Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2183/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: SONEGAÇÃO DE BENS
INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2096º, Nº 1, DO C.CIV., E 1350º, Nº 1, DO CPC .
Sumário: I – O inventário tem como finalidade distribuir fiel e equitativamente todo o património de uma herança e nele interessa sobretudo apurar toda a verdade para que a partilha seja efectuada com igualdade e justiça .
II – A existência de sonegação de bens e uma doação dos mesmos estão intimamente conexionados, sendo incompatíveis entre si , pelo que tais questões têm de ser decididas no inventário se não apresentarem complexidade no que concerne à indagação da matéria de facto, ou, então, devem ser remetidas para os meios comuns .
Decisão Texto Integral: Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório
I A..., viúva, cabeça de casal no inventário facultativo a que se procede por óbito de B..., seu ex-marido, interpôs recurso de agravo do despacho que, na sequência de reclamação apresentada pelos interessados C... e D... contra a relação de bens, decidiu pela existência de sonegação de um depósito bancário no montante de 111.730,72 €uros com a consequente perda da sua quota em benefício dos restantes co-herdeiros, remetendo igualmente os interessados para os meios comuns relativamente à invocada doação daquela importância a favor da própria e de seus filhos.
Finalizou a sua alegação, com as conclusões seguintes:
1. O despacho recorrido padece de contradições insanáveis quando extrai conclusões e determina sanções, mas ao mesmo tempo admite que a exposição da matéria de facto necessitaria de ser mais elaborada, desenvolvida e completa em relação à apresentada por ambas as partes.
2. Viola o disposto no art.º 1344º do CPC, pois que deduzida impugnação pelos interessados Maria de Fátima e José Manuel Cristóvão, foi a questão decidida sem a decorrente, necessária e cabal produção de prova pela cabeça de casal, bem como interessados, e com violação do princípio da igualdade das partes.
3. Viola também o disposto no art.º 1335º, n.º 1 do CPC, pois que admite em diversos momentos a fragilidade e a complexidade da matéria de facto, mas não deixa de proferir decisão que não devia ser incidentalmente decidida.
4. Viola igualmente o disposto no art.º 1335º, n.º 1 (segunda parte), pelos argumentos aludidos em 3., quando não suspende a instância, sendo certo que não sendo tal medida de carácter obrigatório, a pura remissão para os meios comuns quando já decidiu sobre a definição de direitos, não deixa de ser contraditório e redutor das garantias das partes.
5. Viola ainda o art.º 1350º, porquanto deveria o douto tribunal, salvo o devido respeito, ao mesmo tempo que remeteu para os meios comuns, ter-se abstido de decidir, quanto à alegada sonegação de bens, tal como preceitua a norma citada.
6. Nem se diga que o despacho de que se recorre se alicerça no preceituado no art.º 1350º, n.º 3 do CPC, porque a aplicação deste normativo implicaria uma apreciação ainda que sumária da prova, prova essa que não foi produzida.
Os agravados ofereceram contra-alegações a pugnar pelo insucesso do recurso.
O Mmº Juiz a quo manteve, em sede de sustentação, o seu despacho.
Foram obtidos os vistos legais, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
II – Além do que consta do antecedente relatório, são relevantes para a apreciação do recurso os elementos seguintes:
1 – Os agravados reclamaram contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal, por omitir depósitos bancários em nome do inventariado.
2 – Depois de obtidos alguns elementos bancários, foram relacionados adicionalmente os saldos actuais de algumas contas bancárias em nome do inventariado.
4 – Reclamaram novamente os agravados, visando obter o relacionamento do saldo existente em conta do BPI, à data do óbito do inventariado, tendo logo aí suscitado a sonegação de bens e a litigância de má fé da cabeça de casal.
5 – Depois da data do óbito do inventariado, essa conta bancária foi movimentada, através de cheques avulsos, dela tendo sido levantados 111.730,72 €uros.
6 – Por despacho de 23 de Maio de 2004, foi decidido que seria esse o saldo a relacionar pela cabeça de casal.
7 – Nesse mesmo despacho entendeu-se que “não havia prova de que a cabeça de casal actuou com dolo ou má fé ao omitir a existência de depósitos bancários ou ao relacionar apenas os saldos actuais, com omissão dos levantamentos posteriores ao óbito do inventariado, o que poderia ficar a dever-se até à sua ignorância jurídica” (cfr. fls. 54 a 56).
8 – No despacho recorrido, datado de 29 de Outubro de 2004, depois de se relatar as vicissitudes do processo de inventário e o historial dos levantamentos efectuados após o decesso do inventariado, decidiu-se que “a cabeça de casal teria de ter conhecimento da existência desse valor na altura em que elaborou as relações de bens…..e teria necessariamente que ter admitido que aquele valor pertenceria à herança e, não obstante, não procedeu de forma voluntária ao seu relacionamento. Deste modo, não restam dúvidas que a cabeça de casal actuou com dolo….”.
9 – A cabeça de casal invocou que o inventariado, ainda em vida, lhe doou bem como aos filhos aquela importância, razão porque não a relacionou no inventário.
IIIFundamentação de Direito.
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação da agravante (artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), passam pela análise e resolução da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que consiste em determinar se deveriam, ou não, os interessados ser remetidos para os meios comuns quanto à problemática da doação e sonegação de bens suscitadas na reclamação contra a relação de bens adicional.
O inventário tem como finalidade distribuir fiel e equitativamente todo o património de uma herança e nele interessa sobretudo apurar toda a verdade para que a partilha seja efectuada com igualdade e justiça. Não se olvida que, por vezes, nele são incidentalmente suscitadas questões complexas que aconselham a remessa dos interessados para os meios comuns (art.º 1350º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil).
A complexidade ali referida tem a ver apenas com a indagação da matéria de facto, a qual pode eventualmente envolver uma averiguação aturada e circunstanciada com longa duração de prova, que não se compadece com a instrução sumária feita no inventário. A faculdade de remessa para os meios comuns poderá até ser feita, sem a prévia inquirição de testemunhas ou produção de quaisquer provas. Isso, contudo, só deverá suceder se a complexidade for óbvia.
No caso, a questão prende-se com a existência de sonegação de bens por parte da cabeça de casal, actuação necessariamente dolosa (art.º 2096º, n.º 1 do Cód. Civil), que num primeiro despacho (o proferido a 23 de Maio de 2004) se refutou, mas estranhamente, num outro posterior (o recorrido), entendeu verificar-se, cominando-se logo a perda do benefício da cabeça de casal em favor dos restantes co-herdeiros. Não se percebe muito bem tal mudança de sentido decisório. Isto, com base é claro nos elementos que nos chegaram através do recurso instruído em separado. Talvez o processo principal contenha elementos que tal justifiquem.
Dispensamo-nos, contudo, de tal indagar, dado que se nos afigura que, salvo o devido respeito, se ajuizou menos acertadamente quando se concluiu pela existência da sonegação de bens e simultaneamente se remeteram os interessados para os meios comuns relativamente à doação. É que a sonegação e a doação estão intimamente conexionadas. A existência da sonegação de bens é obviamente incompatível com a doação, cuja ocorrência inviabiliza, em princípio, aquela. Vale isto por dizer que se o dinheiro foi doado à cabeça de casal e seus filhos é patente que aquela não o sonegou ao omitir o respectivo relacionamento. Poderia perfeitamente estar convencida de que, nesse caso, não teria que relacionar tal depósito, o que afastaria o dolo indispensável à sonegação.
Se assim é, não se vê motivo para, de imediato, se decidir pela existência de sonegação e simultaneamente se determinar a remessa dos interessados para os meios comuns quanto à problemática da doação. É que, se por hipótese ali vier a ser considerado que houve, na verdade, doação do dinheiro, quedaria sem qualquer sentido a decidida sonegação. Quer dizer as duas questões (sonegação/doação) têm que ser decididas já, no inventário, se não apresentarem complexidade no que concerne à indagação da matéria de facto, ou então, remetidas para os meios comuns se eventualmente envolverem uma averiguação aturada e circunstanciada com longa duração de prova, juízo a emitir pelo Mm.º Juiz a quo. Decidir no inventário a sonegação (isto, sem deixarmos de reconhecer que o historial dos diversos passos do depósito e datas do óbito do inventariado bem como do levantamento, através de cheque avulso, inculcarem seriamente a hipótese de sonegação) e remeter para os meios comuns a doação é que não parece nem aconselhável nem acertado. Há que decidir as duas questões (sonegação/doação) em simultâneo e, se possível, no inventário, ainda que convidando os interessados a produzir prova. Tais questões têm que ser criteriosamente apreciadas e decididas, pois versam sobre problema delicado a envolver consequência bem gravosa (perda do direito da agravante no depósito – art.º 2096º, n.º do Cód. Civil), o que não poderá deixar de ancorar em alicerces sólidos e não merecedores de quaisquer abalos. Para isso, há que conceder previamente aos interessados as necessárias garantias na instrução do suscitado incidente, através do convite à produção de prova.
Procedem, pois, em parte as conclusões da agravante, a quem assiste razão em se insurgir contra a douta decisão da 1ª instância, que, a nosso ver, e sem quebra do devido respeito, não terá feito a melhor interpretação dos art.ºs 1336º, n.º 2, 1349º, n.º 4, 1350º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil e 2096º, n.º 1 do Cód. Civil.
IV - Decisão
Nos termos expostos, decide-se conceder provimento ao agravo e consequentemente revogar o despacho recorrido, ordenando que o mesmo seja substituído por outro, que decida da sonegação/doação, ainda que convidando os interessados a produzir prova, ou, então, remeta toda essa problemática para os meios comuns.
Custas pelos agravados.
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Coimbra, 27 de Setembro de 2005