Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1601/21.9PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 349.º E 351.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 127.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana.
II - O recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional e legítima em processo penal, podendo, inclusivamente, os tribunais da relação, quando tenha sido impugnada a matéria de facto, fazer uso dessas presunções para dar como provados, ou como não provados, factos que o não vinham da 1ª instância.

III - Subsistindo mais do que uma causa provável para a prática dos factos não é possível formular o juízo de certeza que, por presunção judicial, leve a julgá-los como provados.

IV - O princípio in dubio pro reo impõe que quando, produzida a prova, o tribunal fique com uma dúvida razoável, importante, séria, quanto à ocorrência de determinado facto deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

V - Se o tribunal recorrido não teve qualquer dúvida quanto à consideração de determinados factos como provados mas, por inoperância da prova por presunção, devia ter tido, impõe-se julgar tais factos como não provados, por aplicação do princípio in dubio pro reo.

Decisão Texto Integral: Relator: João Abrunhosa
Adjuntos: Maria José Guerra
Jorge Jacob
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Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
No Juízo Local Criminal de Coimbra, por sentença de 23/01/2024, foi a Arg. [1] AA, com os restantes sinais dos autos, condenada e absolvida nos seguintes termos:
“... Por todo o exposto e decidindo, julgo a acusação parcialmente provada e procedente e, consequentemente:
a) Absolvo a arguida …, do crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto e punido pelo artigo 225º n.º 1 al. c) do Código Penal, de que vinha acusada.
b) Condeno a arguida …, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6º, nºs 1 e 4, al. a) da Lei 109/2009, na pena de um ano e dois meses de prisão, que ao abrigo do disposto nos arts. 45º, nº 1, e 47º do Código Penal, se decido substituir pela pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
c) Condeno a arguida …, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art. 3º nº 1 e 3 da Lei 109/2009, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
d) Procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condeno a arguida na pena única de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a multa global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).
2. Ao abrigo do disposto no art. 110.º, nºs 1, al. b), 3, 4, 5 e 6 do Código Penal, declaro perdida a favor do Estado, a quantia de € 967,41 (novecentos e sessenta e sete euros e quarenta e um cêntimos). ...”.
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Não se conformando, a Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:
“... IMPUGNAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Insuficiência da prova quanto aos factos provados
1. Considerou o Tribunal a quo provados, com implicação directa à arguida recorrente, os seguintes factos constantes dos pontos 1. a 6. dos factos provados:
DOS VÍCIOS DO ART. 410º Nº2 DO C.P.P.
2. Em todo o caso, para chegar a esta conclusão de facto, o Tribunal a quo lançou mão dos seguintes fundamentos, que por motivos de clareza de exposição, aqui se deixam, em parte, transcritos:
3. O tribunal fundou a sua convicção na “conjugação crítica, sua livre valoração, e à luz das normais regras da experiência comum, na globalidade da prova, documental, por declarações da arguida, e testemunhal, produzida em sede de audiência de julgamento, atendendo quanto às declarações da arguida e prova testemunhal, à sua razão de ciência, coerência, objetividade, espontaneidade, segurança, patenteadas nas respetivos declarações e depoimento”.
4. Porém, se quanto ao depoimento da única testemunha (ofendido), o tribunal a quo considerou ter sido “coerente, consistente, no mesmo não se tendo surpreendido parcialidade, tanto mais que não conhece sequer a arguida, merecendo inteira credibilidade”.
5. Já quanto à arguida, as suas declarações “valoradas na sua globalidade, e ante a forma como as prestou, conjugadas com a demais prova produzida, não mereceram qualquer crédito, por manifestamente inconsistentes, incongruentes, contraditórias, e inverosímeis na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, patenteado tendo ficado o fito único da sua desresponsabilização.”.
6. Assim, nestas circunstâncias de facto, não pode a recorrente especificar – mesmo que considerasse estar aqui em causa a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs3, 4 e 6 – nem “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (art. 412º nº3 al. a) do C.P.P.), nem “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” (art. 412º nº3 al. b) do C.P.P.).
7. Na verdade, quanto a esta possibilidade, ela mostra-se deveras impraticável, pois o tribunal apenas deu credibilidade ao depoimento do ofendido. Do qual, resulta que o mesmo não conhece a arguida, não tendo tais transferências sido por ele testemunha ordenadas, tendo sido efectuadas sem o seu conhecimento e consentimento, desconhecendo como acederam aos dados da sua conta e cartão, cartão este que a testemunha nunca emprestou a ninguém, não tendo de igual forma cedido os dados do mesmo e sua conta bancária a ninguém. – sublinhado nosso.
8. Desde logo, os factos que lhe vêm imputados não preenchem os elementos tipificadores, quer objectivos, quer subjectivos, dos crimes de acesso ilegítimo e de falsidade informática.
9. A arguida limitou-se única e exclusivamente a ceder o número do seu telemóvel a um indivíduo que conheceu devido ao facto de este lhe ter comprado búzios.
10. O tribunal a quo não contextualizou, nem enquadrou devidamente o comportamento da arguida.
11. Não existe qualquer elemento probatório que a ligue ao iter criminis desenvolvido pelo tribunal a quo, mormente a ter tido acesso, sem autorização, através da aplicação MBway, à conta bancária  ...10, titulada pelo ofendido BB na Banco 1..., bem como aos dados do cartão bancário do mesmo com o nº. ...08, do referido banco.
12. E não se olvide a este respeito que o próprio ofendido afirmou peremptoriamente que os seus dados bancários estavam unicamente na sua memória.
13. Como também não corresponde à verdade ter a arguida conseguido introduzir dados informáticos na aplicação MBway, dando ordens de transferência que sabia não serem genuínas, por não corresponderem à vontade do titular da conta, com a intenção alcançada de enganar a entidade bancária e de a determinar a executar tais transferências, em prejuízo do património do ofendido/lesado.
14. Para o tribunal a quo, as declarações da arguida, ao contrário das do ofendido, “não mereceram qualquer crédito, por manifestamente inconsistentes, incongruentes, contraditórias, e inverosímeis na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, patenteado tendo ficado o fito único da sua desresponsabilização”.
15. Mais, “a “justificação” que a arguida deu para as duas transferências bancárias, no valor de 500 euros cada, para conta bancária de que é titular, efectuadas no dia 12.11.2021, além das inconsistências, incongruências e contradições surpreendidas nas suas declarações, é inverosímil na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, e à luz dos critérios do homem médio”. – sublinhados nossos.
16. Concluindo ainda encontrarem-se as mesmas, “pejadas de inconsistências, incongruências, contradições, e manifestamente inverosímeis na sua valoração à luz das normais regras da experiência”. Contudo, em nenhum momento se alcança do texto da Decisão recorrida, quais foram essas inconsistências, incongruências ou contradições.
17. Por esse motivo, a versão dos factos que a arguida trouxe a tribunal, e a forma como prestou as suas declarações, ancoraram e sedimentaram a convicção do tribunal, “não obstante a prova produzida tenha sido meramente circunstancial, pois na verdade, não se produziu prova directa dos factos.”. – sublinhado nosso.
18. Ou seja, e apesar de se haver concluído inexistir prova directa sobre tais factos, apenas “à luz das normais regras da experiência comum, e na sua livre valoração, os indícios e circunstancialismos apurados em julgamento constituíram fonte de convencimento e de convicção, inabalável, de que a arguida cometeu os factos que se vieram a provar.”.
19. Pasme-se que até relativamente ao elemento subjectivo – dolo directo – inferiu-o o Tribunal da factualidade objectiva provada. – sublinhados nossos.

23. O tribunal a quo não deu qualquer credibilidade às declarações da arguida no respeitante à matéria dos factos incriminadores, mas, por sua vez, já se mostrou receptivo e credibilizou as declarações da arguida quanto à sua situação socioeconómica, não sendo despiciendo referir que dispensou a elaboração do relatório social a que alude o art. 370º do C.P.P.
24. Ora, se dúvidas houvesse quanto à autocaracterização que a arguida fez da sua situação socioeconómica, deveria o tribunal a quo não prescindir da obtenção, ainda que sucinta, da necessária informação por parte dos competentes serviços de reinserção social.
DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO REO – ART. 32º nº2 DA CRP
25. O Tribunal a quo limitou-se a invocar unicamente as “presunções de experiência” como suporte do juízo que formulou sobre a matéria de facto, à míngua de quaisquer outros elementos probatórios directamente imputáveis à recorrente, por inexistentes.
26. Ora, correspondendo as intenções, conhecimentos e vontades ao âmago mais interior de uma pessoa, não se resvalando as mesmas em atitudes concretas, difícil ou impossível se afigura entendê-las, a não ser que, pela forma que o visado as expõe – como o fez a arguida – seja crível aos olhos do julgador a sua posição ou, pelo menos, que a sua versão suscite a dúvida quanto às mesmas.
27. Tal dúvida qualifica-se como insanável – na medida em que é inultrapassável, não se tendo ficado a dever a um défice de investigação –, razoável – porque positiva, racional, que ilide a certeza contrária – e como objectivável – já que, como se pretendeu demonstrar, não se trata de um dúvida arbitrária, um mero pressentimento ou um puro palpite, antes uma dúvida para a qual determinadas razões, como as elencadas, podem ser dadas.
28. Subsistindo dúvidas quanto à factualidade em análise, impunha-se ao tribunal fazer prevalecer a regra do in dubio pro reo, princípio relativo à prova que se revela em consonância com o princípio constitucional da presunção da inocência, porquanto constitui uma das suas vertentes (cfr. artigo 32.º, n.º 2, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa). Tal princípio constitui um complemento irrenunciável do princípio da livre apreciação da prova.

37. Assim, na ausência de prova dos elementos subjectivos dos crimes de falsidade informática e acesso ilegítimo, e que, no que ao dolo específico respeita, que a sua intenção ou finalidade era de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usando documento produzido a partir de dados informáticos, ou ainda aceder ao sistema sem consentimento do titular, resulta, necessariamente, que a arguida deveria ser absolvida da prática destes crimes.
V – NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS
Art. 26º do C.P; Arts. 3.º n.ºs 1 e 3 e 6º nº 4 al. b) e n.º 5 al. a) da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro
Arts. 127º, 410º nº2 als. a) e c) do C.P.P.; Arts. 13º, 20 nº4, 32º nº2 da C.R.P..
...”.
*
A Exm.ª Magistrada do MP respondeu ao recurso …
[2].
[3].
[4],
[5].
[6].
[7],
[8].
[9];
[10].
[11],[12].
...”.
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Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, … pugnando pela improcedência do recurso.
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O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“... FACTOS PROVADOS
Da instrução e discussão, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 12-11-2021, às 19h11 e 19h12, a arguida …, de forma não concretamente apurada, por si só ou juntamente com outros indivíduos cuja identidade se desconhece, acedeu sem autorização, através da aplicação MBway, à conta bancária …, titulada por BB … na Banco 1..., assim como aos dados do cartão bancário do mesmo com o n.º …, do mesmo banco.
2. Na posse desses elementos, a arguida por si só ou com os outros sujeitos, sem o conhecimento e contra a vontade de BB…, efetuaram duas transferências bancárias, no valor de 500 euros cada, através de MBway, para o número de telefone da arguida …, associado à conta …, titulada apenas pela arguida no Banco 2....
3. Desta forma, a arguida conseguiu apoderar-se da quantia global de 1000,00 euros, que gastou em proveito próprio ou também dos outros indivíduos não identificados.
4. A arguida quis e conseguiu aceder, sem autorização, ao perfil de BB… na aplicação Mbway e, desta forma, poder movimentar a conta bancária deste último, ciente de que acedia a um sistema informático de pagamento e a informações confidenciais, protegidas pelo segredo bancário.
5. A arguida visou ainda, e conseguiu, introduzir dados informáticos na aplicação Mbway, dando ordens de transferência que sabia não serem genuínas, por não corresponderem à vontade do titular da conta, com a intenção alcançada de enganar a entidade bancária e de a determinar a executar tais transferências, em prejuízo do património de ….
6. A arguida actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, por si só, ou de comum acordo e em conjugação de esforços e de vontades com outros sujeitos não identificados, bem sabendo que as referidas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.
7. A arguida no exercício da sua actividade profissional aufere o vencimento mensal médio de € 1.100,00/€ 1.300,00.
….
*
FACTOS NÃO PROVADOS
...”.
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Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[13] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:
“... O tribunal fundou a sua convicção na conjugação crítica, sua livre valoração, e à luz das normais regras da experiência comum, na globalidade da prova, documental, por declarações da arguida, e testemunhal, produzida em sede de audiência de julgamento, atendendo quanto às declarações da arguida e prova testemunhal, à sua razão de ciência, coerência, objetividade, espontaneidade, segurança, patenteadas nas respetivos declarações e depoimento.
Interessaram assim para a formação da convicção do Tribunal, valorados nos termos supra expostos, os seguintes elementos probatórios:
- Auto de denúncia de fls. 64, no que na sua objectividade releva, designadamente, identificação de quem apresentou a denúncia e data dos factos denunciados.
- Elementos bancários de fls. 13-15, 26-32, 37-44 e 77.
- Informação da Altice de fls. 48.
- Declarações da arguida.
Depoimento da testemunha BB…, titular da bancária PT50 …, sediada na Banco 1..., e do cartão bancário n.º …, do mesmo banco.
Particularizando:
Dos elementos bancários de fls. 13 a15, 26 a32, 37 a 44 e 77, e informação da Altice de fls. 48, resulta inquestionável que no dia 12.11.2021, às 19h11 e 19h12, foram efectuadas duas transferências bancárias, através de MBway, no valor de 500 euros cada, da conta bancária PT50 …, titulada por BB … na Banco 1..., associada ao cartão bancário do mesmo n.º …, para o número de telefone da arguida …, associado à conta …, titulada apenas pela arguida no Banco 2....
Do depoimento da testemunha BB …, resulta que o mesmo não conhece a arguida, não tendo tais transferências sido por ele testemunha ordenadas, tendo sido efectuadas sem o seu conhecimento e consentimento, desconhecendo como acederam aos dados da sua conta e cartão, cartão este que a testemunha nunca emprestou a ninguém, não tendo de igual forma cedido os dados do mesmo e sua conta bancária a ninguém. O depoimento da referida testemunha, ante a forma como o prestou, apresentou-se, coerente, consistente, no mesmo não se tendo surpreendido parcialidade, tanto mais que não conhece sequer a arguida, merecendo inteira credibilidade.   
Nas suas declarações, a arguida, admitindo que no dia 12.11.2021, foram efetuadas duas transferências bancárias, no valor de 500 euros cada, para conta bancária de que é titular, negou quanto ao demais os factos de que vem acusada, procurando fazer crer que tais transferências foram feitas por indivíduo, com quem disse ter tido relações comerciais (vendeu-lhe búzios pelo preço total de € 195,00, através de contacto que estabeleceu com o mesmo na internet, e o qual antes não conhecia, nem nenhum relacionamento para além dessa transacção teve), que lhe solicitou tais transferências para a sua conta bancária, por a dele se encontrar bloqueada.
Não logrou convencer da sua versão.
Com efeito, as declarações da arguida valoradas na sua globalidade, e ante a forma como as prestou, conjugadas com a demais prova produzida, não mereceram qualquer crédito, por manifestamente inconsistentes, incongruentes, contraditórias, e inverosímeis na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, patenteado tendo ficado o fito único da sua desresponsabilização.
A “justificação” que a arguida deu para as duas transferências bancárias, no valor de 500 euros cada, para conta bancária de que é titular, efectuadas no dia 12.11.2021, além das inconsistências, incongruências e contradições surpreendidas nas suas declarações, é inverosímil na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, e à luz dos critérios do homem médio.
Com efeito é inverosímil à luz das normais regras da experiência, que a arguida, que até tem o 12º ano de escolaridade, se tenha prontificado a fazer “um favor” a alguém que não conhece, com quem não tem qualquer relação de  amizade nem de proximidade (na sua versão vendeu a tal pessoa, através de contacto na internet, búzios pela quantia de € 195,00), prontificando-se a disponibilizar a sua conta bancária para que tal pessoa para ela faça, no mesmo dia, seguida uma da outra, duas transferências bancárias, no valor de € 500,00 cada, porque tal pessoa lhe disse que tinha a sua conta bloqueada; e tudo, sem sequer tido a “preocupação” de o questionar sobre os motivos pelos quais a si recorria para tanto, e os motivos pelos quais tinha a sua conta bloqueada.
E inverosímil é à luz das normais regras da experiência comum, que alguém solicite a outrem, com quem não tem qualquer relação de amizade nem de proximidade (que apenas fez com a arguida um negócio de compra de búzios através da internet), que se disponha a receber numa conta bancária de que é titular, a quantia de € 1.000,00, para posteriormente tal montante lhe ser devolvido.
Da conjugação crítica da globalidade da prova produzida, sua livre valoração e à luz das normais regras da experiência comum, não ficou o Tribunal com quaisquer dúvidas de que a arguida, por si só, ou mediante plano previamente delineado com outros e em conjugação de esforços e intentos com os mesmos, cometeu os factos que se vieram a provar.
 É certo que no caso em apreço, a prova produzida foi meramente circunstancial, pois na verdade, não se produziu prova directa dos factos. Mas, como é sabido, em matéria de prova vigora o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP, nos termos do qual, salvo a existência de prova vinculada (como o é a prova pericial), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção.
Por outro lado, não sofre controvérsia a admissibilidade em processo penal de todas as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º do C.P.P.), aí se incluindo as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil). Não sendo a presunção judicial um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados.
Na formação da convicção do julgador intervêm, assim, provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que se tem por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
No caso em apreço, como referido, as declarações da arguida não mereceram credibilidade.
E, não obstante a prova produzida tenha sido meramente circunstancial, pois na verdade, não se produziu prova directa dos factos, certo é que reunidos os vários factos instrumentais, que resultaram da globalidade da prova produzida, valorada e concatenada criticamente, na sua livre valoração, e à luz das normais regras da experiência comum, vistas até as declarações da arguida, pôde o tribunal firmar consistentemente a convicção de que a mesma (por si só, ou mediante plano previamente delineado com outros e em conjugação de esforços e intentos com os mesmos), cometeu os factos que se vieram a provar.
E para tanto, interessaram, conjugadamente, e valorados à luz das normais regras da experiência, os documentos bancários e informação da Altice juntos aos autos, o depoimento do ofendido, e as próprias declarações da arguida, pejadas de inconsistências, incongruências, contradições, e manifestamente inverosímeis na sua valoração à luz das normais regras da experiência, patenteado tendo ficado o fito da sua desresponsabilização, que ante a versão dos factos que trouxe a tribunal, e a forma como prestou as suas declarações, ancoraram e sedimentaram a convicção do tribunal.
Não obstante inexista prova directa sobre tais factos, certo é que os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, e valorada a prova produzida à luz das normais regras da experiência comum, e na sua livre valoração, os indícios e circunstancialismos apurados em julgamento constituíram fonte de convencimento e de convicção, inabalável, de que a arguida cometeu os factos que se vieram a provar.
Relativamente ao elemento subjectivo – dolo directo – inferiu-o o Tribunal da factualidade objectiva provada.
Quanto às condições de vida da arguida e sua situação sócio-económica, interessaram as suas declarações, não infirmadas por qualquer outro meio probatório produzido.
Quanto à ausência de condenações sofridas pela arguida, interessou o seu CRC junto aos autos.
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...”.
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É pacífica a jurisprudência do STJ[14] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[15], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:
I – Reapreciação da matéria de facto;
II – Vício da decisão recorrida: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
III – Tipificação da conduta apurada.
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Cumpre decidir.
I - A Recorrente entende que o tribunal recorrido não devia ter dado como provados os factos 1 a 6, porque não foi isso que resultou da prova produzida em audiência, para além do mais, por aplicação do princípio in dubio pro reo.
Uma vez que entende que foi mal julgada a matéria de facto, o que invoca é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros e julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[16],[17],[18].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[19].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[20].
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal[21]; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram[22]; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada.
No presente caso, a Recorrente, fez as especificações previstas no art.º 412º/3 do CPP, e transcreveu, no corpo da motivação, passagens das suas próprias declarações que, em seu entender, impõem diferente decisão de facto, mas, sobretudo, põe em causa a prova por presunção, levada em conta na decisão recorrida.
E, na verdade, o tribunal recorrido não deu credibilidade às declarações prestadas pela Arg. e socorreu-se da prova por presunção, para dar como provados a autoria dos factos 1 a 6, porque, para além destas declarações, as únicas provas directas constantes dos autos e produzidas são o depoimento do Ofendido (que disse não saber como foram feitas tais operações) e a prova documental, da qual resulta que, no dia 12-11-2021, às 19h11 e 19h12, da conta bancária da Banco 1... com o IBAN  ...10, titulada pelo Ofendido, através da aplicação “MB Way”, foram feitas duas transferências bancárias, no valor de €500,00 cada, para o número de telefone da Arg. ...94, associado à conta do Banco 2... com o IBAN  ...05, por esta titulada.
Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana[23] – art.º 349º e 351º do CC[24] (Cf. P. Lima e A. Varela, in "CC Anot.", I Vol., 4ª Ed., p. 312), e o recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional[25] e legítima em processo penal[26],[27],[28],[29], podendo, inclusivamente, os Tribunais da Relação, quando tenha sido impugnada a matéria de facto, fazer uso dessas presunções, para dar como provados, ou como não provados, factos que o não vinham da 1ª instância[30].
Mas tem regras[31].
No presente caso, os únicos factos base são que, através da aplicação “MbWay”, foram feitas transferências no valor total de €1000,00, de uma conta do Ofendido para uma conta da Arg..
Ora, entre estes factos base e os factos adquiridos, de que a Arg. acedeu à conta bancária do Ofendido e dela efectuou as referidas transferências, há uma solução de continuidade que torna a relação entre aqueles e estes demasiado longínqua.
Nem sequer se sabe como foram dadas essas ordens de transferência, desconhecimento esse que interfere, necessariamente, no raciocínio lógico entre os factos conhecidos e os adquiridos.
Para além disso, ainda que não se dê credibilidade à Arg., há várias hipóteses consistentes que permitem pôr em causa o resultado atingido.
Desde logo, a intervenção de terceiros na realização dessas transferências, desde logo o “rapaz” que a Arg. diz que lhe pediu para receber dinheiro na sua conta.
Por outro lado, não faria sentido que tendo sido a Arg. a fazer tais transferências, as tenha feito para o seu telemóvel, deixando assim um rasto demasiado visível. Se tivesse o engenho para interferir informaticamente com o telemóvel ou a conta bancária do Ofendido, certamente, teria também engenho para cobrir a pista que levava a si.
Assim, subsistindo mais do que uma causa provável, não é possível formular o juízo de certeza que permitiria que, por presunção judicial, se dessem tais factos como provados.
O que resulta do princípio in dubio pro reo[32], em síntese, é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205) [33].
A violação deste princípio tem sempre que ser aferida em concreto, porque só em concreto pode acontecer que no final da produção da prova no tribunal permaneça alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido. Tal aferição não pode ser feita em abstracto, dizendo-se que a admissão deste ou daquele tipo de prova viola este princípio. Existem provas proibidas e provas cuja valoração é proibida, em determinadas circunstâncias, mas isso é outro problema. Se as provas levadas em conta forem legais, só em concreto se pode aferir se o tribunal ficou, ou devia ter ficado, com dúvidas relevantes.
Não vislumbramos na decisão recorrida, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal recorrido tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que a pudesse pôr em questão, ou seja, não teve qualquer dúvida, mas entendemos que devia ter tido, dada a referida inoperância da prova por presunção.
Assim, por aplicação deste princípio, daremos como não provada tal matéria de facto.
Importa consignar que concordamos com o tribunal recorrido na falta de credibilidade da versão da Arg., mas isso não chega para a sua condenação pelos crimes pelos quais veio condenada.
Sempre diremos que a matéria de facto apurada por prova directa aponta para a prática, pela Arg., de um crime de receptação, mas do objecto do processo não faz parte o respectivo dolo, pelo que a sua condenação por esse crime não é agora possível.
Procede, pois, nesta parte o recurso.
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Esta procedência, porque implica a absolvição da Arg., prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente:
a) Alteramos a matéria de facto, que passa a ter a seguinte configuração:
Factos provados:
1. No dia 12-11-2021, às 19h11 e 19h12, através da aplicação MB Way, da conta bancária  ...10, titulada por BB … na Banco 1..., associada ao cartão bancário do mesmo com o n.º …, sem o conhecimento e contra a vontade de BB …, foram feitas duas transferências bancárias, no valor de 500 euros cada, para o número de telefone da arguida …, associado à conta …, titulada apenas pela Arg. no Banco 2...;
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Factos não provados:
I. Que a Arg., de forma não concretamente apurada, tenha acedido sem autorização, através da aplicação MB Way, à conta bancária …, titulada por BB … na Banco 1..., assim como aos dados do cartão bancário associado à mesma, com o n.º …, do referido banco;
II. Que, na posse desses elementos, a Arg., tenha efectuado duas transferências bancárias, no valor de 500 euros cada, através de MB Way, para o número de telefone da arguida …, associado à conta …, por si titulada no Banco 2...;
III. Que, desta forma, se tenha apoderado da quantia global de 1000,00 euros e a tenha gastado em proveito próprio ou também dos outros indivíduos não identificados;
IV. Que a Arg. tenha querido e conseguido aceder, sem autorização, ao perfil de BB … na aplicação MB Way e, desta forma, podido movimentar a conta bancária deste último, ciente de que acedia a um sistema informático de pagamento e a informações confidenciais, protegidas pelo segredo bancário.
V. Que a Arg. tenha visado ainda, e conseguido, introduzir dados informáticos na aplicação MB Way, dando ordens de transferência que sabia não serem genuínas, por não corresponderem à vontade do titular da conta, com a intenção alcançada de enganar a entidade bancária e de a determinar a executar tais transferências, em prejuízo do património de BB;
VI. Que a Arg. tenha actuado sempre de forma livre, voluntária e consciente, por si só, ou de comum acordo e em conjugação de esforços e de vontades com outros sujeitos não identificados, bem sabendo que as referidas condutas eram proibidas e criminalmente punidas;
VII. Que a Arg. tenha agido ainda com o propósito concretizado de, através da utilização não autorizada de um sistema de pagamento, obter para si e para terceiros um enriquecimento que sabia não lhe ser devido, ciente de que nessa conformidade causava, como efetivamente causou, um prejuízo patrimonial ao ofendido no valor de € 1.000,00.
b) Absolvemos a Arg. … dos crimes pelos quais vinha condenada nestes autos.
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Sem custas.
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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[1] Arguido/a/s.
[2] Revista Julgar, n.º 17, 2012, p. 13 - 14.
[3] Cláudia Pina, Presunção de inocência e prova indiciária na tramitação processual, “Da prova indirecta ou por indícios”, CEJ, Junho 2020, p. 66.
[4] “Se uma acção nos parecer inexplicável, absurda até, a sua opacidade logo se dissolverá se conhecermos os motivos ou razões e finalidades tidas em vista pelo agente”, Alberto Ruço, Prova Indiciária – Por que razão um facto é um indício ou base de uma presunção? , Coimbra 2013, p. 37.
[5] Alberto Ruço, idem, p. 69.
[6] Alberto Augusto Vicente Ruço, Prova indiciária – por que razão um facto é um indício ou base de uma presunção?, Coimbra, 2013, p. 114.
[7] Marta Sofia Neto Morais Pinto, A prova indiciária no processo penal, Revista do Ministério Público, n.º 128, Outubro – Dezembro 2011, p. 187.
[8] Marta Sofia Neto Morais Pinto, op. cit, p. 187.
[9] Marta Sofia Neto Morais Pinto, op. cit., p. 201.
[10] Marta Sofia Neto Morais Pinto, op. cit., p. 219.
[11] “However, a person's right in a criminal case to be presumed innocent and to require the prosecution to bear the onus of proving the allegations against him or her is not absolute, since presumptions of fact or of law operate in every criminal-law system and are not prohibited in principle by the Convention, as long as States remain within reasonable limits, taking into account the importance of what is at stake and maintaining the rights of the defence”, processo Falk v. Netherlands (dec.), no. 66273/01, 19/10/2004, em file:///C:/Users/mp01213.JUSTICA/Downloads/001-67305.pdf
[12] Processo Salabiaka v. França, consultado em https://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/docx/?library=ECHR&id=001-57570&filename=CASE%20OF%20SALABIAKU%20v.%20FRANCE.docx&logEvent=Fals e alem de toda a dúvida razoável. Mostra-se assim insusceptível de censura a decisão recorrida.
[13] Código de Processo Penal.
[14] Supremo Tribunal de Justiça.
[15]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[16] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[17] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[18] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[19] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[20] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.
[21] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt.
[22] Veja-se, a este propósito, o acórdão da RC de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. 444/14.0JACBR.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - A reapreciação da prova, por erro de julgamento, é ouvir as pessoas nas passagens concretas do seu depoimento, em que no entender do recorrente está inquinado, para saber se disseram ou não o que se mostra vertido na decisão da matéria de facto e não se destina a apurar uma interpretação diferente do tribunal a quo....”.
[23] Ou, como se diz no sumário do acórdão da RP de 10/09/2014, relatado por Neto de Moura, no proc. 683/12.6GCSTS.P2, in www.dgsi.pt: “I - Divergência entre depoimentos não são contradições. II - Na prova por presunção parte-se de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permitem chegar sem necessidade de uma averiguação casuística a um resultado verdadeiro. III - Para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legitimo o recurso à prova indirecta, pois são admissíveis toda as provas não proibidas por lei.”.
[24] Código Civil.
[25] Sobre a constitucionalidade do recurso a presunções judiciais em processo penal, ver o acórdão do TC n.º 391/2015, de 12/08/2015, relatado por João Cura Mariano, do qual citamos: “…Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.
Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar.
Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
Como já acima se disse, no ponto 2.2., constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.
Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente.
Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional.
Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional. …”.
[26] Cf. neste sentido Ac. do STJ de 11/11/2004, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 04P3182, do qual citamos: “… O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.
Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º).
Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.). O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas. No caso, o próprio recorrente aceita que a decisão recorrida não ficou em estado de dúvida, mas entende que deveria ter ficado, o que como vimos é agora insindicável pelo Tribunal de Revista.”.
[27] Ainda no mesmo sentido, cf. Ac RC de 06/03/1996, relatado por Santos Cabral, in CJ, II, pp. 44 e ss. Ac RC de 09/02/2000, relatado por Santos Cabral, in CJ, I, pp. 51 e ss.;, e Ac. RC de 11/05/2005, relatado por Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt, processo 1056/05, do qual citamos: “I – Na ausência de prova directa nada impede que o tribunal deduza racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária (prova artificial ou por concurso de circunstâncias). II – No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos: - Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis; - Racionalidade da inferência obtida, de maneia que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio).”.
[28] Neste sentido, ver também o acórdão da RC de 28/10/2009, Processo 31/01, relatado por Jorge Jacob, no processo 31/01, in JusNet 6710/2009, donde citamos: “…Esta afirmação não colide, no entanto, com a validade da prova obtida através de presunção judicial. Não oferece dúvida que são admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por "livre convicção", é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada "experiência comum", assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis "saltos" lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria - desconhecida - de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede). …”.
[29] No sentido de que o recurso à presunção judicial em processo penal não põe em causa o princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º da CRP, cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “CRP Anotada”, tomo I, Coimbra Editora, 2005, a págs. 356 e 357.
[30] Neste sentido, cf. o acórdão do STJ de 14/07/2016, relatado por Tomé Gomes, no proc. 377/09.2TBACB.L1.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I. As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova propriamente dito, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do CC; tais presunções judiciais são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme o disposto no artigo 351.º do mesmo Código. II. Essas presunções são um meio frequente de provar os factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração direta, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afetiva ou volitiva, dos agentes visados. III. Face à competência alargada da Relação em sede de reapreciação da decisão de facto, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, é lícito à 2.ª instância, com base mormente na prova gravada, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código. IV. No que respeita à sindicância, em sede de revista, sobre o uso de presunções judiciais pelas instâncias, tem-se admitido que o STJ só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. …”.
[31] Quanto às condições em que operam as presunções, ver os seguintes acórdãos:
- do STJ de 07/01/2004, relatado por Henriques Gaspar, in www.gde.mj.pt, processo 03P3213, in www.dgsi.pt, donde citamos: “…Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, n° 112 pág, 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, n°2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea b). …”;
- da RP de 14/01/2015, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 502/12.6PJPRT.P1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário (sublinhado nosso): “I- Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
II -Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:
a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal;
b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito;
c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
III- Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.”.
[32]A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).
Ou, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 356, “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória (D. 48.19,5: Satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem dainnare).”.
[33] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.
O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).
Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.
Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.
E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.
Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.
Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».
A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.
Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.
Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).
Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.
O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.