Levantamento/Quebra de Sigilo
Acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra[1],
Na acção declarativa de condenação, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Cinfães, em que é A. AA, e R. BB, ambas com os sinais nos autos, o tribunal a quo veio suscitar incidente de dispensa de sigilo bancário, nos termos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 417.º, nºs 3, al. c), e 4, do Código de Processo Civil.
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A causa de pedir da acção deriva, na versão da A., do facto de ela e a R., sua irmã, em 29-10-2013, terem recebido por transferência bancária, de uma conta bancária dos pais, a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros), valor com que abriram, em conjunto, uma conta a prazo na Banco 1..., a que coube o n.º ...60....
Nessa ocasião, assentiram A. e R. que, enquanto os seus pais fossem vivos, aquela quantia não seria movimentada, a não ser que os progenitores precisassem de dinheiro, tendo anuído depois, em 29-08-2018, que a A. sairia da titularidade daquela conta bancária mantendo-se todo o restante acordado.
Aquando das partilhas por óbito da mãe de ambas – cujo processo de inventário corre(u) termos sob o n.º 3/21...., no Juízo de Competência Genérica de Cinfães –, a A. questionou a R., na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa, sobre a partilha dos € 10 000,00, tendo sido surpreendida quando a sua irmã lhe afirmou que não lhe dava a sua metade, pelo facto de ter tomado conta dos pais, invocando que o dinheiro é exclusivamente seu, recusando-se a entregar os € 5000,00 (cinco mil euros) à A..
De harmonia, a A. pede que a R. seja condenada:
“a) A restituir à Autora a quantia de € 5000,00 de que ilicitamente beneficiou, pela apropriação desse dinheiro que não lhe pertencia, traduzida na prática de um ato ilícito que a constituiu na obrigação de restituição;
b) Que a Ré seja condenada a pagar à Autora juros sobre aquela quantia de € 5000,00 à taxa legal de 4% ano, vencidos desde a data do óbito e vincendos até efectivo e integral pagamento;
c) Que a Ré seja ainda condenada a ressarcir a Autora pela metade dos dividendos que recebeu pelo depósito bancário, desde a sua constituição 29/10/2013 a liquidar em execução de sentença.”.
* Questão a decidir.
A questão a decidir consiste em saber se há motivo para determinar que a Banco 1...: (i) junte ao processo cópia de documento que certifique a saída da A. da titularidade da conta bancária n.º ...60, balcão ... ..., e (ii) informe o saldo do depósito a prazo e da conta caderneta à ordem associadas à conta bancária n.º ...60, e respectivas movimentações e dividendos desde a data da sua constituição.
* A. Fundamentação de facto.
Para lá dos factos antes relatados, está provado:
1. No final da petição inicial, a A. requereu, entre o mais, o seguinte meio de prova: “- A Banco 1... venha aos autos proceder à junção da cópia de saída de titularidade da conta bancária associada ao depósito bancário a prazo, identificado conta n.º ...60, balcão ... ...; - Informar o saldo do depósito a prazo, e da conta caderneta à ordem associadas, respectivas movimentações e respectivos dividendos desde a data da sua constituição, por forma a apurar o valor actual e juros da parte que compete à Autora.” (sic).
2. No despacho de 14-05-2024, o tribunal a quo determinou: “Por se tratarem de documentos em poder de terceiro veiculado ao dever de cooperação para a descoberta da verdade (artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e considerando que os factos que a parte pretende provar têm interesse para a decisão da causa (artigo 429.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), defere-se o requerido.”.
3. A 07-06-2024, a Banco 1... deduziu escusa na prestação da informação solicitada, com fundamento no dever de segredo bancário, nos termos e para os efeitos da al. c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, sem prejuízo, porém, do estatuído no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
4. Por requerimento com a ref.ª 49257328, a A., invocando que a conta n.º ...60, balcão ... ..., também era titulada por si, deu autorização para a informação bancária que se pretende.
5. Por requerimento com a ref.ª 49314287, a R. veio informar que “desde já se opõe a autorizar tudo o que diga respeito à divulgação das informações bancárias, designadamente tudo aquilo que está em causa” (sic).
* B. Fundamentação de Direito.
Estabelece o art. 417.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), que regula o dever de colaboração das partes e de terceiros em matéria probatória.: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”.
O n.º 3, alínea c), do preceito legal enunciado, por seu turno, estipula que é legítima a recusa de colaboração, entre outros casos, se a obediência à ordem judicial importar “[v]iolação do sigilo profissional”.
Especificamente, no que tange ao dever de colaboração das entidades bancárias com os tribunais, em matéria de prova, há que sopesar o prescrito no art. 78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31-12, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24-10, sob a epígrafe “Dever de Segredo”:
“1. Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.”.
Por sua vez, o art. 79.º, n.ºs 1 e 2, do RGICSF, com a redacção da Lei n.º 15/2019, de 12-02, consagra várias excepções ao dever de segredo ou sigilo, prevendo que, fora dos factos ou elementos das relações do cliente com a instituição que podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados, no segmento pertinente, às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal ou quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo (als. e) e h)).
No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008, de 13-02-2008[2], entendeu-se que o dever de sigilo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses: por um lado, um interesse de ordem pública, consubstanciado no regular funcionamento da actividade bancária, baseado num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança; por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes dos bancos, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada.
Não tendo a reserva de sigilo bancário carácter absoluto (conforme emerge da leitura das normas citadas), a questão que se coloca é a de delimitação da área de tutela da norma impositiva desse segredo.
Começando pelo plano constitucional, a lei concebe o segredo bancário essencialmente como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada, consagrado no art. 26.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), cessando quando exista autorização do cliente na sua revelação, como expressamente resulta do citado art. 79.°, n.° 1, do RGICSF – neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-06-2018, Proc. n.º 768/16.2T8CBR-C.C1.
Acresce que o dever de sigilo profissional, incluindo o segredo bancário, pode ceder quando e na medida em que se mostre necessário para a salvaguarda de outros direitos, mormente os que se relacionam com o direito de acesso à justiça e à tutela efectiva que esse direito tem em vista, nos termos do art. 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.
Passando ao plano da lei processual, como se viu anteriormente, a al c), n.º 3, do art. 417.º do CPC, após reconhecer a legitimidade da recusa da colaboração com fundamento em violação do sigilo profissional, permite, no n.º 4, que seja deduzida escusa desse dever, mandando aplicar com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Nesse âmbito merecem especial atenção as normas contidas nos artigos 135.º e 136.º do Código de Processo Penal (CPP).
Especificamente, segundo o art. 135.º, n.º 3, do CPP, a quebra do sigilo profissional poderá ser autorizada sempre que se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, tendo em conta a sua imprescindibilidade para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em causa.[3]
Acompanhando as recentíssimas anotações de Miguel Teixeira de Sousa, in Código de Processo Civil Online, Livro II, 2024, p. 32, nota 17:
“(a) Se for invocada a recusa de colaboração com fundamento em sigilo profissional e se o tribunal tiver dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, cabe-lhe proceder às averiguações necessárias (art. 135.º, n.º 2, 1.ª parte, e 136.º, n.º 2, CPP). Se, após estas averiguações, concluir pela ilegitimidade da escusa, o tribunal deve ordenar a prestação do depoimento ou a entrega do documento (art. 135.º, n.º 2, 2.ª parte, e 136.º, n.º 2, CPP). (b) Se o juiz entender que a recusa de colaboração com fundamento em sigilo profissional é justificada, incumbe-lhe suscitar o incidente regulado no art. 135.º, n.º 3, CPP (tb art. 136.º, n.º 2, CPP).”.
E prossegue o mesmo autor, op. cit., p. 32, nota 18:
“(a) O levantamento do sigilo profissional (ou equiparado) é decidido com base numa ponderação entre o direito à prova da parte onerada e a finalidade de protecção da regra que impõe o sigilo. O sigilo só deve ser levantado quando se conclua que aquele direito à prova deve prevalecer sobre a imposição do sigilo, ou seja, quando se considere que, no caso concreto, o apuramento da verdade dos factos prevalece sobre o dever de sigilo. (b) Conforme resulta do disposto no art. 135.º, n.º 3, CPP, uma das situações que pode conduzir ao levantamento do sigilo é o estado de necessidade probatório em que se encontre a parte onerada com a prova.”.
In casu, a resposta da entidade bancária, Banco 1..., foi no sentido de recusar fornecer as informações requeridas, escudando-se no estatuído no art. 78.º do RGICSF,
i.e., por considerar que essas informações estão abrangidas pelo regime do sigilo bancário.
Por outro lado, a R., na qualidade de titular da conta, opôs-se à revelação dos dados bancários solicitados pela A..
O incidente de dispensa do dever de sigilo bancário, suscitado junto do Tribunal da Relação, nos termos do art. 135.º, n.º 3, do CPP, ex vi do art. 417.º, n.º 4, do CPC, tem como pressuposto a demonstração de que o cliente da instituição bancária recusou a autorização para que fossem revelados os elementos pretendidos – art. 79.º, n.º 1, do RGICSF.
Isto dito, há que analisar o que foi solicitado à Banco 1....
O primeiro pedido da A., no sentido daquela entidade bancária juntar ao processo cópia de documento que certifique a sua saída da titularidade da conta bancária n.º ...60, balcão ... ..., não bule, em rigor, com qualquer segredo ou sigilo bancário, sendo, aliás, um dado relativo à própria parte. Não obstante, tendo sido recusada a informação pela Banco 1..., e considerada a ilegitimidade dessa recusa, cumpre determinar a prestação dessa informação.
Quanto ao segundo pedido da A. – no sentido de a Banco 1... informar o saldo do depósito a prazo e da conta caderneta à ordem associadas à conta bancária n.º ...60, suas movimentações e dividendos desde a data da sua constituição –, além do anteriormente exposto, deve sopesar-se o preceituado no art. 335.º do Código Civil, sob a epígrafe “Colisão de direitos”:
“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”.
Em concreto, há um conflito aberto entre o direito ao segredo bancário, para salvaguarda do direito à privacidade da gestão do património do cliente (a R.), e o direito à realização da justiça, na óptica do direito à prova (da A.).
Verificando-se uma colisão de direitos a solução terá de encerrar, em si mesma, um juízo de ponderação e coordenação entre os mesmos, atendendo à situação concreta, por forma a encontrar e justificar a decisão mais conforme com as finalidades que, nessa situação, se pretende atingir, encarando eventuais limitações de cada um dos direitos tão só enquanto necessárias para salvaguarda dos interesses preponderantes em avaliação, com respeito aos princípios da proporcionalidade, da adequação e necessidade – cf., em sentido análogo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03-07-2012, Proc. n.º 406/10.7TMLSB-A.L1-7.
No caso vertente, lidos os articulados das partes – especialmente, em face do alegado na contestação da R., v.g, nos arts. 1.º, 6.º, 9.º e 15.º, e na resposta da A. aos documentos ali juntos, v.g, nos arts. 3.º e 4.º –, é manifesto que, debatendo-se uma (alegada) situação de enriquecimento sem causa, relacionada com os movimentos de uma conta bancária de que a A. foi titular e que a R. geriu após aquela ter cessado essa titularidade (alegadamente por acordo), revela-se fundamental, para a realização da justiça e para a boa decisão da causa, que, por um lado, se conheça qual o saldo do depósito a prazo e da conta caderneta à ordem associadas à conta bancária n.º ...60, e, por outro lado, quais movimentações e dividendos dessa conta, desde a data da sua constituição e até à presente data.
Assim, entende-se ser justificada a prestação das solicitadas informações bancárias por parte da Banco 1....
Por fim, no que tange à responsabilidade pelas custas, considerando que foi a R. quem motivou a necessidade de ser desencadeado este incidente – por ter recusado autorizar a divulgação das informações bancárias –, é a mesma responsável pelo seu pagamento ex vi do art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Sumariando:
(…).
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em autorizar o levantamento do sigilo bancário a que estava obrigada a Banco 1..., devendo a mesma prestar as informações requeridas pela A..
Custas a cargo da R.
Coimbra, 8 de Outubro de 2024
Luís Miguel Caldas
Anabela Marques Ferreira
Cristina Neves
[1] Juiz Desembargador Relator: Luís Miguel Caldas / Juízes Desembargadoras Adjuntas: Dra. Anabela Marques Ferreira e Dra. Cristina Neves.
[2] Publicado no DR 1.ª Série, n.º 63, de 31-03-2008, tendo fixado a seguinte jurisprudência:
“1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.”.
[3] É a seguinte a redacção do n.º 3 do art. 135.º do CPP: “O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.”