Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANTÓNIO FERNANDO SILVA | ||
Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO LIVRANÇA REQUISITOS INDEFERIMENTO LIMINAR | ||
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Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 2.º DA PORTARIA N.º 28/2000, DE 27-01, 75.º, 76.º DA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS, 703.º, N.º 1, AL.ª C), E 734.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
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Sumário: | I – Proferido despacho em que se assume o indeferimento liminar da execução, quando estaria em causa a sua rejeição (não liminar), tal circunstância não vicia o despacho, mormente por ser proferido fora do momento processualmente adequado, por ele estar a coberto do regime do art. 734º n.º1 do CPC. II – O despacho de rejeição liminar não pode ser proferido depois de efectuada a entrega (mormente ao exequente) de quantias pecuniárias penhoradas ao executado. III – A existência ou validade da livrança não depende da adopção do modelo fixado na Portaria 28/2000, de 27/01. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Relator: António Fernando Silva Adjuntos: Cristina Neves Luís Ricardo Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. R..., Lda. instaurou contra AA a presente execução (sob a forma sumária) para pagamento de quantia certa, apresentando como título executivo uma livrança e descrevendo no requerimento executivo a relação fundamental que justifica a emissão daquele título. Após as diligências iniciais, foi tentada a penhora de saldos bancários, que se frustrou. Foi depois realizada a penhora de crédito laboral (vencimento) da executada, no valor mensal de 73,15 euros. Subsequentemente, a executada foi citada para a execução, por via postal utilizada em 17.07.2023 (v. actos contantes do processo em 17.07.2023 e 28.07.20203), não tendo reagido. Elaborada a conta final, ficou a aguardar-se o pagamento integral, tendo sido feitos pagamentos intermédios à exequente (por transferência bancária), mormente em Novembro e Dezembro de 2023, e em Janeiro de 2024 (v. actos no processo electrónico em 09.11.2023 e 11.11.2023, em 11.12.2023 e 13.12.2023, e em 09.01.2024 e 11.01.2024 – ordem de pagamento e factura-recibo bancário). Foi depois proferido o seguinte despacho: «A exequente “R..., Ldª.” instaurou a presente ação executiva, com fundamento em “Livrança”. Cumpre apreciar e decidir. A livrança é, pois, uma promessa de pagamento (cf. Ferrer Correia, in “Letra de Câmbio”, Universidade de Coimbra, 1975, p. 23). É, como já foi antes referido, um título de crédito, passado e assinado por um subscritor (cf. art. 75º/7, da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças – LULL), a favor ou à ordem de outra pessoa (v. art. 75º/5, da LULL), por via da qual o primeiro assume, perante o segundo, a obrigação de pagar a quantia nela aposta na data do vencimento (v. art.ºs 78º e 28º, ambos da LULL). No entanto, o documento apresentado como livrança não preenche os requisitos externos para poder valer como título cambiário, pois foi emitido ou impresso num papel branco pela firma exequente, nos seguintes termos:
Deste modo, verifica-se a falta de título de executivo para a execução, nos termos previstos no artigo 726, nº. 2, alínea a), do Código de Processo Civil. Da Decisão Pelo exposto, e ao abrigo das disposições supra citadas, decido: - indeferir liminarmente a presente ação executiva, uma vez que inexiste título executivo – v. art.º 726.º, nº. 2, al. a), do Código de Processo Civil. Custas legais a cargo da Exequente, com taxa de justiça que se fixa em uma UC (artº. 527, nºs. 1 e 2, do CPC, e artº. 7, nº. 4, do RCP). Notifique e registe. Comunique à Agente de Execução nomeada. Valor da execução: € 5.471,93 euros.» Deste despacho foi interposto recurso pela exequente, formulando as seguintes conclusões: (…). Em cumprimento de despacho judicial, a executada foi citada para os termos do recurso e para os termos da causa, não tendo respondido.
II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa». Assim, relevam as seguintes questões: - a inadmissibilidade processual do despacho de indeferimento liminar no momento em que ocorre. - a nulidade do despacho por violação do princípio do contraditório (decisão-surpresa). - a avaliação da suficiência, ou não, do título executivo, quanto à sua forma.
III. Os factos relevantes constam do relatório realizado.
IV. 1. A primeira questão colocada pela recorrente assenta na consideração de que o despacho de indeferimento liminar tem momento processual próprio, não podendo ser proferido em fase posterior, na qual a lei processual o não contempla - como ocorreu no caso. O despacho liminar, previsto para a acção executiva sob a forma ordinária, consiste numa avaliação inicial e preambular, tendente ao conhecimento imediato de obstáculos formais ou de mérito ao prosseguimento da execução (art. 726º n.º1 e 2 do CPC). O seu momento está, assim, legalmente definido, correspondendo ao acto subsequente à apresentação (e distribuição) do requerimento executivo: apresentado aquele, é o processo concluso para despacho liminar. Fora desse momento, já não é possível despacho liminar nem, por isso, um literal indeferimento liminar. Esta avaliação liminar, e assim o despacho liminar (e, por inerência, o indeferimento liminar) não existem, em regra, na acção executiva que segue a forma sumária, a qual se desenvolve, em princípio, sem intervenção inicial do juiz. Este intervém liminarmente, em princípio, apenas quando o agente de execução o suscitar (art. 855º n.º2 al. b) do CPC) ou quando o próprio juiz o determinar (art. 590º n.º1, ex vi do art. 550º n.º1, do CPC). Assim, estando aqui em causa execução que segue a forma sumária, sem intervenção inicial do juiz, e encontrando-se o processo numa fase já adiantada, é patente que não poderia haver aqui um verdadeiro despacho liminar e um indeferimento liminar em sentido estrito ou próprio (por referência ao momento próprio, liminar, deste acto).
2. Como inexiste no processo executivo uma fase típica de saneamento, a cristalização de solução que restringisse àquele momento inicial (ao despacho liminar) o conhecimento dos referidos obstáculos à execução (de conhecimento oficioso) seria demasiado rígida (em detrimento de valores relevantes), e desconforme ao princípio derivado do art. 226º n.º5, 2ª parte, do CPC (quando estabelece que o despacho de citação não preclude o conhecimento das questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar). Donde que o legislador tenha permitido que tais obstáculos fossem ainda conhecidos posteriormente, nos termos do art. 734º n.º2 do CPC, conduzindo, verificadas as condições fixadas em tal norma, à rejeição[1] da execução. Solução esta que também vale no processo executivo que segue a forma sumária, e por razões reforçadas já que nem existe aqui em regra uma intervenção inicial do juiz, por força da regra extensiva do art. 551º n.º3 do CPC.
3. Atendendo às características dos dois regimes (indeferimento e rejeição), e desprezando mero conceptualismo espúrio (que se atenha ao nomen iuris ou ao valor formal dos conceitos, sem atender à estrutura e função dos institutos, que verdadeiramente os definem), verifica-se que o indeferimento liminar se analisa no despacho que, no momento inicial da execução, a indefere (ou seja, a rejeita), com base num dos fundamentos constantes do art. 726º n.º 2 do CPC. E o despacho de rejeição corresponde ao despacho, que em momento subsequente da acção, rejeita a execução (ou seja, a indefere) com base num dos fundamentos constantes daquele art. 726º n.º2 do CPC. Em ambos os casos o indeferimento ou rejeição (totais ou parciais) provocam a extinção (total ou parcial) da execução. Vê-se assim que o indeferimento e a rejeição são estrutural e funcionalmente equivalentes, funcionando nos mesmos termos, com os mesmos fundamentos e tendendo ao mesmo efeito. O único elemento distintivo das duas figuras radica no momento em que são proferidos: um num momento primeiro ou inicial da acção[2], outro em momento subsequente. Assim, em termos formais e materiais, indeferir e rejeitar são institutos equivalentes. Significando isto que o despacho proferido poderia, ao abrigo daquele art. 734º n.º1 do CPC, efectuar a avaliação realizada e produzir o efeito decretado, por referência ao art. 726º n.º2 do CPC (especificamente citado em tal despacho).
4. O único elemento discrepante radica no facto de se falar em indeferimento liminar quando, em rigor, o despacho não indefere (rejeita) e já não é liminar. Mas tal circunstância não torna o despacho inadmissível já que ele, no seu conteúdo, seria autorizado com o mesmo efeito e em momento processual não liminar pelo art. 734º n.º1 do CPC. A qualificação do acto como indeferimento liminar constitui mera impropriedade, não um vício em si: o que podia viciar o acto seria a lei processual não admitir ou proibir o indeferimento (ou a rejeição, materialmente sinónimos como se viu) no momento adoptado e com os fundamentos utilizados. Dizer que o acto indefere e é inicial, quando rejeita e não é inicial, em nada afecta o seu conteúdo e efeitos (se se quiser, e apelando ao critério geral do art. 196º n.º1 do CPC, não tem qualquer relevo no exame ou decisão da questão) nem o coloca fora da órbita do art. 734º n.º1 do CPC. Assim, como a admissibilidade do despacho depende da adequação da avaliação que contém e efeitos que produz à norma permissiva[3], e não da formulação verbal usada ou, em particular, da conceitualização adoptada, ele seria, neste sentido, lícito. O apelo a fórmula ou conceito processual não inteiramente ajustado (indeferimento liminar) não torna o acto processualmente indevido no momento em que é proferido se, independentemente de tal conceito, a avaliação que realiza e os efeitos que visa sempre seriam admissíveis, à luz da norma processual pertinente. Quando muito, e em tese, poderia ocorrer um erro de qualificação do despacho, quanto à identificação do exacto mecanismo processual a aplicar (máxime, referindo indeferimento em vez de rejeição), mas não um vício atinente à preclusão, à inadmissibilidade do acto no momento processual escolhido, e aquele erro de qualificação seria irrelevante porque não afecta o seu fundamento e sentido e é passível de eliminação pela qualificação (eminentemente formal) ajustada[4]. Deste modo, não se pode dizer que, por nele se invocar um indeferimento liminar, o despacho impugnado surja em momento em que já não podia ser proferido (ou, de toda a forma, padeça de vício que o deva invalidar).
5. Quanto à imputada nulidade (por ocorrer decisão proferida em violação do princípio do contraditório), e independentemente da sua qualificação, a inexistência de regra impositiva quanto à ordem de conhecimento das questões (para além de eventual encadeamento lógico determinado por razões de prejudicialidade estrita[5], que não ocorre no caso), a prevalência da regra da substituição (art. 665º n.º1 do CPC, que até leva a sustentar que o conhecimento da nulidade é, na verdade, dispensável, pois, verificada ou não, sempre tem o tribunal que avaliar o mérito da impugnação) e o princípio da preferência pela decisão de mérito sobre avaliações formais (quando, como no caso, o obstáculo formal não obedeça a princípios de ordem pública, não disponíveis)[6] justificam que se passe a avaliar o mérito da impugnação.
6. A Portaria 28/2000, de 27.01, como deriva do seu art. 2º, aprovou, como seu anexo, um modelo específico para a livrança, fixando ainda um conjunto de características técnicas a que aquele modelo deveria obedecer (quanto ao formato, texto, termos da impressão, tintas e papel). Nessa sequência, tem sido colocada a questão de saber se a adopção daquele modelo (com certas características) constitui requisito formal da letra e assim requisito da sua validade (formal). Entende-se que a forma imposta por aquela Portaria não constitui uma forma legal da livrança, ou seja, não constitui requisito de existência (requisito de perfeição, necessário ao surgimento da livrança como tal) ou de validade (requisito de legalidade, de completude formal do título cambiário). Isto pelas razões que, no essencial, constam do Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 06.02.2024[7], citado pela exequente. Assim: - a criação do modelo da livrança terá obedecido também a razões utilitárias (processamento informático)[8] mas esteve sempre ligada a razões tributárias e são estas que actualmente preponderam: o modelo está conexionado com o controlo e pagamento do imposto de selo. A asserção é patente porquanto: i. do preâmbulo da Portaria 28/2000 deriva que os novos modelos visam adequá-los à nova forma de arrecadação do imposto do selo (por guia); ii. o modelo é criado ao abrigo de regra especificamente tributária [art. 30º n.º2 do Código do Imposto de Selo (CIS, doravante) na redacção original (actualmente art. 65º n.º2 do mesmo Código[9])]; e iii. a criação do modelo e a sua sujeição a regras específicas quanto a quem o pode emitir justifica-se pela necessidade de controlar o pagamento do imposto de selo: assim, apenas certas entidades podem emitir livranças, entidades aquelas que devem manter registos da emissão e do pagamento do inerente imposto de selo, devendo-o comunicar mensal/anualmente, e são estas entidades que do imposto são sujeito passivo (liquidam e entregam o imposto ao Estado, embora este imposto constitua encargo do sacado e devedor) - art. 65º n.º8 e 10, art. 52º-A e 52º, art. 23º, art. 2º n.º1. al. f) e art. 3º n.º3 al. k) do CIS. O modelo tem, pois, natureza e função exclusivamente tributária. A afirmação reforça-se com o cuidado posto em ressalvar que as letras emitidas obedecerão aos requisitos previstos na lei uniforme relativa a letras e livranças, como decorre do art. 65º n.º1 do CIS (o que vale, notoriamente, também para as livranças), o que revela a intenção de não alterar nem contrariar o regime próprio dos títulos cartulares em causa. - a lei não fixa consequências para a falta de utilização do modelo. A omissão de utilização do modelo pode ter reflexos no pagamento do imposto (pagamento total ou parcialmente omitido, tardio ou realizado por forma não prevista), reflexos estes a que podem associar-se efeitos penais ou contraordenacionais (v.g. art. 103º, 105º ou 114º do regime geral das infracções tributárias - Lei 15/2001, de 05.06). Mas tais efeitos assentam nos vícios do pagamento, não na omissão da utilização do modelo. A esta falta a lei não associa efeitos próprios, tributários ou, em especial, civis. - por isso que, como acentuam J. Oliveira Ascenção e P. Pais de Vasconcelos[10], aquele modelo não constitua uma exigência de forma civil mas apenas uma formalidade fiscal, um requisito funcionalmente fiscal e não civil, cuja omissão não afecta o valor da livrança. O sentido do modelo é tributário e orientado para o (pagamento do) tributo. - conclusão que se mostra conforme aos demais elementos mobilizáveis na avaliação, pois: - a Convenção Relativa ao Imposto do Selo em Matéria de Letras e de Livranças, assinada em Genebra a 7 de Junho de 1930 [aprovada para ratificação pelo DL 23:721, de 29 de Março de 1934], no seu art. 1º, §1, impôs às partes a modificação das suas leis por forma a que a validade das obrigações contraídas por meio de letras e de livranças ou o exercício dos direitos que delas resultam não possam estar subordinados ao cumprimento das disposições respeitamos ao selo. Tal significa que, à luz desta regra, o Estado Português estava pacticiamente impedido de, com vista à cobrança do imposto de selo, alterar as regras formais da livrança em termos que afectem a sua validade. Em conformidade, ao criar o modelo em causa não visou alterar os requisitos formais próprios da livrança nem contrariar esta regra pactícia. É certo que aquela convenção também permitia suspender o exercício dos direitos derivados das letras e livranças ou condicionar a sua executoriedade ao pagamento dos impostos do selo prescritos (§2 do mesmo art. 1º) mas a criação do modelo legal não corresponde, notoriamente, a esta previsão (não suspende direitos ou a executoriedade do título até ao pagamento do selo), pelo que a sua imposição como requisito formal não podia colher apoio nesta regra. - a Lei Uniforme de Letras e Livranças (doravante LULL) constitui o anexo I de convenção internacional (Convenção Estabelecendo uma Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças, assinada em Genebra em 7 de Junho de 1930 e aprovada para ratificação pelo DL 23.721, de 29.03.1934 e ratificada pela Carta de 21 de Junho de 1934, e em vigor desde 08.091034 – art. 1º do DL 26:556, de 30.04.1936). - os requisitos de validade da livrança, nomeadamente formais, estão descritos no art. 75º da LULL, do qual não consta a sua sujeição a nenhum formulário específico. Em particular, o art. 76º da LULL i. refere-se ao «escrito» a que faltem as menções constantes do art. 75º, dando conta de que à livrança se basta a sua forma escrita, sem a imposição de qualquer fórmula ou modelo vinculativo, e ii. estabelece que o escrito a que faltar algum dos requisitos elencados no art. 75º não produz efeitos como livrança, assim dando conta que aqueles requisitos são os únicos cuja falta afecta formalmente a letra (embora alguns deles em termos não decisivos). A imposição de um modelo não é tolerada por este regime. - a LULL, e a convenção que a aprova, não prevêem a possibilidade de as partes contratantes alterarem ou aditarem exigências formais (o que, aliás, defraudaria a finalidade da convenção, que visava justamente evitar «as dificuldades originadas pela diversidade de legislação nos vários países em que as letras circulam», como consta do introito da convenção). Esta asserção é reforçada pelo anexo II da convenção, no qual se estabelecem as regras da convenção que podem ser derrogadas ou alteradas por cada país contratante, na medida em que aí apenas se prevê a possibilidade de alterar a denominação (o nome a dar) do título previsto no art. 75º da LULL (art. 19 do anexo II da convenção). Acresce que, tendo-se as partes contratantes reservado o direito de compilar as disposições relativas às livranças num regulamento especial (interno), ficou também estabelecido que este devia estar em conformidade exacta com as disposições da Lei Uniforme, admitindo apenas, no que ora monta, as modificações ao art. 75º que o anexo II autorizava, e que, nesta parte, tais modificações são apenas a que consta do referido art. 19º do anexo II. Não existe assim espaço, face à convenção e à LULL, para introduzir vinculativamente o aludido modelo na ordem jurídica civil. - a Convenção Destinada a Regular Certos Conflitos de Leis em Matéria de Letras e de Livranças [aprovada para ratificação pelo DL 23:721, de 29.03.1934] estabelece que a forma das obrigações contraídas em matéria de letras e livrança é regulada pela lei do país em cujo território essas obrigações tenham sido assumidas. Tal não significa que se tenha aceitado que cada país possa fixar as condições formais da livrança e que naquela convenção se trate de regular os conflitos daí derivados pois i. a convenção visa apenas regular conflitos de leis e não intervir naquele efeito; ii. nos países onde vigora a Convenção Estabelecendo uma Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças a lei interna será justamente a LULL (e os requisitos formais que esta estabelece e cuja alteração a convenção referida não permite) – aliás, a própria lei uniforme é já uma forma de homogeneização do tratamento das questões; iii. o regime valerá, neste aspecto formal, essencialmente em relação a livranças emitidas por países onde não vigore a LULL (e que sejam exercidas em país signatário da convenção em causa); e iv. o âmbito da convenção excede esta questão. - a Convenção Estabelecendo uma Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças, e assim a LULL, «vigora na ordem jurídica interna, por força do preceituado no art. 8º, nº2, da Constituição da República Portuguesa», fazendo as suas regras parte do ordenamento interno. Aquele art. 8º n.º2 da CRP consagra uma recepção automática condicionada de tais normas mas não estabelece claramente o seu estatuto hierárquico na ordem interna. Entende-se (de forma maioritária ou mesmo actualmente dominante) que as normas constantes de tratados internacionais têm valor supralegal, pelo que a desconformidade entre as normas do tratado e a lei (anterior ou posterior) implicam «a inaplicabilidade da norma infraordenada que, em consequência, deixa de produzir efeitos jurídicos na ordem normativa interna» - importando, para uns, a inconstitucionalidade material da norma interna por violar o art. 8º n.º1 da CRP e, para outros, a ilegalidade da norma interna pelo mesmo motivo (sendo ainda defendido por outros que a norma interna fica suspensa) [a questão da primazia da LULL face ao direito interno (e também a qualificação do vício inerente à violação da regra convencional) foi amplamente discutida a propósito do art. 4º do DL 262/83, de 16.06, que contrariava o disposto no n.º2 dos art. 48º 49º da LULL quanto à taxa de juros aplicável à letra. O TC, aceitando aquela contrariedade do referido art. 4º ao regime da LULL, sustentou reiteradamente a primazia do direito internacional pactício (v., entre outros, Acs. 4/87, 303/89, 6/91 ou 281/94[11], todos disponíveis online). Afastou o conflito entre as normas apenas porque excluiu a aplicação das referidas regras da LULL com base na cláusula pactícia rebus sic stantibus derivada do art. 62º da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados (atendendo especialmente aos valores da inflacção então presentes), situação que não ocorre no caso[12]]. Ou seja, este obstáculo à alteração dos requisitos da livrança na ordem interna tende a revelar que o legislador não o quis fazer, que a sua intenção foi mais limitada. Assim, inexiste conflito normativo, dado o aludido âmbito restrito da regra tributária. Mas, a existir, teria que resolver-se, como exposto, a favor da regra de origem internacional. Assim, inexiste o obstáculo apontado, não podendo acolher-se a solução do despacho impugnado[13].
7. Por fim, e mesmo que assim não fosse (ou seja, mesmo que se devesse considerar o modelo como requisito formal da livrança), haveria ainda que levar em conta o eventual valor da livrança enquanto quirógrafo, no sentido de que, não valendo como livrança, por não reunir os requisitos legais para titular uma obrigação cambiária, poderia valer ainda como documento escrito contendo uma promessa de pagamento da quantia inscrita, por parte daquele que a subscreve, a favor de quem nela é indicado. Como a exequente alegou os factos constitutivos da relação subjacente (em homenagem, aliás, ao disposto no art. 724º n.º1 al. e) do CPC), relação aquela que envolve a exequente e a executada (intervenientes no título), aquele quirógrafo poderia ainda constituir título executivo, atento o disposto no art. 703º n.º1 al. c) do CPC, ou ao menos tornar não manifesta (inequívoca) a inexistência do título executivo, desse modo se afastando a hipótese do art. 726º n.º2 al. a) do CPC (que rege também para o art. 734º n.º1 do CPC) e que depende de um grau de certeza muito elevado (manifesta).
8. Atento o exposto, fica prejudicada a avaliação da invocada nulidade. Assim como fica prejudicada a avaliação do momento em que o despacho de rejeição é proferido, face aos pagamentos já efectuados (questão, embora, não líquida).
9. A recorrente pede, em rigor, que a decisão recorrida seja substituída por outra que «admita o título executivo e ordene o normal prosseguimento dos autos». A verdade é que inexiste regra processual que preveja uma decisão que «admita o título executivo», e o normal prosseguimento do processo não tem que ser determinado, constituindo mero efeito das regras processuais pertinentes (e, claro, da revogação do despacho obstativo ao prosseguimento). A decisão a proferir nesta sede e o seu efeito útil esgotam-se, pois, num efeito revogatório.
10. Não se pode afirmar que a executada deu causa ao recurso (não sendo em rigor parte vencida), pelo que deverá valer a regra do benefício, ficando assim as custas a cargo da recorrente (art. 527º n.º1, in fine, do CPC) – o que, inexistindo encargos e estando paga a taxa de justiça, releva apenas quanto às custas de parte.
V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.
Notifique-se.
Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC): (…).
Datado e assinado electronicamente. Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.
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