Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
735/19.4T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE HONORÁRIOS DE ADVOGADO
CONTACTOS ENTRE O ADVOGADO E SEGURADORA
SEM RECURSO A TRIBUNAL
FIXAÇÃO DO MONTANTE DOS HONORÁRIOS
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, 1 E 2; 566.º, 3 E 1158.º, 1, 2.ª PARTE, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 607.º, 4; 609.º, 2; 615.º, 1, B), C) E D); 629.º, 1; 640.º; 644.º, 2, D); 662.º, 2, C) E 665.º, 2 E 3, DO CPC
Sumário: 1. - Resultando dos factos provados, em ação de honorários de advogado, que a este foi solicitado o patrocínio quanto a direito indemnizatório contra uma seguradora, com referência a um incêndio e decorrentes danos, por o quantitativo proposto pela seguradora ser muito inferior ao valor dos prejuízos, âmbito em que o advogado endereçou uma carta à seguradora, na qual a instou a pagar um valor indemnizatório adequado sob pena de recorrer a tribunal, tendo posteriormente a cliente revogado a respetiva procuração, e desconhecendo-se que valor veio a ser obtido da seguradora, mostra o advogado, por tal intervenção técnica, ter direito a honorários profissionais.
2. - Não resultando que tenha sido necessário recorrer a tribunal, nem se foi acordado o pagamento de honorários e em que montante, ou com sujeição a que critério determinativo, e desconhecendo-se se a intervenção do advogado foi coroada de sucesso e em que montante de ganho, sendo de perspetivar, atentas as circunstâncias do caso, que à quantificação possa proceder-se ulteriormente com recurso a prova suplementar, é de relegar para ulterior incidente de liquidação a fixação do montante dos honorários.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA, advogado e com os demais sinais dos autos,

intentou a presente ação declarativa comum, tendente à cobrança de honorários forenses, contra

1.ª - BB e

2.ª - “A..., Ld.ª”, ambas também com os sinais dos autos ([1]),

pedindo assim:

«a) Ser a primeira R condenada ao pagamento de honorários ao autor no montante de 16.450,00€ acrescidos de IVA á taxa legal de 23%, no valor de 20.233,50€ e ainda de juros vincendos desde a data da citação até integral pagamento

b) Ser a segunda Ré condenada ao pagamento de honorários ao autor no montante de 1.500,00€ acrescidos de IVA á taxa legal de 23%, no valor de 1.845,00€ acrescida de juros vincendos desde a data da citação».

Para tanto, alegou, em síntese:

- ter prestado serviços de advocacia às RR. – a 1.ª é sócia gerente da 2.ª, representando-a –, com aconselhamento e apoio jurídico de forma sistemática, intensiva e de longa data, sendo que os serviços prestados até meados de janeiro de 2018 foram pagos, apenas ficando por pagar os serviços já prestados em processos em curso [estudos, prestação completa de informações e aconselhamento jurídico, em diversas matérias, quanto a projetos, designadamente societários (e prediais), também com implicações tributárias, que a 1.ª R. acalentava, levando o A. a despender “um manancial de horas em consultas e conferências, para enquadrar e estudar os assuntos pretendidos, para depois a R os abandonar sem qualquer explicação racional”];

- especificamente, quanto à 2.ª R., o A. patrocinou a defesa desta em âmbito contraordenacional, permitindo-lhe uma utilidade económica de € 5.042,50, já que o procedimento contraordenacional veio a prescrever;

- o A. aferiu, modestamente, o montante dos honorários por referência ao montante de € 80,00/hora, sendo, porém, que as RR. não querem pagar.

As RR. contestaram conjuntamente, concluindo pela total improcedência da ação.

O A., no exercício do contraditório, pugnou pela improcedência da matéria de contestação e pelo triunfo da ação.

Saneado o processo e definidos o objeto do litígio e os temas da prova, foi junto aos autos laudo da Ordem dos Advogados (OA).

Realizada a audiência final, foi proferida sentença, pela qual, na total improcedência da ação, foram as RR. absolvidas do pedido.

Dessa sentença veio o A., inconformado, interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

«

O presente recurso é direcionado apenas á parte que se refere ás RR BB e A... Ldª (denominada ação principal).

Esta decisão contraria alguns factos que constituíam a causa de pedir estavam provados por documentos e explicitados em declarações de parte, e da testemunha.

Esta decisão em crise evidencia vícios comuns nestes autos principais e no apenso que a faz ferir das nulidades previstas nos artigos, 615º/1/b/c do CPC

Esta sentença padece de deficit de fundamentação relativamente aos factos provados e não provados, não cumprindo o preceituado no artigo 607º/4 do CPC

Na referência aos factos não provados a decisão é demasiado simplista e genérica nem sequer os elenca ou funda a convicção do órgão decisor.

Os factos provados constantes dos números 1 a 18 deveriam levar á procedência dos pedidos ainda que parcialmente.

A declaração de quitação, de 12/01/2018 não poderá ser interpretada, sem o auxílio das faturas/recibos emitidos no site da Autoridade Tributária.

Esta declaração de quitação a (folhas 61) quando refere “……. se declara que até esta data, todos os serviços …….., se encontram integralmente pagos, mais nada sendo devido. ... 12 de Janeiro de 2018”, terá necessariamente de ser interpretada em relação a trabalhos, serviços ou processos findos

Os processos em curso, não tiveram entrega de provisão, mas como não estavam findos, nada seria devido até ao seu términus

10º

Esta declaração é um complemento das 2 Faturas/Recibos, fiscais, juntos pelas RR e emitidas pelo autor/R a 12/01/2018, do valor recebido de 793,0€ pago pela B... Ldª e 4.900,00€ pago pela C... Unipessoal Ldª,

11º

A empresa C... é detida pela R BB e não é R nem nestes autos nem nos apensos e para um valor inicialmente de pedido a título de honorários de 14.953,00€ o autor apenas recebeu 5.693,80€.

13º

No requerimento de resposta a exceção no seu número 25 é solicitado a junção de faturação detalhada dos telemóveis ...15 e ...00 para prova de tempo despendido o Tribunal não se pronunciou e mas operar-se-á a inversão do ónus da prova.

14º

O laudo emitido pelo CSDOA não prova os serviços prestados, porquanto o mesmo é emitido no pressuposto que os mesmos foram efetivamente prestados,

15º

Mas o pedido de laudo foi efetuado pelas RR e na sequência da sua confissão, números 1 a 17 “factos atinentes a ação principal” e não lograram provar o seu pagamento.

16º

O recibo fiscal emitido á B... foi para pagamento de trabalhos á CC, sogra da R BB o o recibo C... é desconexo com estes autos, sendo que o sobre estes factos ocorre omissão de pronuncia (artigo 615º/1/d)

17º

Todos os pagamentos solicitados á BB e A... são devidos e legítimos e estas por inversão do ónus da prova, caberia provar o seu pagamento.

18º

Também não existe pronuncia sobre os factos constantes da resposta á matéria de exceção e documentos, aonde são bem explicitados a natureza dos recibos emitidos.

19º

As RR nunca alegaram que houve pagamentos sem que tenha sido emitido a respetiva fatura/recibo fiscal.

20º

Como resulta das razões da experiência comum, os valores inicialmente recebidos são a título de provisão para despesas, sendo que os honorários são apenas pagos a final, esta decisão não poderia considerar que as RR tenham pago, sem que exibam o competente recibo fiscal.

21º

Por prova documental os serviços prestados e aludidos em 20 a 54 da pi alguns findaram depois de 12/01/2018, e outros iniciaram depois desta data.

22º

As declarações de parte da RR BB não merecem credibilidade porquanto a folhas 3§1º da decisão é referido que na impugnação esta alega que posteriormente a janeiro de 2018 tenham sido solicitados quaisquer serviços da sua atividade e que, não tendo sido solicitados nem prestados os mesmos logicamente não poderão ser pagos.

23º

O R refere a partir do artigo 20 da seu pi uma vasta panóplia de serviços prestados e posteriores á declaração de quitação de 12 de Janeiro de 2018, transformação de uma sociedade artigos.

24º

A constituição de uma sociedade de “Of Shore” a incorporar em Gibraltar custos associados e implicações fiscais

25º

Viabilidade de loteamentos de imoveis, de construção de armazéns ou de construção de moradias com O respetivo impacto nas leis fiscais de IMT, IMI e Urbanismo e Planos diretores Municipais

26º

Em maio de 2018 pretendia um estudo para a plantação de canábis para fins medicinais

27º

A final do mês de fevereiro de 2018 já solicita o patrocínio para o direito indemnizatório sobre a Companhia de seguros D...

28º

A R BB com a intervenção do A/R veio a receber mais 25.383,45€.

29º

Em final de maio de 2018 a R BB solicita o estudo de uma ação para interdição do seu companheiro

30º

A R BB em 19 de setembro de 2018 enviou ao A/R diversos documentos para analise relativos a contratação de trabalhadores do Bangladesh

31º

R/A... Ldª para um processo contraordenacional a 22/01/2018 o IMT estava a solicitar o envio de procuração, data também posterior a 12 de janeiro de 2018

32º

A R A... por conta deste serviço nada pagou a título de provisão ou honorários

33º

Esta R para ilidir a falta de pagamento peticionada pelo A/R, deveria ter junto o respetivo recibo de quitação fiscal

34º

O laudo que a pedido das RR foi emitido pelo CSDOA atribui nos serviços prestados á primeira R o montante de 12.000,00€ e á segunda R o valor de 800,00€

35º

Os serviços foram provados competia ás RR provarem o pagamento

36º

A fundamentação da sentença que o A e R BB tinham um relacionamento de amizade não colhe, o que equivale a falta de fundamentação

37º

A sentença, não fundamenta o desvalor das declarações de parte do A/R e da testemunha seu filho

38º

A apreciação critica por banda do julgador é demasiado parca na motivação da sua convicção.

39º

Esta sentença é nula 615º/b/c/d do CPC

Nestes termos, deve o presente recurso ser aceite e julgado procedente, declarada a nulidade desta decisão, substituindo-se por outra que julgue a ação parcialmente procedente de acordo com os valores atribuídos pelo laudo do CSDOA

Se assim doutamente não se entender, devem os autos baixar para ampliação da matéria de facto, por omissão de pronuncia, porque assim VªExas. farão a costumada.

JUSTIÇA.» ([2]).

As RR. apresentaram contra-alegação, pugnando pela inadmissibilidade do recurso quanto à 2.ª R. e, em qualquer caso, pela total improcedência da apelação.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06) –, cabe saber:

a) Da inadmissibilidade do recurso quanto à R. sociedade (critério do valor/sucumbência);

b) Da(s) nulidade(s) da sentença;

c) Da necessidade de ampliação da matéria de facto, com baixa à 1.ª instância;

d) Da falta/insuficiência de fundamentação da decisão de facto;

e) Da não impugnação da decisão de facto;

f) Da ocorrência de erro de julgamento quanto à decisão de direito, no concernente à definição do crédito por honorários (e fixação do seu montante).


***

III – Fundamentação

A) Da inadmissibilidade do recurso quanto à R. sociedade

Tendo o A./Apelante apresentado recurso da sentença absolutória quanto a ambas as aqui RR. (1.ª e 2.ª), certo é que a parte recorrida, na sua contra-alegação, logo começa por invocar a inadmissibilidade do recurso quanto à R. sociedade (2.ª), por o valor do pedido formulado contra esta demandada, no montante (total) de € 1.845,00, não consentir apelação, tendo em conta o disposto no art.º 629.º, n.º 1, do NCPCiv..

Cabe, assim, conhecer desta questão.

Seguindo a jurisprudência do STJ – cfr. Ac. STJ de 01-09-2016, Proc. 2653/13.0TTLSB.L1.S1 (Cons. Ribeiro Cardoso), em www.dgsi.pt –, pode dizer-se:

«Traduzindo-se a coligação voluntária ativa na cumulação de várias ações conexas, que não perdem a respetiva individualidade, para aferição dos requisitos de recorribilidade, há que atender ao valor de cada um dos pedidos e não à sua soma» ([4]).

E na fundamentação desse aresto foi assim desenvolvido:

“Tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal que, para aferição dos requisitos de recorribilidade, há que atender ao valor de cada um dos pedidos e não à sua soma (cfr. neste sentido os acórdãos desta Seção Social de 18.02.2016, proc. nº 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 20 de Fevereiro de 2002, proc. nº 3899/01, de 30 de Junho de 2004, proc. nº 609/04, de 13 de Julho de 2004, proc. nº 1501/04, de 11 de Maio de 2005, proc. nº 362/05 e de 6 de Dezembro de 2006, proc. nº 3215/06), sendo que, no caso de coligação ativa voluntária a “cumulação não determina a perda da individualidade de cada uma das respectivas acções, não obstante se encontrarem inseridas no mesmo processo”, pelo que “os recursos das decisões (ou da decisão final) só serão admissíveis se e na medida em que os mesmos fossem admissíveis se processados em separado” (acórdão desta 4ª secção de 2.02.2005, processo 4563/04).

«A coligação traduz-se praticamente na cumulação de várias acções conexas» (ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, 1.º vol., p. 99), «visto que os autores se juntam, não para fazerem valer a mesma pretensão ou para formularem um pedido único, mas para fazerem valer, cada um deles, uma pretensão distinta e diferenciada» (ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, 3.º vol., p. 146). E, assim, «[n]a coligação à pluralidade das partes corresponde a pluralidade das relações materiais litigadas» (ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 1985, p. 161).”.

No mesmo sentido, indicando que, em caso de coligação e de apensação de ações, vale, “para efeitos de recorribilidade o valor parcelar” (e não o “somatório de valores parcelares”), apontam Abrantes Geraldes e outros, em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 753.

Ora, cabe, então, dizer que o que se aplica à coligação ativa voluntária vale também, mutatis mutandis, para a coligação passiva voluntária, como ocorre no caso dos autos [veja-se o despacho datado de 16/09/2020, a fls. 84 e 85 do processo físico, admitindo a coligação passiva, constituída na presente ação, como válida].

Assim sendo, para aferição do valor do pedido contra cada uma das RR., inerente sucumbência e decorrente admissibilidade do recurso, tem de atender-se ao “valor parcelar” (quanto a cada R.).

Com efeito, também na coligação passiva voluntária – em que a ação é intentada contra diversos demandados, coligados no processo por vontade da parte demandante, a qual poderia ter optado por intentar ação separada quanto a cada um dos réus – a cumulação não determina a perda da individualidade de cada uma das respetivas ações, apesar de inseridas no mesmo processo.

Daí que, também na coligação voluntária passiva, os recursos só serão admissíveis, tendo em conta a regra do valor e da sucumbência, se e na medida em que os mesmos fossem admissíveis se processados em separado.

Ora, in casu o valor do pedido quanto à R. sociedade é de € 1.845,00, e não mais, pelo que, quanto a esta R., não se encontra preenchido, desde logo, o critério/requisito do valor da alçada (é, consabidamente, de € 5.000,00 a alçada do tribunal de 1.ª instância), nem, em qualquer caso, o da sucumbência (teria de haver decaimento em, pelo menos, € 2.500,01) – cfr. art.º 629.º, n.º 1, do NCPCiv. e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 36 e seg..

Assim, considerando que o valor, relativamente à dita R. (2.ª), não ultrapassa os aludidos € 1.845,00, tem de concluir-se pela inadmissibilidade do recurso nessa parte.

Pelo exposto, é de julgar inadmissível o recurso interposto quanto à 2.ª R./sociedade.

  

B) Das nulidades da sentença

Invoca o A./Recorrente violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ªs b), c) e d), do NCPCiv., fazendo-o de forma algo desgarrada ao longo das suas conclusões (cfr. pontos 3.º e 36.º a 39.º do seu acervo conclusivo), perante o que o Tribunal a quo entendeu inexistir vício algum, no que coincidiu com a posição das Recorridas, que defenderam, por seu lado, não se verificar “nenhuma das nulidade apontadas” (cfr. a motivação das suas contra-alegações).

Cabe apreciar.

1. - Quanto à violação da al.ª b) do n.º 1 daquele art.º 615.º

Decorre deste normativo legal [dita al.ª b)] que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Dispõe o art.º 154.º do NCPCiv. que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas (n.º 1), sendo que, por regra, a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (n.º 2).

Com a formulação destes preceitos deu o legislador ordinário cumprimento ao imperativo constitucional de que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei (cfr. art.º 205.º, n.º 1, da Const. Rep. Port.).

Pretende-se, por esta via, garantir adequadamente o direito ao recurso e a legitimação da decisão judicial, que deve poder ser entendida – quanto ao percurso decisório e ao sentido da decisão –, facultando-se aos interessados o exercício eficaz dos meios legais de reação permitidos e acolhendo-se as compreensíveis exigências de transparência e de reflexão decisória do julgador, por forma a convencer os destinatários da bondade do decidido.

Estamos, pois, no campo das exigências de fundamentação da sentença – em termos de fundamentos de facto e de direito respetivos –, cuja violação é causa de nulidade da decisão proferida ([5]).

Vejamos, pois, se o Tribunal recorrido julgou improcedente algum pedido, com reporte à intentada ação de cumprimento e na parte em que é admissível recurso, sem especificar os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, incorrendo em falta absoluta de motivação, assim violando o seu dever de fundamentação da sentença proferida.

A pretensão da A. corporiza-se, no que agora importa (1.ª R., apenas), em pedido que corresponde à condenação, com referência a crédito por honorários, no pagamento da quantia de € 20.233,50, bem como juros de mora vincendos.

Invoca o A./Recorrente deficit de fundamentação, mormente da decisão quanto a factos provados e não provados (conclusões 3.ª e 36.ª a 38.ª), nem sequer existindo um elenco de factos não provados (conclusão 5.ª).

Ora, percorrido o iter decisório em matéria de facto, constata-se que, relativamente à ação principal (os presentes autos), consta da sentença um quadro de factos julgados provados – pontos fácticos 1 a 18 –, após o que se exarou, quanto a factualismo não provado: “Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra”.

Assim sendo, é fora de dúvida que a decisão recorrida contempla, como se impunha, um quadro de factos dados como provados, razão pela qual, nessa parte, inexiste, notoriamente, falta de fundamentação fáctica, no sentido, ademais, de uma falta total/absoluta de factos provados de suporte.

E, atenta a formulação adotada – que, diga-se, poderia ser mais expressiva, com elenco de factos não provados, mediante menção facto a facto –, também tem de concluir-se pela existência de factos não provados, ou seja, todos os demais constantes dos articulados, os não mencionados no elenco dos factos dados como provados.

Existe, pois, suficiente determinação dos factos que foram julgados como não provados, apenas ocorrendo ter aqui o conteúdo decisório dimensão remissiva, obrigando, por isso, à leitura conjugada daquele elenco dos factos dados como provados com a matéria alegada em sede de articulados (todos os factos alegados que não estejam contemplados/refletidos nos factos provados, são de ter como não provados).

Termos em que inexiste uma total/absoluta falta de indicação de factos não provados, o que afasta a invocada nulidade enquanto projetada sobre os factos relevantes.

Passando à motivação da decisão de facto, nota-se que a decisão recorrida elenca os fundamentos da convicção (cfr. ponto 2.3., intitulado “Motivação da resposta dada”), com indicação dos elementos probatórios em que o Tribunal se fundou, indicação essa até facto a facto no referente ao juízo positivo (cfr. ponto 2.3.1, quanto a factos provados).

E, relativamente ao juízo negativo (de “não provado”), também a 1.ª instância deu nota da sua apreciação sobre as provas, por reporte às provas documentais, testemunhais e por declarações de parte produzidas, concluindo pela revelada “vacuidade” da prova pessoal, por posições/declarações contraditórias (cada parte «defendeu “a sua dama”») e, em suma, fragilidades de argumentos e provas atendíveis.

Ou seja, também aqui inexistiria uma total/absoluta falta de fundamentação (da convicção probatória), sem esquecer, ademais, que a matéria de vícios – quando existam – da justificação da decisão de facto se prende já, não com a nulidade da sentença (a que alude o art.º 615.º do NCPCiv.), mas, no âmbito da modificabilidade da decisão de facto, com as causas de anulação da decisão/sentença, por deficiência, obscuridade ou contradição do veredito sobre pontos concretos da matéria fáctica, ou com a possibilidade de determinação pela Relação, ao Tribunal de 1.ª instância, de reforço de fundamentação, poderes estes do Tribunal ad quem que podem mesmo ser oficiosamente exercidos [cfr. art.º 662.º, n.ºs 2, al.ªs c) e d), e 3, do NCPCiv.].

Inexiste, pois, nulidade por falta (absoluta) de fundamentação, tal como não resulta que ocorra infração ao disposto no art.º 607.º, n.º 4, do NCPCiv. (cfr. conclusão 4.ª).

2. - Quanto à violação da al.ª c) do n.º 1 do mesmo art.º 615.º

Decorre deste normativo legal [al.ª c)] ser a sentença nula quando ocorra oposição/contradição entre os fundamentos e a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Ou seja, terá de haver uma contradição relevante entre os fundamentos e o dispositivo da sentença – por, perante o raciocínio em jeito de silogismo judiciário, os fundamentos (premissas) apontarem num sentido e o dispositivo (conclusão) apontar em sentido oposto ou divergente, destituindo o exercício inerente de qualquer lógica e razoabilidade –, ou um motivo de ambiguidade ou obscuridade, impedindo que se consiga captar, afinal, qual o verdadeiro sentido decisório pretendido.

Quer dizer, em qualquer destes casos a decisão, tal como formulada, terá de quedar-se ininteligível.

Ora, apreciando, dir-se-á que, após elencar os factos julgados provados – e, por referência a estes, o material fáctico dado como não provado –, o Tribunal recorrido passou à fundamentação de direito, seguida do dispositivo absolutório.

Quanto ao quadro fáctico aludido, não se vê – nem o Recorrente o mostra – onde haja contradição, seja entre factos provados (uns perante os outros), seja entre estes e os não provados, seja perante a fundamentação de facto ou já a de direito ou, finalmente, perante o dispositivo, inexistindo também ambiguidade ou obscuridade.

O mesmo se diga na análise entre factos e fundamentação jurídica e entre esta e o dispositivo, tendo a 1.ª instância concluído que, perante um “contrato de mandato forense”, de si bilateral e oneroso, o A./Recorrente não logrou demonstrar ter algum crédito sobre a contraparte, motivo pelo qual esta foi absolvida (dispositivo), na ação de cobrança de crédito não demonstrado.

Por isso, inexiste contradição, ambiguidade ou obscuridade, antes havendo de concluir-se pela inteligibilidade da decisão absolutória proferida.

Donde que improceda também esta invocada causa de nulidade daquela sentença.

3. - Quanto à omissão de pronúncia [al.ª d) do n.º 1 do mesmo art.º 615.º]

         Invoca ainda o Recorrente, como norma violada, o disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., sendo, porém, que não identifica cabalmente, no seu acervo conclusivo, qual a concreta questão que, devendo ser solucionada, ficou por conhecer na sentença, apenas continuando a remeter, se bem se entende, para o plano do julgamento dos factos (falta de pronúncia sobre requerimento de prova e sobre factos, como invocado sob as conclusões 13.ª e 18.ª).

Não menciona, por isso, qualquer questão jurídica que tivesse ficado por responder/apreciar.

         Ora, nos termos do dispositivo legal assim convocado, é nula a sentença quando o juiz “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (sublinhado aditado).

E, como é consabido, são as conclusões formuladas pela parte recorrente, com reporte à decisão impugnada, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, devendo, por outro lado, ser respeitada a regra do duplo grau de jurisdição, também em matéria de direito, de molde a não prejudicar o direito ao recurso que assiste às partes, não cabendo ao Tribunal de recurso decidir questões que o Tribunal recorrido não apreciou (criar direito novo), mas sim sindicar a bondade do que haja sido decidido na instância inferior (apreciar o julgado por outro Tribunal).
          Ainda por outro lado, pode ocorrer que as partes, não concordando com o sentido da decisão proferida, venham invocar omissão ou excesso de pronúncia, a falta de decisão devida ou o extravasar para decisão indevida, para obterem um diverso veredito, uma inversão da decisão judicial proferida.
          Em tais casos, porém, o que pode ocorrer é uma divergência face ao sentido decisório adotado, o que se prende já, não com os vícios formais da decisão (nulidades da sentença), mas com o mérito da mesma, com o fundo da questão, o que já encerrará matéria de direito, prendendo-se com um eventual erro de julgamento de direito.
          Acresce ainda que, como vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência, somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa – como seja, o conhecimento dos pedidos formulados e das exceções deduzidas – ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no aludido preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([6]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([7]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([8]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([9]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.
          No caso dos autos, teria a parte apelante de fazer constar das suas conclusões recursivas a indicação da específica questão em sentido técnico que houvesse ficado por conhecer, para o que não bastava mencionar ali, sem mais, a violação do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv..
          Todavia, a dita matéria de provas e factos (sua admissão e ponderação/decisão), nos moldes invocados, não configura qualquer questão integrante do thema decidendum.
          É certo que a rejeição de algum meio de prova (e a falta de pronúncia sobre requerimento de prova poderia, eventualmente, corresponder, tacitamente, à não admissão dessa prova, vista a consequência processual daí emergente) pode dar guarida a um recurso de apelação autónoma, nos moldes previstos no art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv., caso em que, interposta tal apelação autónoma (no tempo próprio), a questão decidenda teria de se prender com a rejeição do meio de prova e respetiva fundamentação.
          Porém, não é essa a situação dos autos, posto aqui não estar em causa um qualquer recurso de apelação autónoma, em matéria de rejeição probatória, o qual seria agora extemporâneo.
          A apelação interposta é apenas da sentença – absolutória – proferida, e não mais, como logo resulta do requerimento de interposição, em conjugação com o pedido recursivo.
          E, nesse horizonte, as questões técnicas de que se impunha conhecer na sentença não se reportavam, em concreto, como visto, às provas e aos factos mencionados.
          Em suma, improcede toda a matéria de nulidade da sentença.

          C) Da ampliação da matéria de facto

Esgrime o Apelante que faltou “pronuncia sobre os factos constantes da resposta á matéria de exceção e documentos, aonde são bem explicitados a natureza dos recibos emitidos” (conclusão 18.ª), podendo daqui extrair-se que pretenderia ampliação da matéria de facto nesta esfera, ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv..

Mas, se assim pretendesse, líquido é que teria o impugnante o ónus de indicação dos factos concretos que deveriam ser objeto de ampliação (dentre os articulados), tendo em conta até o lugar paralelo do art.º 640.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv. [os concretos pontos de facto a deverem caber na ampliação]. Se assim não fosse, teria de ser o Tribunal de recurso a entrar em conjeturas ou suposições – o que, manifestamente, não lhe cabe fazer – sobre quais os factos que a parte considerasse relevantes para efeito de ampliação, âmbito em que, por outro lado, ficaria tolhido, neste aspeto, o exercício indispensável do contraditório (pela parte recorrida).

Ora, neste particular o Recorrente não indica quaisquer concretos factos alegados que pretendesse fossem aditados, em ampliação da matéria de facto, razão pela qual, não cabendo ao Tribunal substituir-se-lhe, logo tem de improceder esta vertente do recurso.

Quanto ao que consta das conclusões 23.ª a 30.ª, aludindo o A./Apelante, a respeito, aos factos alegados “a partir do artigo 20 da sua p.i.”, caso pretendesse tal demandante, por esta via, a ampliação da matéria de facto, também teria aqui de concluir-se pela improcedência da pretensão recursiva de ampliação, pela simples razão de que não se trata de matéria que pudesse ser ampliada, uma vez que foi julgada, já, como não provada na sentença – veja-se o exarado supra quanto à amplitude da formulação do Tribunal a quo relativamente a factos julgados não provados.

Assim, não se trata, nesta perspetiva, de factos não tidos em conta e que devessem ser agora trazidos à discussão, por via de ampliação, mas de factos já discutidos e julgados (dados como não provados), como tal, integrantes do objeto da sentença proferida, na qual, assim, não se deteta lacuna fáctica que devesse ser suprimida, ao abrigo do art.º 662.º, n.ºs 2, al.ª c), e 3, al.ª c), do NCPCiv., mediante a anulação da decisão e repetição parcial do julgamento (em 1.ª instância).

Daí, pois, a improcedência também das conclusões do Apelante em contrário.

D) Da falta/insuficiência de fundamentação da decisão de facto

Invoca o A./Apelante que a sentença recorrida incorreu em falta/insuficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto (cfr. conclusão 4.ª), violando o disposto no art.º 607.º, n.º 4, do NCPCiv., segundo o qual, na fundamentação da sentença, «o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência» (itálico aditado).

Com efeito, em matéria de fundamentos da sentença, deve “o juiz discriminar os factos que considera provados”, apreciando “livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto” (n.ºs 3 e 5 do mesmo art.º).

Relevante também, como já aludido, quanto à fundamentação da decisão da matéria de facto, é o art.º 662.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv., segundo o qual a Relação deve, mesmo oficiosamente, determinar “que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.

Esgrime o A./Recorrente ser a fundamentação da matéria de facto insuficiente, quanto a factos provados e não provados, concretizando que o Tribunal a quo optou por enunciação demasiado simplista e genérica, sem indicar, quanto à sua convicção negativa (factos não provados), o quadro de factos julgados como não provados, nem o fundamento da convicção (conclusões 4.ª e 5.ª).

Ora, liminarmente se dirá que – como, aliás, já referido – da sentença em crise consta a indicação dos factos julgados provados, a menção dos não provados – por remissão, mas de forma claramente determinável – e, bem assim, a referência às provas que foram decisivas para formação da convicção, até com indicação facto a facto, no respeitante à convicção positiva, e com explicitação do percurso seguido para formação da convicção negativa, permitindo claramente o controlo pelas partes e pelo Tribunal de recurso.

Com o que, não obstante a forma sintética adotada para a exteriorização dos motivos da convicção, deixa a 1.ª instância transparecer a forma como o respetivo Julgador se convenceu.

Se o fez bem ou mal, é já matéria que se prende com a correção do decidido: não com a justificação/fundamentação e transparência da decisão, mas com um eventual erro de julgamento de facto, este a só poder, todavia, ser sindicado em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, se cumpridos os inerentes requisitos, de acordo com as diretrizes do art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv..

Não há, pois, salvo o devido respeito, falta notória de motivação – aquela que é necessária para a compreensão e controle da decisão –, apenas podendo ocorrer, se tal for demonstrado, errada decisão e motivação (erro de julgamento), esta, a verificar-se, a impor a alteração, pela Relação, do sentido decisório adotado, e não a determinação de apresentação de motivação/fundamentação a que se reporta o n.º 2, al.ª d), daquele art.º 662.º.

Não é, pois, caso – sem prejuízo de se poder reconhecer que poderia a 1.ª instância ter ido mais longe quanto a uma concreta fundamentação probatória facto a facto (relativamente aos dados como provados e aos não provados) – de recurso ao disposto no art.º 662.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv., o que não é exigido para efeitos de controlo recursório no âmbito de eventual impugnação da decisão da matéria de facto.

Donde a improcedência, também nesta parte, das conclusões do recurso.

E) Da não impugnação da decisão de facto

O A./Apelante, no seu acervo conclusivo, alude reiteradamente a elementos de prova, designadamente prova documental (conclusões 7.ª a 10.ª, 16.ª, 21.ª, 33.ª e 34.ª), por declarações de parte (conclusão 22.ª) e testemunhal (conclusões 2.ª e 37.ª), pelo que poderia pensar-se que fosse seu objetivo impugnar a decisão da matéria de facto.

Porém, o certo é que o Recorrente não mostra discordar da factualidade estabelecida como provada – ou da julgada não provada –, antes esgrimindo que deveria ser outra a interpretação da “declaração de quitação”, que deve operar a “inversão do ónus da prova”, cabendo às RR. “provar o seu pagamento” (cfr. conclusões 7.ª, 8.ª, 13.ª, 15.ª e 17.ª).

Razão pela qual não indica, seja nas suas conclusões, seja na motivação/alegação que as precede, quaisquer factos que devessem ser julgados de forma diversa.

O A. contesta que se tenha provado o pagamento. Mas fá-lo em termos de apreciação de direito, perante os factos dados como provados, e não no plano fáctico, âmbito em que se conforma com o ponto fáctico 18 (do factualismo dado como provado), do qual consta que «O Autor, a 12 de janeiro de 2018, emitiu e assinou uma Declaração na qual declara que estavam pagos todos os honorários devidos, além de outros, às aqui Rés pelos serviços que este lhe prestou até então, sendo que esta declaração foi nessa mesma data remetida à Primeira Ré, por email», apenas não se conformando, assim, com uma determinada interpretação (já, pois, no plano jurídico) da declaração a que se reporta esse facto.

Ou seja, embora o Apelante aluda, no seu acervo conclusivo, a diversos elementos de prova (prova testemunhal, por declarações e documental), certo é que não deduziu, em rigor, impugnação (alguma) contra a decisão relativa à matéria de facto.

Assim é que não indicou/sinalizou, nem nas conclusões nem na antecedente alegação/motivação, quaisquer factos – dentre os dados como provados ou não provados – que fossem objeto de impugnação, que devesse a decisão de facto ser alterada ou que factos concretos devessem agora, em sentido divergente ao decidido em 1.ª instância, ser dados como provados ou não provados ([10]).

Termos em que, como bem se compreende, não se preocupou em observar os ónus legais a que alude o art.º 640.º, n.º 1, al.ªs a) a c), do NCPCiv., tal como não cuidou de dar cumprimento ao ónus previsto no n.º 2, al.ª a), do mesmo dispositivo legal (indicação com exatidão, quanto à prova pessoal gravada, das passagens da gravação áudio em que fundasse a impugnação).

Caso assim não fosse entendido, então teria de dizer-se que, mencionada prova pessoal (por declarações de parte e testemunhal), a não indicação de quaisquer passagens da gravação de depoimentos/declarações a sindicar, incumprindo-se ónus legal imperativo, logo implicaria a rejeição da impugnação nessa parte. E, desde logo, a não especificação – nem na motivação, nem nas conclusões – dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios de prova que impusessem decisão diversa em relação a concretos factos efetivamente julgados e, outrossim, da decisão divergente a dever ser proferida sobre questões de facto relevantes, sempre obrigaria à liminar e total rejeição da eventual impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

É que, segundo aquele art.º 640.º:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

(…)».

Assim, ao impugnar a decisão da matéria de facto, o recorrente, sob pena de rejeição, deve indicar, para além dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, enunciando-os na motivação de recurso e sintetizando-os nas respetivas conclusões, os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, impunham decisão diversa da adotada quanto aos factos impugnados, indicando com exatidão, se for o caso, as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição ([11]), não podendo, ainda, demitir-se de explicitar o sentido decisório pretendido (a decisão a dever ser proferida sobre cada um dos segmentos factuais impugnados).

É sabido que, em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve acesso, tratando-se, assim, da verificação quanto a um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas (formação e fundamentação da convicção), aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.

Para tanto, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer o seu julgamento dessa específica matéria de facto, formando a sua própria convicção, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados – os objeto de recurso, no mesmo delimitados –, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados, designadamente certos depoimentos indicados pela parte recorrente.

Como explicita Abrantes Geraldes ([12]), “A motivação do recurso é de geometria variável, dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões”. E acrescenta que se, “para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspectiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir os objectivos pretendidos” ([13]).

Especificamente em matéria de impugnação da decisão de facto, à luz do art.º 640.º do NCPCiv., refere o mesmo Autor:

“… podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora passa a vigorar sempre que o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;

d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto” ([14]).

Para depois concluir: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida …” ([15]).

Assim sendo, constituindo as conclusões o mecanismo de delimitação do âmbito do recurso, delas deve constar o respetivo objeto, também em matéria de impugnação da decisão de facto, seja quanto ao âmbito fáctico da impugnação recursória (concretos pontos de facto impugnados, por incorretamente julgados), seja quanto ao seu âmbito probatório (concretos meios de prova que, fundamentadamente, obrigam a decisão diversa da recorrida).

Ante este quadro referencial, claro se torna – salvo o devido respeito por diverso entendimento – não ter o A./Apelante observado, se fosse sua intenção impugnar (efetivamente) a decisão de facto, os mencionados ónus legais, de feição imperativa, inelutavelmente a seu cargo.

Em suma, a impugnação não seria admissível e, ainda que assim não fosse entendido, nunca poderia proceder, termos em que se queda inalterado o quadro fáctico da sentença em crise.

F) Matéria de facto apurada

1. - É a seguinte a factualidade julgada provada em 1.ª instância:

«1. O autor é advogado com escritório no concelho ..., comarca ..., fazendo da advocacia, profissão habitual e lucrativa, em conjunto com seu filho DD, também advogado.

2. O autor vive em exclusivo dos rendimentos da sua actividade profissional.

3. A segunda Ré é representada pela primeira, Sr.ª BB, que é sua sócia-gerente, e ambas contrataram o autor para lhe prestar diversos serviços de advocacia.

4. A Ré, inicialmente, em outubro de 2016, já pretendia constituir uma sociedade anónima de títulos ao portador, mas como estava para ser legislado, a proibição desta tipologia de sociedade, devendo as existentes serem convertidas em nominativas, em cumprimento de uma diretiva comunitárias para prevenção da fraude fiscal e a lavagem de dinheiro a dita sociedade não foi constituída.

5. A R informou o autor que pretendia que fosse a E... SA, a empresa a constituir, devendo as ações serem ao portador e envia-lhe a respectiva percentagem na distribuição de títulos e a Administração tendo já pedido o certificado de admissibilidade de firma:

1) A sua sogra EE ficaria com 40%

2) O seu companheiro FF com 25%

3) A R BB com 25% e administradora

4) Seu sogro 5% GG 5%

5) Seu Filho HH 5%

6. Mais tarde também pretendia que sua cunhada II ficasse a ficar na sociedade detendo com 5 %, substituindo seu sogro, sendo depois suspendeu os trabalhos tendo em vista a constituição deste tipo de sociedade.

7. A R depois de obter total informação sobre a génese da sociedade por ações nominativas, pede para lhe ser constituída uma sociedade desta tipologia por transformação da E... Ldª.

8. Já com o contrato de sociedade anonima elaborado e distribuição das respetivas ações nominativas, a R decidiu abandonar a ideia da constituição da referida sociedade anónima, com ações nominativas.

9. Para dizer, que agora pretendia obter informação detalhada de como constituir uma sociedade “offshore”, a incorporar em Gibraltar, tipo de contrato, custos associados, modo de constituição, vantagens, inconvenientes e implicações fiscais, tendo em vista a aquisição de todo património imobiliário da sua sogra.

10. O escritório desenvolveu o respetivo estudo, prestou a completa informação de como incorporar este tipo de sociedade, em Gibraltar, e como a mesma poderia exercer a sua actividade em Portugal, suas implicações fiscais, tendo-lhe sido a final disponibilizado um modelo de contrato para este tipo de sociedade.

11. Entretanto, no final de Fevereiro de 2018 a primeira Ré havia solicitado ao A que lhe patrocinasse o seu direito indemnizatório com a Companhia de seguros D... consequente de um incêndio que ocorreu no seu imóvel Urbano, localizado em ..., porquanto o quantitativo de 18.538,69€ que lhe foi atribuído pela Seguradora era muito inferior ao valor dos prejuízos.

12. O autor endereçou carta à Seguradora na qual a instou a pagar um valor indemnizatório adequado sob pena de recorrer a Tribunal.

13. A Ré revogou a procuração outorgada ao Autor.

14. A R por email enviou diversos documentos, de indeferimento de visto a 20 trabalhadores do Bangladesh, a quem o Consolado de Portugal na India se preparava para indeferir, os seus pedidos, por eventual falsificação de documentos conforme estava transcrito na motivação da recusa de visto.

15. A segunda Ré representada pela BB, solicitou a meados de dezembro de 2017, no escritório do A, o patrocínio na defesa de uma contraordenação autuada com o numero ...70, pelo Instituto da Mobilidade e Transportes I.P. , na qual á segunda Ré foi-lhe aplicada a coima mínima de 5 000,00€, cujo limite máximo era de 15.000,00€, acrescida de custas no valor de 42,56€, no montante global de 5.042,56€.

16. Isto porque, no dia 4/04/2017, pelas 9 horas e 22 minutos o veículo matrícula ..-Pl-.. propriedade da segunda Ré estaria na EN ao quilometro 333-3, Oliveira de Frades, comarca de Viseu a efetuar um transporte de mercadorias, sem que para tal estivesse licenciado.

17. O referido auto foi enquadrado e tecnicamente estruturada a sua defesa, sendo que as autoridades administrativas, face á defesa apresentada, não desenvolveram o procedimento contraordenacional tempestivamente, o que por consequência, o mesmo já se encontra prescrito, nos termos do Regime Geral das Contraordenações

18. O Autor, a 12 de janeiro de 2018, emitiu e assinou uma Declaração na qual declara que estavam pagos todos os honorários devidos, além de outros, às aqui Rés pelos serviços que este lhe prestou até então, sendo que esta declaração foi nessa mesma data remetida à Primeira Ré, por email.».

2. - E resulta julgado como factos não provados:

«Todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra.».

G) Impugnação da decisão de direito

O Tribunal recorrido julgou improcedente a ação com fundamento em falta de prova, não quanto ao pagamento, mas, desde logo, quanto à existência do crédito.

E é certo que numa ação de cumprimento – como o é a ação de honorários de advogado – cabe ao demandante o ónus da alegação e prova da existência do seu invocado crédito (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), muito embora seja também pacífico que, uma vez que se logre demonstrar a existência do crédito, o pagamento não se presume (por se tratar de matéria, situada a jusante, de exceção perentória extintiva, que, beneficiando o réu/devedor, deve por este ser objeto de prova, de acordo com o n.º 2 daquele art.º 342.º).

O A./Recorrente manifesta o seu inconformismo perante a decisão jurídica proferida, pretendendo fazer crer que a declaração de quitação, por si emitida/assinada, datada de 12/01/2018, onde assegurava estarem pagos todos os honorários devidos, além de outros, pelas aqui RR., pelos serviços prestados até então, não contemplava os serviços agora em discussão, por estes terem sido prestados ou continuados após tal declaração de quitação, devendo, pois, ser pagos a final, o que não ocorreu.

Na sentença foi entendido, perante contrato qualificado como de “mandato forense”, que «o autor prestou às Rés serviços que se mostram discriminados nos factos provados», assistindo-lhe, por isso, «o direito de ser retribuíd[o] pelo trabalho que desenvolva na defesa dos interesses do demandado bem como ser reembolsado das despesas que suportou na execução do mandato, compensação económica adequada pelo serviço prestado». Todavia, logo se acrescentou: «haveria o Autor de ter provado, o que não logrou conseguir que efetivamente algum crédito detenha sobre as Rés, outrossim é do seu punho a assinatura aposta em documento de quitação em que se declara efetivamente pago pelos serviços prestados. Não tendo provado que detenha efetivo direito de crédito sobre as Rés impõe-se em ambos os casos decidir pela improcedência da ação.».

Assim sendo, o que importa saber agora é se, após a dita declaração de quitação, vem provado que o A. continuou a prestar serviços de advocação à 1.ª R., que esta ainda não tenha mostrado ter pago.

Ora, perante o teor da mencionada declaração de quitação – adequadamente interpretada –, é pacífico que (todos) os serviços prestados anteriormente a 12/01/2018 foram integralmente pagos.

Cabia, assim, na economia dos autos, ao A./Recorrente provar/demonstrar que outros serviços posteriores houvesse prestado àquela R., caso em que, obtida tal prova, caberia à demandada, por seu lado, provar o pagamento respetivo (o qual, consabidamente, não se presume).

Ora, compulsada a factualidade provada, nota-se que apenas no facto 11 se alude a uma data claramente posterior à da declaração de quitação ([16]).

Ali se refere que, já no final de fevereiro de 2018, a 1.ª R. solicitou ao A. que lhe patrocinasse o seu direito indemnizatório perante «a Companhia de seguros D... consequente de um incêndio que ocorreu no seu imóvel Urbano, localizado em ..., porquanto o quantitativo de 18.538,69€ que lhe foi atribuído pela Seguradora era muito inferior ao valor dos prejuízos».

E sabe-se que, perante isso, o A./Recorrente «endereçou carta à Seguradora na qual a instou a pagar um valor indemnizatório adequado sob pena de recorrer a Tribunal» (facto 12).

Após o que apenas se apurou que «A Ré revogou a procuração outorgada ao Autor» (facto 13).

Não resulta, pois, que tenha sido necessário recorrer aos tribunais, nem que o A. tenha feito mais do que elaborar e enviar a dita missiva (obviamente, com fundamentação a respeito, implicando prévia ponderação técnica/jurídica), instando a seguradora a pagar «um valor indemnizatório adequado».

Também não resulta se foi acordado o pagamento de honorários e em que montante, ou com sujeição a que critério determinativo, visto que o A. apenas elaborou e remeteu, que se veja, à seguradora a referida carta.

Admite-se como (muito) provável que esta tarefa pedida ao A., por posterior, extravase o âmbito da declaração de quitação, da qual não resulta qualquer previsão quanto a serviços futuros, antes sendo claro o seu texto na referência aos “serviços prestados até então” (e só esses).

Mas também se pondera que se tratava de relação profissional, entre as partes, que se prolongava já por vários anos de prestação dos serviços de advocacia, com a inerente confiança entre A. (advogado) e RR. (clientes), relação essa, aliás, de pendor intuitu personae ([17]), onde deve imperar a boa-fé, com a sua regra de conduta, postulando um comportamento pautado pela lealdade, correção e honestidade.

Seguro é, todavia, que se tratava de exercício profissional da advocacia pelo A., presumindo-se um tal mandato como oneroso, o que, aliás, foi sublinhado na decisão recorrida, sob convocação do disposto no art.º 1158.º, n.º 1, 2.ª parte, do CCiv..

Ou seja, tratando-se de serviço profissional prestado após a declaração de quitação e nela não abrangido, em contrato que se presume oneroso, cabia à 1.ª R., que solicitara o patrocínio, provar: (i) que no caso foi convencionado não haver pagamento de honorários; ou (ii) que os honorários já, entretanto, foram pagos, total ou parcialmente (matéria de exceção, cuja prova cabe à demandada).

Ora, nem se prova qualquer convenção de não cobrança de honorários de advogado, nem o respetivo pagamento, razão pela qual deve a 1.ª R. ser considerada devedora da remuneração correspondente ao serviço profissional assim prestado.

Todavia, desconhece-se se a medida dos respetivos honorários foi previamente acordada (por montante fixo ou por critério de determinação), se a intervenção do advogado foi coroada de sucesso e em que montante e se houve, ou não, entendimento posterior quanto ao que fosse devido a respeito.

Importa, então, verificados, nesta parte, os pressupostos da obrigação no âmbito contratual, procurar determinar o quantum da prestação de honorários a suportar pela 1.ª R. (cliente).

Porém, como sinalizado já, estando apurada a existência deste crédito e, como tal, sendo indesmentível o empobrecimento do A. (credor), não é (ainda) possível proceder à sua completa quantificação.

Nada obsta, no entanto, a um juízo de prognose positiva quanto à possibilidade futura de prova do que nesta sede não foi conseguido: o valor dos concretos honorários, em função, como dito, do que haja sido acordado (ou não) ou da valia da intervenção do advogado (por referência ao montante obtido em acréscimo/ganho, face ao que havia sido fixado pela seguradora), e a existência, ou não, de provisão e respetivo montante (a descontar ao valor final).

Com efeito, prevê o art.º 609.º, n.º 2, do NCPCiv., que, não havendo “… elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.

Parece adequado para o caso dos autos considerar, apurado que a obrigação existe, mas faltando determinar o seu quantitativo, que seria excessivo, na perspetiva da obtenção da justiça material, absolver agora a parte demandada/devedora da prestação – sabe-se que esta deve pagar e é ainda possível apurar o quantum respetivo.

Donde que seja de relegar o quantum da condenação nesta parte para ulterior incidente de liquidação, pois que se perspetiva como possível que outras provas sejam apresentadas pelas partes.

Esta vem sendo a perspetiva da jurisprudência maioritária, a que também aderimos, quando se prova o dano mas não o respetivo quantum (cfr. art.ºs 609.º, n.º 2, do NCPCiv. e 566.º, n.º 3, do CCiv.).

Tanto mais que, atentos os contornos do caso, parece insuficiente, na incerteza quanto ao demais anteriormente referido, convocar de imediato – e sem mais – os critérios previstos no EOA para a fixação de honorários.

Como vem entendendo o STJ e aqui se acolhe:

«I - Numa acção em que a autora (…) pretende que a ré seja condenada a pagar-lhe o valor que lhe diz ser devido a título de honorários e despesas pelos serviços que a solicitação desta lhe prestou no exercício da actividade de advocacia, está em causa um contrato de mandato que, por ser exercido no âmbito de actividade profissional, se presume oneroso, determinando a lei, no que respeita à fixação da remuneração, que se atenda, antes de mais, ao ajuste (prévio ou posterior) entre as partes; na sua falta, às tarifas profissionais; na falta de ambos, aos usos; e, na falta de qualquer dos critérios anteriores, a juízos de equidade (arts. 1157.º e 1158.º, n.º 2, do CC).

II - Não tendo havido acordo entre as partes no que respeita ao montante, ou à forma da respectiva fixação, dos honorários da autora, encontram-se estabelecidos critérios legais, se bem que não taxativos, que constavam do art. 65.º, n.º 1, do anterior EOA, aprovado pelo DL n.º 84/84, de 16-03, e que constam do art. 100.º, n.º 1, do actual EOA, aprovado pela Lei n.º 15/05, de 26-01 (…).» ([18]).

Acresce ser bem sabido que, atenta a natureza da matéria em questão e a relação contratual de confiança que se estabelece entre as partes – relação de nítido pendor intuitu personae (onde deve imperar, como dito, o princípio da boa-fé) –, se é inafastável a prolação de um juízo com alguma margem de discricionariedade, sem, obviamente, se cair no arbítrio, tal também impõe que se fixem factos mínimos de suporte, nos moldes antes descritos, fixação essa, por ora, ainda impossível em plenitude nestes autos.

Neste âmbito, não colheria o argumento, em contrário, de se estar a beneficiar uma das partes em detrimento da outra, violando-se os princípios da igualdade das partes e do contraditório.

Com efeito, a igualdade das partes e o contraditório continuarão a vigorar, obviamente, também na subsequente fase incidental da liquidação e, se é certo que se concede a uma das partes uma nova oportunidade de provar o quantum da obrigação, tal só ocorre depois de estar demonstrada a própria obrigação e na perspetiva do bem maior da justiça material ([19]).

Donde que, em vez de beneficiar uma das partes com nova oportunidade probatória, o que está em causa é o escopo de obtenção da justiça material, fim último do processo ([20]).

Termos em que tem de condenar-se agora, com revogação da sentença absolutória nesta parte e substituição ao Tribunal recorrido, mas sem necessidade de nova observância do princípio do contraditório, por já observado em matéria de honorários (art.º 665.º, n.ºs 2 e 3, do NCPCiv.), no que vier a liquidar-se em adequado/ulterior incidente de liquidação.

Procede, portanto, em parte a apelação (quanto à 1.ª R./Recorrida).

(…)

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar inadmissível o recurso interposto quanto à 2.ª R./sociedade;
b) Julgando procedente em parte a apelação quanto à 1.ª R., BB, condenar esta R., na procedência em parte da ação, a pagar ao A., dentro do peticionado, a quantia que vier a ser liquidada, em ulterior incidente de liquidação, como correspondente aos honorários de advogado pelos serviços prestados a que aludem os factos provados 11 e 12 [cfr., supra, III, F)];
c) Julgando em tudo o mais improcedente a apelação, manter nessa parte a decisão absolutória recorrida.
Custas da ação e da apelação pelo A./Recorrente e pela 1.ª R./Recorrida, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa provisoriamente em 75% para o A. e 25% para aquela R., sem prejuízo de adequada definição na ulterior fase de liquidação.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior)

Assinaturas eletrónicas


Coimbra, 04/06/2024

Vítor Amaral (relator)

Rui Moura

 Carlos Moreira


([1]) Paralelamente, o mesmo A. intentou contra a sociedade “B..., Ld.ª”, também com os sinais dos autos, a ação apensa (com o n.º 734/19....), tendo ali sido decidida a apensação aos presentes autos (com n.º 735/19....), razão pela qual passaram a correr termos em tramitação conjunta.
([2]) Destaques retirados.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Sumário daquele Ac..

([5]) É pacífico, todavia, o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv. ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais. Como Alberto dos Reis já ensinava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 140 –, deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
([6]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([7]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([8]) In Dos Recursos, Quid Júris, p. 117.

([9]) Cfr. Manual de Processo Civil, p. 686.
([10]) Pretensão diversa era a, já focada, de que o Tribunal recorrido não se teria pronunciado sobre certa factualidade alegada, razão pela qual deveria determinar-se a ampliação da matéria de facto.
([11]) Cfr. art.º 640.º do NCPCiv., bem como Abrantes Geraldes, op. cit., ps. 126 e segs., e Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 153, e ainda, no mesmo sentido, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, Lisboa, págs. 253 e segs.. Vide também Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80. No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do STJ, podendo ver-se, por todos, os Ac. desse Tribunal Superior de 04/05/2010, Proc. 1712/07.3TJLSB.L1.S1 (Cons. Paulo Sá), e de 23/02/2010, Proc. 1718/07.2TVLSB.L1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
([12]) Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 115. 
([13]) Op. cit., p. 118, com itálico aditado.
([14]) Op. cit., ps. 126 e seg., com negrito aditado.
([15]) Cfr. op. cit., ps. 128 e seg..
([16]) Já os factos dos pontos 15 a 17, por seu turno, são reportados a solicitação datada de «meados de dezembro de 2017» (anterior, pois, à declaração de quitação), desconhecendo-se até quando duraram os respetivos serviços prestados, termos em que não pode ter-se como assente que se tenham prolongado, ante os factos provados, para depois da emitida quitação. Sabe-se que «17. O referido auto foi enquadrado e tecnicamente estruturada a sua defesa, sendo que as autoridades administrativas, face á defesa apresentada, não desenvolveram o procedimento contraordenacional tempestivamente, o que por consequência, o mesmo já se encontra prescrito, nos termos do Regime Geral das Contraordenações», mas desconhece-se até quando foram prestados os respetivos serviços, pelo que não se pode retirar que não hajam sido contemplados na declaração de quitação.
([17]) Este aspeto normal do contrato implica uma particular relação de confiança entre as partes, razão por que cumpre assinalar o seu intuitus personae.
([18]) Assim o sumário – com itálico aditado – do Ac. STJ, de 20/01/2010, Proc. 2173/06.0TVPRT.P1.S1 (Cons. Silva Salazar), disponível em www.dgsi.pt.
([19]) Assim também, entre outros, o Ac. do STJ, de 25/03/2010, Proc. 203/2001.S1 (Cons. Sousa Leite), em www.dgsi.pt.
([20]) Neste sentido, o Ac. TRC de 09/05/2017, Proc. 2440/13.6TBLRA.C1 (relatado pelo aqui relator), em www.dgsi.pt.