Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/23.4PTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
AUTO DE NOTÍCIA
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 10/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA, POR FALTA DE EXAME CRÍTICO DA PROVA E DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Legislação Nacional: ARTIGOS 169.º, 339.º, N.º 4, 368.º, N.º 2, E 374.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 363.º, N.º 2, 369.º E 371.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Atento o disposto nos artigos 368.º, n.º 2, e 339.º, n.º 4, do C.P.P., a enumeração dos factos provados e não provados traduz-se na tomada de posição do tribunal sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização e, ainda, dos que resultaram da discussão da causa com relevância para a decisão.

II - Em sede de motivação da decisão de facto o juiz não está processualmente vinculado a enumerar e examinar todos os meios de prova constantes dos autos ou indicados pelos sujeitos processuais, mas apenas os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa.

III - Atenta a geometria variável da complexidade das situações, a suficiência da fundamentação tem sempre que ser analisada casuisticamente.

IV - Enquanto documento autêntico, o valor probatório do auto de notícia circunscreve-se aos comportamentos presenciados e ao que foi percepcionado directamente pela autoridade policial, não se estendendo a outros contributos, mormente às declarações de terceiros eventualmente nele vertidas.

V - Se o agente policial não assistiu aos factos narrados no auto de notícia e verteu neste e na participação o que lhe foi referido pelo arguido, que depois exerceu o direito ao silêncio no julgamento, na fundamentação da decisão da matéria de facto o tribunal tem que clarificar como valorou o auto de notícia, sob pena de nulidade por falta de exame crítico da prova e falta de fundamentação.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo comum que, sob o n.º 61/23.4PTLRA, corre termos no Juízo Local Criminal de Leiria - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, na sequência de julgamento com intervenção de tribunal singular, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo [transcrição[1]]:

«Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido, … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo (motociclo) em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros);

b) Condenar o arguido, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados por um período de 5 (cinco) meses;

Para cumprimento da pena acessória determino que o arguido proceda à entrega, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, a sua carta de condução, na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial que a remeterá àquela (cfr. artigos 69.º, n.º 3 do Código Penal e 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

…».

 2. - Não se conformando com tal decisão, veio o arguido interpor recurso, tendo, no termo da motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório [transcrição]:

«…

5) Entendemos que foram incorretamente julgados como provados os pontos de 12 facto consignados na Sentença recorrida, nos pontos 1), 3) e 4) que acima se transcreveram;

8) Quer da prova testemunhal, quer da prova documental junta aos autos não resulta que o Arguido, no dia e hora constantes do auto fosse o condutor do motociclo ….

10) Conforme resulta do depoimento da testemunha, quando a mesma chegou ao local não se encontrava ninguém no local, apenas o motociclo se encontrava abandonado.

11) Nem foi arrolada nenhuma testemunha que tivesse assistido ao acidente, ou que tivesse chamado os agentes da autoridade, que confirmasse que era o Arguido que conduzia o veículo.

12) Portanto, o auto de notícia não fez fé pública, visto que o acidente não foi presenciado quer pelo Agente, aqui testemunha, quer por terceiros.

13) Assim, o Arguido não pode ser condenado pelos factos de que vem acusado, visto que há ausência de prova.

16) A Meritíssima Juiz ao dar como provado que no dia 04.07.2023 pelas 17:40horas, na Travessa ..., junto da Travessa ..., em ..., o arguido … conduzia o motociclo …, depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, tendo sido interveniente em acidente de viação, é excessivo e abusivo; 

19) Não é, pelo facto, de que o motociclo ser pertença dos CTT, entidade patronal do Arguido, que se possa, sem mais, dar como provado que era o Arguido quem a conduzia;

20) Apenas se pode dar como provado que o Arguido foi vítima de um acidente de viação, no entanto, é excessivo que se dê como provado que era o Arguido que conduzia o mesmo;

34) Importa nos presentes autos, como sempre, não olvidar um princípio estruturante do processo penal: o de que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade;

35) Na ausência desse juízo de certeza, vale o princípio de presunção de inocência do arguido (art. 32.° n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) e a regra, seu corolário, “in dubio pro reo”.

36) Donde, a dúvida supra exposta, terá o Tribunal que beneficiar o arguido em obediência ao referido princípio.”;

40) Acresce que, a Sentença recorrida viola o disposto no artigo 208º da C. R. P., uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na Lei”;

41) Neste caso essa circunstância não se verifica;

42) A Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, com a decisão recorrida, na parte de que se recorre, não assegurou a defesa dos direitos do arguido, e não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não apreciar criticamente todas as provas produzidas em audiência de julgamento;

…».

3. - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu …

4. - Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer, …

5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido veio manifestar a sua discordância quanto ao sobredito parecer, concluindo que a sentença deve ser revogada.

            6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


*


            II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Decorre do preceituado no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.

Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].

            No caso vertente, tendo em perspetiva o supra aduzido, as questões a decidir reconduzem-se às seguintes:

            1.1 - Nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova e de fundamentação;

            1.2 - Erro de julgamento quanto aos pontos 1, 3 e 4 da matéria de facto.

           

            2. – DECISÃO RECORRIDA

            A sentença tem o seguinte teor, nos segmentos que relevam para a economia do presente recurso [transcrição]:

«II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 04.07.2023 pelas 17:40horas, … o arguido … conduzia o motociclo com a matrícula …, depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, tendo sido interveniente em acidente de viação.

2. Uma vez, realizada análise à taxa de álcool no sangue, apresentou uma taxa de pelo menos 1,97g/l após deduzido o erro máximo admissível.

3. Ao agir como descrito o arguido actuou de modo livre, voluntário, tendo perfeito conhecimento de que não podia conduzir o mencionado veículo na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas, impedindo-o de efectuar uma condução prudente, influenciando de igual modo a sua capacidade de destreza, atenção e segurança, com perfeita consciência da reprovabilidade do seu comportamento.

4. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que:

B) Factos não provados

Discutida a causa e com pertinência, inexistem factos por provar.

C) Motivação e análise crítica das provas

No caso dos autos, a convicção do Tribunal acha-se alicerçada nos seguintes meios de prova:

▪ Prova por declarações:

- Declarações prestadas pelo arguido … em audiência de discussão e julgamento: apenas no que à matéria da sua situação pessoal e económica diz respeito, posto que, no mais, exerceu – legitimante – o seu direito ao silêncio.

▪ Prova testemunhal:

Depoimentos das seguintes testemunhas:

- , Agente Principal da P.S.P.): o qual, com pertinência e com o conhecimento que lhe advém de ter acorrido ao local do sinistro, depôs no sentido de quando aí se deslocou já o arguido havia sido transportado para o Hospital, fruto dos ferimentos sofridos em decorrência do despiste do motociclo por si conduzido, tendo sido em deslocação ao Hospital que veio a apurar a id. do arguido (…) e apurada a taxa de álcool através de análise sanguínea.

- (… filho do arguido): o qual depôs à matéria da personalidade do arguido.

▪ Prova pericial:

Exame do serviço de Química e Toxicologia Forenses, de fls. 4 dos autos.

▪ Prova documental:

Documentos juntos aos autos, nomeadamente:

- Auto de notícia, de fls. 3 e 3v.;

- Participação de acidente, fls. 5 a 7;

- Declaração médica, de fls. 67; e

- Certificado de registo criminal de fls. 71 a 72v.


*

Ora, da prova assim produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, resultou, a nosso ver, cabalmente sustentada a acusação pública deduzida contra o aqui arguido ….

Com efeito, mau grado o silêncio a que se cometeu o arguido em audiência de discussão e julgamento quando à matéria factual imputada, a verdade é que o teor do depoimento prestado, em idêntica sede, pela testemunha …, em conjugação com a prova pericial e documental coligida nos autos e aí examinada, permite alcançar a sustentação da matéria que supra se fez inscrever em 1. e 2 da rubrica “Factos provados”: isto é, que no circunstancialismo espácio temporal indicado ocorreu um acidente de viação (por despiste) do motociclo com a matrícula …, com um único interveniente, transportado para o Hospital com ferimentos emergentes do mencionado despiste, pessoa que a aqui testemunha, dirigindo-se ao Hospital, veio a identificar cabalmente como sendo o aqui arguido, …, e que, mediante análise sanguínea, veio a evidenciar uma TAS de 2,26 – 1,97g/l, após deduzido o erro máximo admissível. Mostra-se, assim, perante a prova produzida e examinada, apreciada à luz das regras da experiência comum, sustentado que os factos ocorreram tal como descritos na acusação pública e que o aqui arguido foi seu autor (não sendo sequer controvertido que, com reporte à hora da ocorrência do sinistro, o arguido circulava com taxa superior ao limite que confere relevância criminal á conduta, face aos valores evidenciados aquando da colheita para análise pericial).

….».

            3. – APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. - Nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova e de fundamentação.

            O arguido/recorrente invoca – no final [cfr. conclusões 40) a 47)], quando deveria ter sido no início do recurso, pelos motivos supra expostos em II.1 – a nulidade da sentença, por violação do preceituado no artigo 205º[3] da Constituição da República Portuguesa, por duas ordens de razões: falta de exame crítico das provas e falta de fundamentação.

            Vejamos, antes de mais, o enquadramento jurídico processual em que se inscreve a questão suscitada.

3.1.1 - Estatui o artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Densificando tal princípio em matéria processual penal, dispõe o artigo 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal que “[o]s atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, esclarecendo o n.º 1 do mesmo preceito que “[o]s atos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) [s]entenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; b) [d]espachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”.

É, pois, inquestionável que, quer se trate de sentenças, quer de despachos [interlocutórios ou finais], os atos decisórios dos juízes têm que conter os respetivos motivos, de facto e de direito.

A inobservância do dever de fundamentação é cominada, no caso da sentença, com a nulidade, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 374º e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal[4].

Concretamente, estabelece o artigo 379º, n.º 1. al. a), que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº 2 do artigo 374º. Por seu turno, o artigo 374º, enunciando os requisitos da sentença, dispõe no seu n.º 2: “[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

A fundamentação constitui, sem dúvida, o segmento mais complexo da sentença, decompondo-se em três partes distintas: a enumeração dos factos provados e não provados; a exposição dos motivos que fundamentam a decisão; e a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal[5].

Em face do disposto no artigo 368º, n.º 2, a enumeração dos factos provados e não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização e, ainda, sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa, pois esta tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e, ainda, os que resultarem da prova produzida em audiência, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 339º[6].

E, nos termos do preceituado no artigo 124º, constituem objeto da prova “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” e, ainda, se houver pedido civil “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.

Como decorrência, o juiz não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados, mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e são indispensáveis para a escolha da pena e determinação da medida concreta da mesma, bem como para a verificação dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil.

Ademais, a lei impõe a fixação de factos, e não de conclusões ou de conceitos de direito, pelo que, caso estes sejam alegados nas peças processuais relevantes, não deve o juiz considerá-las, nem em sede de factos provados, nem não provados.

No que concerne à exposição dos motivos que fundamentam a decisão, são eles de facto e de direito. Os motivos de facto «…que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência[7]. E, no âmbito da decisão de direito, o juiz deve enunciar as normas legais que os factos convocam e que são determinantes do sentido da decisão.

Em sede de motivação da decisão factual, o juiz não está processualmente vinculado a efetuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova constantes dos autos ou indicados pelos sujeitos processuais, mas apenas a selecionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa, ou seja, aqueles que serviram de base à seleção da matéria de facto provada e não provada.

            A indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal consiste, assim, na «…enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.»[8]

Em suma, para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, a sentença tem que conter, também, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido»[9].

Com efeito, tendo em perspetiva a descoberta da verdade material – escopo último do processo penal português –, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “[s]alvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Como decorrência de tal princípio, ressalvado o valor probatório específico do caso julgado (artigo 84º), da prova pericial (163º), dos documentos autênticos e autenticados (169º) e da confissão integral e sem reservas (344º), no processo de formação da convicção do julgador, as primeiras regras a observar são, naturalmente, as da lógica – que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade –, seguidas pelas regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas.

Todavia, ainda que norteada pela lógica e pelas regras da experiência comum, a apreciação que o juiz do julgamento faz da prova não pode deixar de ser «... uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.»[10]

O sistema da prova livre não se abre, por assim dizer, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não se pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça[11].

Em suma, o juiz é livre no que respeita ao ato de traçar a arquitetura do raciocínio que está obrigado a construir com as provas disponíveis, incluindo as indiciárias, o qual conduzirá à aquisição de uma convicção sobre a existência, inexistência ou dúvida insuperável quanto aos factos sob julgamento[12], desde que observe o quadro normativo sobre as regras referentes à valoração e proibição de certos meios de prova e as exigências de motivação transparente e clara desse raciocínio lógico de forma a ser apreensível pelos destinatários da decisão e pelo cidadão comum.

Daí que a fundamentação adequada e suficiente da decisão assuma um papel tão essencial, constituindo uma exigência do moderno processo penal e realizando uma dupla finalidade: em projeção exterior (extra processual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intra processual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão[13].

Atenta a geometria variável da complexidade das situações, algumas vezes, o limiar entre a suficiência e a insuficiência da fundamentação é muito ténue, afigurando-se, porém, de meridiana clareza que estamos perante o segundo caso quando não permite apreender a razão de ser da decisão.

Por isso, a avaliação da (in)suficiência da fundamentação deve ser analisada casuisticamente – como se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2023 [processo 38/17.9YGLSB.S1], «…a apreciação da nulidade do acórdão por deficiências de fundamentação processa-se sempre em concreto, no contexto do recurso em que tal nulidade é suscitada. Pois os recursos não servem o aprimoramento de decisões menos perfeitas, servem sim a reparação de erros de julgamento. E se, mau grado eventuais défices de fundamentação da matéria de facto, a sentença/acórdão ainda se revela compreensível de modo a viabilizar totalmente a sindicância da matéria de facto no contexto do recurso interposto e da impugnação concretamente efetuada, permitindo a prolação de correta decisão pelo tribunal ad quem, não tem de haver lugar à declaração da nulidade.»

3.1.2- Ora, no caso vertente, analisada a motivação da decisão sobre a matéria de facto, afigura-se-nos que, efetivamente, o exame crítico das provas e, nessa estrita medida, a fundamentação da convicção alcançada pelo tribunal a quo não são suficientes para compreender os motivos da convicção e para apreciar a impugnação da matéria de facto.

            Com efeito, o tribunal a quo começa por explicitar o critério norteador da apreciação da prova e da aquisição da convicção a respeito dos factos objeto de julgamento e, de seguida, enuncia os concretos elementos probatórios em que alicerçou a sua convicção, nomeadamente as declarações prestadas pelo arguido, apenas no que concerne à sua situação pessoal e económica – uma vez que exerceu o direito ao silêncio quanto aos factos de que vinha acusado –, os depoimentos das testemunhas – AA e BB –, sintetizando o respetivo conteúdo, e a prova pericial – exame do Serviço de Química e Toxicologia Forenses, de fls. 4 dos autos – e documental – auto de notícia, de fls. 3 e 3v.; participação de acidente, fls. 5 a 7; declaração médica, de fls. 67; e certificado de registo criminal de fls. 71 a 72v.

            Subsequentemente, com relevo para a convicção sobre o núcleo essencial dos factos imputados ao arguido, o tribunal a quo exarou o seguinte:

«Ora, da prova assim produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, resultou, a nosso ver, cabalmente sustentada a acusação pública deduzida contra o aqui arguido ….

Com efeito, mau grado o silêncio a que se cometeu o arguido em audiência de discussão e julgamento quando à matéria factual imputada, a verdade é que o teor do depoimento prestado, em idêntica sede, pela testemunha …, em conjugação com a prova pericial e documental coligida nos autos e aí examinada, permite alcançar a sustentação da matéria que supra se fez inscrever em 1. e 2 da rubrica “Factos provados”: isto é, que no circunstancialismo espácio temporal indicado ocorreu um acidente de viação (por despiste) do motociclo com a matrícula …, com um único interveniente, transportado para o Hospital com ferimentos emergentes do mencionado despiste, pessoa que a aqui testemunha, dirigindo-se ao Hospital, veio a identificar cabalmente como sendo o aqui arguido, …, e que, mediante análise sanguínea, veio a evidenciar uma TAS de 2,26 – 1,97g/l, após deduzido o erro máximo admissível. …».

Como deflui cristalinamente do excerto da motivação transcrito, o tribunal a quo limita-se a afirmar, de forma lapidar, que o teor do depoimento da testemunha … – agente principal da P.S.P. que se deslocou ao local do acidente e, de seguida, ao Hospital –, em conjugação com a prova pericial e documental coligida nos autos, permite alcançar a sustentação da matéria inscrita nos pontos 1 e 2 –  …

Como sobressai com meridiana clareza, não explicita, desde logo, o tribunal a quo em que medida foi valorada a prova documental, como se impunha que fizesse, porquanto a testemunha … –  que elaborou o auto de notícia e a participação de acidente –, afirmou que não assistiu à ocorrência do mesmo e que quando acorreu ao local, no exercício das suas funções e por tal lhe ter sido ordenado, já ali não se encontrava ninguém, pelo que se dirigiu ao Hospital, onde identificou o arguido  e diligenciou pela realização de exame de pesquisa de álcool no sangue, o que suscita a questão do valor probatório dos referidos documentos, que foi abordada pelo ex.mo defensor do arguido nas alegações orais em audiência de julgamento [e, agora, em sede de recurso].

            Com efeito, a doutrina e a jurisprudência dividem-se quanto ao valor probatório do auto de notícia de crime – há quem entenda que se integra no âmbito do artigo 169º do Código de Processo Penal, de forma a atribuir-lhe um valor qualificado por via da sua equiparação a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n.º 2, e 369º do Código Civil, e quem entenda que não tem a força probatória que o sobredito artigo 169º confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo, é tão só um documento intra processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador[14].

A questão da natureza do documento não se confunde, porém, com a problemática da sua fé em juízo, no específico âmbito do processo penal e por força dos princípios acolhidos no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, atinentes às garantias da defesa. Isto, naturalmente, sem prejuízo de os documentos autênticos só fazerem prova plena dos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passam na sua presença (art.º 371º, n.º 1, do Código Civil) e de, no que se refere ao processo penal, ser admitido o contraditório (artigos 165º, n.º 2, e 327º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Como decorrência, o valor probatório do auto de notícia, como documento autêntico nos termos das disposições conjugadas dos artigos 169º do Código de Processo Penal e 371º, n.º 1, do Código Civil, circunscreve-se aos comportamentos presenciados e ao que foi percecionado diretamente pela autoridade policial, não se estendendo a outros contributos, mormente às declarações de terceiros aí eventualmente vertidas, nomeadamente as referentes ao relato dos eventos, por parte do queixoso, do suspeito ou de testemunhas. De resto, a valoração de declarações e depoimentos (formalmente) produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, antes da audiência de julgamento, e nesta reproduzidos, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme estipulado nos artigos 355º, 356º e 357º do Código de Processo Penal.

Impunha-se, por isso, que o tribunal a quo clarificasse como valorou os aludidos documentos, em face da circunstância de o agente policial não ter assistido aos factos e ter vertido no auto e na participação o que lhe foi referido pelo arguido, que exerceu o direito ao silêncio em audiência de julgamento.

Com efeito, não tendo a testemunha assistido ao acidente, nem, sequer, visto o arguido no local do mesmo, e entendendo-se que não pode ser valorado o que este último declarou verbalmente à primeira – “que circulava na referida artéria, quando passou com os rodados em cima da gravilha existente na via, entrando em despiste e caindo no solo” – e que foi vertido na participação de acidente, era imperioso que o tribunal a quo explicasse em que medida acolheu os documentos em causa. Ou seja, que esclarecesse qual a força probatória atribuída e, não sendo plena, quais os factos que entendeu que podiam ser valorados, porquanto ali são mencionados alguns que a testemunha percecionou diretamente [no local do acidente] e outros em que interveio [a identificação do arguido já no Hospital e o encaminhamento do mesmo para a realização de teste de pesquisa de álcool no sangue], e o que deles extraiu com relevo probatório, designadamente, de cariz indiciário.

E, por inerência, em face das sobreditas contingências, outrossim se impunha que explicitasse também qual o conteúdo probatório útil do depoimento da testemunha …

Na verdade, o segmento em que o tribunal a quo afirma que o teor do depoimento da testemunha …, em conjugação com a prova pericial e documental coligida nos autos, permite alcançar a sustentação da matéria de facto descrita nos pontos 1 e 2 , «…», inculca a ideia que não foi atribuída força plena ao auto de notícia e à participação de acidente, nem acolhido o depoimento da testemunha para efeito de comprovação de que o arguido conduzia efetivamente o motociclo, resultando, antes, tal convicção da conjugação dos enunciados factos indiciários extraídos dos documentos e do aludido depoimento testemunhal.

Mas, nesse caso, estando-se no domínio da prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunção, impunha-se que o tribunal a quo, de forma clara e inequívoca, explicasse quais os factos indiciários que extrai, de que concretos meios de prova e de que modo, analisados segundo os imperativos da lógica e os ditames da experiência comum sobre o normal acontecer das coisas, permitem inferir, sem margem para dúvida, que o arguido conduzia o motociclo no circunstancialismo de tempo e lugar em que ocorreu o acidente, de modo a tornar apreensível o raciocínio desenvolvido.

Contudo, o tribunal a quo limita-se a discriminar o que se afigura serem factos indiciários e a afirmar que «a prova produzida e examinada, apreciada à luz das regras da experiência comum», sustenta «que os factos ocorreram tal como descritos na acusação pública e que o arguido foi o seu autor».

Exigia-se, todavia, que esclarecesse se entende que estamos perante indícios que emergem da conjugação dos meios de prova e quais – nomeadamente, que foi constatado que existia um único veículo […] acidentado, por despiste, de que resultou um único ferido, que foi socorrido e transportado pelos bombeiros até ao hospital, onde foi identificado pelo agente da PSP autuante como condutor do dito veículo, e que o arguido é carteiro de profissão –, que explicitasse de que modo, correlacionando-os e analisando-os, segundo as regras da lógica e da experiência comum, apontam inequivocamente no sentido de que era o arguido que conduzia o motociclo no circunstancialismo em causa e se pronunciasse, ainda, sobre a (in)existência de contra indícios que neutralizem ou enfraqueçam aqueles – designadamente, a ausência de notícia de que o motociclo tenha sido furtado.

Tal explicitação é imprescindível para perceber que meios de prova que foram valorados, em que medida, compreender o raciocínio lógico dedutivo desenvolvido pelo tribunal a quo e permitir a sindicância da decisão sobre a matéria de facto.

Como decorrência, a falta de exame crítico da prova e de fundamentação de que padece a sentença inviabiliza por completo a apreciação da impugnação ampla da matéria de facto promovida pelo recorrente, que constitui a segunda questão a dirimir no presente recurso.

Afigura-se, pois, inquestionável que a sentença alvo de recurso padece de nulidade por falta de exame crítico da prova e de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

            De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 379º, “[a]s nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º”.

            No caso vertente, atento o motivo da nulidade, que se prende com a formação e a expressão da convicção sobre a matéria de facto, é evidente que é impossível a este tribunal de recurso suprir a apontada nulidade e que apenas o tribunal a quo que proferiu a decisão inquinada o pode fazer.

            Ante o exposto, caberá ao tribunal recorrido proferir nova sentença, em que repare a nulidade supra apontada.

            Como decorrência, fica prejudicada a apreciação da segunda questão recursiva, visando aferir da (in)existência de erro de julgamento quanto a alguns pontos da matéria de facto.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar nula a sentença recorrida, determinando a elaboração de nova sentença, pela mesma subscritora, que supra a apontada nulidade por falta de exame crítico da prova e de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.


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Não é devida tributação [cfr. artigo 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal].

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            Notifique [artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 09 de outubro de 2024

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Helena Lamas

[1.ª Adjunta]

Fátima Sanches

 [2.ª Adjunta]


[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.


[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Por lapso, escreveu-se 208º, mas o teor do preceito transcrito não deixa margem para dúvidas que se pretendia escrever 205º.
[4] Diploma a que pertencerão todas as disposições doravante citadas sem expressa menção de origem.
[5] Vide Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol. III, pág.292.
[6] Cfr. o acórdão n.º 312/2012 do Tribunal Constitucional, disponível para consulta no sítio da internet com o endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos
[7] Marques Ferreira - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 229/230.
[8] Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-10-2008, citando o acórdão do mesmo Tribunal, de 03-10-2007, Proc. n.º 07P1779 -3.ª, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt.

[9] Cfr. o acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/1992, CJ, Tomo I, pág. 36, e o acórdão do Tribunal Constitucional de 2/12/98, DR Ia Série, de 05/03/1999.
[10] Vide Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", 1º volume, Coimbra, ed. 1974, págs. 203 a 205.
[11]  Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR, II Série, de 12.01.1998
[12] Vide Alberto Ruço, “Prova Indiciária”, Coimbra, 2013, pág. 9
[13] Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2005, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[14] Para maior desenvolvimento da questão, pode ver-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.2022, proferido no processo 62/17.1PKLSB.L1-3, por nós relatado, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt