Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4100/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 01/25/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 68º, N.º 1, AL. A), DO C. P. PENAL
Sumário: Mesmo não se devendo confundir o todo duma pessoa colectiva e o seu património com os seus sócios, quando um dos sócios é arguido da prática dos crimes de abuso de confiança e burla, ao outro sócio deve ser reconhecida a legitimidade para se constituir assistente se foi este quem pagou os montantes resultantes daquela actividade delituosa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Pelos competentes e aludidos Serviços do Ministério Público correram termos os presentes autos de inquérito tendentes a averiguar do eventual cometimento pelo arguido A..., mais devidamente identificado a fls. 233, de crimes de abuso de confiança e de burla qualificada, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 205.º e 218.º, ambos do Código Penal [CP].
Encerrada tal fase, o Ministério Público determinou o seu arquivamento, nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal [CPP], isto é, com o entendimento de que se não haveriam logrado obter suficientes elementos indiciários da prática pelo arguido dos referidos crimes.
Notificado o denunciante B..., melhor identificado a fls. 2, nos termos do n.º 3 do aludido artigo 277.º, usando da faculdade concedida agora pelos artigos 68.º, n.º 3, alínea b) e 287.º, n.º 1, ambos do CPP, veio o mesmo, além do mais, solicitar a sua intervenção como assistente nos autos, a partir de então.
Tal pretensão foi indeferida através do despacho judicial exarado a fls. fls. 453/455.
1.2. Por se não conformar com esta decisão, pretendendo obter a sua revogação, e consequente admissão a intervir nos autos na veste reclamada, interpôs o denunciante A... o presente recurso, cujo requerimento depois de motivado, contém o quadro de conclusões seguintes:

1.2.1. Uma parte dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução e de constituição de assistente ofendem directa e exclusivamente os interesses patrimoniais do denunciante.
1.2.2. É, designadamente, o caso dos factos consignados nos pontos 20.º a 32.º; 44.º a 68.º; 70.º; 73.º; 78.º e 79.º do mesmo requerimento.
1.2.3. Sendo certo que tais factos integram a prática de crimes de burla qualificada.
1.2.4. Ao contrário daquilo que sustenta o despacho recorrido, relativamente a estes factos, o ora recorrente é o único titular do interesse que a Lei Penal quis proteger com a incriminação das condutas imputadas ao arguido.
1.2.5. Decidindo como decidiu o despacho recorrido viola o disposto no artigo 68.º citado, seu n.º 1, alínea a), na medida em que recusa ao denunciante a possibilidade de se constituir assistente, impedindo-o de promover a abertura de instrução, quando a aludida disposição legal confere ao recorrente esse direito.
1.3. Admitido o recurso, e notificados para o efeito, responderam o arguido e o Ministério Público, defendendo aquele a subsistência do decidido, e este a sua revogação como pretendido pelo recorrente.
Remetidos os autos a esta instância, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à satisfação do sufragado pelo recorrente.
Cumpriu-se o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
Por se entender que nada obstava ao conhecimento do mérito do recurso, determinou-se a recolha dos vistos dos M.mos Adjuntos.
Realizada conferência, cabe apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
2.1. Sendo o âmbito do recurso definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada (cfr. artigo 412.º, n.º 1 do CPP), do que vem de dizer-se decorre que a única questão decidenda se traduz em verificarmos se, em contrário do decidido, o denunciante tem legitimidade para ser admitido a intervir como assistente nos autos.
2.2. «O epicentro da legitimidade para a constituição de Assistente localiza-se na figura do ofendido», como anota Augusto Silva Dias, in A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português, Almedina, pág. 56, que seguiremos de perto nas breves considerações que se seguem sobre a delimitação de um tal conceito, pressuposto à decisão do caso concreto.
A jurisprudência dominante entre nós considera que o artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do CPP consagra um conceito restrito de ofendido, segundo o qual ofendido é o titular do interesse «directa», «imediata» ou «predominantemente» protegido pela incriminação. Segundo esta orientação, o conceito restrito já havia sido reconhecido pelo artigo 11.º do CPP de 1929 e pelo artigo 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 35.007, de 13 de Outubro de 1945, constituindo a definição do artigo 68.º do CPP (idêntica, de resto, à do artigo 113.º, n.º 1 do CP) um legado da tradição jurídica portuguesa. Pode um tipo incriminador tutelar também um interesse ou bem jurídico pessoal, mas se este não ocupar o plano central da tutela, o seu titular não deve ser considerado ofendido e portanto não deve ser admitida a sua intervenção como assistente. A jurisprudência partidária do conceito restrito rejeita por completo a possibilidade de constituição de assistente, por exemplo, nos crimes de desobediência, de falsificação de documento, de manipulação de mercado, de violação de segredo de justiça, de prevaricação e de denegação de justiça.
Ainda como se escreve na obra citada, além do argumento literal, baseado na expressão «interesse que a lei especialmente quis proteger» da alínea a), n.º 1 do artigo 68.º, é invocado em prol da tese restritiva que ela é a que melhor observa a natureza pública do processo penal e a regra, a ela conforme, de que a titularidade da acção penal cabe ao M.º P.º (artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa), na medida em que reduz o protagonismo dos particulares como sujeitos processuais; que é a que melhor assegura a distinção entre ofendido e lesado pela prática do crime, o último dos quais pode intervir no processo apenas como parte civil; por fim, que não é incompatível com a CRP, pois esta não contém ou impõe um conceito de ofendido, concedendo ao legislador uma certa margem de conformação.
Tal entendimento reclama, porém, segundo o autor citado uma visão mais actualista e que, quiçá, a controverta.
Na verdade, aduz, hodiernamente já não vai ele à luz dos estudos vitimológicos, da dogmática do bem jurídico, do modelo processual vigente e, inclusive, com a própria formulação inserta no mencionado artigo 68.º, n.º 1, alínea a).
Relativamente ao primeiro dos aspectos enfatizados, relembra o autor referido a ampliação da participação processual da vítima como uma forma de melhor conseguir a pacificação social, agora também cometida ao processo penal. O conceito restrito não se coadunaria, assim, com a necessidade de o processo penal deixar de ser um lugar de neutralização da vítima para se tornar, sem subverter a sua natureza pública, num instrumento de descompressão dos conflitos reais.
Também que o conceito de bem jurídico, outro dos elementos essências à compreensão do assistente, sofreu recentes alterações. Reportamo-nos aos bens jurídicos da sociedade civil, de estrutura circular, de titularidade intersubjectiva, que permitiram a emergência da noção de interesse difuso. Daqui, v.g., o surgimento do instituto da acção popular e da solução do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 28/84.
Também que a antiga noção não justifica a solução sufragada pelo artigo 68.º, n.º 1, alínea e) do CPP de permitir a constituição enquanto tal a qualquer pessoa nos crimes aí previstos, todos a tutelarem, em primeira linha, interesses públicos.
Por fim, a noção restrita torna-se incongruente com o actual sistema processual penal. De facto, comporta uma diminuição sensível das possibilidades de controlo da actuação do Ministério Público durante a investigação sabendo-se do carácter facultativo que assume a instrução. Nomeadamente nos casos em que aquele determina o arquivamento dos autos, a ausência de um ofendido imediato impede que possa verificar-se a abertura da instrução. Ora, como o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/02, de 26 de Fevereiro reconhece, crimes há, como os de falsificação e o de denegação de justiça, que visam indirectamente proteger também interesse particulares. Caso a instrução fosse obrigatória já este inconveniente seria minorado, mas não o sendo…
Aquele conceito restrito recebeu, contudo, resposta negativa no Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.º 1/2003, proferido a propósito do crime de falsificação. Aí se mencionou que o vocábulo «especialmente» não deve ser compreendido como «exclusivamente», mas sim como «particularmente», de sorte que «quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares… a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente».
2.3. Na posse destes considerandos, revertamos ao caso sub judice.
Nos crimes de abuso de confiança e de burla qualificada de cuja autoria, na versão do assistente, o arguido se constituiu agente, o bem jurídico «particularmente» visado é o do património alheio.
No despacho recorrido para se não admitir a suscitada intervenção do denunciante como assistente sufragou-se o entendimento de que a pessoa lesada pela alegada acção do arguido era a sociedade constituída pelo recorrente e por aquele, seu irmão, sendo certo que o ofendido só “indirectamente” teria sofrido prejuízo, pois que se não deve confundir o todo da pessoa colectiva e seu património, com os seus sócios.
É fora de dúvida a correcção de uma tal afirmação.
Sucede, porém, que essa pode não ser a verdade que se virá a obter nos autos.
E, em todo o caso, e por ora, também não é assim que a configura estritamente o denunciante.
Na verdade, vendo-se o requerimento de abertura de instrução apresentado, dele consta factualidade – pontos 20.º a 32.º; 44.º a 68.º – que situa o dano patrimonial na própria pessoa singular do denunciante, e, nessa consideração, já se verifica o exigível requisito para a admissível intervenção como assistente.
Efectivamente, de acordo com a factualidade aí elencada recorrente e arguido eram sócios da sociedade Viana, Lda., cujo objecto social era o exercício da actividade de construção civil; o recorrente trabalhava directamente nas obras, enquanto que o arguido se ocupava da contabilidade, da gestão do dinheiro e dos negócios, da movimentação das contas bancárias da empresa, tendo, para o efeito, a dada altura, obtido procuração do recorrente; quando o recorrente precisava de dinheiro para pagar aos operários ou para pagar os materiais comunicava essa situação ao arguido e este emitia, a seu favor, um cheque, sacado de sua conta pessoal; neste seguimento, foram emitidos os cheques discriminados no artigo 24.º, no montante de 33.450.000$00; mais, em 31/03/94, o arguido entregou ao recorrente a quantia de 450.000$00 em dinheiro, fazendo-o assinar um documento denominado "saída de caixa"; entre 15/01/94 e Abril de 1995, a obra em questão foi realizada pelo recorrente, como construtor em nome individual, para a Viana, Lda., com empregados seus; parte dos materiais necessários foram também adquiridos pelo recorrente; o arguido intentou contra o recorrente acção ordinária que correu termos junto do Tribunal de Vagos com o n.º 403/98, em que pedia a condenação do ofendido e da sua mulher a pagarem-lhe todo o dinheiro acima referido, alegando que todo esse dinheiro fora por si emprestado ao queixoso para financiamento da sua actividade pessoal de construtor civil e financiamento de obras que este tinha em curso, em nome individual.
Do que resulta, então, estar em causa o património do recorrente uma vez que foi ele e a esposa quem pagou os montantes discriminados nos cheques. Não o da sociedade.
E do que decorre, necessariamente, reafirma-se, dever ele ser considerado verdadeiramente ofendido, titular do interesse que constitui o objecto “imediato” da alegada conduta do arguido.
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III – Decisão.
São termos em que, perante todo o exposto, se concede provimento ao recurso, e, consequentemente, se revoga o despacho recorrido, a dever ser substituído por outro que, verificados os demais pressupostos exigíveis ao efeito, admita a intervenção do denunciante como assistente nos autos.
Sem custas.
Notifique.
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Coimbra, 25 de Janeiro de 2006