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.

2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.”.

A segunda nota, é para mencionar que tudo indicia – e aqui também se concorda, em parte, com a tese defendida pela 1ª instância – que o veículo conduzido pelo autor circulava em excesso de velocidade.                   

Com efeito, o art. 24º, nº, do CE,  prescreve que “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”.

E o art. 25º, nº1, alínea a), do mesmo Código acrescenta que “Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: (…) c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações;” [16].

Complementarmente a estas normas, deve ainda referir-se o art. 19.º do CE, o qual dispõe que “Para os efeitos deste Código e legislação complementar, considera-se que a visibilidade é reduzida ou insuficiente sempre que o condutor não possa avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 m.”.

Dos factos assentes, resulta (ponto 11) que “No sentido de trânsito do veículo do Autor, antes do local do acidente a via configura uma curva à direita, a qual dista aproximadamente 70 metros do local do embate.”, mais resultando da factualidade provada que o autor se apercebeu da viatura segurada logo após ter passado essa curva, tendo, de imediato, transposto a linha longitudinal existente na via e passado a circular na hemifaixa destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário.

Significa isto que o autor percorre, pelo menos, 70 metros, sem que imobilize o veículo [17], sendo que nenhum elemento carreado para os autos demonstra que, após a referida curva, a visibilidade era insuficiente.  

Afigura-se razoável face a todos os elementos fácticos e ao quadro legal vigente, uma de duas hipóteses:

a) O autor circulava em excesso de velocidade e, por esse motivo, constatando que não era possível imobilizar o veículo por meio de travagem, optou por guinar para a esquerda e invadir a hemifaixa de rodagem já referida;

b) Era possível a imobilização da viatura por meio de travagem, sendo que o autor, não ponderando essa possibilidade (erro de avaliação), optou por invadir a sobredita hemifaixa, facto que, conjugado com a circulação junto à berma, acabou por determinar o despiste e embate no eucalipto.

Em qualquer das situações que descrevemos, e considerando que a condutora do veículo segurado adoptou todos os procedimentos que o caso exigia, é de imputar ao autor, in totum, a responsabilidade pelo sinistro a que os autos se reportam, pelo que merecendo provimento o recurso interposto pela ré, deverá proferir-se decisão nesse sentido, com as consequências legais.

***


III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, indo a ré/apelante absolvida do pedido formulado pelo autor/apelado.

Custas pelo recorrido.


Coimbra, 24 de Setembro de 2024

(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

 (relator)

Anabela Marques Ferreira

(1ª adjunta)

Maria Teresa Albuquerque

(2ª adjunta)


SUMÁRIO.

(…).


[1] O art. 607º, nº4, do C.P.C. estabelece o seguinte: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
[2] Dispõe o art.  5º, nº1, do C.P.C. que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.”.
No Acórdão do STJ de 13/7/2022 (disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/72d158cbcff0b94c8025887f003929dc?OpenDocument) esclarece-se que: “Factos essenciais são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, ou seja, os factos que permitem a substanciação do pedido, independentemente de poderem ser indiciados por factos instrumentais de conhecimento oficioso, ou de serem complementados ou concretizados pelo que resulte da discussão da causa (…)”.
[3] Prescreve o art. 5º, nº2, alíneas a) e c), do C.P.C. que “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) (…)
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”.
No Acórdão do STJ de 13/7/2017 (disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4bf735390cc090ee8025815c004762af?OpenDocument) é expresso o seguinte entendimento no que concerne aos factos instrumentais: “Mantém-se actual a consideração de que são “São factos instrumentais aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente para prová-los, pela convicção que criam da sua ocorrência” – Acórdão este Supremo Tribunal de Justiça, de 18.5.2004 – Proc. 1570/04.”.
Por sua vez, é referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2022 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/9dde048bb7425c158025891f004d45c1?OpenDocument) que “Os factos instrumentais tendo uma função probatória – não constituem uma condicionante direta da decisão, sendo a sua função, antes, a de permitir a prova dos factos principais –, devendo por essa razão, em regra, integrar a motivação da matéria de facto, não deverão ser objeto de um juízo probatório especifico, a discriminar enquanto factualidade julgada provada ou não provada.”.
O Acórdão da Relação de Lisboa de 25/10/2016 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/C3A552C76BE70D1E80258081004DFCD6) vai mais longe, e distingue entre factos instrumentais puramente probatórios e factos instrumentais desprovidos de função puramente probatória.
O respectivo sumário trata a questão da seguinte forma: “I. Os factos instrumentais subdividem-se em factos instrumentais puramente probatórios e em factos instrumentais desprovidos de função puramente probatória.
II. Por sua vez, os factos instrumentais desprovidos da função meramente probatória subdividem-se em: (i) Factos que constituem por si a base de uma presunção legal; (ii) factos que integram causas de pedir complexas servindo para preencher, de uma forma tão ampla quanto possível, conceitos jurídicos ou juízos de valor diretamente relevantes para a procedência da ação ou da defesa; (iii) factos que integram exceções probatórias.
III. Um facto instrumental puramente probatório tem uma função transitória, servindo apenas para ser um elemento infirmador ou confirmador de um facto principal, provado ou não provado, não se justificando a autonomização de tal facto instrumental puramente probatório no elenco dos factos provados ou não provados.”.
Ainda sobre os factos instrumentais, pode consultar-se, com todo o interesse, Orlando Patrício Correia Alves Moreira e Castro, “O REGIME DA ALEGAÇÃO DOS FACTOS NO PROCESSO CIVIL DECLARATIVO (EVOLUÇÃO E PARADIGMA)”, 2016 (dissertação de mestrado disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/42034/2/Orlando%20Castro.pdf), o qual refere (pág.36) que “(…) factos instrumentais, são aqueles que exercem uma função instrumental permitindo, através da sua prova, a indiciação da existência dos factos essenciais.”.
[4] No Acórdão desta Relação (Coimbra) de 23/2/2016 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/b1736cd7aa02114c80257f85003d566b?OpenDocument), observa-se, a propósito da categoria prevista no alínea b) do nº do art. 5º do C.P.C. que “Os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.
[5] Art. 615º, nº1, alínea c), do C.P.C.: “É nula a sentença quando: (…) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;”.
[6] A redacção integral do ponto 25 é a seguinte: “Consultas que o A. teve de fazer em viatura própria, percorrendo uma distância de 53km da sua residência até ao CHUC, ou seja, 212 (duzentos e doze quilómetros no total), devendo, por conseguinte, ser indemnizado pela R. na quantia de € 76,32 (setenta e seis euros e trinta e seis cêntimos). [212X0,36€]”. 
[7] No ponto 27 consta que “Desde o dia do sinistro, ou seja, do dia 5 de agosto de 2009, que o A. e seu agregado, se encontram impedidos de usar, fruir de beneficiar das utilidades que o veículo VD lhes conferia”.
[8] Desconhece-se se o autor e respectivo agregado familiar possuíam outra viatura que permitisse efectuar as deslocações que vêm referidas nos autos.
[9] A motivação referente aos danos que consta na sentença impugnada é a seguinte: “A situação patrimonial do Autor, despesas, e outros gastos, a sua vida antes e após o acidente resultou do depoimento testemunhas CC (nascido em ../../1987, casado, distribuidor de pão, residente em ..., concelho ..., irmão do autor), DD (nascido em ../../1980, solteiro, comercial de seguros, residente em ..., freguesia ..., concelho ..., amigo do autor) e EE (30 anos, solteira, ajudante de pastelaria, residente em ..., companheira do autor) – que demonstraram conhecer directamente os factos que relataram, com coerência e isenção, merecendo credibilidade, desde que não contrariados pelo teor da perícia do INML, em conjugação com os documentos juntos aos autos.”.
[10] Desvio de marcha para a via de circulação contrária, com vista a evitar o embate na viatura que provinha da moradia situada do lado direito da via..
[11] Foi ainda considerado o facto de o autor conduzir sob a influência do álcool (TAS de 1,13 g/l).
[12] O sublinhado é nosso.
[13] Sobre esta matéria, cf. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol I, 7ª ed., 1991, págs. 515/516, com desenvolvimento a págs. 517 e segs., Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 8ª ed., 2000,  págs.500/501, também com desenvolvimento a págs. 501 e segs., Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol I, 2013, 10ª ed., págs. 258 e segs., e António Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, 2º vol., reimpressão, 1990, págs. 279 a 282. 
[14] Não se trata aqui, unicamente, de prevenir os acidentes de viação, mas sim de evitar, à partida, situações potencialmente danosas, ou seja, situações que, apesar de acarretarem perigo para os utilizadores das vias, não comportam qualquer prejuízo para os mesmos.
[15] Cf. art. o 292º, nº1, do Código Penal, cuja redacção é a seguinte: “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.
[16] O sublinhado é nosso.
[17] Relativamente às distâncias médias de paragem, pode consultar-se, com todo o interesse, as informações disponibilizadas pelo IMT em https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/EnsinoConducao/ManuaisEnsinoConducao/Documents/Fichas/FT_DistanciasdeSeguranca.pdf.