Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2873/10.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Data do Acordão: 10/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.102, 206 CIRE
Sumário: 1. A apreciação sobre se a factualidade alegada pelo credor integra ou não a previsão da al. a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, implica que se proceda a um exercício de prognose, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.

2. Tendo sido reconhecidos pela Administradora da Insolvência, créditos no valor de cerca de € 2.000.000,00, gozando de garantias e privilégio imobiliário créditos no montante de € 427.000,00, não atingindo € 275.000,00 o valor dos bens apreendidos, considerando a natureza comum do crédito da credora/recorrente, terá que se concluir que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente mais favorável do que a que resultaria da ausência desse plano.

3. Revela-se aplicável ao contrato de locação financeira, em que é locatária a insolvente, o regime enunciado no artigo 102.º do CIRE.

4. Optando o administrador da insolvência, pela execução do contrato, pode o locador invocar o n.º 4 da referida norma, que prevê a reposição do equilíbrio de interesses em presença, através da possibilidade de qualificação como abusiva de tal opção.

5. Perante o incumprimento do contrato por parte da massa insolvente [ou mesmo a sua mera previsibilidade, por se revelar “manifestamente improvável” o cumprimento”], assiste à locadora a faculdade de suscitar a intervenção do tribunal, através de uma acção declarativa, que correrá por apenso à insolvência,

6. Provando o incumprimento ou a “manifesta improbabilidade” de cumprimento, assistirá à credora (locadora financeira) o direito à entrega do bem locado, constituindo as prestações vencidas um crédito sobre a insolvência.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
Foi apresentado pela sociedade devedora T (…) Lda.”, o plano de insolvência constante de fls. 452 a 480 dos autos, com as alterações constantes de fls. 495 a 497.
Na assembleia de credores realizada no dia 17 de Dezembro de 2010, tal plano foi aprovado por maioria de dois terços dos votos emitidos.
Foi dada publicidade à deliberação, nos termos do artigo 213.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Logo na assembleia, os credores “Instituto da Segurança Social, I.P.” e Fazenda Nacional requereram ao Tribunal a recusa oficiosa da homologação do plano aprovado com fundamento na violação de normas imperativas, mormente, a Lei Geral Tributária e o Decreto-Lei n.º 411/91 de 17 de Outubro, tendo tal pretensão sido indeferida por despacho de fls. 617 a 625.
Também a credora “Banco (…)” veio requerer a recusa de homologação, através do requerimento de fls. 550 a 589, com fundamento na alegada inviabilidade da sua execução, e bem assim, no facto de a sua execução comportar para si um resultado manifestamente mais desfavorável do que o que resultaria da liquidação da sociedade.
Mais alegou a referida credora: que reclamou um crédito no valor de € 232.326,18 (duzentos e trinta e dois mil trezentos e vinte e seis euros e dezoito cêntimos); que tal crédito foi reconhecido pela Senhora Administradora da Insolvência, a qual, conforme lhe tinha sido proposto por esta credora, optou pelo cumprimento do contrato de locação financeira imobiliária, responsável por € 189.120,82 (cento e oitenta e nove mil cento e vinte euros e oitenta e dois cêntimos) do montante referido anteriormente; que o plano aprovado resulta num prazo mínimo de 16 meses sem pagamento de rendas do contrato de locação financeira, 10 meses já decorridos, acrescidos do período de carência e numa extensão do prazo do contrato por 8 anos; que em contrapartida, a liquidação do património da devedora, na sequência da não execução do plano de insolvência, obrigaria à devolução do imóvel locado; ao reconhecimento do crédito reclamado na óptica da resolução do contrato e ao reconhecimento do crédito correspondente às rendas vencidas após a declaração da insolvência; que o plano não esclarece quantas rendas faltam vencer-se no contrato de locação financeira; qual o valor de cada uma; qual o valor residual do bem locado.
Na sequência da apresentação do requerimento em apreço, foi proferido despacho a convidar a devedora a prestar esclarecimentos quanto a três aspectos:
1) quantas rendas faltam vencer-se no contrato de locação financeira; 2) qual o valor de cada uma; 3) qual o valor residual do bem locado.
A devedora respondeu nos termos que melhor se alcançam de fls. 633 a 637.
De acordo com os mapas de pagamento que constam de fls. 634 a 637 e os esclarecimentos prestados, a dívida emergente do contrato de mútuo é de € 43.205,36 (quarenta e três mil duzentos e cinco euros e trinta e seis cêntimos) e a dívida emergente do contrato de locação financeira imobiliária é de € 168.935,71 (cento e sessenta e oito mil novecentos e trinta e cinco euros e setenta e um cêntimos).
Notificadas, a Senhora Administradora da Insolvência nada disse e a credora manteve a posição de que a execução do plano é mais desfavorável para si do que a inexistência de qualquer plano e a subsequente liquidação da sociedade, alegando que o plano prevê a ocupação do imóvel por mais de um ano, sem qualquer retribuição, e que, ademais, não têm sido pagas as rendas devidas pela locação imobiliária, as quais constituem crédito sobre a massa, o que lhe permite resolver o contrato, nos termos dos artigos 51.º n.º 1 alínea f) e 108.º n.º 4 alínea a), a contrario sensu, do CIRE.
Foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
«Ao abrigo do disposto no artigo 214.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Tribunal julga válido e juridicamente relevante o plano de insolvência constante de fls. 452 a 480 dos autos, com as alterações constantes de fls. 495 a 497 e os esclarecimentos de fls. 633 a 637, aprovado pela assembleia de credores, homologando-o através da presente sentença.»
Não se conformando, a credora “Banco (…)” interpôs recurso de apelação, apresentando alegações onde formula as seguintes conclusões:

1ª – O plano de insolvência aprovado em assembleia de credores afecta, no que diz respeito ao Recorrente, a forma de pagamento de crédito vencido, no montante de 43.205,36 €, e define novas condições (nomeadamente o prazo) para o contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre Recorrente e Insolvente em 2008;

2ª – Tal contrato não foi resolvido, considerando que, após a apreciação do Relatório apresentado pela Sra. Administradora da Insolvência, aquela manifestou a sua opção pelo cumprimento do contrato;

3ª – Nada mais foi pago ao Recorrente, mostrando-se em mora as rendas vencidas desde 05 de Abril de 2011;

4ª – As quantias vencidas após o dia 29 de Julho de 2010 são dívidas da massa, nos termos do artigo 51º nº1 f) do CIRE;

5ª – O Recorrente votou contra a concessão de prazo para a apresentação de plano de insolvência pela Insolvente por não crer na possibilidade da sua recuperação;

6ª – O Recorrente votou contra o plano de insolvência porque ao argumento anterior se somou o facto de que o plano apresentado importava para si uma situação manifestamente mais desfavorável do que a que resultaria da liquidação da sociedade;

7ª – A homologação do plano de insolvência impõe ao Recorrente uma declaração de vontade que este repetidamente não quis prestar (aceitação da alteração do contrato de locação financeira), violando assim o artigo 217º nº2 do CIRE;

8ª – O plano de insolvência aprovado não tem a clareza exigida pelo artigo 195º do CIRE;

9ª – O imóvel dado de locação financeira não faz parte do activo da Insolvente;

10ª – A ausência de plano de insolvência obriga a insolvente a cumprir o contrato celebrado em 2008, ou, alternativamente, devolver o imóvel locado após a resolução do contrato por incumprimento;

11ª – Qualquer das soluções é substancialmente mais favorável ao Recorrente que o plano aprovado;

12ª – A homologação do plano de insolvência, por se traduzir numa alteração contratual, impediria a resolução do contrato de locação financeira com fundamento no actual incumprimento das obrigações da Insolvente.

13ª – A decisão que homologa o plano de insolvência aprovado é ilegal, por violar o disposto nos artigos 51º nº1 f), 108º nº4 a) a contrario sensu, 192º, 195º, 215º, 216º nº1 a), 217º nºs 1 e 2 e 219º, todos do CIRE, o artigo 1º do Decreto-Lei nº 149/95 de 24 de Junho, e ainda o artigo 217º do Código Civil.

Assim, com o Douto Suprimento do Tribunal ad quem, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão que indefere o pedido de não homologação do plano de insolvência aprovado e o homologa, sendo substituída por outra que recuse a sua homologação, fazendo assim o Venerando Tribunal a costumada justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi proferida decisão singular pelo relator, na qual se julgou improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Não se conformando, a recorrente reclamou para a conferência, requerendo que sobre o despacho em causa recaia um acórdão.
Alegou em síntese, para além das conclusões de recurso que transcreveu: que não compreende a afirmação de que o alegado incumprimento do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre Recorrente e Insolvente em 2008 “nenhuma relação poderá ter com o pedido de recusa de homologação do plano, já que não se integra nos pressupostos enunciados no artigo 216.º do CIRE”; e que a decisão singular não afasta os argumentos expendidos nas alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do CPC), sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se na questão de saber se se encontram verificados os pressupostos que justifiquem a recusa de homologação do plano de insolvência.

2. Fundamentos de facto
Encontra-se provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
1) Da lista de créditos reconhecidos pela Senhora Administradora da Insolvência constante de fls. 200 a 208 do apenso C consta, efectivamente, um crédito a favor da credora “Banco (…)”, no seguintes termos: € 232.326,18 (duzentos e trinta e dois mil trezentos e vinte e seis euros e dezoito cêntimos), dividido em duas parcelas: a) € 231.762,06 (duzentos e trinta e um mil setecentos e sessenta e dois euros e seis cêntimos), sendo € 189.120,82 (cento e oitenta e nove mil cento e vinte euros e oitenta e dois cêntimos) sob condição suspensiva; b) € 564,12 (quinhentos e sessenta e quatro euros e doze cêntimos) de juros;
2) Este crédito tem natureza comum, tendo ainda natureza subordinada o crédito de € 350,02 (trezentos e cinquenta euros e dois cêntimos) os juros vencidos após declaração de insolvência.
3) De acordo com os mapas de pagamento que constam de fls. 634 a 637 e os esclarecimentos prestados, a dívida emergente do contrato de mútuo é de € 43.205,36 (quarenta e três mil duzentos e cinco euros e trinta e seis cêntimos) e a dívida emergente do contrato de locação financeira imobiliária é de € 168.935,71 (cento e sessenta e oito mil novecentos e trinta e cinco euros e setenta e um cêntimos).
4) No que respeita ao activo da massa insolvente, face ao teor do apenso A – para efeitos de liquidação, existem bens no valor de € 104.000,00 (cento e quatro mil euros), encontrando-se ainda apreendidos dois prédios, um rústico, com o valor de € 83,56 (oitenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos) e um urbano no valor de € 170.160,00 (cento e setenta mil cento e sessenta euros) – cfr. fls. 299 a 303 destes autos principais.
5) No que respeita ao passivo da massa insolvente, foram reconhecidos 143 (cento e quarenta e três) credores, cujos créditos ascendem ao valor de € 1.984.587,93 (um milhão, novecentos e oitenta e quatro mil quinhentos e oitenta e sete euros e noventa e três cêntimos).
6) Contam-se, entre os créditos de natureza privilegiada e/ou garantida: a “Caixa (…), CRL”, com um crédito garantido de, pelo menos, € 231.862,84 (duzentos e trinta e um mil oitocentos e sessenta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos); o “Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital da Segurança Social de Leiria”, com créditos privilegiados e garantidos no valor global de € 150.412,10 (cento e cinquenta mil quatrocentos e doze euros e dez cêntimos); os trabalhadores com créditos privilegiados no montante global de, pelo menos, € 44.723,09 (quarenta e quatro mil setecentos e vinte e três euros e nove cêntimos).

3. Fundamentos de direito
3.1. A não verificação dos pressupostos enunciados nas duas alíneas do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE
Sobre os requisitos de recusa de homologação do plano de insolvência, prescreve o artigo 216.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1]:

1 – O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:

a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano;

b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

2 – Se o plano de insolvência tiver sido objecto de alterações na própria assembleia, é dispensada a manifestação da oposição por parte de quem não tenha estado presente ou representado.

3 – Cessa o disposto no n.º 1 caso o oponente seja o devedor, um seu sócio, associado ou membro, ou um credor comum ou subordinado, se o plano de insolvência previr, cumulativamente:

a) A extinção integral dos créditos garantidos e privilegiados por conversão em capital da sociedade devedora ou de uma nova sociedade ou sociedades, na proporção dos respectivos valores nominais;

b) A extinção de todos os demais créditos por contrapartida da atribuição de opções de compra conformes com o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 203.º relativamente à totalidade das acções assim emitidas;

c) A concessão ao devedor ou, se for o caso, aos respectivos sócios, associados ou membros, na proporção das respectivas participações, de opções de compra da totalidade das acções emitidas, contanto que o seu exercício determine a caducidade das opções atribuídas aos credores e pressuponha o pagamento do valor nominal dos créditos extintos por contrapartida da atribuição das opções caducadas.

4 – Se, respeitando-se quanto ao mais o previsto no número anterior, a conversão dos créditos em capital da sociedade devedora ou de uma nova sociedade ou sociedades não abranger apenas algum ou alguns dos créditos garantidos e privilegiados, ou for antes relativa à integralidade dos créditos comuns e somente a estes, o pedido de não homologação apresentado pelo devedor, pelos seus sócios, associados ou membros, ou por um credor comum ou subordinado, somente se pode basear na circunstância de o plano de insolvência proporcionar aos titulares dos créditos garantidos ou privilegiados excluídos da conversão, por contrapartida dos mesmos, um valor económico superior ao respectivo montante nominal”.
Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[2], em anotação à norma transcrita, a procedência do pedido depende da demonstração de uma das situações que, alternativamente, estão consagradas nas duas alíneas do n.º 1, e só em presença de cada caso concreto pode concluir-se sobre o mérito do requerimento.
Como se decidiu, no acórdão desta Relação, de 18.01.2011[3], sobre o credor que pretende beneficiar do disposto no n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, incumbe o ónus de, cumulativamente: i) comunicar a sua oposição ao plano antes de este ter sido considerado aprovado; ii) solicitar a recusa da homologação do plano; iii) com tal solicitação, demonstrar em termos plausíveis, em alternativa, que: a) a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) o plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
Na obra já citada, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda referem que a formulação da al. a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE implica que se proceda a um exercício intelectual de prognose, por vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.
Trata-se de cotejar quanto recebem os credores com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele, podendo revelar-se tal operação, de extrema dificuldade, na medida em que implica avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal.
Na situação sub judice, a M.ª Juíza, ponderando a natureza do crédito (comum) da recorrente e o valor dos créditos privilegiados, procedeu a uma atenta avaliação do activo e do passivo, e elaborou uma fundamentação racional e objectiva, baseada na relação entre tais valores, que, salvo o devido respeito, afasta de forma inequívoca a integração na previsão legal do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE.
Conclui a M.ª Juíza na decisão recorrida:

«Ora, afigura-se ao Tribunal inequívoco que a liquidação da sociedade T (…) Lda.”, em face da enorme desproporção entre o valor dos créditos já reconhecidos pela Senhora Administradora da Insolvência – quase dois milhões de euros – e o valor dos bens apreendidos neste processo – que não chega sequer aos duzentos e setenta e cinco mil euros – não favorece nenhum credor, muito menos, um credor comum como é o caso da sociedade (…)

Na verdade, o encerramento do estabelecimento da devedora e a passagem à liquidação imediata do património apreendido dificilmente colocaria esta credora em boa posição, pois o produto da alienação mal chegaria para pagar aos credores garantidos e privilegiados, que, consabidamente, são pagos à frente dos credores comuns.

Portanto, este é o primeiro aspecto que não pode ser olvidado – a liquidação do património da sociedade devedora não traz vantagem consistente à posição da credora “Banco (…)”, nem dos demais credores comuns.»
A conclusão expressa na sentença alicerça-se num suporte factual sólido, considerando: i) a natureza comum do crédito da recorrente; ii) a apontada desproporção entre o valor dos créditos já reconhecidos pela Senhora Administradora da Insolvência (quase dois milhões de euros), e o valor dos bens apreendidos neste processo (que não chega sequer aos duzentos e setenta e cinco mil euros); iii) e o facto de se contarem entre os créditos de natureza privilegiada e/ou garantida, os seguintes valores (facto 6): a) crédito garantido de, pelo menos, € 231.862,84 (duzentos e trinta e um mil oitocentos e sessenta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos), da “Caixa (…) CRL”; b) créditos privilegiados e garantidos no valor global de € 150.412,10 (cento e cinquenta mil quatrocentos e doze euros e dez cêntimos) do “Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital da Segurança Social de Leiria”; c) créditos privilegiados dos trabalhadores, no montante global de, pelo menos, € 44.723,09 (quarenta e quatro mil setecentos e vinte e três euros e nove cêntimos).
A consequência fundamental da não homologação do plano (requerida pela recorrente), traduzir-se-ia no prosseguimento do processo de insolvência de acordo com o modelo supletivo, procedendo-se à liquidação universal do património do devedor.
Ora, encontra-se demonstrado que nessa eventualidade, a recorrente não ficaria numa posição mais favorável. Pelo contrário. O seu crédito (com natureza comum) não seria pago, face aos privilégios creditórios dos credores já referidos.
Revela-se assim, sempre com o devido respeito, claramente improcedente a argumentação da recorrente, já que não logrou provar factos integradores da previsão legal da alínea a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE (tendo-se provado, antes, o contrário).
Também não se encontra integrada pela factualidade provada a previsão da alínea b) do normativo citado, não tendo sido sequer alegado que o plano proporcione a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
Cumpre não esquecer que o presente recurso impugna o despacho que recusou o pedido de não homologação do plano de insolvência, limitando-se a esta questão o objecto do conhecimento do tribunal, pelo que, perante a conclusão a que chegámos, que partilhamos com a decisão recorrida, se revela improcedente a argumentação da recorrente.
A latere, sempre se dirá, relativamente a outra questão suscitada no recurso, que, a nosso ver, nenhuma relação poderá ter com o pedido de recusa de homologação do plano, já que não se integra nos pressupostos enunciados no artigo 216.º do CIRE.
Trata-se do alegado incumprimento do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre Recorrente e Insolvente em 2008.
É essa a questão que se abordará de seguida.

3.2. O alegado incumprimento do contrato de locação financeira
O contrato em apreço não foi resolvido, considerando que, após a apreciação do Relatório apresentado pela Sra. Administradora da Insolvência, aquela manifestou a sua opção pelo cumprimento do contrato.
Alega a recorrente que nada mais foi pago, mostrando-se em mora as rendas vencidas desde 05 de Abril de 2011, e que as quantias vencidas após o dia 29 de Julho de 2010 são dívidas da massa, nos termos do artigo 51º nº1 f) do CIRE.
Sobre esta questão se pronunciou a M.ª Juíza na decisão recorrida, nestes termos:

[…] A questão da falta de pagamento de rendas, da devolução imediata do bem locado e da ocupação indevida do mesmo por mais de um ano:

O Tribunal não ignora as preocupações da credora quanto a estes aspectos que se traduzem, efectivamente, a provarem-se, num incumprimento do contrato de locação financeira celebrado.

O que não pode aceitar-se é que esta credora pretenda resolver essas questões sujeitando todos os demais credores a uma situação manifestamente desfavorável aos seus interesses.

Se a devedora se encontra em falta com rendas já vencidas após a declaração de insolvência, então, a solução jurídica que a credora tem à sua mercê é, como a mesma invoca, a faculdade de resolver o contrato de locação financeira, ao abrigo do disposto no artigo 108.º n.º 4 alínea a), a contrario sensu, do CIRE.

E fazendo-o, não deixará a devedora de ser condenada a entregar-lhe o bem locado, devoluto, mas com a possibilidade de, uma vez citada para a acção, pagar a dívida ou procurar outro local para continuar a laborar noutro estabelecimento.

Ou seja, a lei coloca à disposição da credora meios processuais próprios para fazer valer o direito ao pagamento de rendas vencidas e não pagas e à devolução do imóvel locado sem que, para tanto, tenha de ordenar-se o encerramento da actividade de uma empresa que se mostra viável, que quer ser viável e em cuja viabilidade confia a maioria dos seus credores.

Ainda que o plano da insolvência preveja a ocupação do locado por mais um ano, sem pagamento de contrapartidas, e ainda que o valor das rendas não pagas até à entrega do locado constituam dívidas da massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 51.º n.º 1 alínea f) do CIRE, tudo isso fará nascer ou acrescer o crédito a reconhecer à “ ..., S.A. – Sociedade Aberta”, crédito esse que permanecerá comum e, como tal, de mui duvidosa satisfação por via da liquidação do património social da devedora.

Pelo que entende o Tribunal não se encontra verificada a condição prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, pois que a situação concreta da “Banco ..., S.A.- Sociedade Aberta” não se afigura menos favorável com a execução do plano de insolvência concretamente aprovado do que a que se verificaria na ausência de qualquer plano.
Não subscrevemos a decisão recorrida, apenas na parte em que considera aplicável o artigo 108.º do CIRE.
Com efeito, salvo o devido respeito, revela-se aplicável ao contrato de locação financeira, o regime enunciado no artigo 102.º do CIRE, que prevê no seu n.º 1: «… em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.»
Optando o administrador da insolvência, pela execução do contrato (como aconteceu na situação sub judice), prevê o n.º 4 a reposição do equilíbrio de interesses em presença, através da possibilidade de qualificação como abusiva de tal opção: «A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável.».
O incumprimento do contrato por parte da massa insolvente [ou mesmo a sua mera previsibilidade], têm as consequências legais e o regime processual apontados por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[4]:

«Na eventualidade de, ainda assim, o administrador optar pela execução, a contraparte tem o direito de excepcionar a impossibilidade de cumprimento, pela massa, das obrigações correspondentes.

Na falta de entendimento, competirá à contraparte suscitar a intervenção do tribunal, o que, por não existir regulamentação específica, parece só poder concretizar-se através de uma acção declarativa, que correrá por apenso, sendo do autor o ónus da prova.

Implícita na determinação do n.º 4 está a qualificação como crédito sobre a massa insolvente do que couber à contraparte em resultado da opção pela execução feita pelo administrador da insolvência, o que é coerente com o disposto no art.º 51.º, n° 1, al..f).»
No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães, de 9.10.2008[5], onde se decidiu, relativamente ao contrato de locação financeira celebrado com o insolvente: «Não há que aplicar, no caso, o regime do artigo 108º do CIRE, que é privativo dos demais contratos de locação, e prevêem a resolução da locação em que o insolvente é parte.»
Considerou-se no citado aresto, que: no caso da locação financeira, os efeitos da declaração de insolvência no desenrolar do contrato, são os previstos no artigo 104º do CIRE; quanto às prestações em dívida pela insolvente as mesmas constituem um crédito sobre a insolvência – n.º 3 do artigo 102º do CIRE; ressalva-se, no entanto, sempre o direito à separação da coisa; como decorre do n.º 3 do artigo 102º, a insolvência não afecta os direitos reais de credores ou terceiros, razão pela qual são sempre ressalvados o direito à separação; e por isso, o recorrente tem direito à entrega do bem locado, e no que respeita às prestações vencidas e não pagas as mesmas constituem um crédito sobre a insolvência[6].
Em suma, na situação sub judice a recorrente tem garantido o acesso à via judicial para fazer valer eventuais direitos decorrentes do alegado incumprimento do contrato de locação financeira, não tendo a matéria alegada sobre o contrato em causa, qualquer relação ou relevância, na requerida aplicação do instituto previsto no artigo 216.º do CIRE, já que não é susceptível de justificar a pretendida recusa de homologação do plano de insolvência.
Perante esta factualidade, concluímos, salvo o devido respeito, pela improcedência da argumentação da recorrente, não merecendo censura a decisão recorrida.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em manter na íntegra o despacho singular proferido pelo relator, julgando improcedente o recurso e mantendo em consequência a decisão de 1.ª instância recorrida.
Custas pela Apelante.
                                                         *

Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, doravante designado por CIRE.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas Anotado, Reimpressão, Quid Juris, Lisboa, 2009, pág. 716 a 720.

[3] Proferido no Processo n.º 294/10.3TBVNO-G.C1, acessível em http://www.dgsi.pt. - O acórdão citado toma posição sobre a polémica jurisprudencial relativamente à oposição ao plano de insolvência por parte da Fazenda Nacional, nestes termos: «Atenta a especialidade do regime do CIRE, não se verificando a previsão dos artigos 215º e 216º, nº 1, do CIRE, não deve ser recusada a homologação do plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores pela maioria legal, apesar de a credora Fazenda Pública ter votado contra e ter requerido a não homologação com base na ofensa de normas imperativas de direito fiscal.»

[4] Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas Anotado, Reimpressão, Quid Juris, Lisboa, 2009, pág. 389.
[5] Proferido no Processo n.º 1759/08-1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[6] No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora, de 3.05.2007, proferido no Processo n.º 813/07-2, acessível em http://www.dgsi.pt