Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
102/08.5TBCDN-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: RECURSO
REGIME
INUTILIDADE ABSOLUTA
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REJEITADO
Legislação Nacional: ARTºS 685º-C, Nº 5, E 691º, NºS 1, 2 E 3 DO CPC (REDACÇÃO DO DEC. LEI Nº 303/2007, DE 24/08).
Sumário: I – No novo regime de recursos resultante do Dec. Lei nº 303/2007, de 24/08, da decisão do tribunal de 1ª instância que ponha termo ao processo cabe recurso de apelação (artº 691º, nº 1, CPC).

II – Cabe ainda recurso de apelação das decisões do tribunal de 1ª instância previstas no nº 2 do artº 691º CPC.

III – As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final ou do despacho previsto na al. l) do nº 2 (artº 691º, nº 3, CPC).

IV – O despacho de 1ª instância que admita o recurso aí interposto não vincula o Tribunal da Relação (artº 685º-C, nº 5, CPC), nada impedindo este Tribunal de reapreciar a questão da admissibilidade ou não do recurso, tarefa que compete ao Relator do processo (artºs 700º, nº 1, al. b), e 704º, nº 1, CPC).

V – A figura da “inutilidade absoluta do recurso” colocava-se anteriormente à reforma operada pelo Dec. Lei nº 303/2007 relativamente à subida imediata ou diferida dos agravos, estabelecendo o artº 734º, nº 2, do CPC então em vigor que, entre outros, subiam imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.

VI – Os contornos de tal figura permanecem inalterados, já que a actual impugnação de decisões interlocutórias com o recurso da decisão final equivale, em traços largos, à anterior retenção dos agravos.

VII – Tais contornos constituíam, na vigência do anterior artº 734º, nº 2, do CPC, questão que motivou algumas decisões da jurisprudência, sendo unânime a ideia de que a inutilidade que se pretendia evitar era apenas a do recurso, em si mesmo, e não a de actos processuais entretanto praticados.

VIII – Esta inutilidade verifica-se sempre que o despacho recorrido produza um resultado irreversível, de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil, mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição.

Decisão Texto Integral:          Acordam em conferência na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A.... ,..., residente ....,

         B... e mulher C...., residentes ....,

         D.... e mulher E...., residentes ..... e

         ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO do prédio sito na F...., representada por G...., residente na....,

         Intentaram acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra H...., ..., residente na .....,

         Pedindo a condenação da R.:

         a) A reconhecer a existência de todos os vícios de construção existentes nas partes comuns do prédio sito na .... e nas fracções “B” , “C” e “E” que o compõem, descritos ao longo da presente petição e constantes no relatório de vistoria junto nesta peça processual, e que são da sua responsabilidade a reparação dos mesmos, condenando-se a R. a proceder a essa reparação, eliminando-os e corrigindo-os, ou, não o fazendo voluntariamente, subsidiariamente,

         b) Condenar a R. ao pagamento de 700,00€ à 1ª A. A...; 200,00€ aos 2ºs AA. B... e C....; de 700,00€ ao 3º A. D... e 4.000,00€ á 4ª A. Administração do Condomínio, e ainda tudo mais que cada um dos AA. vier a despender com as obras de reparação e substituição de materiais e custos de mão-de-obra, excesso este a liquidar em execução de sentença.

         c) A indemnizar a 1ª, os 2ºs e 3º (s) AA. pelo tempo que os seus estabelecimentos comerciais estiverem encerrados para que se possam levar a cabo as obras de reparação das suas fracções, indemnização esta cujo valor se relega apurar a final, em sede de execução de sentença.

         d) Mais deve a R. ser condenada em custas e demais encargos legais.

         A R. contestou tendo, além do mais, arguido a excepção da sua ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, já que a acção deveria ter sido proposta também contra os sucessores do seu falecido marido.

         Findos os articulados, foi, em 12/12/2008, proferido o despacho certificado a fls. 227/228, pelo qual, entre outros assuntos que aqui não relevam, foram os AA. convidados, “ao abrigo do disposto no artº 508º/1, al. a) e 265º/2 do Código de Processo civil, a suprir a excepção da ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário (artº 26º, 28º/1 e 2091º do Código Civil), mediante o incidente processual legalmente previsto”.

         Em 08/02/2009 foi proferido novo despacho, certificado a fls. 231, com teor seguinte:

         “Fls. 261 a 282:

         O suprimento da ilegitimidade apenas pode ocorrer mediante accionamento do incidente de intervenção processual provocada de todos os sucessores da herança de I...., como se refere no despacho de fls. 256 e 257 e não através do aperfeiçoamento da petição inicial.

         Face ao exposto, renovo o despacho de fls. 256 e 257 e determino o desentranhamento do articulado de fls. 260 a 283.

         Prazo: 10 dias.

         Custas pelos Autores com taxa de justiça que se fixa em 1 UC.

         Notifique.”

         Em 13/02/2009, a R. enviou o requerimento certificado a fls. 233/234, alegando que “não se vislumbra qualquer fundamento para o Despacho ora notificado” e pedindo, com tal fundamento, a respectiva aclaração.

         E, em 26/02/2009, interpôs recurso, incluindo no requerimento a respectiva alegação[1], encerrada com as seguintes conclusões:

[…………………………………………………………..]

          

Com data de 14/04/2009, foi proferido o despacho certificado a fls. 38, indeferindo o pedido de aclaração formulado pela recorrente e admitindo o recurso como apelação, com subida imediata e em separado[2].

Os recorridos responderam pugnando pela inadmissibilidade do recurso e pela manutenção do despacho sob censura.

A recorrente foi notificada da resposta e nada contrapôs (artºs 703º, nº 2 e 704º, nº 2 do Cód. Proc. Civil).

Já neste Tribunal da Relação foi pelo Relator proferido o despacho de fls. 242 a 246, considerando o recurso inadmissível e, consequentemente, por não haver que conhecer do seu objecto, julgou-o findo.

         Irresignada, a recorrente H... reclamou para a conferência com vista a obter acórdão que revogue o despacho do Relator, julgue admissível o recurso e conheça do seu objecto.

         Os recorridos não responderam.

         Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

         A única questão que, por ora, se coloca é a de saber se o recurso é ou não admissível e, consequentemente, se deve ou não esta Relação conhecer já do seu objecto.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Os factos e trâmites processuais relevantes para a decisão da questão colocada são os resultantes do relatório antecedente, que aqui se dá como reproduzido.


***

         2.2. De direito

         No despacho do Relator, objecto da reclamação, fundamentou-se a inadmissibilidade do recurso do modo seguinte:

         “Tendo a acção sido intentada em 2008/03/14 (cfr. fls. 100), é-lhe aplicável o regime dos recursos introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (cfr. artºs 11º, nº 1 e 2º, nº 1) que acabou com os agravos e reduziu os recursos ordinários à apelação e à revista.

         Neste novo regime, da decisão do tribunal de 1ª instância que ponha termo ao processo cabe recurso de apelação (artº 691º, nº 1).

         Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância:

         a) Decisão que aprecie o impedimento do juiz;

         b) Decisão que aprecie a competência do tribunal;

         c) Decisão que aplique multa;

         d) Decisão que condene no cumprimento de obrigação pecuniária;

         e) Decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;

         f) Decisão que ordene a suspensão da instância;

         g) Decisão proferida depois da decisão final;

         h) Despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa;

         i) Despacho de admissão ou rejeição de meios de prova;

         j) Despacho que não admita o incidente ou que lhe ponha termo;

         l) Despacho que se pronuncie quanto à concessão da providência cautelar, determine o seu levantamento ou indefira liminarmente o respectivo requerimento;

         m) Decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;

         n) Nos demais casos expressamente previstos na lei (artº 691º, nº 2).

         As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final ou do despacho previsto na alínea l) do nº 2 (artº 691º, nº 3).

         A decisão impugnada através do recurso interposto pela R. H... não põe termo ao processo, pelo que, para poder ser objecto de recurso autónomo teria de se enquadrar na previsão de qualquer das alíneas do nº 2 do artº 691º.

         A única em relação à qual a hipótese poderia colocar-se é a alínea m), segundo a qual cabe recurso de apelação das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.

         A referência feita no despacho de admissão do recurso (fls. 38) a essa alínea inculca que foi aí que o Mº Juiz “a quo” encontrou arrimo para tal admissão.

         Como essa decisão não vincula esta Relação (artº 685º-Cº, nº 5), nada impede que se reaprecie a questão da admissibilidade do recurso, tarefa que compete ao Relator, uma vez que a eventual inadmissibilidade integra um obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso (artºs 700º, nº 1, al. b) e 704º, nº 1).

         A questão passa, pois, por saber se a impugnação da decisão em causa com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.

         A figura da inutilidade absoluta do recurso colocava-se anteriormente à reforma operada pelo Decreto-Lei nº 303/2007 relativamente à subida imediata ou diferida dos agravos, estabelecendo o artº 734º, nº 2 do Cód. Proc. Civil então em vigor que, entre outros, subiam imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.

         Os contornos de tal figura permanecem, a nosso ver, inalterados, já que a actual impugnação de decisões interlocutórias com o recurso da decisão final equivale, em traços largos, à anterior retenção dos agravos.

Tais contornos constituíam, na vigência do artº 734º, nº 2 aludido, questão que motivou algumas decisões da jurisprudência, sendo, segundo cremos, unânime a ideia de que a inutilidade que se pretendia evitar era apenas a do recurso, em si mesmo, e não a de actos processuais entretanto praticados[3].
“Esta inutilidade verifica-se sempre que o despacho recorrido produza um resultado irreversível (cfr. RC 5/5/1981, BMJ 310, 345), de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil (cfr. RL – 29/11/1994, BMJ 441, 390), mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição (RL – 30/6/1992, CJ 92/3, 254)[4].
Assim, por exemplo, tinha subida imediata o agravo interposto da decisão de suspensão da instância (cfr. art° 276°)[5], porque, se assim não sucedesse, o recurso só subiria depois de terminada a suspensão e a eventual revogação do despacho que a determinou não produziria quaisquer efeitos[6].

No caso “sub judice”, o recurso foi interposto do despacho certificado a fls. 231, que renovou anterior decisão convidando os AA. “ao abrigo do disposto no artº 508º/1, al. a) e 265º/2 do Código de Processo civil, a suprir a excepção da ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário (artº 26º, 28º/1 e 2091º do Código Civil), mediante o incidente processual legalmente previsto”.
É para nós claro que a impugnação de tal despacho com o recurso da decisão final apenas poderá, eventualmente, isto é, no caso de vir a ser procedente, provocar a inutilização dos actos posteriores ao despacho em causa, os quais, podendo perfeitamente ser repetidos, não retiram à impugnação, em si mesma, a sua utilidade.
Por isso, entende-se que, sem prejuízo da possibilidade de impugnação com o recurso da decisão final (artº 691º, nº 3), aquele despacho não é susceptível de recurso autónomo.
A inadmissibilidade do recurso constitui obstáculo ao conhecimento do objecto do mesmo e justifica que seja julgado findo [artº 700º, nº 1, als. b) e h)]
Consequentemente, pelos motivos indicados, abstém-se esta Relação de conhecer do objecto do recurso, julgando-o findo.
As custas são a cargo da recorrente.
Notifique e dê baixa.”
A reclamante insiste que a impugnação da decisão recorrida com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.
Tendo bem presente que não deve ser confundida a inutilidade da impugnação a final com a eventual inutilização de actos processuais entretanto praticados, merece inteiro acolhimento e confirmação o despacho objecto da reclamação, no qual se explicou com clareza a figura e os contornos da inutilidade absoluta da impugnação.
Resta acrescentar que, como decorre do relatório que constitui a primeira parte desta peça processual e contra o que a reclamante afirma, o despacho impugnado não se enquadra em qualquer outra das alíneas do nº 2 do artº 691º do Cód. Proc. Civil, nomeadamente na alínea j), pois que do seu teor não resulta a não admissão ou o termo de qualquer incidente, v. g., de intervenção de terceiros.

***

         3. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em confirmar o despacho reclamado e, consequentemente, em considerar inadmissível o recurso e não havendo, por isso, que conhecer do seu objecto, em julgá-lo findo.
As custas são a cargo da reclamante.


[1] O requerimento (e a alegação nele incluída) foi dirigido ao Tribunal Judicial de Condeixa-a-Nova, aí tendo dado entrada. Contudo, na parte relativa à alegação, a recorrente dirige-se ao Tribunal da Relação de Lisboa e não ao de Coimbra, o que nos parece integrar um mero lapso material de escrita sem quaisquer consequências processuais, uma vez que o recurso foi oportunamente enviado ao Tribunal competente para dele conhecer: a Relação de Coimbra.
[2] Posteriormente, em 16/06/2009, foi proferido o despacho certificado a fls. 94, fixando ao recurso efeito meramente devolutivo.
[3] No Ac. do STA de 17/12/1974, in Acórd. Doutrin. Do STA, 160º - 557, afirmou-se que “recurso cuja retenção o tornaria absolutamente inútil é apenas aquele cujo resultado, seja ele qual for, devido à retenção já não pode ter qualquer eficácia dentro do processo, mas não aquele cujo provimento possibilite a anulação de alguns actos, incluindo o do julgamento, por ser isso um risco próprio ou normal dos recursos diferidos”.
  No Ac. Rel. Lisboa de 10/07/1978, in CJ, 1978, 4º, 1313, decidiu-se que “o agravo torna-se absolutamente inútil quando a sua decisão, ainda que favorável ao recorrente, já lhe não pode aproveitar”.
  No Despacho do Presidente da Rel. Do Porto, de 29/07/1984, in CJ, 1984, 4º, 195, escreveu-se que “na retenção inutilizante do agravo há que distinguir a inutilização (eventual) dos actos processuais – admitida – e a inutlização absoluta do recurso em si, essa, sim, proibida”.
  Já no domínio do regime dos recursos introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, 2007, pág. 182/183, afirma que “… não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso decretado em momento ulterior não passará de uma «vitória de Pirro», sem qualquer reflexo no resultado da acção”.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, pág. 535.
[5] Cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. VI, pág. 111; Castro Mendes, Direito Processual civil, Recursos, edição da AAFDL, 1980, pág. 165; e M. Teixeira de Sousa, obra e local citados.
[6] No Ac. Rel. Lisboa de 10/07/1978, já mencionado, entendeu-se que “tendo-se reclamado da indicação no processo da importância correspondente a despesas a efectuar com expedição de carta rogatória, por exorbitante, o agravo do despacho que decidiu ordenar o depósito dessa quantia, ainda que condicionalmente, e só depois decidir a reclamação deve subir imediatamente.
  E não sobe imediatamente, nos termos do artº 734º, nº 2 do CPC, mas diferidamente, nos termos do artº 735º, nº 1, o recurso de agravo interposto do despacho que manda desentranhar a contestação – Ac. Rel. Lisboa de 07/04/1978, in CJ, 1978, 2º, 464.