Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE GONÇALVES | ||
Descritores: | ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO PENA DE MULTA ACIDENTE DE VIAÇÃO CONCORRÊNCIA DE CULPAS INDEMNIZAÇÃO DIREITO Á VIDA | ||
Data do Acordão: | 06/17/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE ALCOBAÇA – 3º J | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 483º,496º,562º CC, 1º, F), 358,359 CPP | ||
Sumário: | 1. Nos termos do art.º 1º al. f) do CPP imputa-se ao arguido um crime diverso quando: a. Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo; b. Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social; c. Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade. 2.A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável. 3- A dignificação da multa, seja como pena principal, seja como pena de substituição, exige que a mesma tenha efectivo conteúdo sancionatório, sem o que não poderá realizar as finalidades que lhe competem de protecção de bens jurídicos e de prevenção especial. Para esse efeito, importa que o montante da multa seja fixado de forma a ser sentido como uma verdadeira pena que é, constituindo, por isso, um sacrifício real para o condenado. 4-Existe concorrência de culpas dos condutores na ordem dos 70% para o arguido e 30% para o condutor do motociclo quando aquele efectuou a manobra de mudança de direcção para a esquerda sem dar prioridade ao motociclo, não tendo reparado neste ao efectuar tal manobra e o motociclo circulava a uma velocidade superior à permitida para o local, não tendo logrado evitar o embate. 5- É adequada a indemnização pela perda do direito á vida quando a vítima tinha 37 anos de idade e era saudável | ||
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO 1. No processo comum com intervenção do tribunal singular registado sob o n.º122/07.7GCACB, a correr termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, o arguido F..., melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento pelos factos constantes da acusação deduzida nestes autos pela imputada prática de «uma contra-ordenação ao disposto no art. 30.º, n.º1 e 2 do Código da Estrada e, por via dela e pela sua incúria e imperícia, um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º1, do Código Penal» (cfr. fls. 88 a 90). O Instituto da Segurança Social, I.P., através do Centro Nacional de Pensões veio, a fls. 111-118, deduzir contra AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A. pedido de reembolso das prestações da Segurança Social que, por morte de J..., pagou ao cônjuge sobrevivo e aos filhos menores deste, a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência, no montante global de 6.012,58 €, acrescido das pensões que se vencerem e sejam pagas na pendência da acção, até ao limite da indemnização a conceder, bem como os respectivos juros de mora legais, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento. A fls. 119 e seguintes, D..., cônjuge sobrevivo de J..., e C... e G..., filhos menores de J... e representados pela primeira, vieram deduzir pedido de indemnização civil contra AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A., peticionando a condenação desta no pagamento da quantia global de 361.140 €, correspondente ao dano da perda do direito à vida e aos danos morais sofridos por J..., aos danos não patrimoniais sofridos pelos três demandantes e, ainda, aos danos patrimoniais, relativos ao motociclo e danos com incidência futura, acrescendo juros à taxa legal, a contar da notificação da demandada para contestar. No decurso da audiência de julgamento, o Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões requereu a ampliação do pedido, o que foi deferido nos termos do despacho de fls. 283. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu: - Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 13.º, in fine, 15.º, al. b), e 137.º, n.º1, do C.P., na pena de 11 (onze) meses de prisão, que, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º1, e 47.º, n.º1, do C.P. na redacção introduzida pela Lei n.º59/07, de 4.09, foi substituída por 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à razão diária de 15 € (quinze euros), o que perfaz o montante total de 4.950 € (quatro mil novecentos e cinquenta euros); - Condenar o arguido, pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 35.º, n.º1, e n.º2, al. a), 131.º, 132.º, 135.º, n.º1 e n.º3, al. a), 136.º, n.º3, 138.º, nºs 1, 3 e 4, 145.º, al. f), e 147.º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada, aprovado pelo D.L. n.º114/94, de 3.05, alterado pelo D.L. n.º265-A/01, de 28.09, e pelo D.L. n.º44/2005, de 23.02, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses, «devendo, no prazo de 15 dias úteis a contar do trânsito em julgado da presente sentença, proceder à entrega na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial, da sua carta de condução, sob pena de incorrer em crime de desobediência, conforme disposto no artigo 160.º, nºs 1 e 3, do mesmo diploma»; - Julgar o pedido de indemnização civil de D..., C... e G... parcialmente procedente, condenando a demandada a pagar: a) a quantia de 4.298 € (quatro mil duzentos e noventa e oito euros), a título de danos patrimoniais, a repartir pelos três herdeiros, acrescida dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a citação até integral pagamento; b) à demandante D..., a quantia global de 69.480,95 € (sessenta e nove mil quatrocentos e oitenta euros e noventa e cinco cêntimos), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, e deduzindo as prestações que a Segurança Social-Caixa Nacional de Pensões pagou e vier a pagar a título de pensão de sobrevivência; c) à demandante C..., a quantia global de 46.276,52 € (quarenta e seis mil duzentos e setenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, e deduzindo as prestações que a Segurança Social-Caixa Nacional de Pensões pagou e vier a pagar a título de pensão de sobrevivência; d) ao demandante G..., a quantia global de 50.695,91 € (cinquenta mil seiscentos e noventa e cinco euros e noventa e um cêntimos), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença até integral pagamento, deduzindo as prestações que a Segurança Social-Caixa Nacional de Pensões pagou e vier a pagar a título de pensão de sobrevivência; e e) absolvendo a demandada do demais peticionado; - Julgar o pedido de indemnização civil do Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões parcialmente procedente e, em consequência: a) condenar a demandada a pagar-lhe a quantia de 5.400,60 € (cinco mil e quatrocentos euros e sessenta cêntimos), acrescida das prestações vincendas que a primeira pagar, a título de pensão de sobrevivência, a D..., C... e G..., e dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento, calculados à taxa legal em vigor em cada momento; b) absolvendo-a do demais peticionado. condenar a arguida na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 600,00 (seiscentos euros), pela prática, como autora material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal. Tal sentença foi objecto de despacho de aclaração (cfr. fls. 443). 2. Inconformados, o arguido e a demandante civil D..., por si e em representação dos seus filhos, recorreram da sentença, formulando, nas respectivas motivações, as seguintes conclusões: 2.1. Recurso do arguido (transcrição): «1.ª- Pela douta sentença em crise foi o ora recorrente condenado: a)- pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 13°, in fine, 15°, aL. b), e 137°, n.º 1, todos do CP, na pena de 11 meses de prisão, substituída por 330 dias de multa, à taxa diária de € 15, num total de € 4.950, nos termos dos arts. 43°, n.º 1, e 47°, n.º 1, do mesmo diploma, na redacção introduzida pela Lei n° 59/2007, de 4/9; b)- pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos arts. 35.º, n.º 1 e n.º 2, aL. a), 131.º,132.º,135.º, n.º1 e n° 3, al. a), 136.º, n.º 3, 138°, n.º 1, 3 e 4, 145°, al. f), e 147.º, n.º 1 e 2, todos do Cód. da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 6 meses. 2.ª- O Tribunal a quo deu como provado que «[o] arguido, atentas as concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que circulava e a sua capacidade pessoal, devia e podia ter efectuado a manobra descrita em 2) cedendo a passagem ao motociclo identificado em 3) e sem causar perigo para a circulação deste, assim como devia e podia prever o resultado da sua conduta» (facto descrito sob o n.º 15 da douta sentença recorrida). 3.ª- Dado que tal facto não foi alegado pela acusação nem pela defesa e o Tribunal a quo não comunicou ao arguido a intenção de o introduzir, não havendo, portanto, concedido a este tempo para se preparar sobre esse facto novo, foi violado o disposto no n.º 1 do art. 358.º do CPP, pelo que, a douta sentença em crise padece de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código. 4.ª- Subsidiariamente, sempre se aduz que, em face das normas dos arts. 20.º, n.º 1, e 35.º, n.º 1, do Cód. da Estrada, a mudança de direcção para a esquerda é uma manobra lícita. 5.ª- Assim, «(n]ão é suficiente para se concluir pela culpa de qualquer dos intervenientes ter-se apenas dado como provado que o arguido, ao chegar junto ao local onde a estrada entronca pelo lado esquerdo com outra via, pretendendo mudar o seu sentido de marcha para prosseguir por essa via, accionou o "pisca-pisca", aproximou o automóvel do centro da estrada e virou para a esquerda, e em circunstâncias não apuradas, veio a ser embatido por um velocípede com motor, que circulava pela sua mão de trânsito, em sentido oposto ao do arguido, desconhecendo-se a que distância se encontrava do automóvel no momento em que este iniciou a manobra de mudança de direcção». 6.ª- Com efeito, «[p]ara a actuação de um condutor que realiza determinada manobra constituir conduta censurável, e portanto culposa, tem de ocorrer alguma circunstância que aponte para a existência de perigo ou embaraço para o trânsito. Não se pode concluir pela existência de tal circunstância quando um condutor em relação ao qual não se prove que, na altura em que efectuava uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, já lhe era visível ou previsível a aproximação de um veículo que, em sentido contrário, circulava em velocidade excessiva». 7.ª - Ora, in casu, em face do acervo factual considerado provado – e só esse pode ser relevado –, não se conhece o local do embate, nem a que distância o motociclo da vítima se encontrava do veículo conduzido pelo arguido quando este iniciou a manobra de mudança de direcção, nem tampouco se a aproximação desse motociclo já era visível ou previsível ao arguido na altura em que este efectuava aquela manobra, sendo escassíssimos os factos respeitantes à dinâmica do acidente. 8.ª- Sabe-se, isso sim, que o condutor do motociclo, independentemente de conduzir sob o efeito de estupefacientes, violava a imposição, essa absoluta, do art. 27°, n.º 1, Cód. da Estrada, pois circulava a mais de 50 kms./hora no interior de uma localidade. 9.ª- E dizem-nos as regras da experiência comum que a aproximação de um motociclo com 942 cm3 circulando em velocidade excessiva é brusca e inesperada para os demais condutores da via. 10.ª - Assim, a douta sentença recorrida violou o princípio do in dubio pro reo, as normas dos arts. 13°, in fine, 15.º, al. b), e 137.º, n.º 1, todos do CP, e as normas dos arts. 35.º, n.º1 e n.º2, 131°, 132°, 135°, n.º 1 e n.º 3, al. a), 136°, n.º 3, 138.º, n.º 1, 3 e 4, 145°, al. f), e 147.º, n.º 1 e 2, todos do Cód. da Estrada, pelo que, deve ser revogada e substituída por outra decisão que absolva o arguido, quer da prática do sobredito crime, quer da prática da mencionada contra-ordenação. 11.ª - Ainda subsidiariamente, sempre se aduz que, em face da matéria de facto tida por assente, designadamente perante o facto de o arguido auferir uma pensão de reforma de € 250 mensais e de gastar uma avultada quantia mensal em medicamentos para combater as suas doenças crónicas, a douta sentença recorrida, ao fixar a taxa diária da multa em € 15,00, violou o disposto nas normas conjugadas dos arts. 2°, n° 4, 40.º, n.º 1 e 2, 71°, n.º 1 e 43°, n.º 1, todos do CP, pelo que, deverá ser parcialmente revoga da e substituída por outra decisão que fixe essa taxa em € 5,00. 12.ª- Acresce que, perante o acervo fáctico dos autos, verificam-se in casu todos esses pressupostos da suspensão da execução da sanção acessória de inibição que foi aplicada ao arguido, pelo que, a douta sentença recorrida violou o disposto nas normas conjugadas do art. 141.º, n.º 1, do Cód. da Estrada, e 50.º, n.º 1, do CP, devendo ser parcialmente revogada e substituída por outra que determine essa suspensão.» 2.2. Recurso dos referidos demandantes civis (transcrição): 1 - Foi considerado provado, no ponto 48 da decisão de matéria de facto, que o motociclo conduzido por J... circulava a velocidade superior a 50 Km/hora e que, ponto 49, em consequência directa e necessária dessa conduta, resultaram as lesões descritas em 13). 2 - Para assim decidir, a M.ª Juíz a quo baseou-se exclusivamente no croqui de fls. 11 e das medições dele constantes, já que nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, cujos depoimentos foram gravadas em 3 CDs, se referiu, pronunciou, ou fez alusão, à velocidade a que o motociclo transitava. 3 - A decisão formada quanto à velocidade instantânea a que o motociclo transitava, reconduz-se assim, a um controverso juízo de valor, que se baseia num indício que não se basta a si mesmo para inferir sobre o evento a que diz respeito. 4 - Na verdade, sabendo-se que é possível relacionar a distância de travagem à velocidade a que se circula, no caso concreto dos autos, a travagem iniciada pelo malogrado J..., não foi completada, na medida em que o termo dos rastos marcados no pavimento não correspondem ao ponto em que a viatura se imobilizou. 5 - É que, como resulta do croqui de fls. 11, após a travagem, o motociclo entrou em despiste, tendo deslizado no asfalto até embater na roda da frente do lado direito do veículo conduzido pelo arguido, conforme resulta do ponto 8) dos factos provados. 6 - Não é, assim, possível, extraírem-se ilacções dos rastos de travagem efectuada e relacionar estes com a velocidade instantânea que animava o motociclo, nem imputar a esta o desequilíbrio que fez com que o seu condutor entrasse em despiste. 7 - Por si só, desacompanhada de outros elementos de prova, não pode valorar-se, como se fez, a extensão das marcas deixadas no asfalto pelo motociclo imediatamente antes do embate. 8 - Na verdade, sem se ter apurado as condições concretas em que a travagem foi feita, qual o estado dos órgãos de travagem do motociclo, estado dos seus pneus e se existia ou não areia ou gravilha no pavimento, consequência do facto de a estrada por onde ambas as viaturas transitavam entroncar com caminho de terra batida, facto considerado provado, não é lícito concluir-se que una rastos de travagem com uma extensão de 8,70m, são o resultado e compatíveis com uma velocidade superior a 50 Km/hora. 9 - Pese embora a prova ser, em princípio, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, ela tem sempre de basear-se em factos ou eventos de onde se possa inferir, com elevado grau de probabilidade, o facto comprovado. 10 - Tal não sucede no caso em análise pelo que se impõe, a modificação da matéria provada sob o ponto 48, dele suprimindo-se o segmento, mas superior a 50 Km/hora, e, em consequência, eliminar-se do elenco da matéria provada, o ponto 49. 11 - Nesta parte, a decisão recorrida violou o disposto no art. 355.º e 127.º do CPP. 12 - Mesmo que se não atenda à pretensão da recorrente, expressa nos pontos antecedentes, não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre a velocidade a que seguia J... e o acidente que o vitimou. 13 - A conduta que este adoptou ao circular a velocidade superior à permitida para a zona, considerando a prova a propósito fixada, não foi concausa do sinistro. 14 - Para o ser, necessário seria que se provasse que esse comportamento tivesse contribuído para a sua verificação. 15 - Pelo contrário, o que se provou foi que a conduta inconsiderada e contra-ordenacional do arguido é que foi a única causa do acidente. 16 - É que, tendo em conta os factos considerados provados, mesmo que a vítima circulasse a velocidade igual ou inferior a 50 Km/hora, o embate seria inevitável, dada a curta distância a que o motociclista se encontrava do local onde o arguido iniciou a manobra de mudança de direcção à esquerda. 17 - O que ficou provado, na verdade, foi que o arguido pretendendo mudar de direcção para a sua esquerda, para entrar num caminho de terra batida que entronca desse lado, considerando o seu sentido de marcha, com a via por onde transitava, não reparou que por essa mesma via e em sentido de marcha oposto ao seu, se aproximava, circulando pela sua mão de trânsito, um motociclo conduzido pela vítima. 18 - O arguido, sem atender à aproximação do motociclista, iniciou a manobra de mudança de direcção e invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o J..., sem lhe ceder a prioridade de passagem. 19 - Este encontrava-se então a cerca de 14 metros de distância do local onde o arguido iniciou a manobra de mudança de direcção e, no momento em que dele se apercebeu, ainda efectuou uma travagem de cerca de 5,60 m, que não foi suficiente para evitar o embate. 20 - Atentas as marcas que ficaram no asfalto e provocadas pela travagem que J... efectuou e as resultantes do arrastamento do motociclo que conduzia pelo solo, que se prolongam por uma extensão de cerca de 14 metros, é seguro que mesmo que este conduzisse a velocidade igual ou inferior a 50 Km/hora, não teria conseguido parar o veículo que conduzia no espaço de 14 metros de que dispunha para o fazer. 21 - A curta distância a que se encontrava do obstáculo, no momento em que este cortou a sua linha de trânsito, tomou inevitável o embate, independentemente da velocidade a que seguia. 22 - Daí que se considere que a velocidade instantânea que vem provada não foi causa adequada do acidente. 23 - Por outro lado, a consideração de ser excessiva a sua velocidade, por não ter sido possível ao malogrado J...imobilizar o veículo que conduzia no espaço livre e visível à sua frente, também não colhe já que constitui jurisprudência pacifica do STJ, o entendimento segundo o qual, nenhum condutor pode ser censurado pelo facto de, inopinadamente, lhe surgir um obstáculo impeditivo da sua livre circulação, como sucedeu no caso dos autos. 24 - Neste ponto, a sentença recorrida violou o disposto no art. 29°, n° 1 do Código da Estrada e o art. 570° do Código Civil. 25 - Quanto à fixação das indemnizações que a recorrente reclama, considera-se adequada que a reparação do direito à vida seja feita mediante o pagamento da quantia de€ 75.000,00. 26 - Os danos morais sofridos pela recorrente e seus filhos devem estar relacionados com esse montante e ser fixados nos montantes de € 40.000,00 para a recorrente e € 25.000,00 para cada um dos filhos. 27 - Quanto ao dano patrimonial com incidência futura deve ser ponderado que o limite da vida activa da vitima se situaria nos 70 anos de idade, que a dependência económica de seus filhos se prolongaria até atingirem a idade de 25 anos, e que a taxa de inflação a considerar deve ser a de 5% ao ano. 28 - Deste modo a reparação desse dano, considerando esses pressupostos, o valor da retribuição mensal da vítima e a sua natural evolução, só pode fazer-se com a quantia de € 190.000,00. 29 - Ao decidir-se de outro modo violou-se o disposto no. art. o 4960 do Código Civil. Termos em que, e com o douto suprimento de V. Excas deve ser dado provimento ao recurso, com o que se fará JUSTIÇA! 3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, sustentando a confirmação da sentença recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição): l.ª Vêm os presentes recursos interpostos da douta Sentença de fls. 309 a 347: a) Pelo arguido F... (cfr. fls. 379 a 391) que o condenou pela prática de 1 (um) crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 13° infine, 15°, al. b) e 137°, n° 1, todos do Código Penal, na pena de 11 (onze) meses de prisão, que, nos termos do disposto nos artigos 43°, n° 1 e 47°, n.º 1, ambos do Código Penal vigente, se substituiu por 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à razão diária de 15,00 € (quinze Euros), o que perfez a multa global de 4.950,00 € (quatro mil novecentos e cinquenta Euros) e pela prática de 1 (uma) contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 35°, n° 1 e 2, al. a), 131.º, 132°, 135°, n.º 1 e 3, al. a), 136°, n.º 3,138, n° 3, 138°, n.º. 1, 3 e 4, 145, al. f) e 147°, n.º 1 e 2, todos do Código da Estrada, na sanção de inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses; b) Pela demandante civil, D..., por si e em representação sues filhos menores, C... e G..., na parte relativa à indemnização civil (cfr. fls. 401 a 420). 2.ª - O arguido/recorrente encontrava-se acusado da prática da contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 30°, n.º. 1 e 2, do Código da Estrada e, a final, o Tribunal a quo entendeu que a manobra descrita e dada como provada (a mesma que já constava da acusação) integrava, juridicamente, não aquela contra-ordenação, mas sim a contra-ordenação, p. e p. pelos artigos 35.º, n.º 1 e 2, al. a), 131.º, 132°,135°, n° 1 e 3, al. a), 136°, n.º 3,138, n.º 3,138°, n.º 1, 3 e 4, 145, al. f) e 147°, n.º 1 e 2, todos do Código da Estrada; 3.ª - Sendo que, contrariamente ao que o arguido/recorrente afirma, dessa alteração não substancial (artigo 358°, n.º 1 e 3, do C.P.P.) o arguido teve conhecimento, pois dela foi notificado e disse nada ter a requerer – cfr. fls. 349. 4.ª - Na narração do facto provado n.º 15 - elemento subjectivo da negligência - mais não é do que o elemento subjectivo da negligência que, embora com outra redacção linguística, é aquele que já constava do libelo acusatório, a fls. 89, penúltimo parágrafo. 5.ª - Razão pela qual a douta Sentença a quo não enferma do vício da nulidade, por inobservância do disposto no artigo 358°, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal. 6.ª - O princípio do "in dubio pro reo" é um "ponto de chegada" e não "um ponto de partida"; 7.ª - O Tribunal a quo não teve dúvida alguma na interpretação da prova produzida em Audiência, razão pela qual fez criteriosa e justa qualificação dos factos provados, pelo que não violou o mencionado princípio; 8.ª A determinação da pena de multa é constituída por dois actos autónomos, nos quais se consideram, em separado e sucessivamente, os factores relevantes para a culpa e prevenção por um lado (determinação dos dias de multa) e, por outro, para a situação económico-financeira do condenado (determinação do quantitativo diário da taxa de multa); 9.ª O quantitativo diário da pena de multa, fixado em 15,00 € (quinze Euros) mostra-se perfeitamente adequado, sob pena de a condenação não representar qualquer sacrifício para o condenado, de se estar a desacreditar a pena, os Tribunais e a própria Justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade, de impunidade; 10.ª - Ao dar como provado que a velocidade imprimida pela malograda vítima ao motociclo era superior a 50 Km/h., partiu o Tribunal de factos objectivos, concretos e a ela chegou de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, razão pela qual fez criteriosa e justa qualificação dos factos provados; 11.ª - Entende a demandante cível, por si e na qualidade dos seus filhos menores, que as quantias nela exaradas, a título de danos morais e patrimoniais pelos mesmos sofridos e nas quais a demandada Seguradora foi condenada a pagar são desconformes ao disposto nos artigos 483° a 496°,562° e 566°, todos do Código Civil e 668°, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil; 12.ª - Nesta última sede, uma vez que à douta Sentença a quo não se aponta qualquer vício ou violação de lei penal, substantiva ou processual, o Ministério Público carece de legitimidade processual quanto à matéria objecto de recurso - eminentemente cível. Em consequência, deverá os presentes recursos - no tocante à matéria penal - ser julgados improcedentes, devendo ser integralmente mantida a douta Sentença a quo. 4. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido da improcedência. 5. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma. Cumpre agora apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196). Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões a apreciar: Recurso interposto pelo arguido: - a alegada nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º1, alínea b), do C.P.P., por violação do disposto no artigo 358.º, n.º1, do mesmo diploma; - a alegada violação do princípio in dubio pro reo e a qualificação dos factos; - a medida concreta da pena, no que toca à razão diária da multa; - a pretendia suspensão da execução da sanção acessória. Recurso interposto pelos referidos demandantes civis: - o alegado erro na apreciação da prova e incorrecta aplicação do direito aos factos; - a determinação dos quantitativos indemnizatórios. 2. A sentença recorrida 2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição): a) Da acusação, do pedido de indemnização civil do Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões e do pedido de indemnização civil de D..., C... e G...: 1. No dia 17 de Março de 2007, cerca das 16.40 horas, o arguido tripulava o veículo ligeiro misto, com a matrícula 00-00-XX, pela Rua Principal, Charneca Casal do Guerra, Benedita, no sentido Candeeiros/IC2, para Charneca Casal do Guerra. 2. Depois de passar o restaurante “Vieira”, o arguido efectuou a manobra de mudança de direcção para a esquerda, atento o sentido de marcha indicado em 1), a fim de entrar num caminho em terra batida, que ali existia e entronca com a Rua Principal. 3. No entanto, ao efectuar a manobra referida em 2), o arguido não reparou que, na Rua Principal mencionada em 1), circulava, no sentido Charneca do Casal Guerra-Candeeiros/IC2, e pela respectiva mão de trânsito, o motociclo com a matrícula 00-00-XB, tripulado por J.... 4. Assim, o arguido efectuou a mudança de direcção indicada em 2) sem que tivesse cedido a prioridade ao motociclo identificado em 3). 5. O condutor do motociclo identificado em 3), quando viu a manobra do arguido, ainda efectuou uma travagem de cerca de 5,60 metros. 6. Porém, a travagem referida em 5) não foi suficiente para evitar a colisão entre o motociclo identificado em 3) e o veículo identificado em 1). 7. Durante a travagem aludida em 5), o motociclo desequilibrou-se e foi de rasto através da Rua Principal mencionada em 1) até embater no veículo identificado em 1). 8. Desta forma, o motociclo identificado em 3) veio a embater contra a roda direita da frente do veículo identificado em 1) e, de seguida, o condutor do referido motociclo embateu contra a roda traseira direita do mesmo veículo, encontrando-se com a cabeça protegida pelo capacete. 9. A colisão descrita em 8) ocorreu enquanto o veículo identificado em 1) ocupava já parte da metade da faixa de rodagem da Rua Principal indicada em 1) e destinada ao sentido de trânsito Charneca Casal do Guerra – Candeeiros/IC2, na qual vinha a circular J.... 10. Na data indicada em 1), a Rua Principal mencionada em 1) era de alcatrão e o seu piso estava liso e sem buracos. 11. Na data indicada em 1), o tempo estava seco e fazia Sol. 12. Na data indicada em 1), na zona do embate, a estrada identificada em 1) configurava uma curva, seguida de uma recta, com 5,20 metros de largura, sendo possível avistar a estrada em toda a sua largura, numa extensão de, pelo menos, 50 metros, atento o sentido de marcha indicado em 1). 13. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido resultaram para J... as lesões na cabeça, no tórax, no abdómen e nos membros superiores e inferiores descritas no relatório de autópsia de fls. 62 a 69, que se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, tóraco-abdomino-pélvico, raqui-meningo-medulares dorsais e do membro superior direito, as quais foram a causa directa e necessária da sua morte. 14. O embate descrito em 8) resultou da desatenção e falta de perícia do arguido, que efectuou a manobra de mudança de direcção para a sua esquerda sem dar prioridade ao motociclo identificado em 3). 15. O arguido, atentas as concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que circulava e a sua capacidade pessoal, devia e podia ter efectuado a manobra descrita em 2) cedendo a passagem ao motociclo identificado em 3) e sem causar perigo para a circulação deste, assim como devia e podia prever o resultado da sua conduta. 16. O arguido apenas por imprevidência não chegou sequer a representar a possibilidade de provocar um embate que acarretasse a morte para outrem. 17. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. 18. Em 14 de Maio de 2007, D..., por si e para os seus dois filhos C... e G..., solicitou à demandante Segurança Social – Centro Nacional de Pensões prestações por morte de J..., beneficiário da Segurança Social nº1111401421, o que lhe foi deferido, conforme documentos de fls. 114-115, 116 e 117, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 19. Em consequência do descrito em 18), a demandante Segurança Social – Centro Nacional de Pensões pagou a D... a quantia de 2.074,21 € e aos filhos de J... o montante de 1.037,10 € a cada um, a título de subsídio por morte, conforme doc. de fls. 118, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 20. Em consequência do descrito em 18), a demandante Segurança Social – Centro Nacional de Pensões pagou, no período de Abril de 2007 a Novembro de 2007, a D... a quantia total de 1.242,81 €, no valor mensal de 138,10 €, e aos filhos de J... o montante global de 310,68 € a cada um, no respectivo valor mensal de 34,52 €, a título de pensões de sobrevivência, conforme doc. de fls. 118, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 21. Entre A... e a demandada civil “Axa Portugal, Companhia de Seguros, S.A.” foi celebrado acordo de seguro, titulado pela apólice nº45-566816/80, com efeitos a partir de 29.06.2002, mediante o qual a segunda se comprometeu a pagar a terceiros os valores pecuniários por danos emergentes da circulação do veículo identificado em 1) – cf. doc. de fls. 199-204, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 22. Por escritura pública lavrada em 2.04.2007, D..., na qualidade de cabeça-de-casal, declarou que, no dia 17.03.2007, faleceu J..., que o mesmo não deixou testamento nem qualquer outra disposição de última vontade e que deixou como únicos herdeiros a própria declarante, seu cônjuge, e C... e G..., seus filhos – cf. doc. de fls. 135-136, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos. 23. J... nasceu em 20 de Agosto de 1969 – cf. doc. de fls. 137, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 24. A demandante C... nasceu em 15 de Janeiro de 2001 e é filha de J... e da demandante D… – cf. doc. de fls. 138, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 25. O demandante G... nasceu em 16 de Setembro de 2003 e é filho de J... e da demandante D… – cf. doc. de fls. 139, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 26. O veículo identificado em 1) é pertença de A..., residente na Rua Principal, nº15, Amieiro, Alcobaça. 27. Na data indicada em 1), o direito de propriedade do motociclo identificado em 3) encontrava-se inscrito a favor de J..., desde 17.12.2004 – cf. doc. de fls. 140, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 28. O arguido iniciou a manobra indicada em 2) sem aguardar a passagem do motociclo identificado em 3), cruzando a faixa de rodagem por onde este transitava. 29. J... era uma pessoa saudável e trabalhadora. 30. J... gostava da sua esposa. 31. J... administrava sozinho e de facto, em substituição dos respectivos gerentes, que nele depositavam confiança, a sociedade comercial “S… – Sociedade …, Lda.”, com sede em Benedita, na qual detinha uma quota no valor de 7.482,69 €. 32. J... tinha em curso um processo de reconversão da empresa identificada em 31). 33. J... aspirava a adquirir as quotas correspondentes ao remanescente do capital social da empresa identificada em 31). 34. J... era estimado por todos quanto o conheciam. 35. J..., antes dos embates descritos em 8), teve consciência da inevitabilidade do embate e de que poderia morrer. 36. J... sentiu medo quando, de forma desamparada e sem qualquer protecção para além do capacete, o seu corpo foi impelido contra o veículo identificado em 1). 37. J... ficou caído no asfalto. 38. Os demandantes D..., C... e G... sofreram profundamente com a morte de J..., que vivenciarão com dor até ao final das suas vidas. 39. D... e J... mantinham um relacionamento afectivo há 21 anos, tendo casado entre si em 17 de Outubro de 1998. 40. D... e J... tinha uma relação matrimonial estável e harmoniosa. 41. D... entrou em estado depressivo, em consequência da morte de J.... 42. J... dispensava aos seus filhos carinho e afecto, acompanhando-os no seu dia-a-dia. 43. O motociclo identificado em 3) era da marca “KTM LC (950 Adventure)”, do ano de 2004, tendo sofrido os estragos que se observam na fotografia de fls. 7 e, na data indicada em 1), tinha o valor de 7.500 €. 44. Foi atribuído o valor de 1.360 € ao salvado do motociclo identificado em 3). 45. J... contribuía para as despesas familiares com os rendimentos que obtinha da actividade referida em 31). 46. Em 2006, J... auferiu, a título de rendimentos do trabalho, o valor global de 12.626,81 €. 47. Em consequência do descrito em 18), a demandante Segurança Social – Centro Nacional de Pensões pagou, no período de Dezembro de 2007 a Abril de 2008, a D..., a quantia mensal de 141,88 €, e a cada um dos dois filhos de J... a quantia mensal de 35,47 €, a título de pensões de sobrevivência, conforme doc. de fls. 277, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. Mais se provou que: 48. Nas circunstâncias de tempo e lugar indicadas em 1), J... prosseguia a sua marcha a velocidade que não foi possível apurar em concreto, mas superior a 50 Km/hora, tendo o motociclo identificado em 3), na sequência da travagem indicada em 5), deixado marcas de travagem numa extensão de 3,10 metros, seguidas de marcas no pavimento numa extensão de 2,10 metros e noutra extensão de 2,20 metros, conforme pontos H e G, respectivamente, do croqui de fls. 11, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 49. Em consequência directa e necessária da conduta de J... descrita em 48) resultaram as lesões descritas em 13). 50. O motociclo identificado em 3) tinha uma cilindrada de 942 cm3. 51. Na data indicada em 1), o arguido era director comercial, encontrando-se actualmente reformado, beneficiando de uma pensão de reforma no valor mensal de 250 €. 52. O arguido é diabético e sofre de doença vascular, gastando mensalmente cerca de 400 € em medicamentos. 53. O arguido explora uma churrasqueira, da qual obtém rendimentos que não foi possível apurar em concreto. 54. O arguido frequentou o ensino até à 4ª classe de escolaridade. 55. Do registo individual de condutor do arguido não consta qualquer averbamento de contra-ordenação ou crime praticado no exercício da condução de veículos a motor. 56. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta. 2.2. Quanto a factos não provados lê-se na sentença recorrida (transcrição): Não se provaram outros factos com interesse para a justa decisão da causa, designadamente que: Da acusação, dos pedidos de indemnização civil e da contestação da demandada civil: a) O veículo identificado em 1) era pertença do arguido. b) O condutor do motociclo identificado em 3) veio a embater com o corpo contra a roda direita da frente do veículo identificado em 1) e com a cabeça na roda traseira direita. c) No local do embate descrito em 8), a estrada configura uma recta. d) A largura da estrada identificada em 1) era de 5 metros. e) O arguido tripulava o veículo identificado em 1) por ordem e no interesse de A…, já que esta lho emprestara e consentira que o conduzisse. f) J..., antes dos embates descrito em 8), teve consciência de que iria morrer. g) J... sofreu dores lancinantes antes de morrer. h) J... viveu agonia nos últimos instantes de vida. i) O motociclo identificado em 3) ficou completamente destruído. j) J... ia reforçar a sua participação social na empresa referida em 32). k) A verba de 1.427,00 € constante do recibo de fls. 141 corresponde a férias, subsídio de férias e proporcional do subsídio de Natal, relativo ao ano de 2006. l) Quaisquer outros factos, constantes da acusação, dos pedidos de indemnização civil e das contestações, que não se encontrem descritos como provados ou que sejam contraditórios em relação aos mesmos, sendo o demais alegado matéria irrelevante, conclusiva ou de Direito. 2.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição): O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica do conjunto das provas examinadas e/ou produzidas em audiência de julgamento. Quanto às circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram os factos (cf. factos provados sob os nºs 1 e 2), o Tribunal atendeu, conjugadamente, ao depoimento unânime do arguido, das testemunhas L..., P..., B... e S..., sendo que as primeiras duas testemunhas são os agentes da GNR que se deslocaram ao local do embate e as duas últimas seguiam com o arguido no interior do veículo por este tripulado (doravante, veículo TS). Todos estes depoimentos, no que concerne ao local do embate, encontram-se corroborados pelo teor do auto de participação do acidente de viação a fls. 4-5, pelo que foi observado em sede de inspecção judicial ao local (documentada nos autos, a fls. 294-295) e pelo teor das fotografias de fls. 298 a 302. Quanto à dinâmica do embate em apreço dada como provada sob os nºs 2 a 9, 14, 28, 37 e 48, no que respeita, nomeadamente ao facto de o arguido não ter cedido, por desatenção, a passagem a J..., atendeu-se às concretas características do local registadas nas fotografias de fls. 6 a 10 e 298 a 303, à visibilidade aí apurada em sede de inspecção judicial ao local, aos vestígios então recolhidos no local, documentados nas fotografias de fls. 6 a 10 e no croqui de fls. 11, às concretas características dos veículos envolvidos (apuradas com base nos documentos de fls. 281 e 293), à sua posição final após o embate, documentada nas fotografias de fls. 6 a 10 – sendo certo que as testemunhas presenciais asseguraram que, após o embate, ambos os veículos ficaram imobilizados tal como está retratado nas referidas fotografias, no que se afiguraram sinceras) e, bem assim, ao depoimento das testemunhas presenciais (B... e S...) e das testemunhas L... e P..., acima referenciadas. Ora, o arguido referiu que, ao pretender efectuar a mudança de direcção para a sua esquerda, a fim de entrar no caminho de terra batida (em tout-venant) ali existente, parou junto ao eixo da via, accionou o sinal luminoso de mudança de direcção à esquerda e posicionou o veículo que conduzia um pouco inclinado para a esquerda, porque os arbustos que ali existiam ao tempo, à direita, retiravam visibilidade a quem seguia no seu sentido de marcha (Candeeiros/IC2 para Charneca Casal do Guerra) e apenas permitiam uma visibilidade de 30 metros para a frente. Esses arbustos, com a alegada grande dimensão (ao ponto de penderem para a Rua Principal onde ocorreu o embate) não existiam à data da inspecção judicial ao local (cf. ponto 5 do auto de inspecção). Mais referiu que só viu o motociclo quando já estava praticamente no aludido caminho de terra e que a vítima teria embatido primeiro com o corpo e só depois a mota embateu no veículo TS. Afirmou, ainda, que, após o embate, os veículos ficaram imobilizados como se mostra na fotografia de fls. 6 a 10. As testemunhas B... e S... corroboraram, no essencial, o afirmado pelo arguido, referindo que os tais arbustos apenas permitiam uma visibilidade de 6 a 7 metros para a frente, que o arguido parou junto ao eixo da via que não se encontrava marcado no pavimento e sinalizou a mudança de direcção à esquerda ligando o “pisca-pisca”, que o mesmo efectuou a referida manobra na perpendicular e entrando pelo lado direito do referido caminho e que o embate deu-se quando as rodas dianteiras do veículo TS já estavam no caminho de terra. A testemunha S... referiu, ainda, que já só reparou no motociclo quando esteve vinha “de rojo”, ou seja, em despiste, tendo ocorrido um primeiro embate entre a roda direita da frente do veículo TS e a mota e depois um segundo embate entre o corpo da vítima e a roda traseira direita do veículo TS, sendo que a vítima já vinha separada da mota quando prosseguia em despiste. A testemunha L... referiu que um veículo que ali estivesse parado para virar para o aludido caminho em tout-venant dispunha de uma visibilidade entre 7 a 8 metros. No que respeita à alegada reduzida visibilidade, a mesma resultou infirmada com base no que se observou no local em sede de inspecção judicial, pois não é crível que a vegetação que ali se viu do lado direito da estrada, atento o sentido de marcha do arguido, pendesse ao ponto de lhe restringir a visibilidade a 7 ou 8 metros. Mesmo que assim fosse, exigir-se-ia um cuidado redobrado a quem pretendesse efectuar a manobra de mudança de direcção executada pelo arguido. Se o veículo TS tivesse efectuado a manobra de mudança de direcção à esquerda na perpendicular à Rua Principal e pelo lado direito do dito caminho em terra batida, o mesmo veículo não teria ficado imobilizado obliquamente e na parte esquerda desse caminho, pois, mesmo que o motociclo circulasse a alta velocidade, não poderia arrastá-lo em bloco, podendo apenas originar rotação do mesmo, devido à grande diferença de taras (massas) entre o veículo TS e o motociclo, como resulta inequivocamente do teor dos documentos de fls. 140 (1º documento), 285 e 293, sendo o veículo TS claramente mais pesado que o motociclo. Por outro lado, o Tribunal considerou os rastos de travagem do motociclo, num total de cerca de 8,70 metros (cf. pontos H do croqui de fls. 11), seguidos de marcas provocadas pelo mesmo motociclo numa extensão de 2,10 metros, por sua vez seguidas de uma outra extensão de 2,20 metros (cf. pontos G do croqui a fls. 11), dos quais se infere que o motociclista seguia a velocidade superior a 50 Km/hora, pois, caso circulasse a velocidade igual ou inferior a 50 Km/hora, teria conseguido deter a marcha num espaço mais curto e não teria entrado em despiste (razão pela qual se deram como provados os factos descritos sob os nºs 48 e 49). Presume-se, de acordo com as regras do normal acontecer, que J... começou a travar assim que avistou o veículo TS. Tal significa que, considerando o teor do croqui de fls. 11, elaborado à escala (como referiu a testemunha L..., seu autor), o referido motociclista encontrava-se a cerca de 14 metros da entrada do dito caminho e, situando-se a tão curta distância, o arguido podia avistá-lo, assim executando a manobra com desatenção e imprudência. Concomitantemente, conclui-se que o arguido efectuou a manobra de mudança de direcção à esquerda sem atender ao trânsito na faixa de rodagem da Rua Principal, no sentido Charneca Casal Guerra – Candeeiros/IC2, pois, não obstante a existência de vegetação que alegadamente pendia para o lado direito dessa estrada de alcatrão (no sentido Candeeiros/IC2 – Charneca Casal do Guerra), a mesma não limitava a visibilidade aos indicados 6 a 7 metros, tendo em conta o que se observou aquando da inspecção ao local (cf. ponto 4) e a concreta configuração da zona do embate apurada a partir do teor das fotografias juntas a fls. 298, 299, 300 e do croqui de fls. 11. Acresce que, tendo-se apurado que no sentido de marcha do motociclo, a visibilidade máxima, na Rua Principal, contada até ao ponto de intercepção com o caminho de terra, era de 175 metros (cf. 6 do auto de inspecção a fls. 294-295), não é crível que o veículo TS já estivesse a efectuar a manobra de mudança de direcção para a sua esquerda senão a partir do momento em que se iniciam as marcas de travagem do motociclo, assinaladas no ponto inicial do ponto H assinalado no croqui de fls. 11, pois, como se disse, o motociclista certamente teria antecipado a sua travagem a maior distância (para o que dispunha de ampla visibilidade, como resulta do ponto 6 do auto de inspecção judicial), de molde a evitar o embate. Assim sendo, conclui-se que, contrariamente ao declarado pelo arguido e pelas testemunhas presenciais e passageiros do veículo TS (B... e S...), o embate do motociclo na roda dianteira direita do veículo TS deu-se quando este ainda se encontrava na via de trânsito destinada ao sentido de marcha em que circulava o motociclo e não quando a viatura conduzida pelo arguido já estava com as suas rodas dianteiras dentro do perímetro do caminho de terra batida, sendo que, de acordo com a visibilidade apurada a partir do local em que o arguido referiu ter começado a sua manobra, já tinha no seu campo de visão o aludido motociclo, tendo em conta que os rastos de travagem deste iniciam-se em menos de 50 metros contados a partir do campo de visão do arguido para a frente da Rua Principal. O facto provado sob o nº12 resulta não só do depoimento do arguido e das testemunhas B..., S... e E..., como também do que se observou aquando da inspecção judicial (cf. ponto 1 do auto de inspecção judicial), encontrando-se igualmente atestado pelo teor das fotografias juntas a fls. 298 a 301. Mais se apurou que o local do embate situa-se dentro de uma localidade (Casal do Guerra) – como assegurado pelas testemunhas L... e P.... Quanto às características da Rua Principal e do caminho onde o arguido pretendia entrar e ao estado do tempo no momento do embate (cf. factos provados sob os nºs 2, 10 e 11), atendeu-se aos depoimentos unânimes do arguido, das testemunhas B..., S... e E... e, bem assim, quanto ao que se colheu in loco, no âmbito da inspecção judicial (cf. auto a fls. 294-295), relativamente às características das referidas vias. O resultado da morte de J... e as lesões sofridas em consequência da dinâmica do embate resulta do teor do relatório médico-legal constante de fls. 62 a 67 (cf. facto provado sob o nº13). Apesar de se ter detectado a presença de canabinóides no sangue da vítima (cf. relatório de fls. 68-69, nada se apurou no sentido de essa presença ter contribuído, por qualquer modo, para o embate. A factualidade vertida sob o nº18 está provado com base nos documentos de fls. 114-115, 116 e 117, cuja autenticidade e genuinidade não oferece dúvidas. Os pagamentos assentes sob os nºs 19 e 20 estão provados com base no teor da certidão de fls. 118, cuja autenticidade e genuinidade não merecem, do mesmo modo, quaisquer dúvidas. O facto provado sob o nº21 está provado com base nos documentos de fls. 199-202 e 203-204. O facto provado sob o nº22 assenta no teor do documento de fls. 135-136, cuja autenticidade e genuinidade não oferece dúvidas. Os factos descritos sob os nºs 23, 24 e 25 estão provados com base nas certidões de assento de nascimento juntas a fls. 137, 138 e 139, respectivamente. A propriedade do veículo TS encontra-se provada com base no testemunho de B..., que assegurou que tal veículo pertence a sua esposa (cf. facto provado sob o nº26). Os factos provados sob os nºs 27 e 50 apoiam-se no teor do documento junto a fls. 140, relativo ao veículo em apreço. A factualidade vertida sob os nºs 29 a 34 e 38 a 42 e 45 resultou provada com base nos depoimentos coincidentes, espontâneos e fundamentados das testemunhas I... e E..., que, pese embora a relação próxima que mantinham com a vítima (o primeiro, seu amigo de infância, e o segundo, seu cunhado), não deixaram de prestar um depoimento que se reputou como sincero, tendo ambos evidenciado um conhecimento pessoal de que a vítima era uma pessoal saudável, da relação da vítima com a sua esposa (sua namorada desde a adolescência, com quem casou em 17.10.1998, como extrai da certidão a fls. 137) com os dois filhos e com terceiros, o trabalho que a vítima desenvolvia e os projectos que esta tinha para o futuro, a nível profissional. Atendeu-se, ainda, ao teor da certidão de fls. 253-255. Os factos assentes sob os nºs 35 e 36 resultam da dinâmica do acidente acima apurada, sendo que, de acordo com as regras da experiência comum, é plausível que, a partir do momento em que se iniciam as marcas de travagem do motociclo assinaladas no croqui de fls. 11, a vítima tenha representado a possibilidade do embate e tenha calculado a sua inevitabilidade quando entrou em despiste, tendo, como ser humano que é, sentido medo por toda a situação. É igualmente plausível que, dadas as circunstâncias, J... tenha representado a possibilidade da sua morte, já que se encontrava protegido unicamente pelo capacete. A factualidade assente sob os nºs 43 e 44 foi julgada provada com base no teor do primeiro documento junto a fls. 140 (relativamente às características do motociclo em apreço), conjugado com os testemunhos de I... e E..., que revelaram conhecer a mota e ter adquirido alguns conhecimentos sobre o seu valor venal, assim se extraindo de tais depoimentos o valor de mercado à data do embate e o valor do seu salvado. O facto provado sob o nº46 assenta no teor dos documentos de fls. 141 e 142. Ainda que dos documentos juntos a fls. 238 a 248 resulte um vencimento base de unicamente 500 €, admite-se que J... auferia efectivamente um maior vencimento, compatível com o apurado exercício da gestão de facto que exercia relativamente à empresa onde trabalhava. Atendeu-se ainda ao teor do documento de fls. 207. O facto vertido sob o nº47 resulta do teor da certidão de fls. 277. O arguido relatou as suas condições pessoais e situação económica actuais, que se deram como provadas nos termos descritos sob os nºs 51 a 54. Nesta matéria, o arguido também não se mostrou totalmente sincero, pois não é plausível que sobreviva unicamente com uma pensão no valor mensal de 250 €, face à quantia que alegou despender em medicamentos e que se deu como verdadeira, face às doenças invocadas. Por outro lado, não é igualmente plausível que o arguido mantenha um estabelecimento de restauração aberto sem dele retirar rendimentos, pelo que não se deu como provado que o arguido nada obtenha no exercício dessa actividade. Os depoimentos das testemunhas H... e M... não contribuíram para a descoberta da verdade material, pois revelaram nada saber quanto aos factos, apenas depondo favoravelmente sobre o comportamento rodoviário do arguido, no que resultaram corroborados pelo teor do registo individual do condutor e do certificado do registo criminal relativos ao arguido, juntos aos autos. Quanto aos factos provados sob os nºs 55 e 56, atendeu-se exclusivamente ao teor do registo individual de condutor e do certificado do registo criminal do arguido, a fls. 179-181 e 268, respectivamente, dos quais se infere que, até ao presente momento, o arguido não foi condenado por qualquer infracção rodoviária, grave ou muito grave. Quanto à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal atendeu exclusivamente ao certificado do registo criminal do arguido, a fls. 268. Quanto aos demais factos dados como não provados, os mesmos foram assim julgados por não se ter produzido quanto a eles, qualquer meio de prova ou prova cabal. Assim, o facto constante da alínea a) resultou infirmado pelas declarações do arguido e da testemunha B..., tendo-se extraído deste depoimento que o arguido conduzia o veículo TS com autorização unicamente desta testemunha, o que não significa necessariamente que o fazia no interesse e sob as ordens da sua proprietária ou que esta tivesse consentido no seu uso, razão pela qual se julgou igualmente não provado o facto vertido sob a alínea e). O facto descrito sob a alínea b) resulta infirmado pela apurada dinâmica do embate, nos termos supra descritos. A factualidade constante das alíneas c) e d) resulta infirmada pelos factos não compatíveis acima julgados como provados, atendendo-se, sobretudo, às fotografias constantes dos autos e à inspecção efectuada ao local. Não resultou provado que J... se tivesse apercebido de que efectivamente iria morrer ou que tenha sofrido dores intensas e sentido agonia nos últimos instantes da sua vida (factos sob as alíneas f), g) e h)), pois as testemunhas B... e S... evidenciaram terem imediatamente acudido a vítima, tendo logo observado que o mesmo estava inconsciente. O facto vertido sob a alínea i) resulta infirmado pelo teor da fotografia de fls. 7, que atesta o estado em que o motociclo ficou após o embate e da qual se observa que o mesmo não ficou completamente destruído. Não se deu como provado o facto descrito sob a alínea j), pois da prova testemunhal produzida apenas resultou que tal aquisição se tratava de um projecto da vítima, mas que ainda não se encontrava suficientemente concretizado. O facto vertido sob a alínea k) não encontra qualquer apoio na prova testemunhal ou documental produzida na audiência. 3. Apreciando A) Recurso interposto pelo arguido 1. Alega o recorrente que a sentença incorpora uma alteração não substancial dos factos, que não foi objecto de comunicação, pelo que terá sido violado o disposto no n.º1 do artigo 358.º do C.P.P., com a consequente nulidade da sentença, nos termos do preceituado no artigo 379.º, n.º1, alínea b), do mesmo diploma. E tal ocorreu, na perspectiva do recorrente, porque deu-se como provado que «[o] arguido, atentas as concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que circulava e a sua capacidade pessoal, devia e podia ter efectuado a manobra descrita em 2) cedendo a passagem ao motociclo identificado em 3) e sem causar perigo para a circulação deste, assim como devia e podia prever o resultado da sua conduta» (facto descrito sob o n.º 15 da sentença recorrida). O referido facto, segundo o recorrente, não foi alegado pela acusação nem pela defesa, pelo que, no seu entender, ocorreu uma alteração dos factos. Vejamos: De acordo com o princípio acusatório, a acusação deduzida define e fixa o objecto do processo, exigindo-se uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. Essa correlação traduz-se na exigência de que, definido o objecto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua actividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal. Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade. A observância destes princípios constitui uma exigência da salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido. Compreende-se que, se ao tribunal fosse permitido modificar o objecto do processo e conhecer para além dele, o arguido poderia ser confrontado com novos factos e novas incriminações que não tomara em conta aquando da preparação da sua defesa, não sendo de exigir ao arguido – que se presume inocente – que antecipe e preveja todas as imputações possíveis, independentemente da concreta acusação que contra si foi deduzida. Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) define e delimita o objecto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objecto, não podendo o tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites, o que constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo penal. No entanto, como refere Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273). O processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos. Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem. O que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio, remetendo-nos para a magna questão da definição do objecto do processo e das condições em que a conformação dos factos constantes da acusação pode ser alterada. O C.P.P. de 1987 distingue, no âmbito da alteração dos factos, as situações em que a alteração é substancial daquelas em que não é substancial. O artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P. de 1987, define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. As disposições fundamentais a considerar, na fase do julgamento, no tocante a esta matéria, são os artigos 358º e 359.º do C.P.P. Estatui o artigo 358.º, relativo à alteração não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia: «1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente para a preparação da defesa. 2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3. O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.» O artigo 359.º reporta-se, por seu turno, à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tendo sofrido relevantes alterações com a revisão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estabelecendo a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis. Salienta o S.T.J., em acórdão de 21 de Março de 2007 (processo 07P024, www.dgsi.pt): «Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa. É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal para “alteração substancial dos factos”, que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.» Sobre o alcance do conceito de “alteração substancial dos factos” pronunciou-se também a Relação do Porto, em acórdão de 23 de Maio de 2007 (processo 0513936, www.dgsi.pt). Disse, então, a Relação: «Fixemo-nos na imputação de crime diverso. Como se referiu, o objecto do processo, melhor diríamos, da acusação, que vincula tematicamente o tribunal, é constituído por aquele facto naturalístico que se discute, situado no passado, com a sua identidade, imagem e valoração social, que viola bens jurídicos penalmente tutelados, e por cuja prática o agente é alvo de censura. No conceito há uma relação dialéctica entre facto e crime. Por outro lado, nos termos do n.º 4 do art.º 339.º, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação; os factos alegados pela defesa; os factos que resultarem da prova produzida em audiência; as soluções jurídicas pertinentes, em obediência ao princípio da verdade material. Tendo a discussão da causa esta amplitude, pode acontecer que: a) Da discussão da causa resulte adição ou modificação dos factos constantes da acusação, sem intervenção da entidade acusadora; b) O arguido não tenha oportunidade de se defender de todos os factos apurados, violando-se o princípio que lhe consagra todas as garantias de defesa. Ora, conhecido o conceito de facto e a sua relação dialéctica com o tipo legal; conhecido o thema decidendum; conhecido o objecto do processo; e conhecidas ainda as razões porque não pode ser modificado o objecto do processo, cremos estar em condições de encontrar critérios que nos permitam afirmar se há ou não alteração substancial dos factos. Cremos poder afirmar que se imputa ao arguido um crime diverso quando: 1. Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo; 2. Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social; 3. Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade. O critério normativo – é disso que se trata – encontrado só fica completo quando se fizer a previsão das situações em que o arguido não teve oportunidade de se defender dos novos factos, com relevância jurídico-penal. Assim, importa acrescentar que, para efeitos de alteração substancial dos factos, imputa-se ao arguido um crime diverso quando: 4. O arguido não teve oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos. Nos termos da 2ª parte da alínea f) do n.º 1 do art.º 1º, estamos ainda perante uma alteração substancial dos factos quando: 5. Por força da modificação ou aditamento de novos factos, resulte o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao arguido (…)» Quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, n.º1, do C.P.P. Definidos os conceitos, importa agora aplicá-los aos autos. O recorrente afirma que, por via da inclusão na sentença da factualidade indicada sob o n.º 15 dos factos provados ocorreu uma alteração dos factos, ainda que não substancial. Da acusação deduzida contra o recorrente pelo Ministério Público constava: «No dia 17 de Março de 2007, cerca das 16.40 horas, o arguido conduzia o seu veículo ligeiro misto, de matrícula 22-21- TS, pela Rua Principal, Charneca Casal do Guerra, Benedita, no sentido Candeeiros/IC2 para Charneca Casal do Guerra. Depois de passar o restaurante "Vieira", o arguido efectuou a manobra de mudança de direcção para a sua esquerda, a fim de entrar num caminho em tout-venent que ali existia. No entanto, ao efectuar aquela manobra, o arguido não reparou que na mesma estrada mas em sentido contrário, ou seja, de Charneca do Casal Guerra para Candeeiros/IC2, circulava, pela sua mão de trânsito, o motociclo de matrícula 00-00-XB, conduzido por J.... Assim, o arguido efectuou a mudança de direcção para a sua esquerda sem que tivesse cedido a prioridade ao referido motociclo. O condutor do motociclo, quando viu a manobra do arguido, ainda efectuou uma travagem de cerca de 5,60 metros. Porém, esta travagem não foi suficiente para evitar a colisão entre o motociclo e o veículo do arguido. Durante a travagem, o motociclo desequilibrou-se e foi de rasto através da via até colidir com o veículo de matrícula 00-00-XX. Desta forma, o condutor do motociclo veio a embater com o corpo contra a roda direita da frente do veículo 22-21- TS e de seguida embateu com a cabeça, protegida por capacete, contra a roda traseira do mesmo lado. A colisão ocorreu enquanto o veículo conduzido pelo arguido ocupava já parte da sua metade esquerda da faixa de rodagem, na qual vinha a circular o J.... A estrada e o tempo estavam em boas condições. A estrada era uma recta com 5,20 metros de largura, sendo possível avistá-la em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, resultaram para o J... as lesões descritas no relatório de autópsia de fls.62 a 69 , que aqui se dão por reproduzidas , nomeadamente na cabeça, no tórax, no abdómen e nos membros superiores e inferiores, as quais foram a causa directa e necessária da sua morte. O acidente manifestou-se por manifesta desatenção, inconsideração e falta de perícia do arguido, o qual conduzia de forma desatenta e efectuou a manobra de mudança de direcção para a sua esquerda sem dar prioridade ao motociclo conduzido pela vítima. O arguido sabia que a sua conduta não era permitida por lei.» Feito o confronto com a factualidade constante do mencionado n.º 15 dos factos provados, temos como evidente a falta de razão do recorrente. Compulsados os autos, constata-se que o tribunal recorrido, na sessão de julgamento do dia 13 de Junho de 2008, proferiu despacho a comunicar uma alteração não substancial dos factos, atinente à eventual ocorrência da colisão dos veículos num local que configura uma curva e não uma recta. Na sessão do dia 25 de Junho de 2008, antes da leitura da sentença, foi comunicada uma alteração da qualificação jurídica relativamente à contra-ordenação imputada ao arguido. Em ambas as ocasiões, nada foi requerido na sequência da comunicação. Já no que concerne à factualidade descrita no n.º 15 dos factos provados, contra a qual o recorrente se insurge, é claro, a nosso ver, que não se está quer perante uma «alteração substancial dos factos», quer perante uma «alteração não substancial dos factos», já que nada se acrescentou à acusação que dela já não constasse, ainda que com diferentes palavras. Mesmo a «alteração não substancial» supõe uma modificação da factualidade constante da acusação. Conforme se diz no Acórdão da Relação do Porto, de 28 de Novembro de 2007, Processo 0712205 (www.dgsi.pt), a comunicação prevista no artigo 358.º, n.º1, do C.P.P. apenas tem lugar quando se tratar de uma alteração não substancial relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa. Mas quando é que isso sucede? «Para o efeito tem-se considerado que não existe uma alteração dos factos integradora do art. 358.º, quando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou da pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos – Ac. T. C. n.º 330/97 [DR II 1997/Jul./03]. O mesmo sucede quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes – Ac. STJ de 1991//Abr./03, 1992/Nov./11 e 1995/Out./16 [BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt]. Também tal não ocorrerá quando se tratar de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a acção do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia – Ac. TC n.º 387/2005, de 2005/Jul./13 [DR II 2005/Out./19] Mas já haverá uma alteração dos factos – substancial ou não – quando se considerarem factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora decorrentes do meio de prova junto aos autos, para os quais a acusação ou a pronúncia expressamente remetiam, não se encontravam aí especificadamente enunciados, descritos ou discriminados – Ac. TC n.º 674/99, de 1999/Dez./15 [DR II 2000/Fev./25]. Porém, não se pode confundir alteração da factualidade, quando se descreve a mesma mediante uma redacção distinta, porquanto o que releva são os factos, enquanto acontecimentos ou circunstâncias da realidade.» É esta última a situação que ocorre nos presentes autos: a factualidade provada sob o n.º 15 mais não é do que o elemento subjectivo da negligência que, embora com outra redacção, já constava do libelo acusatório. A mera diferença de redacção textual, limitando-se a concretizar por outras palavras a matéria que já constava da acusação, não introduziu qualquer alteração de factos (substancial ou não), porquanto o que releva são os factos, enquanto acontecimentos ou circunstâncias da realidade e estes estavam já todos contidos na acusação que o Ministério Público deduziu contra o ora recorrente e contra a qual este teve a oportunidade de exercer a sua defesa. Conclui-se, pois, que a sentença recorrida não enferma da invocada nulidade, claudicando, nesta parte, o recurso. 2. O recorrente invoca a violação do princípio in dubio pro reo e questiona a qualificação dos factos. Para esse efeito, diz que a mudança de direcção para a esquerda é uma manobra lícita e que as normas do Código da Estrada, ao determinarem procedimentos para a execução de tal manobra, pressupõem a possibilidade de os condutores a efectuarem. E, no caso dos autos, atento o referido princípio in dubio, da matéria de facto considerada assente não poderá concluir-se que o arguido/recorrente praticou qualquer infracção, contra-ordenacional ou de natureza penal. O recorrente não tem razão. Está provado, além do mais: o local do embate, que ocorreu na semi-faixa de rodagem do motociclo, que o veículo conduzido pelo recorrente invadiu (facto provado n.º 9); que o arguido efectuou a manobra de direcção para a esquerda sem que tivesse cedido a prioridade ao motociclo (facto provado n.º4); que o condutor do motociclo, quando viu a manobra do arguido, ainda efectuou uma travagem de cerca de 5, 60 metros que não foi suficiente para evitar a colisão (factos provados n.º 5 e 6); que era possível avistar a estrada em toda a sua largura, numa extensão de, pelo menos, 50 metros, atento o sentido de marcha do recorrente (facto provado n.º 12); que o embate resultou da desatenção e imperícia do arguido/recorrente ao efectuar a manobra de mudança de direcção para a esquerda (facto provado n.º 14); que o arguido/recorrente podia e devia ter actuado de forma diversa (facto provado n.º 15). Não se pode dizer, pois, que não se apuraram os factos atinentes à dinâmica do sinistro. É certo que o Código da Estrada admite a realização da manobra de mudança de direcção para a esquerda. Era assim face ao Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, revisto e republicado pelos Decretos-Leis n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e alterado pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto, como continua a ser face à redacção decorrente do Decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro. O artigo 35.º, n.º1, do Código da Estrada, preceitua que «o condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo de embaraço para o trânsito.» Ora, a matéria de facto provada – que o recorrente não impugnou no recurso, nos termos do artigo 412.º, n.º3, do C.P.P. – não deixa dúvidas de que o recorrente, ao realizar a referida manobra de mudança de direcção, o fez omitindo o dever de cuidado que lhe era imposto, incorrendo nos ilícitos contra-ordenacional e criminal pelos quais foi condenado. Ensina, sobre o princípio in dubio, o Prof. Figueiredo Dias: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213). A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável. Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza. Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada. Finalmente, deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições. No caso em apreço, ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra o recorrente qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efectivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo. Não se verificou, por conseguinte, qualquer violação do princípio in dubio, como sem razão o recorrente invoca. Também nesta parte improcede o recurso. 3. Insurge-se o recorrente, finalmente, contra a medida concreta da pena, no que tange à razão diária da multa, e bem assim contra a não suspensão da execução da sanção acessória. O tribunal recorrido decidiu condenar o recorrente na pena de 11 meses de prisão, pela autoria material do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 13.º, in fine, 15.º, al. b), e 137.º, n.º1, do C.P., que, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º1, e 47.º, n.º1, do C.P. na redacção introduzida pela Lei n.º59/07, de 4.09, foi substituída por 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à razão diária de 15 € (quinze euros), o que perfaz o montante total de 4.950 € (quatro mil novecentos e cinquenta euros). O recorrente não questiona a opção pela pena principal de prisão e a sua substituição por multa, mas tão-só a taxa diária desta. Lê-se na sentença recorrida, a este propósito: «À data da prática dos factos, o artigo 44.º, nº1, do CP preceituava: “A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º”. Entretanto, entrou em vigor a nova redacção do Código Penal, introduzida pela Lei nº59/07, de 4.09, que alargou a aplicabilidade da pena de multa enquanto pena de substituição às penas de prisão aplicadas em medida não superior a um ano (cf. artigo 43.º, nº1, do Código Penal). Paralelamente, é de notar que da nova redacção do nº2 do artigo 47.º do Código Penal (aplicável à multa de substituição por força do disposto na parte final do novo nº1 do artigo 43.º do CP) resulta a elevação do limite mínimo do quantitativo diário da multa para 5 € e do correspondente limite máximo para 500 €. Ora, de acordo com o artigo 2.º, nº4, do CP (seja na redacção anterior à citada lei, seja na sua actual redacção), deve verificar-se qual o regime concretamente mais favorável ao arguido. No caso concreto, verifica-se que a aplicação do novo nº1 do artigo 43.º do CP é mais favorável ao arguido em concreto, pois, de outro modo, não seria possível proceder à substituição da pena de prisão que lhe foi aplicada por pena de cariz pecuniário, que, in casu, se justifica, pois, entende-se que a execução da prisão não é exigida pela necessidade de prevenir a prática de novos crimes. No que respeita ao quantitativo diário da multa, a lei vigente à data da prática dos factos era mais favorável ao arguido, pois fixava o limite mínimo do quantitativo diário da multa em 1 €, inferior ao actualmente em vigor. Porém e porque a determinação do regime aplicável como sendo o concretamente mais favorável tem de ser feita em bloco (e não com recurso aos aspectos parcelares mais favoráveis de cada um dos regimes que se tenham sucedido no tempo), opta-se pela aplicação do Código Penal alterado pelo legislador de 2007, no que respeita às consequências jurídicas do crime, sendo certo que é mais vantajoso, para o arguido, aplicar-lhe uma pena de multa em substituição da pena de prisão que lhe foi fixada, mesmo que tal implique a determinação de um quantitativo diário mais oneroso do que aquele que resultaria da lei antiga, da qual, aliás, nunca poderia beneficiar, de acordo com a anterior redacção do nº1 do artigo 44.º do CP. Nesta conformidade e de acordo com as disposições conjugadas previstas no artigo 43.º, nº1, e no artigo 47.º, nº1, do CP (na redacção introduzida pela citada Lei nº59/07), decide-se substituir, à luz dos critérios estabelecidos no nº1 do artigo 71.º do CP, a pena de 11 meses de prisão por 330 (trezentos e trinta) dias de multa. A cada dia de multa corresponderá, nos termos do artigo 47.º, nº2, do CP (na nova redacção), a quantia de 15 €, por se afigurar um valor razoável, tendo em conta que o mesmo, face aos factos que foi possível apurar relativamente aos concretos rendimentos e encargos pessoais do arguido (cf. factos provados sob os nºs 51 a 53), se mostra compatível com o rendimento que o arguido obtém da exploração da churrasqueira.» Está provado que o recorrente, à data dos factos, era director comercial; que se encontra actualmente reformado, beneficiando de uma pensão de reforma no valor mensal de 250 €; que é diabético e sofre de doença vascular, gastando mensalmente cerca de 400 € em medicamentos; que explora uma churrasqueira, da qual obtém rendimentos que não foi possível apurar em concreto. O procedimento de determinação da multa integra dois momentos autónomos: o da fixação dos dias de multa; o da fixação da sua razão diária, em função da situação económico-financeira do arguido, tendo em vista o preceituado no artigo 47.º, n.º2. A dignificação da multa, seja como pena principal, seja como pena de substituição, exige que a mesma tenha efectivo conteúdo sancionatório, sem o que não poderá realizar as finalidades que lhe competem de protecção de bens jurídicos e de prevenção especial. Para esse efeito, importa que o montante da multa seja fixado de forma a ser sentido como uma verdadeira pena que é, constituindo, por isso, um sacrifício real para o condenado. Face ao Código Penal, na redacção anterior à revisão de 2007, a taxa diária da multa devia ser fixada entre € 1 e € 498,80, remontando aquele mínimo à versão originária do Código que entrou em vigor no já distante dia 1 de Janeiro de 1983. Realmente, a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, decuplicou o limite máximo da pena de multa – que passou de 10.000$00 para 100.000$00 –, mantendo, porém, o montante mínimo que permaneceu – até à revisão operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – nos 200$00, o que equivale a € 1, mínimo que devia ser reservado para casos de indigência, tal a sua desactualização. Com a revisão aprovada pela Lei n.º 59/2007, aquele mínimo passou para 5,00€ (cinco euros) e o máximo para 500,00€ (quinhentos euros). No caso vertente, face aos elementos dos autos e tendo em atenção os critérios enunciados no artigo 47.º n.º 2, do Código Penal, em que avulta que o recorrente, para além da sua reforma (pequena, sem dúvida), aufere rendimentos provenientes da exploração de uma churrasqueira, afigura-se-nos que a taxa diária fixada pelo tribunal recorrido se mostra ajustada, não havendo qualquer razão justificativa para a sua fixação no mínimo, como pretende o recorrente. Acresce que a lei prevê a possibilidade de pagamento da multa em prazo alargado ou em prestações, o que, não devendo chegar ao ponto de desvirtuar o significado sancionatório da multa enquanto pena, permite facilitar o pagamento nos casos em que a situação económica e financeira do condenado o justifique. Quanto à pretendida suspensão da execução da sanção acessória, importa reter o que consta da sentença recorrida a esse respeito. Diz-se, na sentença: «Resulta expressamente do artigo 141.º, nº1, do actual Código da Estrada que a suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir (só) é admissível quando esteja em causa uma contra-ordenação grave e desde que verificados os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, e o infractor não tiver sido condenado, nos últimos 5 anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave (o que possibilita a suspensão pelo período de 6 meses a 1 ano) ou se o infractor, nos últimos 5 anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave (o que possibilita a suspensão pelo período de 1 a 2 anos, condicionada, singular ou cumulativamente, à prestação de caução de boa conduta ou ao cumprimento de outros deveres, como previsto nos nºs 3 a 6 do artigo 141.º do Cód. da Estrada). Ora, de acordo com o disposto no artigo 50.º, nº1, do CP, o tribunal suspende a execução da pena (de prisão, aplicada em medida não superior a 3 anos e, actualmente, não superior a 5 anos, atenta a nova redacção do nº1 do artigo 50.º do CP, introduzida pela Lei nº59/07, de 4.09) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição no caso concreto. No caso concreto, não há notícia de que o arguido tenha praticado anterior ou posteriormente à data dos factos qualquer crime ou contra-ordenação (grave ou muito grave) de natureza rodoviária. No entanto, não se deve ignorar que da ilicitude da conduta do arguido resultou um perigo concreto para os demais utentes da via pública em que circulava, o qual se concretizou não só na colisão do motociclo XB, mas também, na sequência desse embate, na morte do condutor deste veículo de duas rodas. Por conseguinte, o Tribunal conclui que a simples censura do facto e a ameaça da inibição de conduzir não iriam realizar, no caso concreto, de modo adequado e suficiente, as finalidades da sanção aplicada, sendo certo que as exigências de prevenção geral positiva são significativas (nos termos referidos em sede de determinação da medida concreta da pena aplicada ao arguido), demandando a execução da sanção acessória. Nesta conformidade, decide-se não suspender a execução da sanção de inibição de conduzir aplicada ao arguido.» Estas considerações não nos merecem qualquer reparo, sendo certo que o recorrente também nada adianta no recurso que as ponha fundamentadamente em causa. Razão pela qual, fazendo nossas, na íntegra, tais considerações, entendemos não se justificar a pretendida suspensão da execução da sanção acessória de inibição temporária da faculdade de conduzir, porquanto a simples censura do facto e a ameaça da inibição de conduzir não iriam realizar, no caso concreto, de modo adequado e suficiente, as finalidades da sanção aplicada, Conclui-se, assim, pela inteira improcedência do recurso interposto pelo arguido. B) Recurso interposto pelos demandantes civis 1. Invoca-se o erro na apreciação da prova e a incorrecta aplicação do direito aos factos. A este propósito importa recordar que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.). No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal. Não tendo sido suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, a questão situa-se no âmbito do artigo 410.º, n.º2. Estabelece esta disposição legal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Trata-se de vícios de conhecimento oficioso. Em qualquer das apontadas hipóteses, como já se disse, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum. Quanto à “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Saliente-se que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. Quanto à “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios. Mais concretamente quanto à questão da travagem, escreveu-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto: «Por outro lado, o Tribunal considerou os rastos de travagem do motociclo, num total de cerca de 8,70 metros (cf. pontos H do croqui de fls. 11), seguidos de marcas provocadas pelo mesmo motociclo numa extensão de 2,10 metros, por sua vez seguidas de uma outra extensão de 2,20 metros (cf. pontos G do croqui a fls. 11), dos quais se infere que o motociclista seguia a velocidade superior a 50 Km/hora, pois, caso circulasse a velocidade igual ou inferior a 50 Km/hora, teria conseguido deter a marcha num espaço mais curto e não teria entrado em despiste (razão pela qual se deram como provados os factos descritos sob os nºs 48 e 49). Presume-se, de acordo com as regras do normal acontecer, que J... começou a travar assim que avistou o veículo TS. Tal significa que, considerando o teor do croqui de fls. 11, elaborado à escala (como referiu a testemunha L..., seu autor), o referido motociclista encontrava-se a cerca de 14 metros da entrada do dito caminho e, situando-se a tão curta distância, o arguido podia avistá-lo, assim executando a manobra com desatenção e imprudência.» De harmonia com o disposto no artigo 127.º do C.P.P., a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, o que constitui a consagração do princípio da livre apreciação da prova. No caso vertente, tal como bem refere o Ministério Público junto da 1.ª instância, os recorrentes esquecem: - que o seu marido e pai circulava num veículo de duas rodas e, por isso, segundo as regras da experiência comum, mais instável do que um veículo de quatro rodas; - que o fazia dentro de uma localidade; - que na data indicada, na zona de embate, a estrada configurava uma curva, seguida de uma recta, com 5,20 metros de largura; - que havendo um entroncamento à direita, atento o sentido de marcha do motociclo, mais se justificava a moderação da velocidade imprimida ao veículo; - que o veículo do arguido era visível, a vítima travou e, na sequência, foram deixadas no pavimento as marcas de travagem que os autos atestam, indo de rojo o motociclo pese embora, naturalmente, os pesos da vítima e do próprio veículo e o atrito provocado no solo. Face a estes elementos, devidamente conjugados, afigura-se-nos que o decidido quanto à velocidade não é fruto de mera especulação ou conjectura, como alegam os recorrentes, mas sim o resultado de um juízo sobre as provas recolhidas alicerçado na livre apreciação das mesmas e inteiramente conforme aos ditames da experiência comum. Trata-se de um juízo ancorado em factos, com base na valoração da prova efectuada pelo tribunal recorrido ao abrigo do citado artigo 127.º do C.P.P., a qual não merece qualquer censura por parte deste tribunal de recurso, sendo, pelo contrário, especulativa e conjectural a argumentação desenvolvida, em sentido contrário, pelos recorrentes quanto aos rastos de travagem. Inexiste, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada, não se evidenciando qualquer erro notório na sua apreciação. 2. Quanto à incorrecta aplicação do direito aos factos, os recorrentes contestam a verificação de concorrência de culpas. Sem razão, porém, salvo melhor opinião. A este propósito, lê-se na sentença recorrida: «O arguido omitiu, assim, o dever de cuidado imposto pelo artigo 35.º, nº1, do Cód. da Estrada na manobra de mudança de direcção para a sua esquerda que executou, cujo âmbito de protecção abrange a salvaguarda da segurança, da integridade física e da vida de todos aqueles que circulam na via pública. O arguido violou, pois, o dever objectivo de cuidado, designadamente, de observar a sobredita regra de trânsito, que se impunham a qualquer condutor médio, avisado e prudente, a efectuar a manobra que o arguido descreveu, colocando em perigo a integridade física e a vida do motociclista que prosseguia a sua marcha em sentido contrário. No entanto, não se pode ignorar que J... circulava, dentro da localidade (Casal do Guerra) a uma velocidade que não foi possível apurar em concreto, mas superior a 50 Km/hora (cf. facto provado sob o nº48), pelo que, com esta conduta, violou o limite máximo de velocidade instantânea permitido dentro da localidade (50 km/hora, tendo em conta que se trata de um motociclo com cilindrada superior a 50 cm3 – cf. facto provado sob o nº50), previsto no artigo 27.º, nº1, do Cód. da Estrada. Ora, ao não conter a velocidade do motociclo que tripulava dentro do limite máximo legalmente permitido no local, a vítima também contribuiu para o desfecho fatal do embate, pois, de outro modo, teria conseguido travar no espaço livre e visível à sua frente, por forma a, pelo menos, atenuar a força do embate. Em suma: o resultado da morte de J... surge como consequência adequada, directa e necessária não só da conduta do arguido, mas também da própria vítima, sendo que esse resultado como o processo causal, ainda que nos seus traços essenciais, era objectivamente previsível para ambos os intervenientes no acidente de viação em apreço nos autos.» Mais adiante: «Cumpre salientar, neste passo, que a culpa da vítima não exclui a culpa do arguido, verificando-se uma situação de concorrência de culpas. Com efeito, não se provou ter ocorrido qualquer circunstância estranha ou anormal que tivesse interrompido o nexo de causalidade entre a conduta do arguido e o resultado da morte, sendo certo que as condições da via de trânsito e as condições climatéricas não demandavam especiais cuidados (a estrada onde ocorreu o embate era de alcatrão, o piso estava liso e sem buracos e o tempo estava seco e fazia Sol – cf. factos provados sob os nºs 10 e 11) – cf., neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto, de 7.03.1990, processo nº9051117; o Ac. da Rel. do Porto, de 26.03.2008, processo nº0746985; o Ac. da Rel. do Porto, de 12.01.2001, processo nº9910945; e Ac. da Rel. de Coimbra, de 12.05.2004, processo nº501/04, todos in www.dgsi.pt.» (…) Neste passo, cumpre salientar que se atenderá à concorrência da culpa da vítima para a produção dos danos, nos termos dos artigo 570.º, nºs 1 e 2, e 572.º do Código Civil, pelo que se reduzirá a indemnização devida, tendo em conta a proporção da culpa com que a vítima contribuiu para o resultado, fixada em 30%, nos termos acima explicitados.» Apesar de na motivação da decisão sobre a matéria de facto se referir a detecção da presença de canabinóides no sangue da vítima, também se salienta que não se apurou que tal facto tenha contribuído, por qualquer modo, para o acidente. Porém, a conduta da vítima mortal foi também contra-ordenacional, por via da velocidade imprimida ao motociclo que conduzia, superior ao máximo permitido para o local. Será que tal incumprimento das regras estradais não contribuiu para o acidente em causa e que este sempre teria ocorrido independentemente da conduta da vítima mortal? A 1.ª instância considerou que o acidente em causa se ficou a dever a uma concorrência de culpas dos condutores nele envolvidos, na ordem dos 70% para o arguido e 30% para o condutor do motociclo. Da matéria de facto provada resulta, como já se disse: por um lado, o arguido efectuou a manobra de mudança de direcção para a esquerda sem dar prioridade ao motociclo, não tendo reparado neste ao efectuar tal manobra; por outro, o motociclo circulava a uma velocidade superior à permitida para o local, não tendo logrado evitar o embate. E a estrada em causa configurava uma curva seguida de uma recta, com 5,60 metros de largura, sendo possível avistar a estrada em toda a sua largura numa extensão de pelo menos 50 metros. Neste contexto, ambos os condutores agiram contrariamente aos seus deveres estradais. E não podemos concluir que a conduta estradal da vítima mortal tenha sido estranha ao embate. É certo que a ocorrência de diferentes infracções estradais, imputáveis aos condutores envolvidos no acidente, não determinam culpas concorrentes. As infracções estradais praticadas pelos intervenientes em acidente de viação podem nada ter a ver com a ocorrência do mesmo, havendo que considerar, em todos os casos, a gravidade das infracções e a forma determinante, num juízo de causalidade, que as mesmas tiveram na produção do sinistro. A violação cumulativa de duas regras de trânsito não implica a culpa na produção do acidente, como se esta se pudesse apurar em função de uma mera soma aritmética de infracções. Não é esse o caso em apreço, em que a conduta estradal da vítima mortal foi, a nosso ver, co-determinante na produção do acidente, pois face à factualidade apurada, seguisse esta a uma velocidade legalmente admissível, tanto mais na proximidade de um entroncamento, teria tido a oportunidade de evitar o embate ou, pelo menos, minorar as suas consequências. O que os autos evidenciam é, precisamente, desatenção às regras estradais por parte de ambos os intervenientes, sendo que a prioridade da vítima mortal não constituía um direito absoluto nem a eximia do dever de cumprir tais regras. Nestes termos, entendemos que não merece censura a sentença recorrida, ao decidir pela repartição de culpas entre os intervenientes, nos termos em que o fez. 3. Quanto aos montantes indemnizatórios, os recorrentes questionam os quantitativos referentes ao direito à vida e ao sofrimento da vítima e aos danos não patrimoniais sofridos pelos próprios, mulher e filhos da vítima mortal. A título de indemnização da perda do direito à vida e sofrimentos da vítima tinha sido peticionada a quantia de 75.000,00 €, tendo sido fixada, na sentença recorrida, a quantia de 60.000,00 € pela perda da vida (com redução posterior, em função das culpas concorrentes) e de 1.000,00 € pelos sofrimentos sofridos pela própria vítima mortal (valor que sofreu igualmente a dita redução). No que toca aos danos não patrimoniais dos recorrentes, foi peticionada a quantia de 40.000,00 € para a demandante D... e de 25.000,00 € para cada um dos filhos. A este propósito, a sentença recorrida fixou em 20.000,00 € e 10.000,00 € os referidos montantes (com redução posterior, em função da concorrência de culpas). Vejamos: Prescreve o artigo 129.º, do Código Penal: «A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil». Para a fixação do quantum indemnizatório terá o julgador de se socorrer das regras estabelecidas no Código Civil, designadamente, das contidas nos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes. Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem...fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação». Os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito são, pois: a violação de um direito; a ilicitude do facto danoso; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano; um nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos pelo lesado. Dentro dessa obrigação de indemnizar incluem-se, de acordo com o artigo 496.º, n.º1, do Código Civil, os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado «que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito». Estes danos – que tradicionalmente eram designados de danos morais – resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação,…), verificando-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de personalidade (ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 85 e 86, edição de 1976). O n.º2 do mesmo artigo estabelece que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe às pessoas aí mencionadas: em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. Por seu turno, o n.º3, 2.ª parte estipula que, no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior. É sabido que estes preceitos originaram divergências de interpretação, quer quanto à natureza indemnizável da perda do direito à vida, quer no que concerne à determinação dos titulares da indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da lesão desse direito. A jurisprudência dos nossos tribunais tem entendido, de modo uniforme, que o dano pela perda do direito à vida é passível de indemnização. O Acórdão do S.T.J. de 11 de Janeiro de 2007, no Proc. n.º 06B4433 (publicado in www.dgsi.pt), embora realce o facto de a indemnização pela perda do direito à vida ser ignorada em decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e não ser considerada nos principais países da União Europeia, o que justificará a necessidade de nova ponderação jurisprudencial, não deixou, porém, de decidir que tal indemnização deve actualmente ser concedida, tendo em vista a uniformidade da nossa jurisprudência e atento o disposto no n.º3 do artigo 8.º, do Código Civil. A sentença recorrida, como se disse, considerou indemnizável o dano pela perda da vida e tal não é questionado. Outra questão debatida tem sido a de saber se o direito à indemnização pela perda da vida é devido, como direito próprio, aos familiares indicados no n.º2 do artigo 496.º, do Código Civil, ou se se transmite por via sucessória. Ensina Antunes Varela (Das obrigações em geral, volume I, 507 e seguintes, 3.ª edição) que «nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa, pelos danos morais correspondentes à perda da vida...» e, no caso de lesão letal, «toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio», referindo-se aos mencionados no n.º2 do artigo 496.º. E acrescenta: «...nada impede, bem pelo contrário, que o julgador tome em linha de conta, como parcela autónoma da soma a que haja de proceder, a perda da vida da vítima...» No mesmo sentido, ensina Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, I, 3.ª edição, 298 e seguintes) que o n.º 2 do artigo 496.º atribui às pessoas nele referidas direitos de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima de morte e os sofridos pessoalmente pelas pessoas com direito a indemnização nos termos desse n.º 2, tratando-se de direitos atribuídos iure proprio e não como herança. Foi este o entendimento adoptado pela sentença recorrida, que nesta parte também não sofre censura. Saliente-se, ainda, que a jurisprudência tem identificado três danos não patrimoniais abrangidos pelo artigo 496.º, n.º3, 2.ª parte: o dano pela perda do direito à vida; o dano sofrido pela vítima antes de morrer, ponderando-se, além de outros factores, o sofrimento que acompanha a presciência da morte; o dano sofrido pelos familiares da vítima por causa da morte desta. Quanto ao primeiro, partindo do princípio de que o dano pela perda da vida é indemnizável e que o direito à correspondente reparação é adquirido, originariamente, pelas pessoas indicadas no n.º2 do artigo 496.º, do Código Civil, importa saber como fixar o quantum da respectiva indemnização. Trata-se de questão particularmente difícil e não isenta de dúvidas: a vida humana não tem preço, pelo que importa chegar a um valor com recurso à equidade, tendo em vista encontrar no caso a solução mais justa. Dario Martins de Almeida (Manual de Acidentes de Viação, 3.ª edição, p. 189) observou que a nossa jurisprudência tem trabalhado esta matéria de forma demasiado casuística, fazendo intervir a equidade, mais perante uma situação abstracta do que perante uma situação concreta, sendo os montantes indemnizatórios fixados sem uma base lógica de apoio e variando de tribunal para tribunal. Propôs esse autor que a lesão do direito à vida fosse encarada sob três pontos de vista (ob. cit. p. 191; tenha-se em conta que passaram quase 40 anos sobre a 1.ª edição e cerca de 21 anos sobre a 3.ª edição citada): a) enquanto vida que se perde, na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral; b) enquanto vida que se perde, no papel excepcional que desempenha na sociedade (um cientista, um escritor, um artista); c) enquanto vida que se perde, sem qualquer função específica na sociedade (uma criança, um doente ou um inválido), mas assinalada por um valor de afeição mais ou menos forte). A equidade passaria, então, a exercer-se a partir daqueles diferentes pontos de vista. Alguma jurisprudência chegou a considerar que o valor da perda da vida nunca devia ser inferior ao custo (em média) de um automóvel médio no nosso mercado. Trata-se de um entendimento que, salvo o devido respeito, mostra-se hoje já largamente ultrapassado. Os Acórdãos do S.T.J. de 20 de Junho de 2006 (Proc. n.º 06A1476) e de 8 de Junho de 2006 (Proc. n.º 06A1464 – tal como o anterior e todos os que forem indicados apenas pelo seu número está disponível in www.dgsi.pt) defenderam que «sendo a vida um valor absoluto, independente da idade, condição sócio-cultural, ou estado de saúde, irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vitima, que não a vida em si mesma. Importam, tão-somente os outros critérios do artigo 494.º, aplicável “ex vi” do n.º3 do artigo 496.º do Código Civil. Daí que não seja de acolher a tese que privilegia a vida que desempenha um “papel excepcional” na sociedade (“um cientista, um escritor, um artista”) em relação a uma vida “normal” ou a uma vida “sem qualquer função especifica na sociedade (uma criança, um doente ou um inválido)”(…)». O mesmo S.T.J. decidiu, por Acórdão de 11 de Janeiro de 2007 (Proc. n.º 06B4433), que no caso de indemnização pela perda do direito à vida, o que está em causa assume foros de tal dignidade que a consideração da situação económica do lesado, ou mesmo do lesante, como critério aferidor, a que alude o mencionado artigo 494.º violaria frontalmente o artigo 13.º da Constituição da República. Uma vida não vale mais ou menos de acordo com a realidade patrimonial de quem morre ou de quem mata. Assim, afastado o critério económico, há que distinguir: ou se entende que estamos perante uma indemnização relativa ao direito a não ser morto, caso em que a supressão da vida encerra um valor absoluto e o montante indemnizatório não dependerá da idade da vítima, do seu estado de saúde ou da alegria que tinha em viver, em suma do seu concreto; ou se entende que a indemnização se reporta à perda do que a vida traduz, consistindo este valor não só na afectação do direito a viver, como também na supressão inerente a tudo o que a vida proporciona. Aqui passa a interessar a idade da vítima, a sua alegria de viver, os projectos pessoais que tinha e outras concretizações do preenchimento que fazia da existência. Ambas as orientações têm sido seguidas pelo S.T.J., com preponderância da indicada em segundo lugar, tendo sido a adoptada pelo mencionado Acórdão e aquela para que propendemos. Em todo o caso, o artigo 496.º do Código Civil remete para “as circunstâncias” do artigo 494.º e este manda atender à equidade que é uma figura que se caracteriza como o aferimento da justiça atendendo ao caso concreto. No caso em apreço, a vítima tinha 37 anos de idade e era saudável, tendo ainda, previsivelmente, um longo período de vida pela frente. As decisões jurisprudenciais mais recentes vêm fixando a indemnização pela perda do direito à vida em valores na ordem dos 50.000,00 €/60.000,00 €. Para este efeito teve algum impacto o valor de 10.000.000$00 proposto pelo Provedor de Justiça a título de indemnização pela perda da vida, no caso da derrocada da ponte de Entre-os-Rios. Vários anos volvidos sobre o trágico evento, a jurisprudência tem vindo a fixar a indemnização pela perda do direito à vida em valores situados nesse montante. Afigura-se-nos, pois, que a sentença recorrida, ao fixar a indemnização pela perda do direito à vida em 60.000,00 € (depois reduzida mercê da concorrência de culpas, repartindo-se 14.000,00€ para cada um dos demandantes), atendeu ponderadamente aos critérios legais e às orientações jurisprudenciais mais recentes. Quanto aos danos sofridos pela própria vítima no período de tempo que decorre entre o facto lesivo e a sua morte, ligados às dores físicas que sentiu e à angústia derivada da consciência do seu estado, foram incluídos na verba de 75.000,00 € que foi peticionada pelos demandantes civis e que estes continuam a reclamar no recurso, abrangendo perda do direito à vida e danos não patrimoniais sofridos pela vítima mortal. Ora, quanto a estes últimos, a sentença recorrida fixou o valor indemnizatório em 1000,00 €. No caso em análise, encontra-se assente que a vítima mortal, antes dos embates, teve consciência da sua inevitabilidade e de que poderia morrer e sentiu medo quando, de forma desamparada e sem qualquer protecção para além do capacete, o seu corpo foi impelido contra o veículo TS, tendo seguidamente ficado caído no asfalto (cf. factos provados sob os n.º 35 a 37). Pese embora a dinâmica do acidente, que terá determinado que os factos ocorressem com grande rapidez, afigura-se-nos que os danos relativos a sofrimentos, ao medo sentido pela vítima mortal e à consciência da inevitabilidade do embate e da possibilidade de vir a morrer devem ser computados, equitativamente, no montante de 5.000,00 €. Convocando o artigo 570.º, n.º1, do Código Civil, fixa-se essa compensação em 3.500,00 €, por via da redução decorrente da concorrência de culpas, a repartir pelos demandantes nos termos decididos pela 1.ª instância. Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, mulher e filhos da vítima mortal, está provado que os demandantes D..., C... e G... sofreram profundamente com a morte de J..., que vivenciarão com dor até ao final das suas vidas. Mais se apurou que D... mantinha um relacionamento afectivo há 21 anos com J..., tendo ambos contraído matrimónio entre si em 17 de Outubro de 1998. A demandante D... e J... mantinham uma relação matrimonial estável e harmoniosa. D... entrou em estado depressivo, em consequência da morte de J..., o qual dispensava aos seus filhos carinho e afecto, acompanhando-os no seu dia-a-dia, assim como gostava da sua esposa (cf. factos provados sob os nºs 30 e 38 a 42). Perante este quadro, não existem quaisquer dúvidas de que os demandantes experimentaram um sério e profundo sentimento de dor e tristeza causado pela morte inesperada de J..., entre os quais, como salienta a sentença recorrida, predominavam fortes laços familiares e de afectividade. Assim, afigura-se mais adequado compensar a demandante D... com a quantia de 30.000,00 € e cada um dos filhos com o montante de 20.000,00 €, realçando-se a longevidade da relação amorosa de 21 anos que se mantinha entre a vítima mortal e D... e, por outro lado, a tenra idade dos filhos do casal. De acordo com o disposto no artigo 570.º do Código Civil, reduz-se tais montantes em 30%, assim se fixando as compensações em 21.000,00 €, para o cônjuge, e em 14.000,00 € para cada um dos filhos. Finalmente, quanto a danos patrimoniais com incidência futura, havia sido peticionada a quantia de 190.000,00 €, tendo sido fixada, na sentença recorrida, a quantia de 136.790,55 €. Lê-se na sentença recorrida: «Quanto aos danos patrimoniais futuros e previsíveis de D... e seus filhos, fundados na perda dos rendimentos da vítima, há que atender aos termos conjugados dos artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566º do Código Civil, de molde a efectuar o respectivo cálculo, que não obedecerá a critérios estritamente matemáticos (cf. Ac. do STJ, de 30.01.2003, supra citado), embora estes possam funcionar como indicadores para apurar o capital justo. Os danos futuros assumem, no caso sub judice, uma natureza exclusivamente patrimonial, porquanto somente englobam os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultaram para os lesados (ou resultarão de acordo com os dados previsíveis da experiência comum) em consequência do facto ilícito de que foi vítima, assim como os prejuízos que resultem da hipotética manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo mais ou menos prolongado e que poderá corresponder, nalguns casos, ao tempo de vida laboral útil do lesado (cf. o estudo do Sr. Juiz Conselheiro Joaquim José de Sousa Dinis, «Dano corporal em acidentes de viação», in CJSTJ, 2001, I, p. 6). De qualquer modo, cumpre salientar que os demandantes, cônjuge e filhos, apenas gozam do direito de indemnização por perda de rendimentos futuros derivados da morte de J..., decorrentes da privação de alimentos que este, não fora a ocorrência do evento, por certo lhes viria a prestar, conforme preceituado no artigo 495.º, nº3, do Código Civil, conjugado com o artigo 2009.º, nº1, als. a) e c), do Código Civil, a calcular com observância do princípio actualista consagrado no artigo 566.º, nº2, do Código Civil e seguindo um critério de equidade, nos termos do nº3 do citado artigo 566.º. Os filhos menores têm direito a alimentos dos seus pais, nos termos dos artigos 1878.º, nº1, 1879.º, 1880.º e 1885.º, nº1, 2003.º e 2009.º, nº1, al. c), do Código Civil. Neste passo, releva-se a seguinte factualidade: J... era uma pessoa saudável e trabalhadora; administrava sozinho e de facto, em substituição dos respectivos gerentes, que nele depositavam confiança, a sociedade comercial “Sota – Sociedade Transformadora de Artigos de Couro, Lda.”, na qual detinha uma quota no valor de 7.482,69 €; contribuía para as despesas familiares com os rendimentos que obtinha do exercício dessa actividade; tinha em curso um processo de reconversão da empresa; e aspirava a adquirir as quotas correspondentes ao remanescente do capital social (o que significa que, neste ponto, ainda estamos no plano da mera expectativa, não correspondente a um dano futuro certo ou previsível, pelo que não ressarcível). Mais se apurou que, em 2006, J... auferiu, a título de rendimentos do trabalho, o valor global de 12.626,81 € (cf. factos provados sob os nºs 29, 31 a 33, 45 e 46). Para a determinação deste dano, futuro e previsível, é essencial o recurso à equidade, sem prejuízo de, para procurar atingir a justiça do caso concreto, se convocar um critério matemático que, tal como vem sendo utilizado pela jurisprudência comummente aceite, quanto à indemnização a pagar pela frustração do ganho, permita representar um capital produtor de um rendimento que se extinga no final do período em que os referidos beneficiários aufeririam, a título de alimentos, dos proventos do falecido (cf., neste sentido, o Ac. do STJ, de 8.05.2008, processo nº08B726, in www.dgsi.pt). Na determinação do quantum indemnizatório, acompanharemos de perto o Ac. da Rel. de Lisboa, de 23.05.2006, processo nº1644/2006-5, in www.dgsi.pt. Assim, repartindo aquele rendimento global do ano 2006 por 14 meses (imputando 2/14 a título de subsídio de Natal e de subsídio de férias), temos que o rendimento mensal se fixava em 901,92 €. De acordo com as regras da experiência comum, é plausível que a vítima despendesse nas suas despesas pessoais 1/3 (e não metade, como a demandada defende na sua contestação), pois não se pode esquecer que o seu agregado familiar era composto pela esposa e por dois filhos menores (cf., neste sentido, o estudo do Sr. Juiz Conselheiro Joaquim José de Sousa Dinis, «Dano corporal em acidentes de viação», in CJSTJ, 2001, I, p. 9). Tal significa que os ora demandantes (esposa e filhos), em consequência da morte do cônjuge e pai, respectivamente, ficaram privados de 2/3 desse rendimento global anual (8.417,87 €), na qual cada um dos quinhoaria em 1/3, ou seja, 2.805,96 €. Em princípio, a demandante D... teria direito a essa verba anual (2.805,96 €) até que a vítima, seu marido, atingisse os 65 anos de idade, em que se fixa o actual limite da vida activa em Portugal, o que significa que beneficiaria desse rendimento durante 28 anos, tendo em conta que J... faleceu com 37 anos de idade. Quanto aos demandantes menores e considerando que, em princípio, prosseguirão os seus estudos até completarem a sua formação académica, que terminará, previsivelmente, aos 23 anos de idade, tal significa que a menor C..., com 6 anos de idade à data da morte do pai, beneficiaria desse rendimento durante 17 anos e o menor G..., com 3 anos de idade, beneficiaria do mesmo montante durante 20 anos (cf. factos provados sob os nºs 24 e 25). Assim, temos: a) para a demandante D...: a perda de um rendimento no valor global de 78.566,88 € (2.805,96 € x 28 anos); b) para a demandante C...: a perda de um rendimento no valor global de 47.701,32 € (2.805,96 € x 17 anos); e b) para o demandante G...: a perda de um rendimento no valor global de 56.119,20 € (2.805,96 € x 20 anos). Estas quantias deveriam ser actualizadas, tendo em conta a depreciação monetária anual (de cerca de 3%), bem como a normal evolução do vencimento mensal do falecido pai. Por outro lado, deve atender-se a que os demandantes irão receber as respectivas indemnizações de uma só vez, pelo que deve deduzir-se aos respectivos montantes uma percentagem correspondente aos juros que os mesmos poderiam obter se depositassem tais montantes numa instituição bancária, sob pena de os lesados enriquecerem ilegitimamente (cf., neste sentido, o Ac. da Rel. de Lisboa, de 23.05.2006, supra citado; e o estudo do Sr. Conselheiro Sousa Dinis, supra citado, p. 9). Esta redução, a qual depende do nível de vida do país e do custo de vida, não deve situar-se abaixo de ¼ (cf., neste sentido, o Ac. da Rel. de Lisboa, de 23.05.2006, supra citado; e o estudo do Sr. Juiz Conselheiro Sousa Dinis, supra citado, p. 9), pelo que decide-se efectuar o desconto na proporção de ¼. Deste modo, temos: a) para a demandante D...: o montante indemnizatório, a título de lucros cessantes, fixa-se em 58.925,16 € (78.566,88 € - ¼ [19.641,72 €]); b) para a demandante C...: o montante indemnizatório, a título de lucros cessantes, fixa-se em 35.775,99 € (47.701,32 € - ¼ [11.925,33 €]); b) para o demandante G...: o montante indemnizatório, a título de lucros cessantes, fixa-se em 42.089,40 € (56.119,20 € - ¼ [14.029,80 €]). Não esquecendo a conculpa do lesado, deve reduzir-se tais montantes a 70 %, de acordo com o disposto no artigo 570.º, nº1, do Código Civil. Pelo exposto: a) a indemnização da demandante D... fixa-se em 41.247,62 €; b) a indemnização da demandante C... fixa-se em 25.043,19 €; e c) a indemnização do demandante G... fixa-se em 29.462,58 €. A tais valores deverão, contudo, subtrair-se os montantes mensais que cada um dos três demandantes recebeu e venha a receber do Centro Nacional de Pensões, a título de pensão de sobrevivência, sob pena de enriquecimento sem justa causa, pois tal pensão destina-se a compensar a perda dos rendimentos de trabalho de que beneficiariam se J... não tivesse falecido (cf. artigo 4.º, nº1, do D.L. nº322/90, de 18.10).» Insurgem-se os recorrentes quanto à consideração do limite da vida activa nos 65 anos, a consideração da dependência económica dos filhos apenas até ao limite dos 23 anos de idade e, finalmente, no que toca à taxa de inflação considerada para efeitos de cálculo da indemnização. Quanto à taxa de inflação, importa salientar que é sempre difícil estimar, no longo prazo, a sua evolução. No entanto, sabemos que, nos últimos dois anos tem-se situado abaixo dos 3% (2,5% em 2007 e 2,6% em 2008), verificando-se, actualmente, na zona euro, uma tendência para a sua descida, incluindo em Portugal, falando-se, mesmo, na franca possibilidade de passarmos a uma fase de inflação negativa. Neste contexto, não sendo possível fazer futurologia, o valor considerado na sentença mostra-se, a nosso ver, ajustado. Quanto à consideração da idade de 23 anos como a necessária para que os filhos da vítima mortal possam concluir a sua vida académica, também não nos oferece reparos. É certo que tal poderá não acontecer se, por exemplo, os referidos demandantes não conseguirem terminar com sucesso cada um dos anos da sua formação académica. E também não se pode fazer uma previsão segura sobre como estará o mercado de trabalho nessa altura, a 17 e 20 anos de distância dos factos, e se estarão então reunidas melhores condições do que actualmente para conseguirem emprego. Daí que, tendo em vista esse circunstancialismo, julgamos não ser de censurar o critério perfilhado na sentença recorrida. Quanto ao limite da vida activa: Até há bem pouco tempo poderia afirmar-se que a idade a ter em conta como termo da vida activa para efeito de indemnização por perda de ganho ou de capacidade de ganho deveria ser a de 65 anos, idade em que, em condições de normal previsibilidade, qualquer trabalhador adquiriria o direito à reforma e pensão de velhice, em cujo cálculo se previa a revalorização e actualização das pensões. Porém, em consequência da falada “insustentabilidade do Regime da Segurança Social”, a situação tende a alterar-se de forma a, pelo menos, aumentar progressivamente a idade de aquisição do direito a tais pensões, não podendo esquecer-se que, cada vez mais, a vida activa se prolonga para além dos 65 anos. Daí que, como constitui entendimento cada vez mais generalizado na jurisprudência, se entenda como adequado ponderar como limite da vida activa a idade de 70 anos (ver Acórdão do S.T.J. de 7.02.2008, Processo 07A4598). Assim, seguindo, no mais, os critérios adoptados pela 1.ª instância, temos para a demandante D... a perda de um rendimento no valor global de 92.596,68 € (2.805,96 € x 33 anos). Deste modo, tudo ponderado como na sentença recorrida (na consideração de que as quantias deveriam ser actualizadas, tendo em conta a depreciação monetária anual, bem como a normal evolução do vencimento mensal do falecido, mas que, outrossim, há sempre que operar uma dedução correspondente ao recebimento, de uma só vez, dos montantes indemnizatórios), temos que para a demandante D... o montante indemnizatório fixa-se em 69.447,51 € (92.596,68 € - ¼ [23.149,17 €]), que, por via da redução decorrente da concorrência de culpas, determina uma indemnização para a referida demandante de 48.613,26 €. No mais mantém-se o decidido pela 1.ª instância, razão pela qual o recurso dos demandantes civis merece provimento parcial. O valor dos danos, nomeadamente dos que vimos tratando especificadamente, encontra-se actualizado, com referência à data da sentença de 1.ª instância. Por via do provimento parcial, os valores indemnizatórios devidos por danos não patrimoniais e por danos patrimoniais futuros passam a ser os seguintes: - À demandante civil D... é devida a quantia global de 84.779,93 € (48.613,26€ + 14.000,00€ + 21.000,00€ + 1.166.67), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, com as deduções referidas na sentença de 1.ª instância (e que foram objecto de aclaração); - À demandante civil C... é devida a quantia global de 54.209,86 € (25.043,19 € + 14.000,00€ + 14.000,00€ + 1.166,67€), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, com as deduções referidas na sentença de 1.ª instância (e que foram objecto de aclaração); - Ao demandante civil G... é devida a quantia global de 58.629,25€ (29.462,58€ + 14.000,00€ + 14.000,00€ + 1,166,67€), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, com as deduções referidas na sentença de 1.ª instância (e que foram objecto de aclaração). Quanto à indemnização relativa aos danos patrimoniais emergentes (estragos no motociclo), não integra o objecto do recurso, conformando-se os demandantes com o quantum fixado. *** III – Dispositivo Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em: A) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido F...; B) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos demandantes civis D..., C... e G... (estes representados por aquela, sua mãe) e, consequentemente: 1. Condenar a demandada civil no pagamento à demandante D... da quantia global de 84.779,93 € (oitenta e quatro mil setecentos e setenta e nove euros e noventa e três cêntimos), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, com as deduções referidas na sentença de 1.ª instância respeitantes a prestações que a Segurança Social-Caixa Nacional de Pensões pagou e vier a pagar, nos termos aí decididos e tendo em vista a aclaração efectuada nessa parte; 2. Condenar a demandada civil no pagamento à demandante C... da quantia global de 54.209,86 € (cinquenta e quatro mil duzentos e nove euros e oitenta e seis cêntimos), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, com as deduções referidas na sentença de 1.ª instância respeitantes a prestações que a Segurança Social-Caixa Nacional de Pensões pagou e vier a pagar, nos termos aí decididos e tendo em vista a aclaração efectuada nessa parte; 3. Condenar a demandada civil no pagamento ao demandante G... da quantia global de 58.629,25€ (cinquenta e oito mil seiscentos e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros civis em vigor em cada momento, desde a sentença e até integral pagamento, com as deduções referidas na sentença de 1.ª instância respeitantes a prestações que a Segurança Social-Caixa Nacional de Pensões pagou e vier a pagar, nos termos aí decididos e tendo em vista a aclaração efectuada nessa parte; 4. No mais relativo aos demandantes/recorrentes, mantém-se a sentença recorrida. Condena-se o arguido na taxa de justiça de 4 Ucs pelo decaimento no seu recurso. Condenam-se os recorrentes/demandantes civis nas custas respectivas pelo decaimento parcial no recurso que deduziram. Coimbra, (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.) _______________________________________ (Jorge Gonçalves) ________________________________________ (Jorge Raposo) |