Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ESTEVES MARQUES | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS PROVA | ||
Data do Acordão: | 04/22/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE ALBERGARIA-A-VELHA – 1º J | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 171º CP | ||
Sumário: | 1. A prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. 2. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador. | ||
Decisão Texto Integral: | RELATÓRIO Em Processo Comum Colectivo do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-A-Velha, por acórdão de 08.11.03, foi, além do mais, decidido, condenar o arguido C..., como autor material de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 172º nº 1 CP, na pena de três anos de prisão. Inconformado o arguido interpôs recurso do acórdão, concluindo na sua motivação: 1º Atendendo, essencialmente, às declarações da menor A... e ao depoimento do Arguido, impunha-se que se desse como não provados os factos constantes na secção II) nº 1 1ª parte, 4, 5, 6, 7 2ª parte e 8, devendo, ser a Douta Decisão de que se recorre alterada, considerando-se aqueles factos como não provados; 2º Não se fazendo prova sobre se na verdade os factos ocorreram, dada a discrepância entre o que a menor referiu em fase de inquérito e o que relatou em audiência de discussão de julgamento, gerou-se sérias dúvidas sobre se os factos de que o Arguido está acusado, sucederam, pelo que considera este ter sido violado o principio do in dúbio pró réu, consagrado no art.o 32º da CRP. 3.0 Na fase de inquérito e perante a prova produzida em julgamento, continua o Arguido a manifestar a sua inocência quanto ao crime a que foi condenado, pelo que deveria a decisão final ser de absolvição; 4º Contudo, mesmo que Vªs Exªs assim não considerem, que só por mera hipótese se admite, devem Vªs Exªs Decidir pela verificação dos pressupostos para que a pena de prisão seja suspensa na sua execução, atendendo à pena aplicada (in casu, três anos) e ao juízo de prognose favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição geral e especial; 5º In casu, atendendo-se à personalidade do Arguido (cit. "pessoa trabalhadora e respeitadora", ponto 14, Secção li, dos factos provados do Acórdão recorrido), às condições da sua vida (individuo integrado familiar, social e profissionalmente (ponto 10, 11, 12 e 13, Secção II, dos factos provados) e à conduta anterior e posterior ao crime (antecedentes criminais "de pouca gravidade" cometidos em 2003, ponto 15, Secção II, dos factos provados), impunha-se a suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art.o 50.° nº 1 Cód. Penal, na redação da Lei nº 59/2007 de 04/09, em vigor desde 15/09/07). 6.° O Douto Acórdão recorrido violou as normas dos artigos 40.°,70.°,71.° e 72.°, todos, do Código Penal. Os Mm. Juizes "a quo" não consideraram aquando da aplicação da pena de prisão efectiva os pressupostos que deveriam ter sido atendidos para a sua suspensão, pois in casu o juízo de prognose é favorável ao Arguido, não se prevendo que o Arguido possa vir a cometer novos crimes, desta ou de outra natureza, se tiver pendente uma pena de prisão.. O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente. O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, emitiu douto parecer no sentido do improvimento do recurso. Colhidos os vistos, cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO
* Face ao conteúdo das conclusões, as questões colocadas no recurso são as seguintes: - Quanto à matéria de facto dada como provada nos pontos 1, 1ª parte, 4, 5, 6, 7, 2ª parte e 8, entende haver o vício de erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; - Suspensão da pena aplicada. Passemos à sua apreciação. A) Da matéria de facto Conforme se alcança da leitura da motivação, a conclusão do recorrente ao pretender que sejam dados como não provados os factos referidos nos pontos 1, 1ª parte, 4, 5, 6, 7, 2ª parte e 8, assenta na argumentação de que subjacente está a verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova; Sucede porém que ao longo da motivação aquilo que verdadeiramente o arguido faz é impugnar a referida matéria de facto. Em suma o recorrente assenta a invocação dos vícios na impugnação que faz da matéria de facto, o que não é admissível. Mistura assim o recorrente questões que são substancialmente diferentes e que não se podem de modo algum confundir. A saber: erro de julgamento e vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova. É que o primeiro só existirá quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que tivesse sido feita prova do mesmo e como tal deveria ter sido considerado não provado. Ou então quando se dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Por sua vez o vício do erro notório na apreciação da prova a que alude o artº 410º nº 2 c) CPP, nada tem a ver com aquele. Com efeito Como escrevem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740. “ Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.” Por sua vez há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410º nº 2 a) CPP), quando da factualidade vertida na decisão se verifica faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Como se refere no AcSTJ 97.11. (citado por Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, Vol. II, pág. 752), quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz. Contudo há que ter presente que os referidos vícios têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, isto é do próprio acórdão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum (artº 410º nº 2 CPP), não sendo admissível a consulta a outros elementos que constem do processo. Assim as raízes de tais vícios têm de estar implantadas na decisão recorrida. Ora no presente caso, ao fim e ao cabo o que o recorrente pretende é que a prova produzida não pode levar a que aquela factualidade tivesse sido dada como provada. Daí que invoque vários depoimentos prestados para colocar em causa a matéria de facto que foi dada como provada e devidamente identificada. É pois patente que a alegação nada tem a ver com tais vícios, mas apenas com a divergência sobre a forma como o tribunal apreciou a prova. Seja com for, não deixará este tribunal de interpretar o recurso interposto como pretendendo dirigir-se à impugnação da matéria de facto. É o que faremos de seguida. Pois bem para a impugnação dos referidos pontos o arguido invoca as suas declarações, o depoimento prestado pela menor, que considera contraditório e inseguro e os depoimentos prestados por C…, S… e M… . Vejamos. Como é sabido o artº 127º CPP estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo. Como refere Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”. Daí que haja necessidade de tais comprovações serem sempre motivadas. Por outro lado a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade é que uma coisa é ouvir, ver, apreciar gestos, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente, é ouvir gravações . E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. Alberto dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio das livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”. E estes factores têm de ser tidos em conta mesmo no caso dos presentes autos, em que as provas se encontram gravadas. De resto, e como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas antes constitui um mero remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre tal matéria. Vejamos então em pormenor a relevância dos referidos depoimentos e declarações relativamente à facticidade impugnada. Porém antes de mais recordemos os factos em questão: 1) Em data não concretamente apurada, durante o ano de 2003, o arguido C... avistou a menor A… na Rua C…, desta comarca de Albergaria-a- Velha, junto da sua residência, e disse àquela para ir a sua casa, porque lhe queria mostrar uma coisa. 4) Entretanto, o arguido C... fechou a porta da casa e empurrou aquela para cima da cama, manifestando a A... vontade de abandonar o local. 5) Logo a seguir, o arguido C... retirou-lhe a roupa, baixou as suas calças e cuecas e sentou-se na beira da cama, apalpando depois os seios e a zona genital da A.... 6) Na mesma altura, o arguido C... esfregou a vagina daquela com um dedo e puxou a mão da mesma para junto do seu pénis, dizendo-lhe que o esfregasse, o que ela não fez. 7) A A... nasceu no dia 15 de Junho de 1993, tendo, na altura, nove ou dez anos de idade. 8) Ao actuar da forma descrita, o arguido C... agiu sempre com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo que a A..., cuja idade conhecia, não pretendia ter qualquer contacto sexual com ele. Estes os factos. Pois bem como é sabido a prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador. Começa então o recorrente por dizer que não foi concretizada a data em que os factos ocorreram. Na verdade da audição do depoimento prestado pela menor A..., verifica-se que esta refere que quando os factos ocorreram “ tem ideia que estava de férias de Páscoa de 2003… que passado um dia ele não estava lá que se tinha ido embora de casa”. Por sua vez o arguido e a testemunha C…, actual sua companheira, referem ter ido para o Algarve em Dezembro de 2003. No que concerne à descrição dos factos alegadamente ocorridos, temos que o arguido os nega peremptoriamente, enquanto a versão apresentada pela ofendida em julgamento é substancialmente diferente daquela que relatou em 04.08.23 na Polícia Judiciária e que viria a ter consagração na acusação. Assim ouvida na Polícia Judiciária, a ofendida disse que o arguido a levou para casa dele e mostrou-lhe no quarto um vídeo pornográfico, depois de trancar a porta. Ouvida em julgamento disse que a porta do quarto não foi trancada. Na PJ referiu que “ enquanto o vídeo era apresentado o C... empurrou a menor para cima da cama, retirou-lhe toda a roupa, baixou as calças e as cuecas dele e sentou-se na beira da cama, apalpando-lhe os seios, o peito e a zona genital. Com o dedo esfregou a vagina da menor, fazendo-lhe doer. Puxou a mão da depoente para o pénis dele, tentando que ela o esfregasse. Como se opunha, ele não conseguia os seus intentos. Perguntada disse que o pénis estava mole. De seguida disse à menor que ia à casa de banho… enquanto este estava na casa de banho, a menor vestiu-se e destrancou a porta. Mais referiu que a situação se repetiu umas quatro ou cinco vezes e que se passava tudo mais ou menos da mesma forma, que o C... sempre a despia na cama do quarto dele, umas vezes durante tais filmes, outras não. Que chegou a estar sobre a cama despida de barriga para baixo enquanto ele estava sentado a apalpá-la e a tentar beijá-la na boca. Em julgamento e depois de lhe ter sido lido esse depoimento, diz que ele não a empurrou, que deu “ um jeito para se deitar na cama”, que “não se despiu em cima da cama, isso não aconteceu, de barriga para baixo não, e ele ter metido o dedo na vagina não, é mentira, nem esfregado por dentro não e só foi naquele dia”. Acrescenta ainda que ele abriu o fecho das calças e que “ agarrou a mão da menor para pôr lá e eu não pus… que não tirou o pénis para fora”. Ora tantas contradições comprometem a certeza dos factos relatados pela ofendida. Qual é então a versão correcta dos factos ? Será aquela que relatou à PJ e que serviu de suporte à acusação ou a que apresentou em julgamento ? Como poderá este Tribunal acreditar que foi a versão dada em julgamento, quando nega a ocorrência de factos importantes que anteriormente havia relatado, sendo certo que se tratam de situações verdadeiramente traumáticas e que não se esquecem ? É que em julgamento a ofendida nega exactamente a ocorrência dos factos mais graves. Para além disso refere que isso apenas se passou uma única vez, quando antes disse ter-se repetido quatro ou cinco vezes. Ora quem refere ter vivido uma tal experiência durante quatro ou cinco vezes não é possível que depois as esqueça e reduza a um único episódio Com tais contradições, omissões e negações relativamente às alegadas ocorrências bem como ao modo da sua concretização, existentes nas declarações da ofendida relativamente à facticidade que esteve na origem do despacho de acusação e a versão que agora decidiu apresentar em julgamento, deixam-nos muitas dúvidas sobre a verdade dos factos relatados, os quais, curiosamente também só foram denunciados cerca de um ano depois da sua alegada ocorrência. É que não há qualquer razão que justifique que a assistente altere tão radicalmente a versão quanto a pontos essenciais. E não são aspectos de pormenor ou laterais. Na verdade se é certo que face ao tempo decorrido, o desgaste psicológico pode interferir na objectividade da vítima, o que é certo também é que nada disso pode justificar que a ofendida apresente em julgamento uma versão dos factos em que omite exactamente aqueles que alegadamente foram os mais graves e que, naturalmente seriam aqueles que, a terem sido praticados, teriam causado um maior trauma e que por isso nunca se poderiam esquecer. Daí que o tribunal face um discurso tão inconsistente, não possa atribuir-lhe qualquer credibilidade e, consequentemente se considerem não provados os factos que foram dados como provados nos pontos 1, 1ª parte, 4, 5, 6, 7, 2ª parte, 8 e 9. Do descrito se conclui não haver o arguido cometido o crime por que vinha condenado e, como tal o acórdão na parte impugnada, não pode subsistir, impondo-se a absolvição do recorrente. DECISÃO
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