Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
113/09.3TBSBG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO NEGATÓRIA DE SERVIDÃO
ÓNUS DA PROVA
EXTINÇÃO
ATRAVESSADOURO
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTº 341º, NºS 1 E 2 DO C.CIV.
Sumário: I – Numa acção de reivindicação na qual o demandante pretenda obter o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio, alegando à partida inexistir nesse mesmo prédio um “caminho público” no qual o demandado (o Município), por o considerar como tal, realizou obras, tal acção configura-se, na sua estrutura argumentativa, como “acção negatória” desse caminho (do direito correspondente), visando, em última análise, a afirmação pelo tribunal da inexistência do dito caminho público.
II – Numa acção deste tipo – fundamentalmente uma acção de simples apreciação negativa – o ónus da prova incumbe ao demandado que afirma a existência desse caminho, nos termos do artigo 343º, nº 1 do CC.
III – E também sempre incumbiria ao demandado esse ónus da prova, em função da oposição deste à pretensão reivindicatória do demandante sobre o espaço que aquele afirma corresponder ao leito do tal “caminho público”, isto por a invocação do caminho funcionar, neste quadro argumentativo, como invocação de uma excepção (v. o artigo 342º, nº 2 do CC).
IV – Em qualquer caso, incumbindo ao demandado o ónus da prova da existência do dito “caminho público”, conduzirá um non liquet final quanto a essa existência à prolação de uma decisão favorável ao demandante (artigo 516º do CPC), caso este tenha demonstrado o respectivo direito de propriedade sobre o prédio.
V – Tendo em conta que o artigo 1383º do CC de 1967 extinguiu os atravessadouros em geral, exceptuando apenas aqueles “[…] com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade […]” (artigo 1384º do CC), a afirmação da dominialidade de um caminho – a sua natureza de “caminho público” – implicará, para que exista uma identidade de razão com a teleologia presente nesse artigo 1384º, a demonstração de uma afectação por um uso das populações desde tempos imemoriais, uso que tem de ser referido a uma concreta utilidade pública e não à mera utilidade decorrente do encurtamento de distâncias entre prédios pelos utentes dos terrenos vizinhos do afectado.
VI – O Assento do STJ de 19/04/1989 foi, na prática, exautorado pelo Acórdão do STJ de 10/11/1993, passando a valer (como fixação de jurisprudência), tão-só, como precedente persuasivo, a seguinte asserção estabelecida no Acórdão de 1993: “I - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. II - Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383º do Código Civil”.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 02/02/2008[1] A… (A. e aqui Apelante) demandou o Município de B… (R. e Apelado), invocando a invasão por esta autarquia de um prédio rústico (“Rio Mendo”) cuja propriedade invoca, no quadro – invocado pela R. – da beneficiação de um “caminho público”. Ora, negando a A., à partida, a existência desse caminho (de qualquer caminho no seu prédio e, em concreto, de um caminho com essa natureza), formula os seguintes pedidos:
“[…]
[Ver]
a) reconhecido o direito de propriedade a favor da A. sob parcela do terreno, em toda a sua largura e extensão, onde o R. se permitiu abrir o referido caminho;
b) entregar a referida parcela de terreno, propriedade da A., pedido a que se atribui o valor de €40.000,00, e ainda condenado [o R.] a pagar:
c) uma indemnização à A. por danos patrimoniais no montante de €51.417,14;
d) uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de €18.000,00.
[…]”
            [transcrição de fls. 184][2].

            1.1. O R. contestou afirmando esse carácter de caminho público do espaço reivindicado pela A., pugnando pelo não atendimento da pretensão reivindicatória desta quanto ao espaço do prédio coincidente com o leito do caminho.

            1.2. Foi o processo saneado e condensado a fls. 282/288 e teve lugar o julgamento[3]. Findo este, fixados que foram os factos provados por referência à base instrutória (despacho de fls. 517/518), foi a acção decidida no sentido da parcial procedência pela Sentença de fls. 521/535 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, sendo que a improcedência referida ao pedido da A. se traduziu na aceitação de que o espaço reivindicado constituía um caminho público[4].

            1.3. Inconformada com este resultado, apelou a A., concluindo em sede de motivação do recurso o seguinte:
“[…]
            [transcrição de fls. 611/618].


II – Fundamentação

            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante – acabámos de as transcrever no item anterior – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[5]. Com efeito, fora das conclusões só valem, em qualquer recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando o modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões fundamentos) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            2.1. Numa primeira aproximação ao objecto do recurso detectamos logo – e trata-se de um fundamento, não de um simples argumento[6] – uma arguição de nulidade dirigida à Sentença e traduzida numa propalada falta de especificação dos fundamentos de facto dessa decisão (artigo 668º, nº 1, alínea b) do CPC). Ora, sendo evidente que a Sentença, por via do despacho contendo as respostas aos quesitos enunciados na base instrutória, contém inequivocamente os factos aos quais aplica no seu percurso expositivo o Direito, consideramos que se está, nesta particular vertente do recurso, perante um fundamento inconsistente, sendo evidente que o desvalor (a nulidade) previsto(a) na indicada alínea se refere à falta absoluta de especificação desses fundamentos de facto – e é assim que esta Relação o entende – e não à divergência quanto aos factos fixados, sendo que a este último desvalor – à discordância quanto aos factos – corresponde, como aqui sucede na realidade, a impugnação recursória. Importa ter presente que a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC, tal como todas as alíneas do mesmo nº 1, se refere aos desvalores da própria sentença, enquanto documento de conteúdo vinculado e parâmetros definidos (valem, quanto àquele e a estes, as regras constantes dos artigos 658º e seguintes do CPC e o artigo 668º fixa a consequência da infracção destas regras), sendo coisa distinta desses desvalores a crítica ao conteúdo da decisão, enquanto acto de fixação dos factos e de aplicação (a esses mesmos factos) do direito. Na essência desta diferença se radica a distinção, por referência aos valores jurídicos negativos de uma sentença, entre inexistência jurídica e nulidade desta, por um lado, e, por outro lado, revogabilidade do respectivo pronunciamento[7]. É, pois, neste último elemento, e não na nulidade da Sentença, que se encontra o espaço de intervenção desta Relação no presente recurso, por referência às críticas da Apelante à decisão, cumprindo sindicar aqui o acto de julgamento em si, e não o processo de formação do elemento que serviu de suporte a esse acto.

            Não existe, pois, e assim se aprecia o primeiro fundamento do recurso, a nulidade invocada pela Apelante logo na primeira conclusão das alegações.

            2.2. Refere-se o recurso – e esse traduz o elemento preponderante e efectivamente relevante – à crítica aos factos fixados na primeira instância, através das respostas fornecidas a diversos quesitos da base instrutória. Pretende a A./Apelante o exercício por esta Relação do poder de actuação sobre os factos, nos termos do artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC, sendo evidente ter ela cumprido os ónus decorrentes das duas alíneas do nº 1 do artigo 685º-B do CPC. Crítica a Apelante, neste fundamento, as respostas dadas na primeira instância aos quesitos 3 (não provado[8]), 6, 7 (provados restritivamente e que originaram a alínea t) dos factos), 9 (não provado[9]), 10 (não provado[10]), 11 (não provado[11]), 12 (provado restritivamente e que originou a alínea v) dos factos), 16 (provado restritivamente e que originou a alínea cc) dos factos), 23 e 24 (provados e que originaram, respectivamente, as alíneas ii) e jj) dos factos. Note-se que, não indicando a Apelante nas conclusões, expressamente, o quesito 24, percebe-se de todo o contexto do recurso, designadamente das referências ao quesito 23, que está igualmente em causa o quesito 24 que complementa logicamente o antecedente quesito 23; foi o conjunto destes, aliás, que propiciou a decisão da acção no sentido em que o foi[12] e, com efeito, só atacando os factos resultantes da resposta a estes dois quesitos o recurso incidente sobre a matéria de facto terá sentido e será operante relativamente à questão da existência ou não do caminho público.

Claro que, e este traduzirá um possível segundo fundamento do recurso subsequente à apreciação da matéria de facto, o atendimento das críticas da Apelante à impugnação dos factos induzirá uma nova operação subsuntiva, visando julgar (esta instância por substituição à precedente) a acção por referência ao novo elenco (v. o item 2.3., infra).

            Importa, pois, avançar na apreciação dos factos.

2.2.1. Como pressuposto da apreciação dos factos indicaremos desde já a base de trabalho – quais os factos – que se nos oferece(m) como resultado do julgamento em primeira instância. Tal indicação apresenta, na lógica expositiva deste Acórdão, a provisoriedade decorrente de estar em causa, pendente de apreciação – digamo-lo assim – o fundamento central do presente recurso que se traduz, precisamente, na pretensão de actuar sobre esses factos, alterando-os em determinados trechos muito significativos para o resultado da acção. Feita esta advertência de provisoriedade, aqui transcrevemos o rol dos factos provados segundo o entendimento do Tribunal a quo:
“[…]
[transcrição de fls. 524/528, com sublinhados aqui acrescentados, referidos aos pontos (positivos) da matéria de facto criticados pela Apelante].

2.2.2. Preambularmente à apreciação dos factos em si mesmos, deixamos nota, a respeito do tipo de controlo da prova testemunhal aqui realizado, no quadro dos poderes de actuação sobre a matéria de facto decorrentes dos nºs 1 e 2 do artigo 712º do CPC, deixamos aqui nota, dizíamos, do enquadramento do acesso aos factos por esta instância no presente recurso. Este Tribunal, sublinha-se, ouviu integralmente e por mais de uma vez, o registo áudio de toda a prova testemunhal recolhida nas duas fases de julgamento (a segunda delas decorrente da repetição anteriormente ordenada por esta instância), e controlou – controlará, queremos nós dizer – esse meio de prova numa base ampla, resultante de uma valoração autónoma – de uma livre apreciação autonomizada da da primeira instância – dessa fonte de prova, compaginada com as restantes fontes de prova, sendo que este tipo de apreciação e de acesso aos factos, em cujo poder este Tribunal se considera investido, revê-se e justifica-se, nessa sua amplitude, no entendimento doutrinariamente qualificado como “tese do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos[13].

2.2.2.1. A questão fulcral aqui discutida a propósito da matéria de facto refere-se à caracterização do caminho ou da simples passagem beneficiado(a) (isto no sentido de arranjado para melhor desempenhar a função de caminho tida em vista) pelo R., nos termos que originaram a configuração deste caminho ou passagem que vem indicada na alínea m) dos factos, enquanto caminho público, como defende o R. e viria a ser aceite pelo Tribunal a quo na Sentença. Lembramos que essa questão passou, na dinâmica do julgamento ora apelado, pelas respostas negativas aos quesitos 3, 9 e 10 e, no que respeita à matéria de facto positivamente fixada, pelas respostas aos quesitos 6 e 7 (que agregadamente originaram a alínea t) dos factos) e, principalmente, pelas respostas aos quesitos 23 e 24 (que originaram, respectivamente, as alíneas ii) e jj) dos factos).

A respeito da caracterização do caminho como público, importa sublinhar um elemento central da dinâmica argumentativa desta acção, sendo que é dessa caracterização que emergirá a correcta alocação do ónus da prova (do ónus da prova da natureza do caminho indicado em m) dos factos como caminho público[14]). Referimo-nos à estrutura profunda da presente acção, enquanto verdadeira acção negatória[15] da A. reportada à existência (maxime, à negação da existência) de um caminho público afirmada pelo R. (o que se confirmou plenamente[16] com a contestação deste, v. item 1.1. supra, cfr. fls. 88, artigo 13º dessa contestação), sendo tal circunstância adiantada pela A., como argumento justificativo da reivindicação, logo no articulado inicial (cfr. os respectivos artigos 24º, 25º e 27º a fls. 174/175). É certo que o pedido formulado pela A. foi tipicamente reivindicatório, mas, todavia, para quem se atém à realidade e não à aparência das coisas, a estruturação deste pedido por referência à parcela ou espaço da propriedade da A. ocupada pelo caminho, conjugada com a negação de qualquer dominialidade pública sobre esse espaço e, enfim, com a posterior defesa do R., assente na existência de um caminho público, todos estes elementos conjugados, dizíamos, tornam claro o carácter à partida negatório da acção intentada pela A. relativamente à inexistência desse caminho público.

Vale esta constatação – rectius, vale esta caracterização da dinâmica argumentativa da acção – enquanto alocação do ónus da prova da existência do caminho público atravessando o prédio da A. ao R. (não à A.), sendo que, em função disto, a regra de decisão que se formará no caso de um non liquet probatório[17] traduzir-se-á na não prova da existência desse caminho, afirmado na sua existência pelo Município R., nos termos do artigo 343º, nº 1 do Código Civil (CC)[18]. Aliás, à mesma conclusão e resultado – alocação do ónus da prova ao R. e decisão contra este face a um non liquet – chegaremos com base na consideração da afirmação pelo R. da existência do caminho como público, enquanto excepção (facto extintivo do direito transmitido à A. traduzido na dominialidade pública), desta feita por referência ao artigo 342º, nº 2 do CC.

Assim, encarando o teor do quesito 3, respondido negativamente pela primeira instância, no qual se pergunta, fundamentalmente, se o caminho público não existia (pergunta-se, portanto, o que é que não existia), deparamo-nos, desde logo, com uma quesitação cuja estrutura lógica consideramos errada, na medida em que assenta numa formulação negativa (pergunta-se o que é que não existia) e que acaba por reconduzir o ónus da prova, inadequadamente como antes indicámos, a quem disse que o caminho não existia: a A. Trata-se, pois, de um quesito imprestável, que convocaria a probatio diabolica de um facto negativo para o seio desta acção e que sempre assentaria numa incorrecta alocação do ónus da prova. Foi correcta, portanto, e desde já se confirma, a formulação de uma resposta negativa ao dito quesito 3, enquanto forma de o julgador de facto expressar a inexistência dessa asserção negativa. É o que aqui, neste recurso, se afirma: a inexistência desse quesito 3 e logo a sua não consideração por este Tribunal da Relação.

A questão da existência do caminho público atravessando o prédio da A., desta feita afirmada pela positiva nos quesitos 23 e 24, caminho que com essa natureza é invocado pelo Município R., prende-se, assim, fundamentalmente, com esses dois quesitos, cujas respostas irrestritamente positivas originaram as alíneas ii) e jj) do elenco fáctico: “[h]á mais de 40, 50, 60 anos que no prédio identificado em a), existe um caminho, com as dimensões e características referidas em m), que se destina ao uso directo e imediato do público” e, “[d]esde sempre que [esse] caminho […] visou a satisfação de interesses colectivos, nomeadamente acesso a prédios a montante e a jusante do prédio identificado em a)”.

Existe na formulação destes quesitos, mais expressivamente no segundo deles (no quesito 24), uma inadequada essência conclusiva (v. o que antes dissemos na nota 15 supra) traduzida na substituição dos elementos que poderiam alicerçar a qualificação do caminho como público, que, portanto, permitiriam decidir a acção no sentido visado pelo Município R., logo pela conclusão da verificação dessa dominialidade no quadro da afirmação, sem base fáctica real, de satisfazer esse caminho “[…] interesses colectivos,  nomeadamente acesso a prédios a montante e a jusante do prédio [da A]”. Acaso o Tribunal entende que o acesso a prédios vizinhos do da A. pelos respectivos proprietários configura um “interesse colectivo”, esquecendo que para isso existem as servidões prediais, não a dominialidade pública? Se é este o entendimento do Tribunal – e aparentemente será – deveria tê-lo explicitado devidamente resolvendo o problema interpretativo que esse mesmo entendimento gera, como já de seguida veremos, face ao teor dos artigos 1383º e 1384º do CC. Embora a alegação da R. não permitisse em rigor uma quesitação muito mais precisa dos elementos caracterizadores da dominialidade pública do caminho, haveria aqui, seguramente, espaço para uma estruturação interrogativa diferente daquela que originou os mencionados quesitos, mesmo que isso passasse pela actuação dos mecanismos previstos no artigo 264º, nº 3 do CPC e, em julgamento, do artigo 650º, nº 2, alínea f) do CPC.

Seja como for, face aos concretos quesitos formulados e respondidos, trata-se de determinar se a prova produzida suporta a asserção de que um caminho alegadamente existente de antanho no prédio da A. assumiu ao longo do tempo a natureza de meio de satisfação de interesses públicos com um grau qualificado de relevância, como é próprio dos caminhos públicos cuja dominialidade decorra de uma afectação que não tenha revestido a natureza de um acto formal e que, em função da ausência deste tipo de acto, tenha sido induzida por um persistente uso das populações referido a esses mesmos interesses públicos.

Vale, quanto a este elemento, a caracterização de um caminho como público no quadro da abolição dos atravessadouros pelos artigos 1383º e 1384º do Código Civil de 1967[19], tendo presente que a excepção estabelecida no artigo 1384º, na sua intencionalidade projectiva, só subtrai à abolição dos atravessadouros as situações de uso imemorial de trilhos e passagens rurais reportadas a um acesso que comungue das mesmas características teleológicas – chamemos-lhe assim para nos referirmos à mensagem normativa contida no artigo 1384º do CC, ao seu espírito –, de satisfação de um relevante interesse púbico (não de um interesse privado mesmo que plurisubjectivo). Com efeito, se são reconhecidos – logo não se consideram extintos, como decorreria à partida do artigo 1383º do CC[20] – os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, o “salto” para a dominialidade pública, rectius a afirmação desta dominialidade, relativamente a outros atravessadouros que não se dirijam a ponte ou fonte (é manifestamente o caso do caminho aqui em causa) terá de assentar na persistência da cobertura teleológica da norma, expressa na presença de um relevante interesse público na manutenção daquele encargo de passagem sobre prédio alheio, que constitui a essência da excepção estabelecida no artigo 1384º. É que, como salientam Pires de Lima e Antunes Varela, anotando este artigo 1384º e expressando a racionalidade do preceito, “[a]s pontes ou fontes a que se dirige o atravessadouro devem ser de manifesta utilidade pública […]”[21]. Ora, se assim é – e estamos convictos que não pode deixar de assim ser –, falta-nos neste caso a explicitação de quais os interesses colectivos servidos por esta passagem, antes da beneficiação (interesses que já antes da beneficiação a referiam a um interesse público[22]), e que esse propalado “interesse colectivo” corresponda, entre outros (não identificados na alínea jj) dos factos), “nomeadamente” como diz o Tribunal a quo, ao acesso a prédios a montante e a jusante do prédio da A. Com efeito, não se vê como o acesso a estes prédios pode configurar, em si mesmo e sem mais dados que aqui não foram fornecidos ou pesquisados, uma manifesta utilidade pública, que esteja para além da utilidade, por grande que ela seja, dos particulares, muitos ou poucos, que circunstancialmente precisem de aceder a esses outros prédios. Esqueceu o Tribunal de primeira instância que esse tipo de acesso, mesmo ocorrendo há mais de 60 anos e mesmo que correspondesse a um “uso directo e imediato do público”, traduzido em passar sobre o prédio da A.[23], sempre configuraria, sem mais elementos, um uso tributário de uma servidão de passagem e nunca de uma dominialidade pública exercida sobre essa via. Isto, sem a demonstração – e aqui não ocorreu, como veremos, essa demonstração – dos requisitos inerentes à dominialidade. Com efeito – e recorremos de novo ao que indicam Pires de Lima e Antunes Varela (desta feita anotando o artigo 1383º do CC):


“[…]
Sempre que […] o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383º, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem entrou no domínio público, através de alguns dos títulos por que pode ser adquirida a dominialidade.
[…]”[24].

            Neste caso, a Câmara Municipal de …, ora R. e Apelada, não só não indicou elementos dos quais pudéssemos extrair, para posterior exploração temática no julgamento, a presença dessa dominialidade e, como seria de esperar, também não provou essa circunstância à partida ausente do respectivo argumentário. É assim que a afirmação, pelo Tribunal do Sabugal, de se tratar de um caminho público o espaço reivindicado pela A., pela simples referência às alíneas ii) e jj) dos factos (e nem isso – o que delas consta –, como veremos, está provado nesses exactos termos), nos aparece, reflexamente, como um erro de valoração dos factos disponíveis e, em resultado desse erro, como um incorrecto julgamento da causa, nos termos em que a mesma foi colocada ao Tribunal.

            2.2.2.2. Esta questão – os diversos modos de aquisição da dominialidade no quadro da afirmação da existência de um caminho público – foi desenvolvidamente tratada, muito recentemente, na jurisprudência deste Tribunal (1ª Secção Cível), através do Acórdão de 26/06/2012 (Barateiro Martins), proferido no processo nº 465/03.9TBLRA.C1, ainda inédito (escrevemos em 28 de Junho) e cujo entendimento comungamos inteiramente e seguiremos em muitos pontos da presente exposição.

            Interessa recordar a este propósito, caracterizando o modelo interpretativo que possibilitaria construir a dominialidade de um caminho sem acto de afectação expresso à utilidade pública, que o STJ proferiu, em 19/04/1989, um Assento (e a decisão recorrida aludiu a tal incidência no seu texto), o qual valeria agora, desde a reforma de 1995, como jurisprudência fixada[25], declarando “[serem] públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público” (Assento nº 7/89; Solano Viana)[26]. A controvérsia gerada em torno deste pronunciamento (em última análise poderíamos vê-lo como contra legem, por referência aos artigos 1383º e 1384º do CC), viria a originar um posterior pronunciamento contextualizador – exautorador, em nossa opinião – desse Assento, pelo próprio STJ, através do Acórdão de 10/11/1993 (Martins da Costa)[27], cujo sumário na base do ITIJ aqui transcrevemos: “I - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. II - Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383º do Código Civil”[28]. É este o pronunciamento que em nosso entender passou a valer como precedente persuasivo, substituindo o anterior entendimento do STJ.

            Assim, a sempre necessária aquisição ritualmente relevante de carácter dominial de um determinado caminho, enquanto pressuposto da existência de um caminho público (dimensão do problema aqui colocado que foi totalmente ignorada na primeira instância), implica a presença de um dos seguintes elementos (e seguimos a caracterização desta questão que é comum na nossa Doutrina):
“[…]
A atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria do domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
Não é forçoso que concorram estes três requisitos: um só pode bastar […]. Na verdade:
– há bens cuja dominialidade depende apenas da genérica disposição da lei, completada, ou não, por meras operações de delimitação da parte sobre a qual se exercerão os direitos dominiais (ar atmosférico, águas marítimas…);
– há coisas que entram no domínio depois de se verificar, por lei ou acto administrativo, possuírem o atributo típico da classe genericamente considerada dominial  (classificação de uma via férrea como de interesse público, de uma água como mineromedicinal, de um museu como nacional, etc.);
– finalmente, quanto outras coisas pertencentes a uma categoria que a lei considera do domínio público, a integração em cada caso concreto depende de um acto especial de afectação, isto é, de aplicação do imóvel ao fim de utilidade pública justificativo da dominialidade (abertura ao público do uso de uma estrada ou de uma linha telegráfica).
A afectação não é incompatível com a classificação: muitas vezes à classificação segue-se, completadas as obras necessárias, a afectação ao uso público, por acto administrativo ou por mero facto, dos bens classificados.    
[…]”[29].

            Assim, a indicada reinterpretação do Assento de 1989 pelo Acórdão de 1993, ao reconduzir o primeiro pronunciamento a um domínio de compatibilidade com a globalidade do ordenamento jurídico (rectius, com os artigos 1383º e 1384º do CC) – pronunciamento este que exautorou e substituiu o de 1989, passando ele a valer como precedente persuasivo em substituição daquele[30] –, assenta esta reinterpretação, dizíamos, na ideia de que o acto expresso de afectação a uma concreta utilidade pública, facilmente reconhecível pela sua própria natureza, pode ser suprido através da prova de um uso imemorial, absolutamente enraizado na prática ancestral daquela população, desde que esse uso – mas só se esse uso –, com essa projecção temporal, seja referido a uma evidente utilidade pública: seja referenciado à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Estes interesses, todavia, carecem de ser provados por quem afirma esta constituição algo sui generis de dominialidade, têm de ser demonstrados, enfim, por quem afirma estar-se perante um caminho público.

            Ora, é esta prova que aqui, entende-o este Tribunal da Relação valorando toda a prova produzida no decurso do processo, a interessada Câmara Municipal de … não logrou alcançar, mesmo que entendêssemos – e logo isso é particularmente duvidoso – que os factos integrantes dessa utilidade pública à qual se referiria o uso do caminho desde tempos imemoriais teriam sido adequadamente alegados (para além da afirmação de estar em causa um “caminho público”).

            Como já antes sublinhámos na nota 24 deste texto, algumas testemunhas, caso de … e de … (a primeira tem 87 anos de idade e a segunda 66), sendo ambas testemunhas do rol da A., aludiram a uma prática antiga (mas que sempre projectaram à sua experiência vivida; não seria, portanto, propriamente um uso imemorial) de passar algumas vezes sobre um trilho que coincidiria, segundo o contra-interrogatório do Mandatário do R., com o espaço integrante do prédio da A. Todavia, além dessa circunstância ter sido sempre referida em termos espacialmente muito imprecisos (que não tornam evidente uma colocação dessa passagem, o dito “caminho da Veiguinha”, exactamente sobre o prédio da A., facto que ambas as testemunhas negaram[31]), nenhuma destas, e nenhuma das outras testemunhas que se referiram à existência de um caminho[32], caracterizou qualquer utilidade desta passagem que não se reduzisse à facilitação do acesso a outros prédios circundantes do da A. Ora, esta alegada utilidade, na falta de outros elementos de referenciação[33], apenas configurará a utilidade (privada), instrumentalmente limitada – iura in re aliena –, própria de uma servidão de passagem e não o tipo de utilidade (colectiva) inerente ao que poderemos qualificar como utilidade pública decorrente de um uso reiterado.

            O problema que se colocou com o caminho aqui em causa (com o caminho com as características indicadas na alínea m) dos factos[34]) resultou – isto na valoração por este Tribunal da Relação de toda a prova –, como expressivamente relatou a testemunha …, o Presidente da Junta de Freguesia de … (e foi confirmado pela testemunha …), da necessidade de realizar um caminho no quadro do programa comunitário ao qual concorreu a Autarquia, sendo que esta testemunha (…) terá “perguntado” a várias pessoas por onde passaria um caminho habitualmente usado naquela zona, por ter a tal respeito “algumas dúvidas”, decidindo “mandar avançar as máquinas”, com base em indicações que reconheceu serem algo vagas[35], escudando-se na carta militar de fls. 294, esquecendo que se tratava de determinar a existência de um “caminho público” e que essa carta militar, como se esclareceu sem dúvida alguma a fls. 344/345, não identifica caminhos públicos, identifica vias de passagem existentes no terreno, com a configuração de caminhos e que tanto podem ser caminhos públicos como servidões prediais em benefício de determinados prédios ou, tão-só, passagens aparentes das quais existem vestígios estáveis (permanentes) no terreno (v. nota 24, supra)[36].

            Porém, foi com esta base muito pouco sólida (como expressivamente indicou no julgamento o Senhor Juiz à testemunha …) que o Município R. se “apossou”, percebeu-se agora que por indicação (precipitada) do Presidente da Junta de …, de terreno pertencente à A. para concretização de uma via rural com as características indicadas na alínea m) dos factos, sendo que o entendimento de que aí existia um caminho público, de antanho, só assentou nessa escassíssima base. O Tribunal a quo não dispunha, assim, de elementos que lhe permitissem afirmar – qual conclusão sem premissas – que algum caminho ou passagem que existisse sobre o prédio da A. assumia a natureza de um caminho público, no qual a R. pudesse, sem mais, realizar obras, por estar esse espaço subtraído à propriedade da A. e afecto a uma utilidade pública (e é disso que aqui se trata, de saber se existia um caminho público antes dessas obras).

            2.2.2.3. Vale esta afirmação, e tudo o que a antecedeu e justificou no processo argumentativo deste Acórdão, pela negação de que as duas respostas aos quesitos 23 e 24, que originaram as alíneas ii) e jj) do elenco fáctico acima transcrito, sejam as adequadas à prova produzida, nos termos em que esta Relação valora racionalmente essa mesma prova. Vale isto, enfim, pela alteração, nos termos do artigo 712º, nº 1 do CPC, dessas respostas aos quesitos 23 e 24, eliminando-se a alínea jj), passando a alínea ii) a ter a seguinte redacção:


ii) Há mais de 60 anos que no prédio identificado em a) existia uma passagem assinalada no solo que, depois de beneficiada pela Câmara Municipal do … passou a ter as características referidas em m), passagem esta que era utilizada pelos proprietários de terrenos colindantes com o da A. para acesso a esses terrenos[37].

            Igualmente num quadro de coerência com a prova, no sentido em que esta Relação a valora, e valendo fundamentalmente os mesmos argumentos já antes desenvolvidos, entendemos ser adequado introduzir a seguinte alteração na alínea t) dos factos (resultante da resposta agregada aos quesitos 6 e 7 da base instrutória):


t) No âmbito da candidatura referida em e) o R. alargou e beneficiou a passagem referida em ii) infra.

            No que respeita às respostas negativas impugnadas pela Apelante (descontando o quesito 3 já acima focado no item 2.2.2.1. e que temos por não escrito), consideramos a prova produzida insuficiente para suportar as asserções presentes nos quesitos 9 e 10 (v. notas 10 e 11, supra) quanto a elementos no terreno associados a qualquer passagem aí existente anteriormente aos trabalhos realizados pelo R. (note-se que isso não foi afirmado e a Carta Militar existente nos autos pouco ou mesmo nada nos esclarece a esse respeito). E isto vale igualmente para o quesito 11 (nota 12, supra), sendo manifestamente incompatível com a prova uma descrição tão expressiva e intensa quanto o é a afirmação de ter o prédio da A. ficado “vandalizado”. O que se sabe – e só isso se sabe – é que entraram alguns animais no terreno e que destruíram algumas plantas e que foram destruídos alguns troços de rede mandada colocar pela A. (o que acarretou o prejuízo que de seguida caracterizaremos). 

2.2.2.3. Finalmente, quanto à resposta ao quesito 16, que originou a alínea cc) dos factos, vale o depoimento da testemunha …, a pessoa que a A. contratou para colocação da vedação que, posteriormente, com os trabalhos indicados na alínea t), ficou parcialmente inutilizada. Esta testemunha afirmou, peremptoriamente, que a reparação desses estragos importará em €2.000,00, sendo a esta incidência que a resposta aqui em causa deve ser reconduzida. Daí que haja que introduzir, por fidelidade à prova testemunhal (no quadro da actuação prevista no artigo 712º, nº 2 do CPC) e visando evitar uma incongruência com a alínea bb) dos factos (evitando desta feita a anulação prevista no nº 4 do artigo 712º do CPC[38]), haverá que introduzir, dizíamos, uma alteração na alínea cc) dos factos, a qual passará a ter a seguinte redacção:


cc) Com o alargamento referido em t) o R. inutilizou alguns troços da vedação referida em r), sendo que a reparação destes importará em €2.000,00.

            2.3. Resulta dos antecedentes itens uma significativa recomposição do elenco dos factos – procede substancialmente, pois, essa dimensão do recurso da A. – e, consequentemente, a necessidade de julgar, em substituição da primeira instância, a acção, no sentido da procedência da reivindicação e de alguns dos pedidos indemnizatórios.

            Assim, a procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado em a) dos factos deve incluir, conforme resultava do articulado inicial e decorre da indemonstração do direito invocado pelo R., o espaço ocupado pelo caminho indicado em m) do mesmo rol de factos, com a consequente entrega à A. deste espaço (artigo 1311º, nº 1 do CC).

            No que tange aos pedidos indemnizatórios, lembramos aqui que estes, assentando numa imputação delitual decorrente de violação do direito de propriedade da A. (artigo 483º, nº 1 do CC) visavam o ressarcimento de danos patrimoniais (que a A. avaliou em €51,417,14) e de danos não patrimoniais (estes avaliados em €18.000,00). Quanto aos primeiros – aos danos patrimoniais –, sendo certo que o ónus da prova da ocorrência dos mesmos incumbia à A., deparamo-nos com a falta de caracterização de prejuízos concretos para além dos estragos na rede de vedação do prédio, cuja reparação importará em €2.000,00 (v. a alínea cc) dos factos recomposta no âmbito do julgamento deste recurso, nos termos indicados no item 2.2.2.3. supra)[39]. Relativamente aos danos não patrimoniais (artigo 496º, nº 1 do CC), estando caracterizados elementos que suportam, numa apreciação objectiva, a existência e ressarcibilidade desta dimensão do dano global da A. (v. as alíneas dd), ee), ff) e gg) dos factos), entende este Tribunal quantificar este tipo de dano, recorrendo a uma avaliação equitativa e equilibrada da situação (artigo 496º, nº 3 do CC), em €4.000,00.

            São estes os valores indemnizatórios a fixar (correspondem a um total de €6.000,00) no quadro da procedência global da acção, decorrente do atendimento do recurso da A.

            2.4. Previamente à formulação decisória deste resultado da apelação, aqui deixamos sumariado o essencial do percurso expositivo deste Acórdão (nos elementos que entendemos apresentarem vocação projectiva para além do caso concreto), conforme constitui encargo do relator, nos termos do nº 7 do artigo 713º do CPC:


I – Numa acção de reivindicação na qual o demandante pretenda obter o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio, alegando à partida inexistir nesse mesmo prédio um “caminho público” no qual o demandado (o Município), por o considerar como tal, realizou obras, tal acção configura-se, na sua estrutura argumentativa, como “acção negatória” desse caminho (do direito correspondente), visando, em última análise, a afirmação pelo tribunal da inexistência do dito caminho público;
II – Numa acção deste tipo – fundamentalmente uma acção de simples apreciação negativa – o ónus da prova incumbe ao demandado que afirma a existência desse caminho, nos termos do artigo 343º, nº 1 do CC;
III – E também sempre incumbiria ao demandado esse ónus da prova, em função da oposição deste à pretensão reivindicatória do demandante sobre o espaço que aquele afirma corresponder ao leito do tal “caminho público”, isto por a invocação do caminho funcionar, neste quadro argumentativo, como invocação de uma excepção (v. o artigo 342º, nº 2 do CC);
IV – Em qualquer caso, incumbindo ao demandado o ónus da prova da existência do dito “caminho público”, conduzirá um non liquet final quanto a essa existência à prolação de uma decisão favorável ao demandante (artigo 516º do CPC), caso este tenha demonstrado o respectivo direito de propriedade sobre o prédio;
V – Tendo em conta que o artigo 1383º do CC de 1967 extinguiu os atravessadouros em geral, exceptuando apenas aqueles “[…] com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade […]” (artigo 1384º do CC), a afirmação da dominialidade de um caminho – a sua natureza de “caminho público” – implicará, para que exista uma identidade de razão com a teleologia presente nesse artigo 1384º, a demonstração de uma afectação por um uso das populações desde tempos imemoriais, uso que tem de ser referido a uma concreta utilidade pública e não à mera utilidade decorrente do encurtamento de distâncias entre prédios pelos utentes dos terrenos vizinhos do afectado.
VI – O Assento do STJ de 19/04/1989 foi, na prática, exautorado pelo Acórdão do STJ de 10/11/1993, passando a valer (como fixação de jurisprudência), tão-só, como precedente persuasivo, a seguinte asserção estabelecida no Acórdão de 1993: “I - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. II - Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383º do Código Civil”.


III – Decisão

            3. Face a todo o exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, substituindo-a pela seguinte (a qual corresponde à procedência da acção):

           

A) Condena-se o R. Município de… a reconhecer a A. A… como proprietária de todo o prédio rústico identificado na alínea a) dos factos provados, incluindo o espaço actualmente ocupado pelo caminho indicado em m) do mesmo rol de factos;

           

B) Condena-se o mesmo R. a pagar à A., a título de indemnização, a quantia de €6.000,00, acrescendo a esta juros já vencidos e a vencer, calculados à chamada taxa civil e contados desde a data da citação do R. no foro administrativo (v. aviso anexo a fls. 85), tudo até integral pagamento.

            Custas em ambas as instâncias a cargo da A. (30%) e do R. (70%).


Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 11/09/2012 

(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Aplica-se aqui o regime de recursos decorrente da reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida, cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.

[2] O processo começou como acção administrativa comum no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco (fls. 3/14), sendo que este declarou a incompetência material da jurisdição administrativa através da Sentença de fls. 127/143 a qual propiciou a passagem do processo para a jurisdição comum, onde prosseguiu.
[3] Prescindimos aqui do relato circunstanciado da vicissitude que originou a repetição de parte da prova testemunhal (deficiência da primeira gravação, v. a acta de fls. 508/510, cfr. o Acórdão desta Relação de fls. 465/469 vº).
[4] Disse-se na decisão:
“[…]

A. Julga-se a acção parcialmente procedente, por apenas nessa medida provada, nos precisos termos expostos, e em consequência:

1.1.Condena-se o R. a reconhecer a A. como proprietária do prédio referido em a). da matéria de facto provada.

1.2. Absolve-se o R. dos demais pedidos.
[…]” (transcrição de fls. 535).
[5] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[6] Apresenta potencialidade intrínseca, se acolhida fosse esta nulidade da Sentença, para modelar de determinada maneira o julgamento efectuado pelo Tribunal de recurso.
[7] V. a caracterização desta distinção em João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III vol., ed. policopiada, Lisboa, 1978/79, pp. 307/312.
[8] [Quesito 3] “O prédio referido em a) nunca foi atravessado por qualquer caminho destinado ao uso do público em geral?”.
[9] [Quesito 9] “O caminho referido em 6 [t) dos factos provados] termina a Nordeste no portão da entrada de uma propriedade a …?”.
[10] [Quesito 10] “E não fazia qualquer ligação à rede viária municipal ou outra?”.
[11] [Quesito 11] “Em consequência da abertura do caminho referido em 6 [t) dos factos provados], o prédio identificado em a) ficou vandalizado?”.
[12] E não estamos aqui, por ora, a formular qualquer juízo sobre a correcção ou não dessa decisão.
[13] A expressão é de J. P. Remédio Marques e assenta na contraposição à chamada “tese restritiva dos poderes da Relação”, que se limita a remeter o Tribunal da Relação para um controlo da plausibilidade dos factos fixados na primeira instância, v. “Um breve olhar sobre o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, nos Cadernos de Direito Privado, Número Especial 01/Dezembro 2010, pp. 80/90.
Caracteriza-se esta tese ampla aqui seguida nos seguintes termos:
“[…]
A Relação desfruta não apenas do poder de aferir a razoabilidade da convicção dos juízes da 1ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, nos casos flagrantes ou notórios de desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão de facto proferida pela 1ª instância, mas também (e sobretudo) de um poder-dever de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação da prova, sem se achar limitada ou condicionada pela convicção que tenha servido de base à decisão recorrida.
Este poder-dever pressupõe que a Relação valore, ela própria, de modo crítico e fundado, a prova disponível, não se limitando a aceitar passivamente a convicção formada pela 1ª instância ou a controlar somente a formação dessa convicção efectuada na 1ª instância.
[…]” (pp. 85/86).
[14] Referimo-nos ao ónus da prova dos elementos – dos diversos factos – que, conjugados, suportam a asserção de que se trata de um caminho público. Isso – o ónus de alegar e demonstrar esses diversos elementos de facto – corresponde a algo substancialmente distinto, porque bem mais amplo, daquilo que aqui foi feito pelo R. ao limitar-se a indicar que era um caminho público o espaço reivindicado pela A. É neste desvalor argumentativo do R. – e aqui afloramos já uma questão que adiante será aprofundada – que se radica o problema que detectamos na Sentença apelada: assumir ela uma conclusão de facto (a que se expressa no teor dos quesitos 23 e 24 positivamente respondidos), quando as premissas que poderiam sustentar essa conclusão nunca foram introduzidas na acção pelo R., produzindo-se assim um enviesamento argumentativo onde o Direito (o Direito corresponde neste caso à aplicação do conceito jurídico de caminho público) brota da sua própria definição e não da aplicação dos factos apurados a essa definição. Procuraremos esclarecer este paradoxo da decisão recorrida na subsequente argumentação.
[15] V. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2006, pp. 263/264. Tratam-se estas de acções de simples apreciação negativa (artigo 4º, nº 1, alínea a) do CPC) visando a declaração de inexistência de um direito afirmado pelo demandado em contextos diversos, mas considerados relevantemente ilustrativos desse propósito afirmativo [na jurisprudência desta Relação pode ver-se, como exemplo de acção negatória, o Acórdão de 19/01/2010 (Judite Pires), proferido no processo nº 422/08.9TBSCD.C1, disponível no sítio do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b306c64559709b68802576ba003b26c.
Sumário: “[n]a acção negatória de servidão, o autor só carece de provar a sua propriedade, competindo ao réu a prova da constituição da servidão”].
[16] Confirmou-se plenamente o interesse em agir negatório da A. [sobre a necessidade da verificação deste nestas acções, cfr. o Acórdão desta Relação de 22/03/2011 (Pedro Martins), proferido no processo nº 158/09.3TBVZL.C1, disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/0/d006947a984e3d5f80257871003257f3.
Sumário:

I - Nas acções em que só esteja em causa a simples apreciação negativa de um direito de que o réu se tenha arrogado, o autor só tem de alegar e provar esse arrogo e os factos que demonstram o seu interesse em agir, cabendo ao réu a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga.

II - Na acção em que também esteja em causa um pedido de condenação, para a procedência deste o autor tem que provar o seu direito e que ele foi violado].
[17] No caso das “regras de decisão” estão em causa as normas respeitantes ao ónus da prova encaradas no seu sentido actuante, em função de um non liquet probatório: “[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […, são] normas de decisão […], são ‘quanto à questão da [sua] eficácia’, apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i. e., através da ficção […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 62/63).
[18] V. sobre o ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa o Acórdão desta Relação de Coimbra de 12/06/2007, proferido pelo ora relator no processo nº 372/06.3TBVIS-A.C1, disponível no sítio do ITJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/2fd3e829ec42dbb1802572fe004f2a3e;
Sumário:

I – Constitui elemento característico das acções de simples apreciação negativa – artigo 4º, nº 2, al. a), CPC –, a sua sujeição, no que tange ao ónus da prova, ao regime do artigo 343º, nº 1, do CC., competindo nelas a quem ocupe a posição de Réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.

II – A improcedência de uma acção de simples apreciação negativa envolve o reconhecimento da existência do direito que o R. se arroga, o qual fica definitivamente estabelecido em face da parte contrária.

[19] Que determinam:

Artigo 1383º
(Abolição dos atravessadoros)
Consideram-se abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.
Artigo 1384º
(Atravessadouros reconhecidos)
São, porém, reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial.
[20] Norma com um rasto histórico impressionante: remonta a extinção dos atravessadouros ao século XVIII, através do Alvará de 9 de Julho de 1773 (cfr. Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, p. 281).
[21] Código Civil…, cit. , p. 283.
[22] O que exclui o (novo) interesse público “descoberto” pela Autarquia em 2003, ad hoc, relativamente às verbas previstas no “Quadro Comunitário de Apoio” então vigente, e que levou à referida beneficiação, pelo R. e pela Junta de Freguesia de Alfaiate. É que para satisfação desse (outro) interesse (corresponde ele ao que consta da alínea g) do elenco fáctico) existia – só existe no Direito português – o instituto da expropriação por utilidade pública.
[23] E isso face à prova testemunhal é até pouco claro, havendo nesta afirmações díspares, apontando num e noutro sentido (existiram testemunhas, caso de … e de …, que referiram vagamente que se lembravam de passar naquele local há muito). Só poderíamos desambiguar algo esta questão, dada a inexpressividade da prova testemunhal, através da carta militar de fls. 294. Esta, todavia – e este aspecto foi porventura erradamente interpretado pelo Tribunal a quo –, não demonstra minimamente, conforme esclareceu inequivocamente o Instituto Geográfico do Exército a fls. 344/345, que o caminho referenciado na carta militar nº 227 de 1998, admitindo ser o agora em causa, correspondesse a um caminho público. Fala-se ali em “caminho carreteiro” para descrever as suas características no quadro da utilidade (militar) visada por essa carta: identificar a existência de um caminho que permite o trânsito de carros, guiando a execução de operações militares, nada esclarecendo esta carta quanto à dominialidade do caminho (contrariamente ao que referiram diversas testemunhas do R., designadamente o Presidente da Junta de …, … e o Secretário da mesma Junta, …).
[24] Código Civil anotado, Vol. III, cit., p. 282.
[25] Valeria, dizemos nós, empregando intencionalmente o condicional, admitindo que, posteriormente, o verdadeiro significado desse segundo Acórdão de 10/11/1993 não se tenha traduzido numa verdadeira exautoração do Assento de 1989 e que, portanto, este último possa manter algum espaço de aplicação.
[26] Está este publicado no BMJ, 386, pp. 121/125 e disponível (texto integral) no sítio do ITIJ no endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ace51cb6f7da9271802568fc00397c87.
[27] Publicado no BMJ, 431, pp. 300/308, na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomo III/1993, pp. 135/138 e sumariado no sítio do ITIJ no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e9e2fa86b74f46b8802568fc003a6699.
[28] A discussão em torno desta questão, no quadro destes dois pronunciamentos do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no plano subjacente a este segundo Acórdão de 1993, está reflectida na anotação de M. Henrique Mesquita ao Acórdão do STJ de 15/06/2000 (Miranda Gusmão), na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134º, nº 3933, pp. 366/371 e Ano 135º, nº 3934, pp. 62/64.
[29] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9ª ed., Coimbra, 1980, p. 921.
[30] Note-se que o Acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucionais os Assentos [o Acórdão nº 810/93 (Monteiro Diniz), http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930810.html] fez assentar o respectivo pronunciamento, em grande medida, na inexistência de um mecanismo de revisibilidade pelo próprio Supremo dos respectivos Assentos, sendo que o carácter vinculativo destes para os tribunais situados num plano hierárquico inferior (para a primeira e para a segunda instância) não representaria nenhum problema constitucional. Aqui, com o Acórdão do STJ de 10/11/1993, no seu relacionamento com o Assento nº 7/89, assistimos a uma interpretação deste último que se traduziu, na prática, na revisão do pronunciamento anteriormente fixado, segundo o qual seriam públicos todos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estivessem no uso directo e imediato do público. Trata-se, pois, verdadeiramente, de uma interpretação abrogante, de uma verdadeira exautoração jurisprudencial, no sentido de constituir uma revisão do “precedente” formado com o Assento – interpretar expressou aqui, em nosso entender, um eufemismo de alterar – através da fixação de uma doutrina-outra, relativamente ao pronunciamento insustentável constante do Assento. Este “salvou-se”, por assim dizer, como precedente persuasivo, só com a sobreposição interpretativa do segundo Acórdão, perdendo qualquer autonomia interpretativa e toda a vocação de propiciar a resolução de casos concretos.
[31] Isto sucedeu especialmente com o depoimento da testemunha …, muito confuso e, aparentemente, tanto quanto percebemos na gravação, assente na referenciação de uma deslocação ao prédio aqui em causa uma única vez, há mais de 70 anos (disse ela que quando teria cerca de 12 anos de idade).
[32] Caso do Presidente e do Secretário da Junta de Freguesia de … respectivamente … e ... Note-se que outras testemunhas, com um conhecimento mais recente mas anterior à chamada beneficiação do caminho empreendida pela R., negaram a existência de qualquer caminho com as características indicadas por esta sobre o prédio da A. Referimo-nos à testemunha …, engenheiro responsável pela execução do projecto de florestação do prédio da A., que referiu um conhecimento deste anterior à execução pelo R. do caminho aqui discutido.
[33] Não excluímos, numa perspectiva abstracta, que um encurtamento de distâncias que seja muito expressivo (várias dezenas de quilómetros), para uma população muito significativa e em deslocações muito comuns no dia a dia desta, possa ser caracterizado como uma utilidade pública. De qualquer forma, não foi esse o sentido da prova aqui produzida.
[34] Que são, e tão-só, as características introduzidas pelo R. no quadro do programa identificado nas alíneas e) a l) dos factos e não correspondem (nenhuma testemunha o afirmou) às características de qualquer passagem existente desde sempre (se alguma passagem existiu era de características muito distintas das agora introduzidas).
[35] Foi o que a testemunha disse durante o interrogatório pelo Senhor Juiz que fixou os factos (que não foi o mesmo que redigiu a Sentença).
[36] Aliás, não resolve qualquer carta militar questões de natureza jurídica, esgota-se na função de mapa e, como tal, limita-se a fornecer indicações geográficas, fundamentalmente, para efeito de operações militares – é esse o sentido de um “caminho carreteiro”: permite a passagem de carros (v. a caracterização da “Legenda” da Carta Militar de Portugal em:
 http://pt.scribd.com/doc/14761187/Legenda-Carta-Militar-IGOE).
[37] Intencionalmente evitámos a palavra caminho por entendermos que a prova não nos autoriza uma expressão tão marcada quanto essa.
[38] O exercício deste poder de evitação da anulação é caracterizado por Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, comentando o artigo 712º nº 4 do CPC, nos seguintes termos:
“[…]
A clara ampliação do leque dos elementos probatórios constantes do processo e à disposição da Relação – e o consequente incremento dos seus poderes cognitivos quanto à matéria de facto objecto da impugnação – leva a que a possibilidade de anulação da decisão de facto proferida em 1ª instância passe a ser, de algum modo, excepcional ou residual relativamente ao exercício dos poderes de cognição conferidos à 2ª instância.
Assim, constatada uma possível deficiência ou obscuridade quanto a certa parcela ou segmento da decisão sobre a matéria de facto, se constarem do processo todos os elementos probatórios que lhe serviram de base, deverá a Relação, antes e em vez de anular a decisão, proceder à reapreciação do decidido, substituindo-se ao tribunal a quo e corrigindo o erro de julgamento que considere ter ocorrido.
[…]” (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2004, p. 610).
[39] Note-se que os valores indicados em aa) e bb) dos factos referem-se aos montantes gastos pela A. em todo o prédio, não existindo qualquer indicação de correspondência, no caso do valor da alínea aa), a estragos resultantes dos trabalhos efectuados pelo R. no prédio da A. Tudo se resume, pois, em sede de danos patrimoniais, à reparação da rede.