Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
263/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ORLANDO GONÇALVES
Descritores: INIMPUTÁVEL PERIGOSO
SUSPENSÃO DA MEDIDA DE INTERNAMENTO
Data do Acordão: 03/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Legislação Nacional: ARTIGOS 20°, N.1, 40.º, N. ºS 1 E 3, 91° E 98°, N. º1, DO CÓDIGO PENAL.
Sumário:

I - A ideia de que a medida de internamento é fortemente nociva vem sendo consolidada nos últimos anos, pois que o internamento faz perder o contacto com a família e toda a realidade exterior .
II - A evolução dos psicofármacos permite crescentemente, quando não a cura, pelo menos, um cada vez maior controlo das doenças mentais.
III - O propósito socializador deve, sempre que possível, prevalecer sobre a intenção de segurança.
IV - Deste modo e tendo em vista que segundo o parecer médico constante dos autos é possível corrigir, em meio livre, os comportamentos anti-sociais do arguido, com apoio médico, psiquiátrico e psicológico, deve ser decretada a suspen-são da execução do internamento, sob condição de cumprimento das regras de conduta convenientes, tanto mais que a libertação do arguido não se revela incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Decisão Texto Integral:
Acordam , em audiência , na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra .

Relatório

Pelo 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro , sob acusação do Ministério Público , foi submetido a julgamento em processo comum , com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido
AA, solteiro, sem profissão, nascido a 28.06.1985, natural da freguesia de Glória, concelho de Aveiro, de nacionalidade portuguesa, filho de BB e de CC, residente na R. de DD, Aveiro ,
imputando-se-lhe condutas correspondentes à autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 2 (dois) crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, e de 1 (um) crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal .
Face à inimputabilidade do arguido em razão de anomalia psíquica, visto padecer de debilidade mental ligeira, e perigosidade, em virtude da gravidade dos factos ilícitos típicos praticados e da forte probabilidade de vir a cometer novos factos de idêntica natureza, solicita o Ministério Público a aplicação ao mesmo de uma medida de segurança de internamento, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 20.º e 91.º e seguintes, do Código Penal.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Colectivo , por acórdão proferido a 11 de Novembro de 2003 , decidiu :
- Julgar o arguido AA autor de factos que correspondem aos seguintes ilícitos típicos: dois roubos, p.ºs e p.ºs cada um pelo art. 210.º, n.º 1, do Código Penal ; e um furto p. e p. pelo art. 203.º, do Código Penal .
- Declarar tal arguido inimputável, relativamente aos mencionados ilícitos, e perigoso.
- Determinar a aplicação ao arguido de medida de internamento na instituição onde o mesmo se encontra actualmente - Hospital Sobral Cid, em Coimbra (V. fis. 201) - que terá a duração mínima de 3 (três) anos e cessará quando cessar o seu estado de perigosidade criminal, sem que possa exceder 8 (oito) anos, devendo ter-se em conta o tempo de permanência do arguido em tal instituição a título de internamento preventivo.
- Declarar perdidas a favor do Estado as 3 chaves próprias para viaturas de marca Fiat e a gazua apreendidas ao arguido, por terem servido para a prática de crimes e existir o risco de o virem de novo a ser (art. 109.º, do CP), determinando-se desde já a sua destruição caso se venha a apurar não possuírem valor comercial.
Relativamente ao isqueiro e dois telemóveis referidos a fls. 42 dos autos, caso os mesmos não tenham sido reclamados no prazo legal, declara-se a sua prescrição a favor do Estado (art.14.º, do Dec. 12487, de 14.10.1926) - vide fls. 355 e 381 dos autos).

Inconformado com o douto acórdão dele interpôs recurso o arguido José António Almeida Jesus , concluindo na sua motivação :
1 - Existe insanável contradição, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 b) do art.410.º do C.P.P., entre a prova da inimputabilidade do arguido e a prova de que o mesmo praticou os factos correspondentes aos ilícitos típicos de roubo, p. e p. no art.210.º n.º 1 CP, e furto p. e p. no art. 203.º do Código Penal “sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” .
2 - Constando da douta acusação deduzida, referindo-se ao agente, que “não obstante os seus comportamentos podem ser corrigidos” tal constitui matéria de facto de que o tribunal podia e devia conhecer, nos termos do disposto no n.º 2 do art.374.º do C.P.P., e que possui relevância para a boa decisão da causa. Termos em que sendo o douto acórdão sob recurso omisso sobre tal facto é o mesmo nulo de acordo com o disposto no n.º 1 do art.379.º do C.P.P. .
3 - O facto de o agente ter abandonado o veículo FF longe do local onde o encontrou não permite, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, concluir que fosse intenção do mesmo apropriar-se do veículo ou dos bens no seu interior. Pelo contrário entende-se que indicia fortemente que a intenção daquele seria apenas a de se fazer transportar de um local para outro.
O tribunal ad quo terá tido dúvidas quanto à intenção do agente, como resulta das expressões em condicional utilizadas na sua douta fundamentação, decidindo em desfavor do agente.
Termos em que violou o douto acórdão sob recurso o principio in dúbio pro reo e as normas plasmadas nos art.ºs 127.º do C.P.P. e 342.º do C.C..
4 - O agente apresenta perigosidade apenas para crimes contra o património e em anterior processo foi declarado como destituído de qualquer perigosidade. Os seus comportamentos podem ser corrigidos mediante acompanhamento médico adequado. Para esse acompanhamento com vista à correcção dos seus comportamentos é medicamente desaconselhável o regime de internamento. Existem condições para um acompanhamento médico e social do agente. Dentro do tipo legal do crime de roubo os factos praticados pelo agente revelam um baixo grau de ilicitude tanto quanto ao grau de violência utilizado contra as pessoas como em relação aos valores patrimoniais postos em causa, o que permite concluir que a libertação do mesmo não é incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Termos em que existem motivos para considerar que o arguido não voltará a praticar factos da mesma espécie e não deveria o seu internamento ter sido ordenado. Ao decidir em sentido contrário violou o douto acórdão sob recurso o disposto nos n.º s 1 e 2 do art.91.º do Código Penal .
5 - Se é possível afirmar como o fez o douto sob recurso que a simples ameaça da efectivação do internamento seria por si só insusceptível de afastar o agente de comportamentos anti-sociais, é também possível afirmar que a ameaça de efectivação conjugada com as medidas de acompanhamento médicas e sociais previstas no art.98.º do C.P. e eventualmente até com condições que ao agente fossem impostos nos termos do art.52.º C.P. seria susceptível de o fazer.
A esta ultima conclusão obriga o facto médico de os comportamentos do agente serem corrigiveis, sendo que é adequado para a correcção desses comportamentos anti-sociais o tratamento fora do regime de internamento.
Acrescente-se que a perigosidade do agente é reduzida ( foi em anterior processo declarado como destituído da mesma e no presente considerou-se apenas existir para os crimes contra o património ) e que no anterior processo por que foi julgado, foi libertado sem qualquer acompanhamento posterior e sem qualquer ameaça de efectivação de internamento, ao contrário do que agora, a ser suspenso o internamento, necessariamente sucederia por força do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 98.º do C.P..
Termos em que é razoável esperar que com a suspensão da medida de internamento se possa ainda alcançar o fim da mesma, ou seja, evitar a prática de factos da mesma espécie por parte do agente, sendo certo que a ser a mesma suspensa não existiria qualquer incompatibilidade com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Ao decidir em sentido contrário violou o douto acórdão sob recurso o disposto nos art.ºs 127.º C.P.P. e 98.º do C.P..

O Ministério Público na Comarca de Aveiro respondeu ao recurso pugnando pela manutenção integral do acórdão recorrido .

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso , embora admitindo que o furtum rei , relativamente ao veículo automóvel, pode soçobrar para furtum usus .

Cumprido o disposto no art.417.º , n.º2 do Código de Processo Penal não houve resposta .

Colhidos os vistos e realizada a audiência , cumpre decidir .

Fundamentação

É a seguinte a matéria apurada na audiência de julgamento :

Factos provados
a) Entre as 22.00 horas de 15.01.2003 e as 05.30 horas de 16.01.03, na EE, nesta cidade e área desta comarca de Aveiro, o arguido AA acercou-se do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula FF, com o quadro ZFA14600001723447, no valor de cerca de 500,00 Euros, que aí se encontrava estacionado e pertencia à ofendida GG.
Então, com o auxílio de uma gazua, feita a partir de uma vareta de óleo, o arguido abriu as portas da referida viatura, onde entrou.
De imediato, de forma não apurada, colocou-a em funcionamento e abandonou o local, fazendo-se transportar na viatura, que assim fez sua, bem como os seguintes objectos, contidos no seu interior, com o valor global não apurado: documentação do veículo, uma mochila escolar de cor verde, marca Camps Player, contendo livros escolares, dois CDs Rec Power, um frasco de loção solar, quatro lâminas wilkinson, uma estatueta em forma de bruxa, dois tubos de creme “Decubal”, um colar com fio em forma de sol, em metal, e um estojo em palha, contendo 10 canetas, 3 marcadores e minas.
Alertadas as autoridades policiais, veio aquele veículo a ser localizado no Bairro da Teixugueira, junto do Centro de Saúde de Estarreja, tendo sido recuperados todos os mencionados objectos, que foram entregues à sua legítima proprietária.
O arguido tinha conhecimento de que os referidos objectos não lhe pertenciam e que a sua conduta era contrária à vontade do proprietário, tendo agido com o propósito conseguido de os fazer seus.
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
b) No dia 06.02.2003, pelas 16.30 horas, os ofendidos HH e II, de 14 anos de idade, seguiam a pé pela Rua de Viseu, em Esgueira, área desta comarca de Aveiro.
Então, de comum acordo e em conjugação de esforços, o arguido, conjuntamente com o JJ e outro indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, abordaram e rodearam os ofendidos, pedindo-lhes dinheiro.
Tendo os ofendidos respondido não terem consigo tal quantia, o arguido e os seus acompanhantes disseram-lhes que lhes bateriam.
Perante tal ameaça, os ofendidos deixaram de oferecer resistência.
Lograram, assim, retirar ao ofendido HH um telemóvel, marca Nokia, modelo 3310, com o IMEI n.º 350888802403547, no valor de pelo menos 100,00 Euros.
O ofendido II entregou-lhes um telemóvel, que logo de seguida lhe devolveram, e ainda uma miniatura de um skate, marca “power deck”, no valor de cerca de 1,00 Euro.
Quando abandonavam o local, o ofendido HH pediu-lhes que lhe restituíssem o seu telemóvel, dizendo que lhes dava 2 Euros.
Porém, após receberem tal quantia, apenas lhe entregaram o cartão do telemóvel, levando consigo o aparelho.
Quando também já se encontravam na posse do telemóvel retirado ao ofendido HH, o ofendido II disse que lhes dava uma miniatura de um skate, marca "power deck", caso devolvessem o dito telemóvel.
Aquele telemóvel foi encontrado na sequência de diligências efectuadas pela PSP de Aveiro, foi apreendido e restituído ao seu legítimo proprietário.
A miniatura do skate "power deck" veio a ser apreendido na posse de II e restituído ao seu legítimo proprietário.
O arguido, bem como os restantes dois indivíduos que o acompanhavam, agindo de comum acordo e em conjugação de esforços, ameaçaram os ofendidos de forma a colocá-los na impossibilidade de resistir, com o intuito concretizado de integrarem na sua esfera patrimonial os objectos e valores que possuíssem, apesar de saberem que os mesmos lhes não pertenciam e que actuavam contra a vontade dos legítimos proprietários.
Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
c) Nos presentes autos foi o arguido submetido a perícia médico-legal psiquiátrica, cujo relatório se encontra junto aos autos, donde se conclui que o mesmo padecia, à data da prática dos factos, de debilidade mental ligeira, não tratável, pelo que é inimputável para a prática de factos como aqueles que se encontram acima descritos.
Sendo um indivíduo facilmente sugestionável e passível de ser induzido para a prática de tais factos, verifica-se perigosidade de cometimento de novas infracções.
Mais se provou que:
d) O arguido frequentava uma escola especial, a Cerci de Aveiro, onde participava no curso de jardinagem.
Vivia com os pais e irmãos, núcleo familiar composto por 8 elementos que sobrevive da actividade remunerada do progenitor, no montante de 670 Euros mensais.
e) O arguido foi julgado no processo comum n.º 434/02.6, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, por factos datados de 2002, por decisão de 04.12.2002, tendo sido apurado que a sua conduta correspondia a dois crimes de roubo, um deles com utilização de navalha, fazendo-se o arguido acompanhar de outros assaltantes, tendo, no entanto, sido declarado inimputável e destituído de perigosidade.
Factos não provados
De relevante para a decisão da causa, não se lograram provar quaisquer outros factos que vão para além ou estejam em contradição com a matéria dada como provada, nomeadamente, ora com maior relevo, que:
I. Reportado aos factos aludidos em a) da factualidade assente:
- O arguido pôs o veículo matrícula FF a funcionar utilizando umas chaves da marca Fiat que trazia consigo.
- O veículo referido em a) valia mais de 500 Euros, mais precisamente 1.000,00 Euros, e os restantes objectos aí descritos que foram alvo de subtracção valiam 10 Euros.
II Reportado aos factos descritos em b) da factualidade provada:
- O terceiro indivíduo que seguia com o arguido era o KK.
- O arguido e os restantes pediram a cada um dos ofendidos a quantia de 50 cêntimos.
- Os ofendidos permitiram que aqueles os revistassem, no intuito de apurarem se traziam consigo dinheiro ou outros objectos que lhes despertassem a atenção.
- O telemóvel, marca Nokia, modelo 3310, com o IMEI n.º 350888802403547, valia mais de que 100,00 Euros, mais precisamente 125,00 Euros.
- Ao ofendido II retiraram o telemóvel (no sentido de se lhe tiraram tal objecto das mãos ou dos bolsos), uma carteira em tecido azul, contendo um passe dos transportes públicos, 1 Euro e vários papéis de somenos importância.
- Quando também já se encontravam na posse do telemóvel retirado ao ofendido II, este disse que lhes dava uma miniatura de um skate, marca "power deck", caso lhe devolvessem o telemóvel.
- O telemóvel subtraído ao ofendido HH foi encontrado na posse de KK, por haver ficado na sua posse.
Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal fundou-se:
No que concerne aos factos descritos em a):
No depoimento da ofendida GG, a qual explicou, de forma absolutamente credível, que o seu veículo (que avaliou em cerca de 100 contos) não estava no local onde o deixou, tendo posteriormente aparecido com um bocado de vareta na fechadura. Veio a recuperar todos os objectos que tinha no seu carro, cujo valor não soube precisar.
António Ferreira, agente da P.S.P., disse ter visto o arguido a conduzir um veículo de madrugada (que não era o dos autos), tendo-o interceptado. Dentro do carro ainda estavam todos os objectos que nele se encontravam.
Foram a Estarreja e encontrava-se estacionado o veículo XF. Pensa que foi através de uma gazua que o arguido abriu a porta deste veículo. O arguido era conhecido por utilizar os veículos e depois largar os mesmos.
Tais testemunhos, conjugados com o facto de os objectos subtraídos terem sido recuperados na posse do arguido (conforme resulta do auto de apreensão de fls. 41 e 42) e ainda com a circunstância de terem sido identificados dentro do veículo vestígios digitais que se revelaram ser do arguido (fls. 291, 296, 298, 459 a 462), são suficientes para concluir com segurança pela prática dos factos pelo arguido.
Mostraram-se ainda relevantes os autos de entrega de fls. 45 e 53.
Quanto à intenção do arguido de se apropriar do veículo e objectos que nele se encontravam, é de referir que, não obstante o arguido ter seguido no veículo e depois largado o mesmo (eventualmente por falta de combustível), altura em que terá furtado outro veículo para se deslocar para Aveiro, não consente, por si só, a conclusão de que o arguido apenas teve intenção de utilizar veículo alheio, sem autorização do seu dono, antes parecendo que, tendo o arguido deixado o veículo longe do local de onde o retirou, pretendeu mais do que lhe dar utilização, antes actuou como se fosse seu proprietário (como se tivesse integrado o veículo no seu património). Caso o arguido pretendesse apenas utilizar o veículo o mais normal seria deixá-lo no mesmo sítio de onde o retirou, coisa que não fez.
Quanto aos factos mencionados em b):
Nos testemunhos isentos dos ofendidos HH e II, tendo o depoimento deste último merecido particular relevância, por este ofendido ter revelado melhor memória do ocorrido, explicando com grande pormenor o sucedido.
O ofendido HH referiu terem sido abordados por três indivíduos (não tendo logrado identificar o arguido em audiência como sendo um dos assaltantes), pediram-lhes dinheiro, ameaçaram-nos que lhes batiam caso não lhes dessem o que tinham, o depoente retirou as coisas dos bolsos e retiraram-lhe o telemóvel (um 3310 que valia cerca de 20 contos). Ao II só retiraram um skate. Ofereceu 2 Euros aos assaltantes para lhe devolverem o telemóvel, tendo estes recebido os 2 Euros sem que, no entanto, lhe tenham devolvido o telemóvel. O ofendido II quis também entregar outro skate em troca do telemóvel do depoente.
O II referiu terem sido abordados por 3 pessoas, entre as quais constava o arguido (que identificou em audiência), pediram-lhe dinheiro, pediram-lhe para tirarem tudo dos bolsos. O arguido pediu-lhe para tirar tudo dos bolsos se não batia-lhe , ficou com medo e entregou o seu telemóvel ao arguido. O arguido e outro entenderam que o seu telemóvel não "prestava" e por isso devolveram-no logo. Tinha 2 skates em miniatura, retiraram-lhe um deles, que valeria 200 escudos. Ofereceu o outro skate aos assaltantes em troca do telemóvel do HH, mas estes não aceitaram.
O depoente chamou a polícia e indicaram aos agentes quem haviam sido dois dos assaltantes, pois que os perseguiram.
LL, mãe do menor HH, disse que o Nokia do seu filho valeria cerca de 20 e tal contos.
Ricardo Tavares, pais do ofendido II, disse que ao II foi tirado pelo menos um skate. O filho ficou com o sono mais agitado, o que revela ter tido medo.
Os agentes da P.S.P. António Monteiro e Jorge Oliveira, relataram terem sido contactados por causa de um roubo a menores e seguiram para o local. Com base nas descrições dos assaltantes pelos ofendidos, tendo os mesmos chegado a indicar tais assaltantes que estavam em fuga, detiveram os assaltantes e procederam à sua identificação, com o que concluíram serem o arguido e o JJ.
Os assaltantes tinham na sua posse ainda parte dos objectos subtraídos.
Mostraram-se ainda relevantes os autos de apreensão de fls.7 e 233 e de entrega de fls. 8 e 234.
Relativamente aos factos descritos em c) baseou-se o tribunal no relatório do exame às faculdades mentais do arguido constante de fls. 342 a 347.
Fundou o tribunal a sua convicção sobre o referido em d) no relatório social de fls. 237 a 240.
Na certidão de fls. 405 a 423, quanto aos factos mencionados em e).
No que respeita aos factos não provados, tal ficou a dever-se à circunstância de sobre eles não se ter produzido prova que convencesse o tribunal, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do C.P.P.).
Efectivamente, quanto aos factos referidos em I. a ofendida GG avaliou o seu veículo apenas em 100 contos e disse não saber o valor dos restantes bens. Nenhuma prova foi produzida quanto aos restantes factos aí descritos.
Relativamente aos factos mencionados em II., não se logrou apurar a identidade do terceiro acompanhante do arguido, os ofendidos não aludiram ao facto de terem sido revistados, o ofendido HH e a sua mãe avaliaram o telemóvel em cerca de 100, 00 Euros, não se fez prova convincente de que tivessem sido retirados ao ofendido II outros objectos para além dos constantes nos factos provados, o ofendido II terá oferecido um skate em troca do telemóvel do HH (e não do seu), o telemóvel foi apreendido a Sara Lopes, e não a Jerónimo Lopes.
*
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva , in “Curso de Processo Penal” III , 2ª ed. , pág. 335) , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recurso são as seguintes as questões a apreciar e decidir :
- se existe contradição insanável da matéria de facto , nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 , al. b) do art.410.º , do C.P.P., entre a prova da inimputabilidade do arguido e a prova de que o mesmo praticou os factos correspondentes aos ilícitos típicos de roubo, p. e p. no art.210.º n.º 1 CP, e furto p. e p. no art. 203.º do Código Penal “sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” ;
- se o acórdão recorrido é nulo , nos termos dos art.s 374.º , n.º2 e 379.º, n.º1 do C.P.P. , por omissão de conhecimento da matéria da acusação onde , em relação ao agente , se refere que “não obstante os seus comportamentos podem ser corrigidos” ;
- se o facto do agente ter abandonado o veículo FF longe do local onde o encontrou não permite, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, concluir que fosse intenção do mesmo apropriar-se do veículo ou dos bens no seu interior ,
- se o Tribinual recorrido teve dúvidas quanto à intenção do agente , pelo que ao dar como provada a intenção de apropriação violou o principio in dubio pro reo e o disposto nos art.s 127.º do C.P.P. e o art.342.º do C.C. ; e
- se é razoável esperar que com a suspensão da medida de internamento se possa ainda alcançar o fim da mesma, ou seja , evitar a prática de factos da mesma espécie por parte do agente, sendo certo que a ser a mesma suspensa não existiria qualquer incompatibilidade com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Comecemos pela apreciação da primeira questão.
Estatui o 410º, n.º 2 do Código Processo Penal , que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito , o recurso pode ter como fundamento , desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova .
Por contradição insanável , a que alude essa alínea b) , entende-se o facto de se afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa . Duas proposições contraditórias não podem ser , ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas.
“Só existe , pois , contradição insanável da fundamentação quando , de acordo com um raciocínio lógico , seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando , segundo o mesmo tipo de raciocínio , se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente , dada a colisão entre os fundamentos invocados .”- Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in Código de Processo Penal , anotado, vol. II, 2ª ed. , pág. 739.
No presente caso , o Tribunal recorrido , na parte final das alíneas a) e b) da matéria de facto provada , deu como assente que o arguido AA , nas situações ali referidas , “sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” .
Na alínea c) da matéria de facto provada o Tribunal recorrido deu como assente o seguinte :
“Nos presentes autos foi o arguido submetido a perícia médico-legal psiquiátrica, cujo relatório se encontra junto aos autos, donde se conclui que o mesmo padecia, à data da prática dos factos, de debilidade mental ligeira, não tratável, pelo que é inimputável para a prática de factos como aqueles que se encontram acima descritos.
Sendo um indivíduo facilmente sugestionável e passível de ser induzido para a prática de tais factos, verifica-se perigosidade de cometimento de novas infracções.
Saber se existe ou não contradição insanável entre aqueles factos dados como provados depende da noção de inimputável .
Nos termos do art. 20.º , n.º1 do Código Penal “ É inimputável quem , por força de uma anomalia psíquica , for incapaz de , no momento da prática do facto , de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.” .
Na primeira situação considera-se inimputável o agente que , face a uma anomalia psíquica , é incapaz de , no momento da prática do facto , avaliar a ilicitude deste . Isto é , a doença mental impossibilita o agente de entendimento .
Na segunda situação prevista no mesmo preceito legal considera-se inimputável o agente que , face à anomalia psíquica , é incapaz de no momento da prática do facto , se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude do facto. O problema do agente aquando da prática do facto ilícito-típico não se situa agora no elemento intelectual , mas no elemento volitivo , na vontade .- Cfr. Dr.ª Carlota Pizarro de Almeida , in “Modelos de inimputabilidade” , Almedina ed. 2000 , pág. 76.
Em termos de doutrina geral , o agente pratica um crime quando preenche um ilícito-típico , com culpa . Por outras palavras , a imputabilidade e a culpa exigem do agente do facto a capacidade de entender e de querer .
A culpa , como censura ético-juridica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso , está ligada ao pensamento de aceitação de liberdade do agente.
No dolo existe o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo pelo agente , em qualquer das modalidades previstas no art.14.º do Código Penal , enquanto na negligência existe a violação de um dever objectivo de cuidado ( art.15.º do Código Penal ) .
Refere-se no douto acórdão recorrido que “do relatório de exame psiquiátrico pode ainda concluir-se que o arguido era incapaz , na data da prática dos factos , de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude do seu comportamento , pois que aí se refere ser o arguido facilmente sugestionável e passível de ser induzido para a prática de factos como os acusados.”
O que o Tribunal recorrido diz é , assim , que a anomalia psíquica não é tal que impediu o conhecimento , ao arguido , de realização do tipo objectivo .
O arguido AA tinha conhecimento da ilicitude da sua conduta quer quando agiu no dia 15/16 de Janeiro de 2003 , quer no dia 6 de Fevereiro de 2003 , mas face à anomalia psíquica de que é portador , por ser facilmente sugestionável , era incapaz , na data da prática dos factos , de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude do seu comportamento.
Deste modo , não há qualquer contradição insanável entre o que consta da parte final das alíneas a) e b) na matéria de facto e a matéria de facto dada como provada na alínea c) .
Não existe a afirmação de um facto e a negação desse mesmo facto e nenhuma contradição insanável se detecta entre a fundamentação e a decisão recorrida , pelo que não se tem por verificado no douto acórdão o vício a que alude a al. b) , n.º 2 do art. 410.º do C.P.P. .
A segunda questão a decidir é a saber se o acórdão recorrido é nulo , nos termos dos art.s 374.º , n.º2 e 379.º, n.º1 do C.P.P. , por omissão de conhecimento da matéria da acusação onde , em relação ao agente , se refere que “não obstante os seus comportamentos podem ser corrigidos” .
Na acusação , sob o n.º3 , o Ministério Público reproduziu parte do teor do relatório de perícia médico-legal psiquiátrica . Assim , após mencionar que o arguido é inimputável e perigoso , diz: “ Não obstante , os seus comportamentos podem ser corrigidos , pelo que se mostra necessária a colocação do arguido numa instituição adequada ao seu quadro clínico , a fim de receber apoio médico , psiquiátrico e psicológico , designadamente na Cerci-Aveiro, que para o efeito se mostra disponível.”
O que ali se refere é uma reprodução de parte do relatório de perícia médico-legal psiquiátrica.
O tribunal recorrido , na alínea c) dos factos dados como provados , refere a existência do dito relatório , da qual reproduz uma parte .
Não é ao perito médico que pertence decidir a questão da perigosidade como de outros conceitos normativos , mas apenas estabelecer a bases da decisão , cabendo esta sempre , em último termo , ao tribunal.
No presente caso , o tribunal recorrido não deixou de se pronunciar sobre a questão da perigosidade e possibilidade de correcção do comportamento do arguido como resulta de folhas 509 e 510 , nomeadamente , da seguinte passagem :
“De referir que o arguido praticou os factos ora objecto destes autos em Janeiro e Fevereiro de 2003 , pouco após , portanto , ter sido julgado e sentenciado no processo referido em e) dos factos provados , o que demonstra claramente ter o mesmo sido insensível a tal contacto com a justiça , revelando uma persistência no comportamento anti-social e uma falta absoluta de sentido crítico que lhe permita corrigir-se.”.
Assim , não tendo havido omissão de conhecimento de questão de que deveria conhecer não se julga verificada a invocada nulidade de sentença .
A questão a decidir agora é a de saber se o facto do arguido/recorrente ter abandonado o veículo FF longe do local onde o encontrou , não permite, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, concluir que fosse intenção do mesmo apropriar-se do veículo ou dos bens no seu interior .
A solução a dar a esta questão está ligada à seguinte , que é a de saber se o Tribinual recorrido teve dúvidas quanto à intenção do agente ,e se ao dar como provada a intenção de apropriação violou o principio in dubio pro reo e o disposto nos art.s 127.º do C.P.P. e o art.342.º do C.C. .
Ambas as questões serão decididas de imediato.
Os elementos constitutivos do crime de furto de uso de veículo , p. e p. pelo art.208.º , n.º 1 do Código Penal são os seguintes :
- a utilização , pelo agente , de automóvel ou outro veículo motorizado , aeronave , barco ou bicicleta ;
- sem autorização de quem de direito ; e
- o conhecimento e vontade de realização do ilícito-típico .
Como elementos implícitos no tipo objectivo do ilícito previsto no art.208.º do Código Penal estão a “utilização tendencialmente momentânea e restituição quase imediata.”- Prof. José de Faria Costa , in "Comentário Conimbricence ao Código Penal" , Tomo II, pág.142 .
A coisa deve ser devolvida a local em que o imediato poder de disposição do dono possa ser exercido , logo que terminado o uso .
A restituição pode ser feita através de informação do agente do local onde o veículo foi deixado , de recolocação do veículo do local de onde foi retirada ou em local onde a vítima possa facilmente encontrá-la .
Se é deixada algures sem qualquer aviso ao proprietário , o agente assume o risco de que não se opere a restituição . O agente de furto da coisa , depois de assenhorear-se dela pode perfeitamente abandoná-la .
“Para que exista “furtum usus” o fundamental é que o agente pratique um qualquer acto que seja idóneo a reintegrar o veículo subtraido na posse da vítima , ainda que encarregue alguém de o fazer” – Acórdão do STJ , de 22.11.89 ( BMJ n.º 391º, pág. 433 ).
Sobre o principio da livre apreciação da prova , deferido ao Tribunal de 1ª instância , estatui o art. 127.º do Código de Processo Penal que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.” .
As normas da experiência são , como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.30.
Sobre a livre convicção refere o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
Quanto ao principio “in dubio pro reo” , este estabelece que , na decisão de factos incertos , a dúvida favorece o arguido. O mesmo identifica-se com a presunção de inocência do arguido , e impõe que o julgador valore sempre em favor daquele um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que , face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano VI , 1º, pág. 177 ) .
No presente caso , na fundamentação da matéria de facto , quanto à intenção de apropriação , o tribunal recorrido utiliza expressões como “terá furtado outro veículo ”, “ antes parecendo que” e “o mais normal seria” .
Porém , se lermos as expressões integradas nas frases , parece-nos claro que ali se pretende dizer e diz , que tendo o arguido deixado o veículo longe do local de onde o retirou , sendo recuperado pela PSP , não se pode dizer que o arguido apenas utilizou o veículo e os objectos que levou nele , antes actuando como se fosse seu proprietário .
Lendo a fundamentação sobre a matéria de facto da douta sentença não se vislumbra nela que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido AA dos factos dados como provados .
O que resulta daquela é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à intenção do arguido/recorrente se apropriar do veículo e dos bens existentes no seu interior .
Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do principio “in dubio pro reo”.
Passemos agora ao conhecimento da última questão : se é razoável esperar que com a suspensão da medida de internamento se possa ainda alcançar o fim da mesma.
No presente caso , é pacifico que o arguido/recorrente é inimputável , uma vez que por força de debilidade mental, no momento dos factos referidos no douto acórdão , era incapaz de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude da sua conduta .
Os factos praticados nos momentos em que era incapaz são graves , como resulta desde logo dos limites das penas abstractas correspondentes aos tipos legais mencionados.
Quanto à perigosidade de cometimento de novos factos que preencham ilícitos-típicos criminais contra o património , não restam dúvidas que ela existe face aos factos dados como provados e ao relatório pericial .
Nestas circunstâncias importa atender ao disposto no art.98.º, n.º1 do Código Penal , onde se estatui que “ O tribunal que ordenar o internamento determina , em vez dele , a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida .”
Em matéria de finalidades das medidas de segurança , a sua aplicação “visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade .” - art.40.º , n.º1 do Código Penal .
“ A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente” – n.º 3 do art.40.º do Código Penal .
Nas medidas de segurança a proporcionalidade limita a necessidade de protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade .
O propósito socializador deve , sempre que possível , prevalecer sobre a intenção de segurança , como é imposto pelos princípios da socialidade e da humanidade que dominam a nossa constituição politico-criminal .
A função de segurança surge com autonomia “ sempre que à partida , a função de tratamento ( e eventualmente de cura ) se revele de consecução impossível , por se estar – segundo o estado dos conhecimentos da medicina – perante um incurável ao qual se ligue a nota da incorrigibilidade da sua actuação anti-social. – Cfr. Prof. Figueiredo Dias , “Direito Penal Português , As consequências Jurídicas do Crime”, pág. 455.
No caso em análise o perito médico entende que os comportamentos do arguido , como aqueles pelos quais está a ser julgado , resultantes da debilidade mental deste , podem ser corrigidos no futuro com o apoio de instituições adequadas àquele quadro clínico , como por exemplo através da CERCI- Aveiro , não se lhe afigurando razoável ponderar a figura de perigosidade no sentido de aplicar ao arguido a medida de internamento.
Sobre a suspensão da medida de internamento o douto Tribunal recorrido ponderou a mesma e afastou-a com a seguinte fundamentação :
“ Não é razoável esperar que a simples suspensão da medida de internamento ( prevista nos termos do art.98º do CP) , ainda que sujeita a condições , alcance as finalidades da medida no caso concreto ( eliminação da sua perigosidade criminal e consequente protecção dos bens jurídico-penais ) , pois que , além do mais , o arguido praticou os factos em apreço nestes autos pouco após ter sido julgado no processo referido em e) dos factos assentes , e nem tal contacto com a justiça o demoveu a reiterar o seu comportamento , revelando falta de espírito crítico, pelo que não é de prognosticar que a simples ameaça da efectivação do internamento o afaste de comportamentos anti-sociais e neutralize a sua perigosidade”.
Vejamos .
Resulta do acórdão, datado de 4 de Dezembro de 2002, referido em e) dos factos provados , que nos dias 14 e 20 de Fevereiro de 2000 , o arguido praticou em co-autoria com outros jovens , a LL e o NN, factos típicos e ilícitos , idênticos aos ora em causa , que poderiam integrar dois crimes de roubo .
Não foi aplicada então ao arguido AA qualquer pena ou medida de segurança por se ter considerado que era inimputável e destituído de perigosidade , pelo que o argumento constante da douta decisão recorrida de que o contacto com a justiça não o demoveu da prática dos facto em causa , afigura-se-nos pouco relevante para negar a suspensão da medida de internamento. O mesmo se passa com o argumento da douta decisão recorrida , proferido para o fim , de que o arguido ao praticar os factos agora em julgamento revela “falta de espirito critico” . A anomalia psíquica , consistente em debilidade mental ligeira , torna o arguido incapaz de se determinar livremente .
Só com este processo criminal é atribuída perigosidade ao arguido , para a pratica de crimes contra o património. Aí se consideraram integrados , além do crime de furto , os crimes de roubo , como crimes complexos , contra as pessoas e o património.
Está provado que o arguido é um jovem , que à data dos factos tinha 17 anos de idade .
Frequentava uma escola especial , a CERCI-Aveiro , onde participava no curso de jardinagem .
Vive com os pais e irmãos , num núcleo familiar composto por 8 elementos , que sobrevive da actividade remunerada do progenitor.
A ideia de que a medida de internamento é fortemente nociva vem sendo consolidada nos últimos anos , pois que este faz perder o contacto com a família e toda a realidade exterior. Por outro lado , a evolução dos psicofármacos permite crescentemente , quando não a cura , pelo menos um cada vez maior controlo das doenças mentais .
O parecer do médico sobre as consequências da doença não poderá deixar de ter influência na decisão do juiz . No caso em apreço , aquele entende que é possível corrigir , em meio livre , os comportamentos anti-sociais do arguido/recorrente , com apoio médico, psiquiátrico e psicológico .
Conjugando todas as circunstâncias descritas , realçando o apoio médico, psicológico , social e familiar de que o arguido poderá beneficiar , afigura-se-nos , num juízo de prognose - que tem a ver com a previsibilidade e determinabilidade do comportamento humano - que é razoavelmente de esperar que com a suspensão do internamento , condicionada ao cumprimento de regras de conduta , se pode alcance a finalidade desta medida .
A libertação do arguido não se revela incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Nesta parte deve o recurso proceder.
Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juizes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA e , consequentemente , nos termos do art.98.º do Código Penal decide-se :
- Suspender ao arguido/recorrente a execução da medida de internamento fixada na douta decisão recorrida , pelo período de quatro anos , mediante o cumprimento das seguintes regras de conduta :
a) sujeitar-se a tratamento , com apoio médico , psiquiátrico e psicológico , em instituição adequada , como a CERCI-Aveiro , no período indicado ;
b) proibição de contactar com os menores JJ , KK , e com LL e NN;
c) proibição de acompanhar fora da CERCI-Aveiro , com pessoas menores de 21 anos de idade , salvo se familiares ; e
d) apresentar-se , sempre que lhe for solicitado , ao técnico do Instituto de Reinserção Social.
Coloca-se ainda o arguido sob vigilância tutelar do Instituto de Reinserção Social, devendo solicitar-se a esta instituição a elaboração do plano individual de readaptação social e à CERCI-Aveiro o apoio imediato ao arguido , devendo ambas as instituições comunicar ao Tribunal de 1ª instância , a violação dos deveres e regras impostos ao arguido.
Deverá solicitar-se ainda à autoridade policial que informe de imediato o Tribunal de 1ª instância de novos comportamentos socialmente desajustados , bem como da violação das obrigações referidas em b) e c) .
Custas pelo recorrente , fixando em 3 ucs. a taxa de justiça .
Atribuem-se honorários ao Ex.mo Defensor Oficioso do arguido de acordo com a tabela a que alude a Portaria n.º 150/2002 , de 19-2 .

Passe de imediato mandados de libertação do arguido.
Coimbra ,