Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS CRAVO | ||
Descritores: | INVENTÁRIO NECESSIDADE DE OBTENÇÃO DE PROVAS OU INFORMAÇÕES JUNTO DE ENTIDADES DA REPÚBLICA FRANCESA MODO DE AS OBTER | ||
Data do Acordão: | 10/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | REGULAMENTO (CE) 1206/2001 DO CONSELHO, DE 28/5/2001 ARTIGOS 80.º E 81.º-A, DO REGIME DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO ARTIGO 60.º, DA LEI ORGÂNICA DO BANCO DE PORTUGAL ARTIGO 135.º, DO CPP ARTIGO 2024.º, DO CÓDIGO CIVIL ARTIGOS 7.º, 4; 417.º; 436.º; 1105.º; 1109.º, 3 E 1110.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I – Estando em causa para uma decisão sobre a falta de relacionação de bens em Inventário, a obtenção de informações ou provas junto de entidades da República Francesa, não pode um tribunal português solicitar diretamente a entidades sediadas noutros Estados, informações e/ou provas sobre contas bancárias e bem imóvel também sedeadas (aquelas) e localizado (este) fora de Portugal, por estarem essas entidades apenas sujeitos às normas desse Estado (estrangeiro) Francês, regendo-se essa entidades por um ordenamento jurídico específico e diverso do Português.
II – Tal não retira que o Tribunal Português possa fazer uso dos instrumentos internacionais existentes em matéria de “Cooperação judiciária em matéria civil e comercial”, mais concretamente no domínio da obtenção de provas – o Regulamento (CE) 1206/2001 do Conselho, de 28/5/2001, expedindo carta rogatória com vista à obtenção das informações e/ou provas em causa. | ||
Decisão Texto Integral: | Apelações em processo comum e especial (2013)
* Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] * 1 – RELATÓRIO No âmbito de autos de inventário para partilha dos bens deixados por AA, falecido a 08-12-2006, no estado de casado e intestado, com última residência em “..., ... (...), França”[2], por requerimentos de 10-03-2023 (fls. 40 e seguintes) e 15-03-2023 (fls. 48 e seguintes), foi apresentada relação de bens pelo cônjuge sobrevivo do inventariado e cabeça-de-casal, BB (citada em “... – FRANÇA”[3]), na qual apenas foi indicada uma verba (1/2 indivisa de um prédio urbano sito em ...), mais se dizendo que inexiste passivo. * À relação de bens foi apresentada uma só reclamação, a saber, pela Requerente e filha do inventariado, BB, mediante requerimento de 02-05-2023 (fls. 52 e seguintes), através do qual, em síntese, a mesma alega que a cabeça-de-casal omitiu certos bens, nomeadamente contas bancárias [«(…) sediadas em França e em Portugal, cuja identificação e quantias se desconhecesse, por não conseguir a interessada efectuar tais pesquisas por não ter a cabeça de casal outorgado escritura de habilitação de herdeiros»), um prédio urbano («(…) sito em ... – FRANÇA»], e o recheio dos dois imóveis do autor da herança. De referir que esta Requerente/reclamante finalizou a dita reclamação nos seguintes termos: «Nestes termos deverá a cabeça de casal relacionar os bens aqui mencionados, em aditamento à relação de bens, por não conseguir a interessada efectuar tal identificação e pesquisas, por não ter a cabeça de casal outorgado escritura de habilitação de herdeiros, não está a mesma legalmente habilitada para o efeito, sem prescindir que essa informação seja obtida oficiosamente pelo Tribunal, caso a cabeça de casal não relacione os bens indicados.» * À reclamação de bens, apenas a cabeça-de-casal respondeu através de requerimento de 05-06-2023 (fls. 54 e 55), através do qual, em síntese, sustenta que a Requerente/reclamante «(…) reclama da existência de bens na herança, mas não procede à sua concreta identificação, nem junta provas da sua existência», concluindo «Termos em que, face à total ausência de identificação dos bens reclamados e ao desconhecimento da existência dos mesmos, não poderá a Cabeça de Casal proceder à sua relacionação.». * Notificada dessa resposta, a Requerente/reclamante aduziu que tinha a cabeça de casal «(…) condições e conhecimento directo dos bens para os poder relacionar, ao contrário do que alega», finalizando nos seguintes concretos termos: «(…) Quanto às contas bancárias, não pode a cabeça de casal alegar o seu desconhecimento absoluto, porquanto a cabeça de casal como cônjuge do aqui de cujus, tem conhecimento directo das contas bancárias existentes à data do óbito em nome do inventariado, tanto em França como em Portugal. Uma vez que a aqui requerente não consegue obter documentos/informação quanto aos bens que invoca como sendo partes do acervo hereditário, requer a V. Exa nos termos do art.º. 7.º nº 4 do Código de Processo Civil: sejam notificados o Banco de Portugal e o seu homólogo em França para prestarem informações quanto às contas bancárias tituladas pelo inventariado, sua identificação e quantias. seja notificada a entidade pública francesa responsável pelo registo predial e obter informação quanto ao prédio urbano, sito em ... - FRANÇA, Mais se requer que seja a Cabeça de casal, nos termos do art.º 8.º e art. 542 n.º 1 e n.º al. c) e d) todos do CPC condenada em litigante de má-fé por omitir bens que a mesma tem conhecimento directo da sua existência e que integram o acervo hereditário. Ao alegar o seu desconhecimento, está a cabeça de casal a praticar uma omissão grave do dever de cooperação, este comportamento é praticado com o intuito de prejudicar a aqui requerente que não tem forma de indicar os bens cuja sonegação e omissão invocou na oposição à relação de bens. E em consequência ser arbitrada uma indemnização à aqui requerente, pelos prejuízos que a cabeça de casal lhe está a causar com a litigância de má fé, indemnização essa arbitrada com recurso a juízos de equidade, mas nunca inferior a € 2.500,00.» * Na sequência, realizou-se audiência prévia nos termos e com o resultado que da respetiva Ata melhor consta, a saber, que mantinham a relação de bens bem com a reclamação à mesma apresentadas, inexistindo a possibilidade de qualquer acordo. Na imediata sequência, foi proferido um despacho judicial sobre a questão em litígio, no qual a Exma. Juíza a quo entendeu que a Requerente/reclamante não havia apresentado qualquer prova, nem requerimento probatório na reclamação à relação de bens, sendo que a cabeça-de-casal se havia oposto à reclamação à relação de bens, pelo que concluiu nos seguintes termos: «(...) Daqui resulta que não tendo a reclamante, por si, provado a existência e titularidade pelo inventariado dos bens referidos na reclamação à relação de bens, nem se tendo estes ficta ou expressamente confessados, a decisão tem necessariamente que ser desfavorável à reclamante, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Pelo exposto, julga-se a reclamação à relação de bens totalmente improcedente, por não provada. Notifique.» * Inconformada com essa decisão, apresentou a Requerente BB recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes “conclusões”: «I O douto despacho com a refª 92824681 proferido no âmbito do referido processo, deriva fundamentalmente de uma incorrecta interpretação do disposto no art. 1104 e 1105 do CPC e de todo o regime do processo de inventário. II O douto despacho proferido pelo tribunal a quo ao afirmar que a reclamante não apresentou qualquer prova, nem requerimento probatório na relação de bens, errou na clara interpretação do requerimento apresentado pela interessada aqui apelante. III No referido requerimento, a aqui apelante, ao alegar que não consegue obter qualquer prova por impossibilidade absoluta, e solicitar ao tribunal, ainda que com um lapso de escrita, que ordene a realização de diligências para a obtenção dessa prova, está sem qualquer dúvida, a realizar um requerimento probatório. IV Não há qualquer dúvida de interpretação de que foi realizado um requerimento probatório pela Apelante. V Ao não adoptar este entendimento, o tribunal a quo, no seu despacho, está a violar expressamente o princípio da gestão e economia processual, bem como do princípio da cooperação VI Ao não admitir a reclamação à relação de bens, o Tribunal a quo está a legitimar a violação grave dos deveres do exercício do cargo do cabeça de casal, que processualmente deveriam ser verdadeiramente sancionados. VII A justiça não pode alhear-se da realidade e das limitações próprias de quem se apresenta em juízo, sob pena de ser uma justiça que não se faz em nome dos cidadãos e ao serviço dos cidadãos. VII Não pode a forma e um mero lapso de escrita, que em nada interfere com a clara intenção da interessada, em requerer ao tribunal que ordenasse todas as diligências para obtenção da prova quanto aos bens que o cabeça de casal intencionalmente e dolosamente omitiu na sua relação de bens, sobrepor-se à verdade material. VIII Não há omissão de requerimento de prova, bem pelo contrário, a Apelante não tinha qualquer forma de a obter, a única possibilidade que lhe assistia seria requerer ao Tribunal a sua obtenção, por si próprio ou através de notificação à cabeça de casal que cumpra o seu dever de colaboração, e é isso que faz. IX Não há qualquer dúvida, que ainda que insuficiente, há expressamente o requerimento probatório. X O tribunal não pode alhear-se dos princípios basilares do processo civil, nomeadamente, Princípio da cooperação art. 417 n.º 3 al b) e os deveres de gestão processual art. 6-º e fazer tábua rasa da manifesta violação dos deveres da cabeça de casal, no exercício do seu cargo, em oferecer uma relação de bens completa com todos os bens que integram o acervo hereditário e respetivos documentos. XI Para além de um simples requerimento probatório, a Apelante ainda alegou a sonegação de bens por parte da cabeça de casal, deveria assim o Tribunal a quo remeter, na dúvida, esta questão para os meios comuns cf art. 1092/1 al b) e 1105/3, uma vez que se trata de uma questão que afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha. XII Pelo que revogando o despacho recorrido e substituindo-o por um que aceite a reclamação à relação de bens e far-se-á justiça. Termos em que, e nos melhores de Direito, Deve o presente Recurso ser admitido e julgado procedente por provado, revogando-se, consequentemente o Despacho recorrido e ser substituído por outro que admita o Requerimento de reclamação à relação de bens apresentado pela Apelante. Assim se fazendo a acostumada Justiça.» * Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações. * Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo co-Executado/Embargante nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: - desacerto do despacho que considerou que a Reclamante à relação de bens não havia apresentado qualquer prova, nem requerimento probatório, na reclamação que apresentou, assim julgando sem mais a reclamação improcedente. * 3 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Os factos a ter em consideração para a decisão são os que decorrem do relatório supra. * 4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Vejamos diretamente da questão objeto do recurso, a saber, do alegado desacerto do despacho que considerou que a Reclamante à relação de bens não havia apresentado qualquer prova, nem requerimento probatório, na reclamação que apresentou, assim julgando sem mais a reclamação improcedente. Sustenta enfaticamente a Requerente ora recorrente que «Ao contrário do que é acolhido no douto despacho, o Tribunal a quo deveria ter reconhecido que a aqui apelante realizou o seu requerimento probatório e no uso dos seus poderes inquisitórios ordenasse à realização de todas as diligências necessárias à obtenção da informação quanto aos bens em falta expressamente indicados.» Que dizer? Quanto a nós, que efetivamente lhe assiste razão nesse concreto particular do requerimento de prova. Senão vejamos. Recorde-se que a Exma. Juíza a quo entendeu que a Requerente ora recorrente não havia formulado qualquer requerimento de prova. Confrontando o que supra se transcreveu, cremos que essa interpretação só se compreende como fruto de um extremo rigorismo, mas sempre eivada de um equívoco. É que, salvo o devido respeito, a Requerente ora recorrente formulou um requerimento de prova, qual seja, o de que caso a cabeça-de-casal não viesse a relacionar os bens que ela Requerente deu como em falta, a «(…) informação seja obtida oficiosamente pelo Tribunal». Temos presente que se estava a apelar e estava aqui em causa (em sede de instrução) o princípio do inquisitório, o qual consabidamente se manifesta, nomeadamente, na requisição de documentos (cf. art. 436º do n.C.P.Civil). Sendo certo que tal ainda era um requerimento de prova, relativamente ao qual não vemos como denegar que essa parte cumpriu com oportunidade e tempestividade o ónus imposto pelo art. 1105º, nº2, do n.C.P.Civil, a saber, de indicação dos meios de prova com o seu requerimento de reclamação à relação de bens. Mas ainda que assim se não entendesse, isto é, que a Requerente ora recorrente não havia formulado nesse seu requerimento (inicial) de reclamação à relação de bens um requerimento de prova especificado e concretizado, não se pode olvidar que ela o formulou seguramente no requerimento qua apresentou após a resposta da cabeça-de-casal – em concretos termos supra transcritos. Com efeito, em abono deste entendimento de válido complemento com a apresentação de requerimento nesse segundo momento, pode-se invocar o decisivo argumento de que a resposta por parte da cabeça-de-casal de que desconhecia os bens cuja falta de relacionação a Requerente ora recorrente havia suscitado, constituiu um facto novo que esta última não podia prever, mesmo que tivessem usado de toda a diligência exigível, assim legitimando que a mesma pudesse renovar e complementar o seu anterior requerimento de prova, dados os contornos do caso, mormente por a cabeça de casal não haver outorgado escritura de habilitação de herdeiros, donde falecer legitimidade à Requerente para diligenciar diretamente junto de quaisquer entidades.[4] Não obstante o vindo de dizer, será que, na circunstância, isto é, face à alegação pela Requerente e ora recorrente de que estavam nomeadamente em causa contas bancárias sediadas em França e em Portugal, [«(…) cuja identificação e quantias se desconhecesse, por não conseguir a interessada efectuar tais pesquisas por não ter a cabeça de casal outorgado escritura de habilitação de herdeiros»), e um prédio urbano sito em França, se pode ter por perfeitamente verificado o juízo contido nesse dito art. 436º do n.C.P.Civil[5]? Entendemos que apenas o poderá estar parcialmente. Vejamos. Na verdade, apenas quanto a bens sitos em Portugal e relativamente a informações a obter/prestar por entidades nacionais se poderá dar acolhimento ao requerido em termos probatórios pela Requerente e ora recorrente, isto é, apenas no que ao pedido de notificação do Banco de Portugal concerne. É que só quanto a este se verifica efetivamente uma válida impossibilidade da obtenção direta dessa informação pela Requerente e ora recorrente (atento o desconhecimento justificado que invoca), e se reveste de interesse para o esclarecimento da verdade (no caso, evidente, face à acusação de falta de relacionação dos eventuais valores correspondentes aos saldos das contas bancárias do Inventariado, à data da sua morte). Diligência de prova essa [leia-se, pedido de informação] que, ademais, se mostra enquadrável e ao abrigo do princípio da cooperação para a descoberta da verdade (consagrado, nomeadamente, nos arts. 7º, nº 4 e 417º, do mesmo n.C.P.Civil). E nem se argumente que se poderiam aqui suscitar questões de sigilo ou segredo bancário por parte do Banco de Portugal, donde terem que ser as mesmas ab limine necessariamente dirimidas em meio processual autónomo e distinto, a saber, com o pedido de dispensa do dever de segredo a ter que ser suscitado processualmente perante um tribunal superior [nos termos do art. 135º do C.P.Penal, ex vi do nº 4 do art. 417º do n.C.P.Civil]. É certo que nos termos do art. 60º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei nº 5/98, de 31 de Janeiro (com as alterações introduzidas por: Decreto-Lei nº 118/2001, de 17 de Abril, Decreto-Lei nº 50/2004, de 10 de Março, Decreto-Lei n.º 39/2007, de 20 de Fevereiro, Decreto-Lei nº 31-A/2012, de 10 de Fevereiro, Decreto-Lei nº 142/2013, de 18 de Outubro, Lei nº 23-A/2015, de 26 de Março, Lei n.º 39/2015, de 25 de maio e Lei n.º 73/2020, de 17 de Novembro), «Os membros do Conselho de Administração, do Conselho de Auditoria, do Conselho Consultivo e, bem assim, todos os trabalhadores do Banco estão sujeitos, nos termos legais, ao dever de segredo» [e bem assim ao abrigo dos artigos 80° e 81º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras[6]]. Sucede que cremos ser entendimento jurídico consolidado o de que Dito de outra forma: invocando a aqui Requerente e ora recorrente a sua qualidade de herdeira e sucessora na posição jurídica ocupada por seu pai falecido, a quem sucedeu como sua herdeira, assistir-lhe-ão os mesmos direitos de conteúdo patrimonial que ao falecido caberiam, isto é, temos que por via hereditária, ela ingressa na titularidade da situação jurídica pertencente ao seu pai, passando a assistir-lhe todos os direitos que àquele pertenciam, na medida do seu respetivo quinhão. Nesta linha de entendimento já foi sublinhado em douto aresto que «II –O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta. III – Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, fazem parte do acervo da herança aberta por morte do depositante.»[7] Por isso que, se for solicitado o pedido de informação em causa, com a menção de que se destina a um processo de inventário e para satisfação dos interesses de herdeiro do de cujus, não se suscitarão validamente quaisquer óbices em termos de sigilo ou segredo bancário. Já o mesmo se não diga relativamente ao pedido de informação ao homólogo em França do Banco de Portugal (para prestar informações quanto às contas bancárias aí tituladas pelo inventariado, sua identificação e quantias) e quanto ao pedido de notificação da entidade pública francesa responsável pelo registo predial e obter informação quanto ao prédio urbano, sito em ... – FRANÇA. Com efeito, tratando-se em ambos os casos de entidades da República Francesa, e de obtenção de informações ou provas junto delas, ocorre que não pode um tribunal português solicitar diretamente a entidades sediadas noutros Estados, informações e/ou provas sobre contas bancárias e bem imóvel também sedeadas (aquelas) e localizado (este) fora de Portugal, por estarem essas entidades apenas sujeitos às normas desse Estado (estrangeiro) Francês, regendo-se essa entidades por um ordenamento jurídico específico e diverso do português.[8] Donde, estes pedidos, tal como formulados no requerimento de prova da Requerente e ora recorrente, teriam que ser indeferidos, por inadmissibilidade legal. Vejamos agora se tal valida a prolação da decisão recorrida pelo menos quanto a esse particular. É que na circunstância a Exma. Juíza de 1ª instância havia procedido à realização de uma audiência prévia, no decurso da qual não foi possível resolver definitiva e consensualmente o litígio quanto à invocada falta de relacionação de bens, porque as partes mantiveram as posições assumidas nos respetivos requerimentos. Sendo na imediata sequência que a Exma. Juíza a quo proferiu a decisão recorrida, na qual entendeu que a Requerente/reclamante não havia apresentado qualquer prova, nem requerimento probatório na reclamação à relação de bens, pelo que, na medida em que a cabeça-de-casal se havia oposto à reclamação à relação de bens, concluiu sem mais por julgar a reclamação à relação de bens totalmente improcedente, por não provada. Ora, os arts. 1109º, nº 3 e 1110º, nº 1, do n.C.P.Civil preceituam pela seguinte forma: «Artigo 1109.º Audiência prévia 1 - O juiz pode convocar uma audiência prévia se o considerar conveniente, nomeadamente por se lhe afigurar possível a obtenção de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão. 2 - Na convocatória, o juiz indica o objetivo da diligência e as matérias a tratar. 3 - Na falta de acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, o juiz procede à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias que tenham sido objeto de oposição ou de impugnação. Artigo 1110.º Saneamento do processo e marcação da conferência de interessados 1 - Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar; b) Ordena a notificação dos interessados e do Ministério Público que tenha intervenção principal para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha. 2 - Findo o prazo estabelecido no número anterior, o juiz: a) Profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados; b) Designa o dia para a realização da conferência de interessados. 3 - Também são notificados para a conferência de interessados os cônjuges dos interessados diretos que não sejam casados em regime de separação de bens e, se entre os bens a partilhar constar a casa de morada de família de algum dos interessados, o respetivo cônjuge, ainda que casado em regime de separação de bens. 4 - Na notificação das pessoas convocadas deve fazer-se menção do objeto da conferência. 5 - Os interessados diretos na partilha e respetivos cônjuges são notificados com a obrigação de comparência pessoal ou de se fazerem representar, sob cominação de multa. 6 - Os interessados e seus cônjuges podem fazer-se representar por mandatário com poderes especiais ou confiar o mandato a qualquer outro interessado. 7 - Se faltar algum dos convocados, a conferência de interessados pode ser adiada, por determinação do juiz, uma só vez e desde que haja razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões com a presença de todos os interessados.» [com destaques da nossa autoria] Salvo o devido respeito por entendimento diverso – que parece ter sido o perfilhado pela Exma. Juíza a quo! – decorre muito claramente do art. 1109º, nº 3 do n.C.P.Civil que não havendo acordo entre os interessados sobre as questões controvertidas, o juiz deve proceder à realização das diligências instrutórias necessárias. No caso vertente, na medida em que audiência prévia as partes não lograram chegar a acordo subsistia como controvertido entre as partes a questão da invocada falta de relacionação de bens. Relativamente ao pedido de notificação do Banco de Portugal, já supra se apontou e perfilhou o entendimento de que era essa uma diligência de prova que podia e devia ser ordenada, sendo que o era por ser efetivamente necessária à decisão sobre a falta de relacionação de eventuais contas bancárias sedeadas em Portugal. Atente-se que o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal[9], donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova. Já quanto ao pedido de informação ao homólogo em França do Banco de Portugal (para prestar informações quanto às contas bancárias aí tituladas pelo inventariado, sua identificação e quantias) e quanto ao pedido de notificação da entidade pública francesa responsável pelo registo predial e obter informação quanto ao prédio urbano sito em França, também flui do que supra consta que tais pedidos eram legalmente inadmissíveis. Não obstante, ainda se poderia colocar a questão de oficiosamente o tribunal realizar as diligências instrutórias necessárias para decidir tais matérias [cf. ditos arts. 1109º, nº 3 e 1110º, nº 1, do n.C.P.Civil]. Com efeito, poderia designadamente o tribunal fazer uso dos instrumentos internacionais existentes em matéria de “Cooperação judiciária em matéria civil e comercial”, mais concretamente no domínio da obtenção de provas – o Regulamento (CE) 1206/2001 do Conselho, de 28/5/2001, expedindo carta rogatória com vista à obtenção das informações e/ou provas em causa. Que dizer então? Quanto a nós, nesse particular o tribunal recorrido deveria antes de mais ponderar a questão à luz dos princípios que são critério para tanto, e proferir decisão atinente – que não será fatalmente a da improcedência da reclamação à relação de bens na parte correspetiva. Senão vejamos. Está em causa apurar se existem ou não contas bancárias e um bem imóvel em França e bem assim se os mesmos eram ou não da titularidade do Inventariado. S.m.j., essas questões envolvem a alegação de factos complexos, com a correspondente produção de prova, não compaginável com a prova incidental a produzir no âmbito do processo de inventário. Alegação essa que não se encontra feita, acrescendo que a prova se resumiu ao pedido de que o Tribunal, no uso dos seus poderes inquisitórios, ordenasse a realização de diligências tidas por necessárias à obtenção da informação quanto aos ditos bens invocados como em falta. Ora, como já supra explicitado, essas diligências só poderiam ter lugar através da expedição de uma carta rogatória [no quadro previsto pelo aplicável Regulamento (CE) 1206/2001 do Conselho, de 28/5/2001], cujo resultado é imprevisível, quer em termos de tempo, quer de resultado, para além de poder surgir uma qualquer recusa de cumprimento por óbice legal e/ou processual. Assim, impõe-se não olvidar que são dois os elementos que autorizam a que o juiz remeta os interessados para os meios comuns, nos termos previstos no art. 1093º nº 1, aplicável ex vi do art. 1105º, nº3, ambos do n.C.P.Civil: - Que a matéria de facto seja complexa; - E que essa complexidade torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes. Neste conspecto, parece-nos que a opção de remessa destas matérias para os meios comuns, poderá ser materialmente justificada e incontornável, sendo porventura uma decisão prudente e avisada, quando o que está em causa supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efetiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência de julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as ações declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental. Opção essa que competirá ao Tribunal de 1ª instância, mas sempre lhe ficando vedado julgar a reclamação à relação desses bens totalmente improcedente, por não provada, sem mais. Nestes termos procedendo o recurso, com a revogação da decisão recorrida. * (…) * 6 - DISPOSITIVO Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente o recurso, com a revogação da decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra decisão através da qual se proceda à realização das diligências instrutórias legalmente admissíveis requeridas pela Reclamante e ora recorrente, ou que sejam necessárias, para decidir a suscitada questão da falta de relacionação de bens, sem prejuízo da remessa dos interessados para os meios comuns no que tange a eventuais contas bancárias e bem imóvel sedeadas e localizado, respetivamente, em França, tudo nos termos melhor explicitados supra. Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (art. 527º, nº 1, do n.C.P.Civil). * Coimbra, 8 de Outubro de 2024 Luís Filipe Cravo João Moreira do Carmo Fonte Ramos
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