Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
48/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. GARCIA CALEJO
Descritores: VICIO DA COISA
Data do Acordão: 03/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 913° N° 1 DO C. CIVIL
Sumário:


Face ao disposto no art. 913° n° 1 do C. Civil, são vícios atendíveis para aplicação do regime delineado na norma, os seguintes:
Os defeitos que desvalorizem a coisa, os defeitos que impeçam a realização do fim a que a coisa é destinada, a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor, a falta de qualidades necessárias para a realização do fim constante no contrato.
Para o caso dos autos, há que destacar dos vícios aludidos, os defeitos que impeçam a realização do fim a que a coisa é destinada.
Nos termos do n° 2 do mesmo art. 913° "quando do contrato não resulte o .fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria'.
A função normal de um tractor, será, como é facto notório, rebocar e transportar coisas e pessoas, proceder a trabalhos agrícolas e de construção civil, não estando provado que o veículo em questão não pudesse efectuar essas tarefas, o que é o mesmo que dizer-se que não está provado que o dito veículo não pudesse desempenhar, com eficácia, a sua normal função .
Tendo-se provado apenas que o tractor dos autos não tinha potência suficiente para as funções específicas que o comprador lhe queria atribuir (rebocar de e para o mar , as suas embarcações), não se demonstra que o mesmo sofre de vício que impede o fim normal a que se destina.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- BB, residente na Rua da ..., Mira, propõe contra BA, com sede na **, Santarém, a presente acção com processo sumário, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 3.000.000$00 (15.000 Euros ), acrescida de juros, bem como a retirar o veículo que identifica, do local em que se encontra.
Fundamentam este seu pedido, em síntese, no facto de ter adquirido à R. um tractor agrícola, mas este, em virtude dos defeitos de funcionamento que apresentava. nunca efectuou quaisquer trabalhos para os quais havia sido comprado, tendo tido necessidade de adquirir um outro veículo.
1-2- A R. contestou, sustentando, também em síntese, que o A. antes de adquirir o tractor, experimentou-o tendo concluído que o mesmo era adequado às suas necessidades, sendo também certo que quando foi vendido ao A., não tinha qualquer avaria ou defeito.
Termina pedindo a improcedência da acção.
1-3- O A. respondeu à contestação sustentando, em síntese, que o veículo quando lhe foi entregue, não tinha as condições nem as características com as quais havia sido comprado, tendo concluído como na petição inicial.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, fixado os factos assentes e a base instrutória, após o que se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu ao questionário e se proferiu a sentença.
1-5- Nesta considerou-se improcedente por provada a acção e, em consequência, absolveu-se a R. do pedido.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer o A., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- O recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Está provado que o tractor não possui as qualidades necessárias para o fim a que se destina, sendo certo que a R. disso tinha perfeito conhecimento.
2ª- Nunca efectuou qualquer trabalho, desde a data da sua aquisição até hoje.
3ª- O tractor não está em condições, como ficou provado, por falta de qualidades necessárias, para o fim destinado, como é conhecimento da R..
4ª- Só era possível saber se o tractor era adequado, depois de o experimentar, nas condições para as quais tinha sido adquirido.
5ª- E, logo aí, se verificou que não e a R. ter sido notificado do caso.
6ª- Resulta claro que o tractor não possui as qualidades inerentes para o exercício do serviço para o qual havia sido adquirido.
7ª- A R. tem perfeito conhecimento do que o A. pretendia, pois este esperou desde Maio até Setembro de 2000 por um tractor para tal serviço.
8ª- A R. já anteriormente tinha vendido um tractor ao A. e conhecia as condições de operar da máquina.
9ª- Assim, o tractor deveria ter as qualidades necessárias e suficientes para realizar os trabalhos em vista e essas qualidades são parte integrante do conteúdo contratual, pois essas qualidades, apesar de não expressas, são parte essencial do negócio e foram essenciais para a determinação da vontade contratual.
10ª- Sem essas qualidade, o A. não teria efectuado o negócio, a falta de qualidade da coisa em si, são assim, determinantes na anulação do contrato de compra e venda.
11ª- Assim, não pode dizer que as qualidades não sejam parte integrante do conteúdo negocial ( contratual ).
12ª- Em qualquer contrato negocial, as qualidades da coisa, são inerentes à coisa em si mesma, são-lhe intrínsecas e não necessitam de serem expressas.
13ª- Tanto o comprador como o vendedor, ao procederem ao negócio de compra e venda, tinham consciência que as qualidades do objecto, tinha de ter as qualidades essenciais do negócio.
14ª- Não iria o comprador adquirir o tractor por 15.000 Euros, tendo a consciência que o mesmo não era adequado para o fim a que se destinava.
15ª- A R. ao ter conhecimento do fim a que o mesmo se destinava, não quis saber se o mesmo era apto o não para o serviço a que se destinava.
16ª- Agiu a R. com má fé.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, com revogação da decisão recorrida, declarando-se a anulação do negócio com restituição ao A. da quantia de 15.000 E. e juros.
1-7- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após a resposta à base instrutória, ficou assente a seguinte matéria de facto:
1- O A. é empresário em nome individual que se dedica à pesca artesanal na Praia de Mira.
2- A R. é uma sociedade por quotas que, entre outras actividades, se dedica à compra e venda de máquinas industriais e agrícolas novas e usadas.
3. O A. comprou à R., em 14 de Agosto de 2000, no estado de usado, o veículo tractor agrícola de marca “Massey Fergusson 2720” com 150 HP, pelo montante de 3.000.000$00.
4- Em 14-8-00, o A. entregou à R. 1.000.000$00 como início de pagamento do preço.
5- Em 25 de Setembro de 2000 pagou os restantes 2.000.000$00.
6- Em 20-9-00, a R. procedeu à entrega ao A. do tractor.
7- Logo quando foi entregue ao A., o tractor não possuía potência - força para os serviços que lhe estavam destinados - empurrar e puxar navios para e do mar.
8- E por isso nunca efectuou quaisquer trabalhos.
9- O A. estava convencido que o tractor possuía potência suficiente para os trabalhos a que destinava o tractor.
10- O A. adquiriu um outro tractor.
11- O A., quando comprou o tractor, experimentou-o nas instalações da R..
12- E concluiu que ele era ajustado aos trabalhos que com ele pretendia fazer, empurrar e puxar navios de e para o mar.
13- Alguns meses após a entrega do tractor ao A., o filho deste fez um buraco na areia e enterrou nele as rodas do tractor.
14- Ao tentar retirar as rodas do tracto do buraco, partiu o diferencial.
15- Os empregados da R. encontraram o tractor na praia com o diferencial partido.
16- O diferencial foi desmontado e reparado.
17- O A. não permitiu que os empregados da R. acabassem de montar as peças.
18- O A. exigiu cruzetas novas.
19- A R. não forneceu esses materiais por que os que existiam no tractor estavam bons.
20- A R. efectuou uma revisão completa ao tractor antes do entregar ao A..
21- Nessa altura o tractor estava em perfeitas condições de funcionamento.--------------------------------------
2-3- Na douta sentença recorrida e para o que aqui interessa, considerou-se que o instituto de venda de coisas defeituosas ( aplicável ao caso ) e a que se refere o art. 913º do C.Civil, distingue quatro categorias de vícios, concretamente, o vício que desvalorize a coisa, o vício que impeça a realização do fim a que é destinada, a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor e a falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que se destina. Referiu-se depois que o art. 913º, mandando observar, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente ( ou seja, o disposto nos arts. 905º a 912º ), confere ao comprador de coisas defeituosas a possibilidade de anulação do contrato por erro ou dolo, a redução do preço, a indemnização do interesse contratual negativo, a reparação da coisa ou a sua substituição. Considerou-se depois que para a tutela do caso concreto, é necessário saber-se se as qualidades da coisa ingressaram ou não no conteúdo do contrato. Assim, se as qualidades da coisa vendida fazem parte integrante do conteúdo negocial e se ela não tem as qualidades acordadas, coloca-se o problema de incumprimento parcial ou cumprimento defeituoso. Se as qualidades da coisa não entram no conteúdo do contrato, não pode pôr-se um problema de cumprimento defeituoso, mas tão só de erro, entrando aqui as disposições gerais dos arts. 247º a 251º. Isto tudo é válido também para o caso de venda de coisa específica. Transpondo estes princípios para o caso vertente, considerou-se que está em causa a venda de uma coisa específica. Não se provou porém que as qualidades do veículo ingressassem no conteúdo do contrato, sendo certo que era sobre o A. que impendia o ónus de provar os termos precisos e concretos em que o contrato foi celebrado e ainda que a vendedora asseverou, responsabilizando-se por essas qualidades, o que não se verifica. Antes pelo contrário, resultou provado que o A. experimentou o mesmo nas instalações da R., tendo concluído que era adequado a esses trabalhos, bem sabendo qual era a potência do mesmo e sem que resultasse provado que a R. tenha tido qualquer interferência nessa decisão. Assim sendo, concluiu-se, muito embora tenham sido determinantes para o A. comprar aquele tractor em concreto, a verdade é que não fazem parte integrante do conteúdo contratual vinculante para a vendedora, pelo que não se pode por o problema de cumprimento defeituoso, mas apenas de erro. Isto é, para que se pudesse falar em cumprimento defeituoso, seria necessário que a vendedora tivesse garantido essas qualidades e que se tivesse responsabilizado pela sua existência, o que não acontece no caso concreto. Quanto ao erro considerou-se que se provou que, logo que foi entregue, se verificou que o tractor não tinha potência para empurrar e puxar os navios para e do mar, sendo certo que o A. o havia adquirido com essa finalidade. Perante isto, concluiu-se que o A. incorreu em erro quanto ao objecto do seu contrato, mas esta situação não é enquadrável no art. 247º, visto que não resulta da matéria de facto que o declaratário conhecesse ou devesse conhecer da essencialidade do erro em que incorreu o declarante, razão por que se não integra no regime de anulabilidade pelo erro a situação em apreço. Por tudo o dito, se concluiu pela improcedência da acção, com a absolvição da R. do pedido.
Na apelação o A. não procurou responder às razões de facto e direito da douta sentença recorrida. Começou por sustentar a contradição entre a matéria de facto provada nas als. G) e H), contradição que não existe mas de que não apreciaremos visto que não é deduzida qualquer conclusão sobre o assunto. Refere depois que se provou que o tractor não possui as qualidades necessárias para o fim a que se destina, estando assim provado que não serve para o comprador, tendo em vista o fim para que foi adquirido.
Como se viu acima, o Mº Juiz referiu-se expressamente à questão, concretamente disse que se provou que, logo que foi entregue, se verificou que o tractor não tinha potência para empurrar e puxar os navios para e do mar, sendo certo que o A. o havia adquirido com essa finalidade, o que conduz à conclusão de que o A. incorreu em erro quanto ao objecto do seu contrato. Acrescentou-se que a situação, porém, não é enquadrável no art. 247º, visto que não resulta da matéria de facto que o declaratário conhecesse ou devesse conhecer da essencialidade do erro em que incorreu o declarante, razão por que se não integra no regime de anulabilidade pelo erro a situação em apreço. Ou seja, a sentença recorrida responde à questão sem que se veja que o apelante sustente algo, de substancial, em contrário. Note-se que não existiu sequer, o cuidado, por parte do apelante, em integrar a sua asserção no direito.
Referiu depois o apelante e quanto ao vício da coisa, que resultou provado que o A. comprou a coisa com defeito, faltando saber se as qualidades da coisa vendida, fazem parte integrante do conteúdo negocial. Ora, dado que a R. já tinha vendido anteriormente outro tractor ao A. que não deu problemas, conclui que os representantes da R. conheciam as condições de trabalho do A., pelo que tinham perfeito conhecimento das qualidade que a máquina deveria ter.
Aqui parte o apelante de um facto/pressuposto que se não provou, isto é, de que a R. já havia vendido anteriormente outro tractor ao A. e que os representantes da R. conheciam as condições de trabalho do A. Não se provando tal circunstância ( vide acervo dos factos provados acima mencionado ), é evidente que todo o raciocínio do A. é de repudiar.
Sustenta depois que as qualidades da coisa são inerentes a ela. As qualidades da coisa, eram e são essenciais para a concretização do negócio, pois a coisa deve ter em si essas potencialidades e se as não tem, se as não possui, é porque algo de errado se passou. Se é verdade que o A. experimentou o tractor, não é menos verdade que a real prova só poderia ser feita, depois de devidamente apetrechado, em plena praia a empurrar e puxar navios de e para o mar. E neste teste não passou como ficou provado. Como poderia, indaga o apelante, o A. aperceber-se dos defeitos da coisa, com a simples experimentação no recinto das instalações da R..
Aqui, distorce o apelante os factos provados e não responde às razões de direito referenciadas na sentença recorrida. Distorce os facto porque se provou que o A., quando comprou o tractor, experimentou-o nas instalações da R., mas além disso, concluiu que ele era ajustado aos trabalhos que com ele pretendia fazer, empurrar e puxar navios de e para o mar. Isto é, o erro em que incorreu em relação ao veículo, só pode ser imputado a si. Terá feito um juízo apressado sobre o veículo e sobre as suas potencialidades. Mas sublinhe-se, sibi imputet. Não pode assacar esse erro, mesmo mediatamente, face às circunstâncias provadas, ao vendedor. Não contradiz a matéria de direito aduzida na sentença recorrida, já que não refere qualquer argumentação jurídica tendente a colocar em dúvida o que se referiu em relação ao cumprimento defeituoso e à correspondente necessidade de a vendedora ter garantido as qualidades da coisa e ter-se responsabilizado pela sua existência, a que acima já nos referimos.
Parece-nos, apesar de não ser muito claro naquilo que afirma, que o apelante defende que se verifica, em concreto, o vício da coisa derivado de a mesma não possuir as condições necessárias para o fim a que se destina, vício a que se refere o art. 913º nº 1.
Vejamos de forma muito sucinta:
Estabelece art. 913º nº 1 “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”.
Face a esta disposição são vícios atendíveis para aplicação do regime delineado na norma, os seguintes:
Os defeitos que desvalorizem a coisa, os defeitos que impeçam a realização do fim a que a coisa é destinada, a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor, a falta de qualidades necessárias para a realização do fim constante no contrato. Como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela “são estas conotações de carácter objectivo - mais do que o erro do comprador ou o acordo negocial das partes - que servem de real fundamento aos direitos especiais concedidos pela lei ao comprador e que justificam, pela especial perturbação causada na economia do contrato, os desvios contidos nesta secção ao regime comum do erro sobre as qualidades da coisa” ( C.Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, pág. 212 ).
Para o que aqui nos interessa ( e face ao sustentado nas alegações de recurso ), há que destacar dos vícios aludidos, os defeitos que impeçam a realização do fim a que a coisa é destinada.
Nos termos do nº 2 da mesma disposição “quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.
A questão que se coloca será assim se se poderá dizer que o tractor em causa será susceptível de ser englobado na categoria de coisa que não realiza o fim a que se destina. E a resposta à questão não poderá deixar de ser negativa. Isto porque, sabendo-se que a função normal de um tractor, será, como é facto notório, rebocar e transportar coisas e pessoas, proceder a trabalhos agrícolas e de construção civil, não está provado que o veículo em questão não pudesse efectuar essas tarefas. Isto é, não está provado que o dito veículo não pudesse desempenhar, com eficácia, a sua normal função. O que apenas se provou é que ele não tinha potência suficiente para as funções específicas que o comprador lhe queria atribuir ( rebocar de e para o mar as suas embarcações ), o que é, patentemente, coisa diversa.
Ou seja, não será possível, face aos factos provados, dizer que o tractor em causa sofre de vício que impede o fim normal a que se destina, razão por que, quanto a este aspecto, a pretensão do apelante é insubsistente.
A apelação improcede in totum.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelo apelante.