Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
167/03.6GCLSA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS
LESÃO DO DIREITO À VIDA
Data do Acordão: 01/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Legislação Nacional: 137º DO CP, 24º,25º35º DO CE, 483º,494º E 496º DO CC ,127º 412º,428º, 431º DO CPP
Sumário: 1. Não era ao condutor do motociclo, que circulava na via onde o arguido pretendia entrar, cruzando-a, que estava obrigado a prever a falta de prudência ou inconsideração do arguido que, não obstante ter dois sinais de stop, sendo um vertical e outro pintado no pavimento, fosse capaz de desprezar tais avisos.
2.Também o condutor do motociclo não estava obrigado a prever que o arguido avançasse para a via onde aquele circulava e sobre a qual tinha uma visibilidade reduzidíssima, sem tomar as devidas precauções já que era previsível que desse lado pudesse surgir uma viatura.
3.Estando provado que a vítima circulava a velocidade superior a 47, 2 km/hora e sendo a velocidade permitida no local de 40 km/hora, bem como a gravidade e a quantidade de lesões que do embate para ela resultaram, dúvidas não há de que esse excesso de velocidade pese embora irrisório, traduzido em 7,2 km/hora contribuiu também para a eclosão do acidente.
4.Naquelas condições era exigível à vítima igualmente uma maior prudência, pois todos os condutores tenham ou não prioridade de passagem, têm a obrigação de reduzir a velocidade nos entroncamentos
5.Verifica-se assim a concorrência de culpas com a vítima na produção do acidente, sendo que a do arguido, porque determinante no acidente, terá de considerar-se substancialmente superior, Por essa razão fixa-se em 4/5 a culpa do arguido, e em 1/5 a da vítima
6. Em caso de absolvição de um arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, aceite pelo Ministério Público, não interpondo recurso, o assistente carece de legitimidade para recorrer daquela decisão
7..Considerando que a vítima era casada à data da sua morte, os danos não patrimoniais a considerar para efeitos de indemnização são apenas os sofridos pela vítima e os sofridos pela viúva, que cabem apenas a esta, porque integrante do 1º grupo mencionado no artº 496º nº 2 CC. Assim não há pois lugar a indemnização aos ascendentes.
8.Na indemnização devida pela perda do direito à vida, há que atender, não só ao valor do bem da vida, em si mesmo considerado, que é o mais valioso dos bens que integram os chamados direitos de personalidade, como ainda ao apego da vítima à vida, que pode ser aferido, à falta de outros elementos para o efeito relevantes, pela sua idade, o seu estado civil, a sua situação profissional e familiar, e a sua condição sócio-económica.
9..Face ao acima exposto, tendo vítima à data do acidente 31 anos de idade, saudável e casado, a indemnização arbitrada 60.000,00 euros pela lesaão do direito á vida mostra-se equilibrada
Decisão Texto Integral: Por sentença proferida em processo comum singular do Tribunal Judicial da Lousã, foi para além do mais, decidido:
a) Absolver o arguido, C,, da prática do crime de homicídio por negligência, p. p. pelo art. 137º, nº1, do Cód. Penal, de que vinha acusado.
b) Julgar parcialmente procedente o pedido cível e, consequentemente:
- condenar a demandada, L… Seguros, S.A., a pagar:
- à assistente, A, o valor de €30.000,00 (trinta mil euros) por danos não patrimoniais próprios sofridos por causa da morte de R, acrescido de juros de mora desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
- a cada um dos demais demandantes, MM e JJ (estando habilitados nos autos em seu lugar MM) o valor de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) por danos não patrimoniais próprios sofridos por causa da morte de R, acrescido de juros de mora desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
- a todos os demandantes em conjunto o valor de €60.000,00 (sessenta mil euros) pela perda do direito à vida do falecido R e €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo mesmo nos momentos que antecederam a sua morte, acrescidos de juros de mora desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
- a todos os demandantes em conjunto o valor de €4.519,90 (quatro mil, quinhentos e dezanove euros e noventa cêntimos) por danos emergentes, acrescido de juros de mora desde a data da citação da demandada até efectivo e integral pagamento; e - à assistente, o valor de €139.675,06 (cento e trinta e nove mil, seiscentos e setenta e cinco euros e seis cêntimos) por lucros cessantes, acrescido de juros de mora desde a data da citação da demandada até efectivo e integral pagamento.
Tudo, perfaz o montante global de (duzentos e oitenta e seis mil, seiscentos e noventa e quatro euros e noventa e seis cêntimos) €286.694,96.
Mais se determinou que os montantes que caberiam ao demandante JJ, entretanto falecido, sejam pagos a MM e a D por terem sido estes os sucessores habilitados a prosseguir no enxerto cível, no lugar de JJ.
Inconformada, a assistente A. interpôs recurso da sentença, concluindo na sua motivação:
“ I. Em caso de manobra de mudança de direcção, existem circunstâncias, nomeadamente a falta de visibilidade, que tornam insuficiente a observância estrita de comandos legais de sentido específico como por exemplo a paragem ao sinal de STOP.
II. Com efeito, o condutor, confrontado com essas circunstâncias, só poderia efectuar a manobra de mudança de direcção (entre outras) em local e de forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35º, nº 1 do Código da Estrada).
III. No caso dos autos, o conteúdo normativo autónomo do art. 35º, nº 1 impunha que o arguido, não apenas imobilizasse o veículo no STOP, mas ainda que fosse avançando intermitentemente, sempre atento à aproximação de veículos vindos de Miranda do Corvo, ganhando progressivamente maior visibilidade até que estivesse certo da segurança da manobra.
IV. Nada disso foi feito pelo arguido uma vez que o mesmo nem sequer no STOP parou.
V. O próprio arguido, apesar de referir que parou, defende que a imobilização ocorreu num local em que a visibilidade oscilava entre os 20 e os 30 metros, que avançou sem voltar a parar, a velocidade moderada e sem voltar a olhar para o lado de onde vinha o motociclo.
VI. Esta versão de factos não deixa de constituir a descrição de uma manobra efectuada sem o cuidado exigível e que constitui causa do acidente e da morte do motociclista.
VII. A recorrente entende que deveriam ter sido dados como provados os factos identificados na sentença como factos não provados 4,5,6,7,16,17 e 18.
VIII. Quanto a estes factos, a impugnação da recorrente é sustentada pela análise conjugada dos depoimentos das testemunhas MD, PA e MG
IX. Estes depoimentos são indicados nas actas de audiência de discussão e julgamento por referência ao registo magnético Habilus Media Studio.
X. Na primeira audiência de discussão e julgamento o depoimento da testemunha M D foi gravado na cassete nº 2, lado A, de 555 até 607 e na cassete 3, lado A, de 001 a 350 e o depoimento da testemunha PA foi gravado na cassete 3, lado A, de 351 a 528.
XI. Têm particular interesse para a impugnação as partes dos depoimentos que supra se transcreveram e cujo teor se dá por integralmente reproduzido nas conclusões.
XII. A recorrente entende que deveria ter sido dado como provado o facto identificado na sentença como facto não provado 27.
XIII. Quanto a este facto, a impugnação da recorrente é sustentada pela análise conjugada dos depoimentos das testemunhas F e RM e pelo croqui do acidente.
XIV. Os depoimentos das testemunhas F e RM são indicados na acta por referência ao registo magnético Habilus Media Studio.
XV. Têm particular interesse para a impugnação as partes dos depoimentos que supra se transcreveram e cujo teor se dá por integralmente reproduzido nas conclusões.
XVI. A recorrente entende que deveria ter sido dado como não provado o facto identificado na sentença como facto provado 19.
XVII. Quanto a este facto, não existe qualquer elemento probatório que permita sustentar a posição do Tribunal a quo uma vez que nenhuma prova foi produzida sobre o tema.
XVIII. A procedência do recurso da matéria de facto impõe que o arguido seja condenado pela prática do crime de homicídio negligente.
XIX. Mas impõe igualmente que dessa condenação sejam extraídas consequências no que diz respeito à decisão da parte cível de tal modo que a condenação da seguradora ocorra à luz da responsabilidade extracontratual subjectiva do condutor demandado.”.
Também os demandantes MM e JJ interpuseram recurso da sentença, concluindo:
“ I. Os demandantes conformam-se com os valores indemnizatórios fixados pelo Tribunal a quo.
II. Contudo, a possibilidade de procedência de um eventual recurso da demandada L… quanto ao acerto do enquadramento jurídico ali feito constar ­responsabilidade objectiva - coloca os demandantes na posição de pretenderem desde já fazer valer a responsabilidade subjectiva do segurado.
III. Foi à luz desse tipo de responsabilidade que os demandantes formularam o pedido cível.
IV. Por outro lado, os demandantes entendem que essa é a conformação de direito que melhor se adequa à prova que foi produzida nos autos.
V. Nessa medida, assiste aos recorrentes legitimidade e interesse em agir.
VI. Em caso de manobra de mudança de direcção, existem circunstâncias, nomeadamente a falta de visibilidade, que tornam insuficiente a observância estrita de comandos legais de sentido específico como por exemplo a paragem ao sinal de STOP.
VII. Com efeito, o condutor, confrontado com essas circunstâncias, só poderia efectuar a manobra de mudança de direcção (entre outras) em local e de forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35º, nº 1 do Código da Estrada).
VIII. No caso dos autos, o conteúdo normativo autónomo do art. 35º, nº 1 impunha que o arguido, não apenas imobilizasse o veículo no STOP, mas ainda que fosse avançando intermitentemente, sempre atento à aproximação de veículos vindos de Miranda do Corvo, ganhando progressivamente maior visibilidade até que estivesse certo da segurança da manobra.
IX. Nada disso foi feito pelo arguido uma vez que o mesmo nem sequer no STOP parou.
X. O próprio arguido, apesar de referir que parou, defende que a imobilização ocorreu num local em que a visibilidade oscilava entre os 20 e os 30 metros, que avançou sem voltar a parar, a velocidade moderada e sem voltar a olhar para o lado de onde vinha o motociclo.
XI. Esta versão de factos não deixa de constituir a descrição de uma manobra efectuada sem o cuidado exigível e que constitui causa do acidente e da morte do motociclista.
XII. Os recorrentes entendem que deveriam ter sido dados como provados os factos identificados na sentença como factos não provados 4,5,6,7,16,17 e 18.
XIII. Quanto a estes factos, a impugnação dos recorrentes é sustentada pela análise conjugada dos depoimentos das testemunhas MO, PA, AD e MG.
XIV. Estes depoimentos são indicados nas actas de audiência de discussão e julgamento por referência ao registo magnético Habilus Media Studio.
XV. Na primeira audiência de discussão e julgamento o depoimento da testemunha MD foi gravado na cassete nº 2, lado A, de 555 até 607 e na cassete 3, lado A, de 001 a 350 e o depoimento da testemunha PA foi gravado na cassete 3, lado A, de 351 a 528.
XVI. Têm particular interesse para a impugnação as partes dos depoimentos que supra se transcreveram e cujo teor se dá por integralmente reproduzido nas conclusões.
XVII. Os recorrentes entendem que deveria ter sido dado como provado o facto identificado na sentença como facto não provado 27.
XVIII. Quanto a este facto, a impugnação dos recorrentes é sustentada pela análise conjugada dos depoimentos das testemunhas F. e R e pelo croqui do acidente.
XIX. Os depoimentos das testemunhas F e R são indicados na acta por referência ao registo magnético Habilus Media Studio.
XX. Têm particular interesse para a impugnação as partes dos depoimentos que supra se transcreveram e cujo teor se dá por integralmente reproduzido nas conclusões.
XXI. Os recorrentes entendem que deveria ter sido dado como não provado o facto identificado na sentença como facto provado 19.
XXII. Quanto a este facto, não existe qualquer elemento probatório que permita sustentar a posição do Tribunal a quo uma vez que nenhuma prova foi produzida sobre o tema.
XXIII. A procedência do recurso da matéria de facto impõe que a condenação da seguradora ocorra à luz da responsabilidade extracontratual subjectiva do condutor demandado. “.
A Seguradora L… Seguros interpõe igualmente recurso, concluindo a sua motivação:
“ 1ª- A ora recorrente discorda da sua condenação no âmbito civil quando o douto " Tribunal “a quo”decidiu e aqui, bem, absolver o arguido, seu segurado;
2ª- Considera a ora recorrente que havendo em processo crime a absolvição do arguido no âmbito penal, não pode o demandado civil ser condenado a título de responsabilidade civil objectiva, chamada por vezes indistintamente de responsabilidade pelo risco;
3ª- Com efeito, a mesmo não havendo impedimento para se conhecer do pedido cível é inegável que se trata necessariamente da mesma causa de pedir, ou seja, são os mesmos factos que são também, ou não, pressuposto da responsabilidade criminal;
4ª- O Assento nº 7/99 do Supremo Tribunal de Justiça muito embora se refira expressamente “ á exclusão da responsabilidade civil contratual” nos respectivos fundamentos refere que " (...) na medida em que o artigo 129º do Código Penal remete a regulação da indemnização de perdas e danos emergentes de crime para a lei civil, esta só pode ser o artigo 483 do Código Civil, que apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, mas com total exclusão da responsabilidade contratual e da responsabilidade por factos lícitos, nos casos contemplados na lei. (…)”.
5ª-No caso dos autos, para além de se defender a impossibilidade de aplicação da responsabilidade pelo risco, subsiste ainda a culpa do próprio lesado; Assim,
6ª- E em qualquer circunstância a culpa do lesado excluiria necessariamente a obrigação de indemnizar, nomeadamente nos termos do disposto no artº 505 e 570 ambos do Cod. Civil;
7ª- Do longo elenco da matéria dada como provada apenas existem factos que permitem imputar a culpa ao lesado, nomeadamente em virtude de circular em excesso de velocidade para ao local;
8ª- A acusação e bem assim os Demandantes Civis não lograram provar, como lhes competia, a imputação fosse a que título fosse ao arguido / segurado da ora demandada qualquer ilícito ou mesmo violação de um dever geral de cuidado, muito menos causal para a produção do acidente; pelo contrário;
9ª- O lesado conduzia sob o efeito do álcool; com a carta apreendida; sem habilitação para o motociclo que conduzia e sem seguro para o respectivo veiculo, ou seja, cometendo várias contra-ordenações que só por si fazem presumir a sua culpa de iuris tanto;
10ª- Civilmente não impendia sobre o segurado da ora demandada qualquer presunção de culpa;
11ª- A qualificação de “lesado” num processo crime pode revelar-se completamente errada...
12ª- A ora recorrente considera que perante a culpa do lesado não há lugar á ponderação da responsabilidade pelo risco e muito menos que;
13ª - A culpa do lesado só exclua a responsabilidade pelo risco quando é exclusiva, interpretação excessiva, contraditória e sem apoio sequer literal na lei, nomeadamente no artº 505 do Cod. Civil;
14ª- A matéria dada como assente considera que o acidente ocorreu por excesso de velocidade do condutor do motociclo e mais,
15ª- Ficou provado em contra partida que o arguido/segurado não cometeu nem por acção, nem por omissão qualquer comportamento contravencional ou mesmo qualquer dever geral de cuidado e que;
17ª- Perante toda a matéria forçoso é concluir pela culpa do lesado e pela completa e absoluta inexistência da obrigação de indemnizar por parte da ora recorrente;
18ª - Paralelamente considera a ora recorrente que a douta sentença “a quo” violou o disposto no artº 496 do Cod. Civil ao considerar os ascendentes com direito á indemnização, quando existe cônjuge sobrevivo; ou seja á luz do direito constituído, só “na falta de ... " se passa às pessoas seguintes com direito á indemnização;
19ª- Considera igualmente a ora recorrente que os montantes fixados ultrapassam os limites máximos habitualmente fixados para danos de idêntica natureza, como o direito á vida e danos morais dos herdeiros;
20ª-A fixação dos danos futuros baseou-se essencialmente num cálculo directo e aritmético que não pondera varias circunstancias a considerar neste tipo de danos e que a Jurisprudência tem vindo a observar, motivo pelo qual o montante arbitrado se demonstra igualmente excessivo e desajustado quando comparado com a maioria das decisões nesta matéria;
21ª- Por todo o exposto a ora recorrente considera que os autos demonstram á saciedade que o arguido foi devidamente absolvido face á prova existente nos autos e consequentemente a única conclusão possível se deve aplicar igualmente à ora recorrente com a justa e juridicamente adequada absolvição dos pedidos da demandada ora recorrente”.
À motivação dos recursos interpostos responderam a seguradora, a assistente e os demandantes, bem como o MP.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação é de parecer que o recurso no âmbito estritamente penal não merece provimento.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto dada como provada:
“1. No dia … de… de 2003, cerca das 17:45, o arguido circulava ao volante do seu veículo de matrícula-----FT, vindo da Variante à Estrada Nacional 342 (percorrendo o respectivo troço final), em direcção à Estrada Municipal que liga as localidades de Miranda do Corvo a Espinho.
2. O falecido, RD, tripulava então o seu motociclo de matrícula …LX na Estrada Municipal Miranda do Corvo/Espinho e neste sentido de marcha.
3. Na altura, o tempo estava seco e limpo, a estrada era asfaltada e o piso, igualmente seco, não merecia reparos relevantes.
4. Na parte em que aquele troço encontra a estrada municipal que liga a localidade de Miranda do Corvo à localidade de Espinho, a via configura um entroncamento perpendicular a cerca de 90º.
5. Estava então colocado um sinal vertical “stop” imediatamente antes da intersecção da via por onde seguia o arguido naqueloutra por onde circulava o falecido, e, um pouco mais à frente, mesmo junto a tal intersecção, estava desenhada no chão uma linha branca indicadora daquele sinal, sendo que, quer o sinal vertical quer a aludida banda, eram bem visíveis para quem seguia no sentido que levava o arguido.
6. Ao aproximar-se do entroncamento com destino a Miranda do Corvo, o arguido viu o sinal vertical stop e a linha branca indicadora desse sinal um pouco mais à frente e deparou-se, à sua esquerda, na berma da referida Estrada Municipal (ou seja, na intersecção das duas vias), com a presença de dois contentores do lixo, de placa de identificação da localidade de Meãs e de um poste de electricidade.
7. O arguido efectuou manobra de mudança de direcção à esquerda, sendo que, quando o centro lateral esquerdo do seu veículo se encontrava, relativamente ao eixo da via (e medindo a partir da hemi-faixa por onde circulava RD, a uma distância não superior a 35 centímetros, o último, ao volante do seu motociclo, embateu com a respectiva frente no centro lateral esquerdo (longarina) e na parte lateral esquerda/traseira do veículo do arguido, abalroando essa porta traseira esquerda e torcendo o chassis, deformando bastante, designadamente, a longarina, composta por viga de aço.
8. Mercê de tal impacto, RD sofreu as lesões descritas e examinadas no relatório de autópsia de fls 37 a 43 (cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos), as quais lhe determinaram a morte como consequência directa e necessária.
9. O arguido conhecia o local do entroncamento, com o sinal de “stop”, e a visibilidade existente à esquerda que tinha para si como reduzida, já que por ali passava frequentemente há vários anos.
10. O espaço livre e visível que se deparava ao condutor nas circunstâncias de tempo e lugar do arguido, no caso de o limite (dianteiro) do veículo respectivo não ultrapassar o limite da linha branca indicadora do sinal stop desenhada no chão, não ultrapassava trinta metros nem era inferior a 22 metros, por força da aludida presença de contentores do lixo, de placa limitativa de velocidade e do poste de electricidade.
11. A largura da faixa de rodagem (i. é., da via, de ambas as hemi-faixas) da Estrada Municipal, naquele troço, era de 6,70m.
12. No momento em que o arguido, ao volante, atingiu e ultrapassou com o seu automóvel a linha indicadora de “stop” desenhada no chão, empreendendo a manobra de mudança de direcção à esquerda, não teve a percepção do motociclo.
13. No momento em que se apercebeu do motociclo - imediatamente antes do embate -, já o arguido não poderia ter lançado mão de qualquer manobra de recurso para evitar o embate.
14. O falecido, tripulante do motociclo, circulava em via de velocidade limitada, por sinalização vertical, a 40 Km/h, limitação que o arguido conhecia.
15. RD conduzia então uma velocidade superior a 47,2 Km/h.
16. Por força da intensidade do embate, o veículo do arguido girou sobre si próprio em cerca de 90º, com o respectivo pneumático traseiro esquerdo a deixar marcas transversais de arrastamento no pavimento.
17. O tripulante do motociclo conduzia sendo portador de uma TAS de 0,76g/L reportada ao momento do decesso, fazendo-o sem estar legalmente habilitado para conduzir aquele tipo de veículo, e sem que o motociclo fosse objecto de contrato de seguro.
18. A carta de condução de veículos automóveis de que o falecido era titular encontrava-se apreendida à ordem do processo nº …/03.5GTLRA, que corria termos no 3º Juízo criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.
19. Caso o falecido circulasse então com observância do limite de velocidade ali imposto, teria tido tempo de parar e/ou de abrandar ao avistar o arguido, manobrando o motociclo em conformidade.
20. O arguido certificou-se do trânsito existente na hemi-faixa do motociclo pelo menos quando atingiu com o limite do seu veículo o limite da linha indicadora do sinal stop, desenhada no chão, e não em momento anterior, e, acto contínuo, empreendeu a manobra de mudança de direcção à esquerda, olhando sempre em frente.
21. O embate entre as duas viaturas ocorreu dentro do limite da hemi-faixa da direita, atento o sentido de marcha da vítima, a uma distância do eixo da via não superior a trinta e cinco centímetros.
22. Em frente ao local onde o arguido se deparou com o sinal “stop”, i.é., do lado direito, atento o sentido de marcha que, na E.M., o arguido pretendia seguir, existia uma casa e estava colocado um espelho vertical com o propósito de aumentar a visibilidade dos condutores vindos do local de onde provinha o arguido, relativamente à hemi-faixa por onde seguia o motociclo.
23. Paralela à via em que circulava o arguido quando atingiu o sinal stop, existia uma via cujo piso era em terra batida.
24. Algum tempo após o referido embate, pelo menos, os contentores do lixo e o poste de iluminação foram recuados pelas autoridades competentes.
25. Actualmente, no local em apreço, existe uma rotunda.
26. Ao chegar ao entroncamento - e, pelo menos ao atingir com o limite do seu veículo o limite da linha indicadora do sinal “stop”, e não em momento anterior -, o arguido, pelo menos, abrandou e olhou para a estrada municipal Miranda do Corvo-Espinho, certificando-se de que não circulavam veículos em qualquer dos sentidos de trânsito.
27. Ao descrever a manobra de mudança de direcção à esquerda, o arguido seguia a velocidade não superior a 15Km/h, sendo que, durante a manobra, não voltou a olhar para a esquerda, olhando, ao invés, em frente.
28. Ao ser projectado por causa do embate, R D chocou primeiro no veículo do arguido e foi imobilizar-se a cerca de 13 metros do local do embate, tendo deixado uma mancha de sangue (a única visível no local), sendo que aí eram ainda visíveis marcas de arrastamento do rodado traseiro do veículo do arguido e concentração de vidros partidos.
29. O arguido, para se certificar do trânsito existente na E.M., não utilizou o espelho vertical existente no local para esse efeito.
30. Atento o sentido de marcha do falecido, a via, a um distância do sinal stop superior a 22 metros, descrevia um curva para a direita.
31. Boa parte da energia com que o corpo do falecido foi animado no momento do embate foi dissipado no choque do mesmo – corpo – com o veículo do arguido.
32. Cerca de trinta minutos após o embate, os Bombeiros que transportaram a vítima para o Instituto de Medicina Legal em Coimbra assinaram guia de transporte de cadáver.
33. A assistente, AM é viúva de RD e os demandantes J. entretanto falecido, e MM, eram pais daquele, sendo estes e a assistente únicos herdeiros da vítima.
34. MM e D são os únicos herdeiros do falecido J.
35. O falecido, de trinta e um anos à data do óbito, era muito dinâmico e activo, trabalhador, com gosto por actividades comerciais e relações públicas, e determinado.
36. Geria a sua própria empresa, sociedade comercial unipessoal por quota R.., Lda, que se dedicava ao comércio grossista de produtos de higiene para estabelecimentos comerciais e industriais, constituída em 2001, e sem qualquer trabalhador a cargo.
37. Estava no início de projecto de exportação para o mercado espanhol.
38. No exercício de 2002, o respectivo volume de negócios fora de €142.378,46. 39. Era RD que processava todo o funcionamento interno da própria organização e era também ele que se encarregava das vendas em todo o território abrangido.
40. À data do óbito, estava casado com a assistente há cinco anos e oito meses, sendo que haviam namorado cerca de um ano e meio, mantendo sempre relação de respeito e afeição, apoiando-se mutuamente em todos os planos das respectivas vidas, convivendo diariamente, sobretudo ao serão e fim-de-semana.
41. Habitualmente, ao fim-de-semana, passeavam juntos em visita a familiares e amigos ou em casa, ou a passear conjuntamente.
42. Não eram conhecidas doenças ao falecido.
43. Pelo menos nos instantes que antecederam o acidente, a vítima sofreu a aflição decorrente do choque e da previsibilidade, ainda que meramente instantânea, do embate, tendo sido projectado do motociclo que conduzia, vindo a embater no solo, bem como a expectativa do desfecho traumático e irreversível da sua própria morte.
44. Não obstante ter sido de imediato transportado para o centro de saúde, veio entretanto a falecer decorridos menos de trinta minutos após o embate.
45. Os demandantes sofreram e sofrem angústia e consternação com a morte da vítima.
46. RD era o elemento aglutinador e mobilizador da união e proximidade entre os membros da família.
47. A partir do acidente, a assistente passou a sofrer de graves perturbações do sono, sistematicamente acordando a meio da noite e em sobressalto.
48. Teve, por isso, de passar a ser acompanhada por médicos da especialidade de neurologia, que lhe ministraram ansiolíticos e antidepressivos.
49. Foi-lhe também prescrita terapia ocupacional, prescrição que ainda hoje cumpre.
50. Na sequência da morte do filho, as sequelas decorrentes do enfarte que o demandante, entretanto também falecido, sofrera, agravaram-se de forma sensível, impondo-lhe a ingestão diária de calmantes, agravando-se, assim, a medicação que já antes tomava.
51. Os pais da vítima têm outro filho, deficiente mental, DJ.
52. A vítima prestava aos três (pais e irmão) apoio emocional efectivo concretizado em inúmeras visitas e convívios, especialmente ao fim-de-semana.
53. A vítima fazia-se acompanhar dos pais em quase todas as ocasiões em que se deslocava ao Algarve em gozo de férias.
54. No âmbito desses convívios, RD procurava estimular as capacidades intelectuais e emocionais do irmão, incutindo-lhe valores de responsabilidade, trabalho, socialidade e respeito, sendo que o último via naquele um exemplo ou modelo de conduta.
55. Na sequência do acidente, o motociclo em que seguia o falecido ficou completamente destruído e inutilizado.
56. Tal veículo, de marca BMW e modelo F 650 E, fora adquirido pela vítima no estado de usado, em 29.04.03 (cerca de apenas quatro meses antes), pelo preço de €3.850,00, pagos com a entrega de cheque no valor de €2.895,00 e com a retoma de um outro motociclo de marca Gilera e modelo Runner 50, avaliado em €1.000,00.
57. A utilização da mota destinava-se sobretudo a períodos de lazer.
58. Com o funeral, os demandantes despenderam a quantia de €919,50.
59. No exercício fiscal de 2002, a vítima auferia mensalmente, da empresa, €298,29, além dos lucros obtidos.
60. Entre 01.01.02 e 31.12.02, a empresa gerou lucros no montante de €7.748,21.
61. Teve início de actividade em 17.10.01, foi registada em 19.11.01 e dissolvida em 15.12.03.
62. Era R.que suportava todas as despesas inerentes à economia doméstica e às necessidades pessoais dos elementos do agregado familiar, constituído por si e pela assistente.

63. A assistente teve de recorrer aos pais para fazer face à sua subsistência, suportando ainda assim os seus encargos com sacrifício.
64. O veículo automóvel em que seguia o arguido é pertença do próprio.
65. A responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula ---CI fora transferida para a E …, S.A., entretanto incorporada na demandada L.. … SA, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 34309726.
66. O arguido não tem antecedentes criminais e não lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais.
67. Vive com a mulher em casa própria e aufere pensão no valor mensal de aproximadamente €605,16.
68. Estudou até à 4ª classe.
69. Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido dirigia-se para casa, no final de um dia de trabalho, sendo proprietário do veículo automóvel que então conduzia e dando ainda “boleia” a dois empregados.”
Factos não provados:
“ Dos factos (e/ou conclusões) alegados na acusação, no pedido cível, e nas contestações do arguido e da demandada, não se demonstraram os seguintes:
1. Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o falecido circulava na sua mão de trânsito, ou seja, pela metade direita da faixa de rodagem atento o sentido de marcha que levava, i. é., Miranda do Corvo – Espinho.
2. O falecido conduzia junto ao eixo da via.
3. O local para onde os contentores e poste de electricidade foram removidos, após os factos a que os autos respeitam, era inócuo à circulação estradal.
4. Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido, antes de decidir empreender a manobra de mudança de direcção à esquerda, não se certificou do trânsito que se fazia neste sentido.
5. O arguido não parou no stop, i. é., não imobilizou completamente o seu veículo de modo a dar passagem ao motociclo conduzido pela vítima Rui Daniel que se aproximava do entroncamento.
6. O arguido não se rodeou dos cuidados adequados nem imprimiu à sua conduta a actuação e perícia necessária para evitar o acidente, acabando por invadir a mão de trânsito onde circulava a vítima RD, este sem espaço e tempo útil para evitar a colisão, provocando desse modo os ferimentos descritos que foram causa directa e necessária da sua morte.
7. O arguido actuou com negligência, imperícia e inconsideração não adoptando comportamento adequado a evitar as lesões e a morte que causou.
8. Antes de chegar ao entroncamento, o arguido acabara de desfazer uma curva assaz pronunciada da variante.
9. O arguido imobilizou completamente o seu veículo ao sinal stop e, uma vez imobilizado, engrenou a 1ª velocidade.
10. O falecido circulava a um velocidade cuja grandeza ultrapassava substancialmente os 100Hm/h.
11. Ao chegar ao entroncamento, o espaço livre e visível que se depara ao condutor não ultrapassa 27 metros.
12. O arguido observou a conduta estradal que o objectivo dever de cuidado lhe demandava.
13. O arguido não contribuiu com nenhuma conduta sua para a produção do evento lesivo que consta dos autos.
14. Em décadas de condução automóvel, nunca o arguido se viu envolvido em qualquer acidente com repercussões para a vida, sequer integridade física ou património de terceiros,
15. O motociclo seguia a velocidade não superior a 40KM/H e na sua mão de trânsito.
16. O arguido não cuidou de verificar o trânsito de veículos ao longo da hemi-faixa em que circulava o motociclo.
17. Atravessando a sua viatura de forma súbita, como atravessou, na hemi-faixa em que circulava o motociclo ---LX, não apenas impediu a passagem deste na mão de trânsito em que circulava, como também não deu ao condutor do motociclo qualquer hipótese de evitar o choque com o ligeiro de passageiros.
18. O condutor do motociclo viu a faixa de rodagem em que circulava subitamente obstruída sem que por sua parte houvesse qualquer possibilidade de evitar o acidente.
19. A firma unipessoal R…. Lda” cobria, no respectivo ramo, todo o mercado de Portugal Continental, Açores e Madeira.
20. RD teve morte imediata, não tendo tido tempo nem discernimento para percepcionar o seu estado.
21. O espelho vertical existente no local estava empoeirado, mal colocado e à hora em causa o sol incidia no mesmo.
22. O espelho vertical existente no local, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, estava em condições de ser utilizado.
23. O projecto de exportação para Espanha da firma do falecido era de larga escala.
24. O falecido suportou o custo dos acessórios do motociclo, mala e suporte, no valor de €386,16.
25. O local do embate dista do eixo da via exactamente 35 centímetros.
26. Após o embate, e por causa dos ferimentos sofridos, a vítima padeceu de dores.
27. O arguido teria visibilidade superior a 22 metros para a recta da qual provinha o motociclo se avançasse com o seu veículo até a um ponto que ainda não atingia o meio da hemi-faixa por onde seguia a vítima.
28. Era desconhecido motivo de qualquer preocupação com a saúde de RD
29. A mala e suporte, acessórios do motociclo, ficaram destruídos na sequência do embate.”
Motivação de facto:
“ Para clarificar o raciocínio seguido pelo tribunal, importa, antes de mais, fazer um breve périplo pelos elementos de prova produzidos. De forma a tornar mais inteligível a presente exposição, dividir-se-á a mesma em duas partes. Na primeira, versar-se-á sobre a dinâmica do acidente em causa e, na segunda, sobre os demais factos invocados no pedido cível.
O arguido, CA, explicou, em síntese e com relevo, que conhecia muito bem o local porque ali passava muitas vezes que, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, se aproximou da banda, i. é., do traço que indica o stop no chão, olhou para esquerda, para a direita e outra vez para a esquerda e, não vendo nenhum veículo a aproximar-se, fez a manobra de mudança de direcção à esquerda. Quando já estava com cerca de 80% do carro na faixa por onde ia seguir, foi embatido. Instado a propósito, precisou que, na altura, o sol incidia no espelho presente no local para dar visibilidade, que fez a manobra a uma velocidade moderada porque havia uma casa em frente e não tem hábito de andar à pressa, e que parou o carro na banda desenhada no chão. Quando avançou, não continuou a olhar para a esquerda, dirigindo antes o olhar para a sua frente.
Disse também que parou mesmo no stop e que não havia trânsito.
Mais explicou que a visibilidade era reduzida, já que estavam colocados do lado esquerdo da via, na intersecção com a E.M., dois contentores do lixo, uma placa indicativa de localidade e um poste eléctrico. Para ter visibilidade superior a 23 metros, i. é., para ver a recta toda, tinha de entrar muito dentro da faixa por onde seguia a vítima (via principal), ou seja, teria de estar no meio da estrada e isso era perigoso. Mais à frente referiu que avançou um pouco em relação ao limite da linha.
Sabia que já ali houvera outros acidentes, por isso tinha sempre cuidado.
Sentiu a mota como uma nuvem, de repente, a bater-lhe ao lado. Só viu a D. G… que chamou a ambulância. A partir de certa altura teve de manter os olhos fechados por causa dos vidros que sentia na vista.
Questionado nesse sentido, respondeu que não ponderara fazer a manobra mais atrás e ainda, por outro lado, que, se viesse mesmo na mão, a vítima também não o avistava a uma distância superior a 23 metros.
Afirmou que não pudera utilizar o espelho vertical ali existente porque o sol incidia no mesmo.
Mais à frente, respondeu que, embora ali passasse muitas vezes, não costumava utilizar o espelho, na medida em que este estava sempre empoeirado.
Isto, porque havia logo ali uma via paralela à que seguia ao atingir o stop, de terra batida, e dado que por ali passavam muitos veículos pesados.
Apreciando.
Num primeiro momento, o arguido disse que parou no extremo da linha porque mais à frente era perigoso. Depois, mais adiante, respondeu a questão sugestiva que sim, que os olhos é que estavam ao nível da banda. Consoante as perguntas e respectivos entróitos, muitas vezes com conclusões e sugestões, dizia, ora que avançou devagar, quando o decidiu fazer, ora que avançou depressa.
Chegou a confirmar que o que retirava visibilidade era a esquina da casa situada a seguir aos contentores.
Com efeito, o arguido procurou defender-se tendo feito pequenos ajustes no depoimento, como vimos, no tocante ao sítio exacto onde parou, à circunstância de ter ou não ultrapassado a linha de paragem, e no que tange à velocidade com que fez a manobra. Quando lhe foi perguntado se costumava ouvir rádio no carro, extrapolou e respondeu que naquele dia não estava a ouvir rádio, que nunca ouvia.
Mais à frente, alvitrou que estava avariado, e também que nunca conversava com os empregados durante as viagens porque era o patrão.
Todavia este comportamento do arguido pode ter ficado a dever-se ao facto de não ter chegado a aperceber-se ou a memorizar tais pormenores, e de ter grande vontade de se defender. Na realidade, o mais natural é que o condutor não se aperceba com exactidão se pára em cima de uma linha ou se a ultrapassa ligeiramente ou se fica aquém dela, ou, não parando, se é numa daquelas posições que se certifica do trânsito existente em via principal. Por outro lado, este é já o terceiro julgamento a que é submetido pelos mesmos factos (apesar de o segundo ter sido dado sem efeito), pelo que perceberá agora melhor o que é esperado ouvir.
Exemplo disso é a precisão com que sempre referiu “23 metros”, sem que contudo referisse qualquer medição, indicando a visibilidade que tinha para a via onde seguia a vítima quando parara o carro.
Não é, pois, possível concluir-se que pretendeu criar uma versão não correspondente à realidade precisamente para esconder a verdade. Todavia, atentas as incoerências atrás descritas, o tribunal não se pode ater somente à sua versão, sem prejuízo da parte em que se mostra corroborada por outros meios de prova.
As únicas duas testemunhas verdadeiramente presenciais, MD e PA, que seguiam no carro com o arguido nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, deram uma versão dos factos neste julgamento diferente daqueloutra que haviam dado no primeiro, sendo certo que não forneceram qualquer explicação plausível para tanto (recorde-se que foi autorizada a leitura das declarações anteriormente prestadas perante juiz).. O mesmo sucedeu com a testemunha AF
Os dois primeiros disseram agora que o arguido parara junto ao sinal desenhado no chão e, antes, haviam garantido diversas vezes que o arguido parara no sinal vertical. Falaram sempre com muito pouca fluência, pelo que o tribunal não pode sequer perceber se estavam familiarizados com o local ou se tinham noção de que, além do sinal vertical, existia outro mais à frente desenhado no chão. Apenas se percebeu que estavam, na sua simplicidade, apostados em defender o arguido.
Como é evidente, o ajuste da nova versão ficou a dever-se a conversa mantida com alguém - já que as testemunhas demonstraram escassos recursos sócio-culturais e dificuldades de comunicação/expressão e de discernimento -, e ao propósito de favorecer o arguido. Também não se olvida que a aparência de quase ausência de raciocínio pudesse ter ficado a dever-se à circunstância de não conseguirem ser espontâneos por trazerem a resposta como que estudada. De todo o modo, as regras da experiência comum permitem, dentro do campo da razoabilidade, colocar a hipótese de as testemunhas não terem realmente presente em que sítio exacto o arguido parou mas terem ideia de que parara por causa do sinal stop, tendo, por isso, para si, que sempre diziam – pelo menos, sensivelmente -, a verdade.
Por seu turno, a testemunha AF explicou que ia a passar no local no momento em que o arguido atingia o stop e que sabia que este não chegara a parar, tendo apenas abrandado. No primeiro julgamento, explicara que disso estava certo porque, se acaso o arguido tivesse parado, a testemunha, para fazer a travessia da estrada, teria de contornar a traseira do carro tripulado pelo arguido. Desta vez, respondeu que, ainda que o arguido parasse, a testemunha sempre passaria sem necessidade de se desviar por causa do veículo. A insistências, ante a dúvida sobre se conseguiria aperceber-se do que sucedia de lado, posto que a testemunha afiançara que não parara a sua própria marcha, o mesmo respondeu que sabe que o arguido não parou porque estava atento ao barulho do carro.
Ora, não se verificou qualquer motivo – pois que nem a testemunha avançou qualquer um -, que explicasse a diferença havida entre ambos os depoimentos, o primeiro e o último. Por outro lado, chegou a garantir que vira o embate, porque conseguia ver perfeitamente o que se passava de lado, apesar de ter continuado sempre a andar. Disse também que estava com pressa para chegar a casa. Mas, mais à frente, respondeu que havia parado para beber uma cerveja, assim explicando por que é que passava ali àquela hora apesar de ter saído do trabalho bem mais cedo. É certo que poderia ter aludido à pressa por se sentir desconfortável por não ter parado por causa do acidente. Mas não deixa de ser igualmente razoável considerar que poderia ter recorrido a esta explicação para justificar o motivo pelo qual ninguém o vira.
Acresce que, na verdade, nem o meio em apreço nem a fogosidade com que a testemunha depôs são consentâneas com a tese de que se apercebeu do acidente e não parou. Trata-se de uma atitude muito pouco verosímil no contexto de um meio pequeno, num local com pouca gente ou nenhuma no momento do acidente e vinda de alguém que não mostrou uma postura de se não querer “meter em nada”. Se o problema era chegar depressa a casa para esconder (da esposa) que havia parado num café, ali tinha uma boa razão para justificar o atraso. Se o próprio, espontaneamente, queria efectivamente chegar depressa porque estava atormentado com alguma preocupação, não se compreende que ainda tivesse parado para beber uma cerveja.
Note-se que para esta dúvida não concorreu o testemunho de Maria da Glória, tendo em conta que do depoimento da mesma resultou que apenas chegou ao local, pelo menos, um minuto após o embate, pelo que os dois depoimentos não são necessariamente opostos. Também é verdade que se não pôs em crise a integridade do depoimento da mãe da vítima e que a mesma explicou que fora um senhor que conhece de vista que lhe disse que AF “vira o acidente”. Todavia, tal, sem mais, não tem o alcance de dissipar todas as dúvidas a este nível, como é bem de ver.
A verdade, é que o relato de AF não foi pautado por coerência e naturalidade necessárias para merecer credibilidade sem qualquer outro meio de prova ou dado susceptível de ser inferido da mesma, a corroborar a sua versão. De todo o modo, conforme se explicitará em sede própria, ainda que nos ativéssemos ao dado que pretendeu fornecer - a saber, o facto de o arguido apenas ter abrandado não chegando exactamente a parar -, a solução final não seria diversa, conforme se explicitará em sede própria.
AM assistente, referiu que RD passava naquele sítio apenas para ir ao mecânico. Poucas vezes, portanto. Explicou que o seu falecido marido se lançou sozinho na firma unipessoal porque, em tempos, quando trabalhava por conta de outrem, alcançou uma vasta clientela. Por outro lado, paralelamente, representava em Portugal algumas firmas espanholas.
Tinha dois carros, sendo que outros dois estavam afectos à empresa.
Mais acrescentou que faziam férias muitas vezes no Algarve e em Espanha e que quase sempre levavam os pais e irmão.
Explicou que obteve fotocópia da factura relativa ao pagamento do motociclo sinistrado. No entanto, não logrou explicar a data da factura atinente à mala e suporte (posterior à do decesso), pelo que, na ausência de outra prova, tal facto não ficou demonstrado.
Referiu igualmente que a mala e suporte da mota nunca forma encontrados, pelo que se não julgou provado que ficaram completamente destruídos.
Assinale-se ainda que, pese embora a assistente tivesse dito que ao seu falecido marido não eram conhecidas doenças, o que ficou demonstrado, o relatório de autópsia mencionou estado de obesidade do mesmo, pelo que se não poderia “concluir” que inexistia motivo de qualquer preocupação com o seu estado de saúde.
JS, contabilista, explicou que do lucro da firma saía o numerário para suportar o custo das viagens, refeições, chamadas telefónicas, etc. Despesas que nem sempre eram feitas no âmbito da actividade da empresa.
Valores que representavam cerca de €10.000,00 por ano.
Mais respondeu que não existiam dívidas.
FJ, agente da GNR reformado, autor do croqui, respondeu que se não recorda do espelho vertical e afirmou que a visibilidade no local era reduzida – cerca de 20/30 metros, sendo que ali haviam já ocorrido diversos acidentes embora não tão graves. Instado sobre se, no caso de o arguido avançar um metro/um metro e meio para dentro da estrada já conseguiria ver a recta toda, respondeu afirmativamente, embora nunca tivesse efectuado qualquer medição. Todavia, mais à frente, respondeu também afirmativamente à questão de saber se, para ver a recta toda, teria de chegar com o carro a meio da hemi-faixa de rodagem por onde seguia a vítima.
Mais disse que o local provável do embate foi assinalado tendo por referência a marca do início do arrastamento do rodado traseiro do veículo do arguido.
Confrontado com o facto de, nesse caso, o embate se ter dado um pouco mais à esquerda atento o sentido de marcha do motociclo, a testemunha hesitou acabando por concordar.
Respondeu também que o arguido se deparava com um muro de uma casa à sua frente ao descrever a manobra de mudança de direcção à esquerda. Mais confirmou que a velocidade máxima permitida no sentido que levava o motociclo era de 40KM/h e que existia uma via paralela àquela da qual surgiu o arguido, que era em terra batida.
Sandra , António, MA JL, JZ e José MX, amigos da vítima e seus familiares, confirmaram, em síntese e no que releva, que RD era pessoa muito trabalhadora e empreendedora, que acompanhava muito a família, estimulava o irmão, deficiente, e aparentava vida bastante desafogada.
MM , mãe de RD corroborou o que foi dito por tais testemunhas e pela assistente no que toca ao tipo de vida do filho falecido e explicou como chegou à testemunha Albertino.
MG habitante de casa de habitação sita perto dos aludidos contentores e conhecida do arguido, explicou que não viu ninguém no local do acidente, sendo certo que, depois de ouvir o som do mesmo, ainda demorou cerca de um minuto a sair de casa e a chegar ao local, sendo que, durante esse período, não esteve a olhar para o sítio do sinistro. Mais disse que ali aconteciam diversos acidentes, mas nunca nenhum tão grave.
R M filho da testemunha anterior, explicou que já antes ali tinham ocorrido acidentes, que ouvia barulhos de travagem com alguma frequência, especialmente à noite, e que se não recordava de ali estar então colocado um espelho vertical, associando-o a altura posterior ao embate (o que, contudo, foi infirmado pelo arguido).
Instado, respondeu que com o carro a meio da estrada já avistava ao fundo.
Garantiu que chegou a chamar a atenção da Câmara Municipal para o perigo daquele entroncamento e também dos funcionários que recolhiam o lixo, pois que estes deixavam os contentores de qualquer maneira.
S. Sargento Ajudante da GNR e ex-comandante do Posto da GNR daquela área, não foi capaz de fornecer quaisquer distâncias, sequer por aproximação. Deu conta de que não foram muitos os acidentes participados naquele sítio e que havia cruzamentos piores, sendo que ali o problema é que os condutores não respeitavam o limite de velocidade imposto nas localidades. Por isso, nunca tomou a iniciativa de sugerir a construção de uma rotunda.
H, filho do arguido, deu conta de o arguido ser condutor muito cuidadoso e pai dedicado, e acentuou que o entroncamento em questão tinha, nas suas palavras, má visibilidade.
N.., funcionário da Câmara Municipal, explicou que a rotunda foi uma mera melhoria, não tendo ideia de o cruzamento ser perigoso. Não conseguiu precisar se ali, no sentido que levava o arguido, passava antes com frequência mensal ou semanal.
Diferentemente do que sucedeu com o arguido e com as testemunhas MD, PA e AF a assistente e todas as demais testemunhas não suscitaram reservas ao tribunal, já que prestaram declarações com naturalidade e fluência, apesar da maior ou menor paixão imprimida.
Importa, no entanto, salientar que, conforme decorre do resumo que antecede, as testemunhas N., funcionário da Câmara Municipal, S.. ex-comandante do Posto da GNR da área onde ocorreu o sinistro, e MG, proprietária da casa de habitação sita junto ao local, nada adiantaram com relevo para a decisão da causa.
RF, com relevo, apenas acrescentou que seria necessário chegar ao meio da hemi-faixa por onde seguia o motociclo para avistar “até ao fundo”.
É certo que o agente autor da participação, FL começou por responder afirmativamente à questão de saber se, avançando um metro/um metro e meio relativamente à linha indicadora do sinal stop, era já possível avistar a recta a uma distância de segurança. Todavia, à frente, respondeu o mesmo quando lhe foi perguntado se era necessário chegar ao meio da estrada, i. é., da hemi-faixa.
Com efeito, ficou claro que o agente nunca fizera tais medições. O que levanta mais uma vez o problema da deficiente investigação neste domínio, sendo certo que, actualmente, existem já equipas especiais para tal fim. Ora, para um condutor, no caso de não ter preocupação nesse sentido, não é fácil perceber se avança mais, ou menos, um metro, se está, ou não, exactamente a meio de uma via. Recorde-se que esta testemunha revelou uma memória dos factos algo afectada pelo decurso do tempo. O que foi patente com mais acuidade no tocante ao raciocínio feito para indicar o exacto local provável do embate, hesitando e acabando por concordar quando lhe foi dito que o local do embate não poderia coincidir com o início da marca de arrastamento. Aquiesceu, embora sem grande convicção. Afigura-se, pois, que a testemunha não é já capaz de dizer se local que assinalou no croqui como sendo provavelmente o do embate coincide mesmo com o início da marca de arrastamento ou se esta marca foi apenas então uma referência que tomou, tendo contando também com a deformação do veículo (sítio onde foi embatido) e assinalando tal ponto à esquerda do início da aludida marca.
Não está, pois, em causa a credibilidade da testemunha, sob o ponto de vista da sua integridade, mas, antes, a sua memória e também, por outro lado, a ausência de rigor no tocante ao ponto da via em apreço a partir do qual era possível avistar a recta da qual surgiu o motociclo.
Para além das declarações do arguido e da prova testemunhal, foi ainda produzida prova documental e pericial. Abordaremos aqui a opinião trazida por CJ apesar de figurar nos autos como testemunha, aquando da análise da prova pericial, por conveniência de sistematização.
Foram tidos em conta os seguintes documentos juntos aos autos:
-Participação de acidente de viação constante de fls 12-14;
- informação e guia de transporte de cadáver de fls 10;
- relatório de autópsia de fls 37-38;
- relatório de C… AY;
- assento de casamento de fls 67/68 e de nascimento de fls 754;
- certidão do registo comercial de 113 e seguintes;
- declarações de IRC e IRS atinentes aos anos 2002 e 2003, constantes de fls 115 e seguintes;
- declaração da firma unipessoal dando conta dos valores colocados à disposição do falecido;
- Atestados médicos e relatório psico-social relativos à assistente de fls 122 e seguintes;
- Informação relativa ao motociclo, de fls 125/126;
- declaração de venda do motociclo e facturas respectivas;
- apólice constante de fls 257;
- factura de funerária de fls 131;
- declaração médica relativa ao irmão da vítima, constante de fls 1165 e seguintes;
- certidão de registo de dissolução da firma da vítima, de fls 168 e seguintes;
- fotografias de fls 1329 e seguintes;
- informação acerca do veículo do arguido, constante de fls 307; e
- declaração do ISSS acerca da pensão auferida pelo arguido, junta a fls 399.
Os dados com que o tribunal pode contar trazidos pelo croqui são essencialmente os seguintes: a medida da largura da via por onde seguia a vítima (i. é., das duas faixas de rodagem) - 6,70 metros -; os sentidos de marcha, corroborados pelas testemunhas e arguido; a existência de mancha de sangue e local onde cada um dos veículos e a vítima se imobilizaram após o embate; a marca de arrastamento da roda traseira do veículo do arguido, e a inexistência de sinais de travagem.
Relativamente ao local do embate, ficou por apurar se correspondeu rigorosamente ao local provável assinalado no croqui ou se o mesmo se situou um pouco mais à esquerda, atento o sentido de marcha do motociclo, i. é., mais próximo ainda do eixo da via. Pois, o início do arrastamento marcado no pavimento corresponderá ao sítio onde a roda estava no momento do embate. Sucede que o veículo foi embatido no centro lateral esquerdo, e atingido também na parte lateral esquerda traseira. Ora, o autor do croqui já não foi capaz de precisar se, aquando da indicação do local provável do embate, fez este raciocínio ou se o assinalou exactamente no local onde começava a marca de arrastamento do rodado traseiro.
Esta é, pois, a única margem que se concede, atendendo à marca de arrastamento e à concentração de vidros partidos e ainda ao trajecto possível do arguido, que vinha da aludida variante.
Na perícia que efectuou a pedido do tribunal, constante de fls 436 e seguintes e 1250 e seguintes, J… Maria… com formação em Engenharia Mecânica, ateve-se ao croqui e ficha de homologação do motociclo e veículo automóvel intervenientes e partiu do princípio de que os pneumáticos dos veículos e o piso estavam em bom estado.
Explicou, num primeiro relatório, que uma resposta cabal à questão da velocidade seguida pela vítima impunha um teste à deformação plástica de viaturas com características idênticas para calcular a energia necessária para tal deformação ou uma simulação. No entanto, tal exigia informações dos fabricantes que não são facultadas, sendo também muito dispendioso. Por isso, não teve em conta a energia de deformação absorvida pelo automóvel aquando do impacto.
Atendeu outrossim à distância a que se encontrava o corpo do motociclo do local provável do embate e, apesar de tomar como provável que embateu primeiro no veículo e que assim perderia energia, não considerou este factor. Afirmou que o falecido, ao ser projectado, partiu do assento embora nas contas feitas tivesse atendido a que a partida se fizera do chão, sendo certo que também por isso chegou a uma velocidade inferior à real. Note-se que, apesar de, como vimos, o local provável do embate poder não corresponder exactamente ao que foi assinalado no croqui, a diferença esgotar-se-á em meros centímetros.
Acrescenta ainda que nos cálculos apresentados não foi possível considerar a hipótese de deslizamento lateral da viatura automóvel como um todo, por não dispor de dados que permitissem contabilizar a energia correspondente a esse movimento. Movimento mais do que provável segundo o perito, atendendo a que o impacto se deu praticamente a meio da viatura automóvel, pelo que a energia dissipada teria sido mais elevada do que a calculada.
Alerta nas conclusões para o facto de os resultados obtidos se referirem apenas à parte da energia produzida no choque que terá sido consumida durante o movimento lateral do automóvel e do deslizamento do motociclo desde o ponto de impacto até à sua posição final. A velocidade do motociclo necessária para produzir esta quantidade de energia terá sido de 47,2Km/H. A fazer fé nos estragos visíveis, conclui que a velocidade terá sido bastante mais elevada.
O espaço necessário à imobilização do motociclo dependia da velocidade seguida, do peso do passageiro e do estado dos pneus e dos travões.
Mais acrescenta que da análise dos dados constantes da ficha técnica do motociclo, se verifica que o mesmo não vem de fábrica dotado com qualquer sistema anti-bloqueio, como ABS, sendo difícil colocá-lo posteriormente.
Num segundo relatório, na sequência de análise à deformação dos veículos, concluiu que uma parte da deformação do automóvel ficou a dever-se a choque do corpo da vítima atenta a altura a que a deformação superior se verificava que era superior à altura do motociclo. Assim, os dados pecam por defeito já que não contabilizam a energia dissipada no impacto do corpo com o automóvel. Esta parte não quantificável é seguramente uma parte significativa da energia com que o corpo do motociclista foi animado no instante do embate.
Esclarece que a velocidade do veículo automóvel no momento do embate não é relevante para a análise dos seus efeitos, atendendo a que o embate foi lateral.
Concluiu que, da certeza de que a velocidade seguida pelo motociclo era superior a 47,2KM/h, não é possível extrapolar valores, mesmo aproximados, que quantifiquem as velocidades a que os veículos intervenientes no acidente se deslocariam. Explica que existem programas e técnicos especializados para simular. Todavia, em audiência, explicou que tal depende da qualidade dos materiais, informação que nem sempre é rigorosamente disponibilizada pelos fabricantes, e que tal é imprescindível para se poder calcular o atrito a ser tido em conta, por exemplo, para analisar o movimento dos rodados quando não existem marcas. Considera que, de resto, há sempre margem para dúvidas nesses programas, revelando cepticismo. Motivo pelo qual só teve em conta o movimento do rodado traseiro do automóvel (só relativamente a este existia marca) apesar de saber que também o da frente se deslocou.
Admite como provável que a velocidade seguida fosse o dobro da que calculou. Pois, toda a estrutura do automóvel se deformou. Ficou deformada a parte mais rígida do veículo. A longarina. Ora, é preciso uma velocidade muito superior a 47,2 km/h para que uma viga de aço se deforme. A maior deformação do automóvel foi entre as portas. Trata-se de uma zona de rigidez, zona do pilar e também porta traseira.
Explicou que desconhece o ângulo de projecção do condutor do motociclo.
C… AY, autor do parecer junto pelo arguido, com formação semelhante à do Perito indicado pelo tribunal, explicou que só chegou a valores diferentes porque teve em conta o movimento do rodado da frente, i. é., considerou a rotação de todo o veículo, ao passo que o colega só teve em conta a rotação da roda do eixo traseiro. Afirmou que o veículo do arguido foi arrastado como um todo, pois a deformação verificada é consentânea com o arrastamento total.
Explicou por que é que no seu esquema o motociclo não surge colocado exactamente tal como no croqui, no mesmo sítio/ângulo.
Esclareceu igualmente que o arguido, ao efectuar a mudança de direcção, não seguiria a mais de 15/18 KM/hora porque, se o fizesse, não teria estabilidade, tendo ainda em conta que existia em frente uma casa. Conclui, por isso, atendendo a uma velocidade de 15KM/H que o choque se deu 2,4 segundos após o arguido iniciar a sua marcha. Confrontado, em audiência, com a hipótese de o arguido não ter parado, respondeu que a solução a este nível seria semelhante (note-se que pelo facto de se considerar provado que o arguido não efectuou a manobra a velocidade superior não significa que daqui resulte que a não fez a velocidade inferior). Tomou-se como muito provável a velocidade de 15Km/h, já que o arguido referiu sempre que avançou devagar, com particular fluência conforme já observado e desmontado.
Concluiu que a vítima seguia a velocidade não inferior a 68KM/h, considerando que não houve desaceleração. Caso tivesse havido desaceleração, seguia a velocidade não inferior a 75 Km/h.
Confirma que era de 22m a visibilidade do arguido se parado com o limite do veículo no limite da linha. No entanto, seguiu o que lhe disseram no que toca à posição dos obstáculos existentes durante os testes e ensaios que efectuou no local, já que, conforme resultou dos vários depoimentos e reconheceu, o poste e contentores já se não encontravam no mesmo sítio. Motivo pelo qual o tribunal não considerou demonstrado que a visibilidade, naquelas exactas circunstâncias, era efectivamente de 22 metros. Todavia, na ausência de qualquer outra prova neste domínio, e atentas as circunstâncias em que o referido valor foi apurado, tem-se por demonstrado que não era inferior.
Em face da velocidade mínima de que vinha animado o motociclo, Carlos Alcobia concluiu que o motociclo estava a uma distância não inferior a 46,00 m do local provável do embate quando o arguido iniciou a marcha, partindo do princípio de que parou. Esclareceu que, mesmo abrandando só, a velocidade seria aquela.
Conclui que a velocidade sempre seria superior já que no respectivo cálculo não foram tidas em conta as deformações dos veículos que constituem a maior fonte de energia transformada.
O perito do tribunal e a testemunha C.. AY foram confrontados conjuntamente com o relatório um do outro em audiência. O perito do tribunal repisou que, para considerar nos seus cálculos o movimento do rodado da frente, teria de conhecer bem os materiais do veículo por causa do factor atrito. Ora, há muitas informações que os fabricantes não fornecem. C.. AY considerou que o valor tido em conta a este nível consegue ser muito aproximado. Nesta altura, o perito do tribunal respondeu que a sua postura é realmente muito conservadora mas que a mantinha.
Na ausência de melhor explicação técnica por banda de C… AY e atento o rigor que sempre norteou o relatório feito pelo perito nomeado pelo tribunal, ativemo-nos apenas nos seus esclarecimentos.
Em suma, uma das conclusões que é possível extrair de ambos os relatórios é que concorrem outros factores que, a serem tidos em conta, levariam a concluir que a vítima seguia a velocidade bastante superior a 47,2KM/H. São eles a energia necessária para deformar o automóvel, particularmente na viga de aço, e a energia perdida aquando do prévio choque do corpo da vítima no automóvel no momento da projecção. Simplesmente, desconhecem-se uma série de factores que impossibilitam fazer cálculos a este nível.
Importa agora expor uma breve análise aos meios de prova conjuntamente considerados.
Não foi possível apurar dois factores determinantes para compreensão e avaliação do comportamento do arguido. A saber, a possibilidade de utilização do espelho vertical colocado no local e a possibilidade de avistar a via em apreço a distância superior a 22 metros sem chegar com a frente do veículo ao meio da estrada (da hemi-faixa por onde circulava o motociclo). Não se apuraram nem tal seria possível. Em primeiro lugar, porque, apesar das fortes insistências acerca destes pontos, nenhuma das pessoas ouvidas logrou infirmar, conforme supra escalpelizado, a versão do arguido a este nível. Ao contrário. Em segundo lugar porque, algum tempo após os factos, o local foi alterado e, posteriormente, foi ali feita uma rotunda. Pena foi que a testemunha C… Alcobia se não lembrasse nem tivesse referido no relatório se a visibilidade que atribuía como sendo a do arguido, tinha lugar com o veículo respectivo parado no limite nha branca ou se a ultrapassava e em que medida, e ainda que não tivesse analisado se era possível ver consideravelmente mais sem chegar com o veículo ao meio da estrada. De todo o modo, sempre o seu teste teria em conta a descrição coeva do local feita pelo arguido, pelo que os dados a este nível seriam também atendidos “cum granu salis”. Pena foi sobretudo que C… AYl tivesse ignorado o espelho ali existente.
Sem a possibilidade de discernir acerca destes dois aspectos, a decisão nunca poderá satisfazer o sentimento de justiça da comunidade, alheias que são naturalmente à resposta do direito para situações de escassez de prova.
Com efeito, o que o arguido referiu com mais insistência, naturalidade e espontaneidade foi que, para ver a recta numa extensão superior a 23 metros, teria de parar no meio da estrada (referindo-se à hemi-faixa por onde seguia a vítima), o que não fez por se lhe afigurar perigoso. E ainda que avançou devagar e olhando sempre em frente porque tinha, precisamente em frente, uma casa e porque não era seu hábito andar com velocidades. Repetiu isto várias vezes ao longo do depoimento, com fluência diferente. Mesmo depois de ter dito coisa diferente, o arguido voltava a referir aquelas circunstâncias em tom francamente natural, acrescentando sempre que não queria que aquilo tivesse acontecido consigo.
Ora, o facto de ser essa a visibilidade que o condutor tinha se parasse o carro no limite da linha indicadora do stop resultou das declarações do arguido e do depoimento de várias testemunhas que foram sempre referindo 20/30 metros (inclusivamente de C. Alcobia que com mais propriedade fez referência similar).
Assim, por força do princípio da presunção de inocência do arguido em processo penal, constitucionalmente protegido, e respectivas decorrências, importa considerar que assim era, já que inexistem elementos que infirmem tal afirmação.
De resto, por todos foi dito que do lado esquerdo existiam contentores, placa indicativa de localidade e poste de iluminação a retirar a visibilidade, já que a estrada fazia uma curva para esse lado. Recorrendo ainda às regras da lógica e da experiência comum no quadro da perspectiva de quem conduz, afigura-se bastante razoável que fosse entre 22 e 30 metros a visibilidade então do arguido. De contrário, não se compreenderia o motivo pelo qual ali fora então colocado um espelho vertical. Todavia, repisando, os cálculos a fazer terão de ater-se apenas ao valor de 22 metros por força da máxima in dubio pro reo, um dos mais importantes corolários do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência do arguido em processo penal.
Parte-se do pressuposto de que, efectivamente, no momento em que o arguido parte do local onde a visibilidade era de 22 metros (quer tenha ou não chegado mesmo a parar), ainda não via a vítima. Sucede que à velocidade de 47,2 KM/h (que foi o valor encontrado por – longa margem de – defeito pelo perito do tribunal, a vítima encontrava-se a uma distância do local do embate - quando parado com o limite do carro no limite da linha -, superior a 22 metros (estaria a cerca de 30/31m a uma velocidade de 47,2Km/h). Distância que seria similar relativamente à que o separava do arguido no momento em que se certificou do trânsito. Deste modo, podemos concluir que, de facto, o arguido não avistou (porque não era possível) o motociclo naquele momento em que decidiu fazer a manobra em apreço (tenha ou não parado), i. é., mais rigorosamente, no momento em que se certificou de que não havia trânsito na via e assim também na hemi-faixa por onde seguia o falecido.
Ficou ainda demonstrado que o arguido não utilizou o espelho. Ele próprio o confessou. Argumentou que o sol incidia no espelho naquele momento. Disse também que das outras vezes que lá passava não o utilizava porque estava empoeirado. Isto, porque ali existe uma rua paralela àquela onde o arguido se deparou com o stop, que é em terra batida, e que por ela passam muitos veículos pesados, que levantam muito pó.
Mais à frente, foi dito por R M que o espelho estava mal colocado (apesar de o associar a data posterior).
Acerca destes três factores não foi produzida qualquer outra prova. Lamentavelmente, não foi tratado tal pormenor no auto de participação do acidente.
Repisando, apenas se não compreende o motivo pelo qual C… AY não teve o espelho em consideração durante os testes que levou a cabo, na medida em que analisou e tratou também a visibilidade que tinha o arguido, colocou os contentores onde alegadamente se encontravam à data do sinistro, observou o comportamento dos condutores no local, etc. Todavia, extrapolar para concluir daqui que, se não escalpelizou a questão da visibilidade, conforme atrás observado, nem a possibilidade de recorrer ao espelho vertical, tendo sido indicado (e possivelmente pago) pelo arguido, é porque pretendia esconder a realidade, afigura-se, no contexto global que se perfila, manifestamente desrazoável e avesso à presunção de inocência de que goza o arguido.
Assim, ou o espelho não estava em condições de ser utilizado por uma ou várias das razões avançadas pelo arguido, ou o mesmo não o utilizou quando deveria tê-lo feito. Também a este respeito, sobrou a dúvida que é ainda razoável em função da verosimilhança dos motivos enumerados. Note-se que a dificuldade da prova foi acrescida na medida em que a última alteração do local em apreço foi de tal modo que tornou inútil a reconstituição dos factos ou mesmo a inspecção judicial ao local.
Não se sabe se o arguido seguia aos tais 15/18 km/h admissíveis e ainda confortáveis ou se circulava a velocidade inferior. No entanto, quando o arguido diz que ia devagar, não se pode extrapolar e concluir que ia a velocidade inferior àquela, pois que, quando se segue a 15/18 KM, ainda que por força das circunstâncias e da necessidade de estabilidade, é inevitável a sensação de que se conduz… devagar.
Note-se ainda que quanto menor a velocidade imprimida, menor probabilidade existe de um eventual embate ter consequências fatais.”.

*
Conforme decorre da análise das conclusões das motivações, as questões a decidir são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto e culpa na ocorrência do acidente;
- Violação do artº 496º CC
- Divergência quanto aos montantes indemnizatórios que foram fixados;
Vejamos.
A) Da impugnação da matéria de facto e culpa na ocorrência do acidente
Entendem os recorrentes AM, MM e JD que os factos dados como não provados nos pontos 4, 5, 6, 7, 16, 17, 18 e 27 deveriam ter sido considerados provados, e que o facto dado como provado no ponto 19, deveria ter sido incluído entre os factos não provados.
Sustentam tal impugnação nos depoimentos que foram prestados pelas testemunhas MD PA AF MG , FL, RM e no croqui.
Recordemos os factos em questão:
Foi considerado não provado:
“ 4. Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido, antes de decidir empreender a manobra de mudança de direcção à esquerda, não se certificou do trânsito que se fazia neste sentido.
5. O arguido não parou no stop, i. é., não imobilizou completamente o seu veículo de modo a dar passagem ao motociclo conduzido pela vítima RD que se aproximava do entroncamento.
6. O arguido não se rodeou dos cuidados adequados nem imprimiu à sua conduta a actuação e perícia necessária para evitar o acidente, acabando por invadir a mão de trânsito onde circulava a vítima RD, este sem espaço e tempo útil para evitar a colisão, provocando desse modo os ferimentos descritos que foram causa directa e necessária da sua morte.
7. O arguido actuou com negligência, imperícia e inconsideração não adoptando comportamento adequado a evitar as lesões e a morte que causou.
16. O arguido não cuidou de verificar o trânsito de veículos ao longo da hemi-faixa em que circulava o motociclo.
17. Atravessando a sua viatura de forma súbita, como atravessou, na hemi-faixa em que circulava o motociclo ….LX, não apenas impediu a passagem deste na mão de trânsito em que circulava, como também não deu ao condutor do motociclo qualquer hipótese de evitar o choque com o ligeiro de passageiros.
18. O condutor do motociclo viu a faixa de rodagem em que circulava subitamente obstruída sem que por sua parte houvesse qualquer possibilidade de evitar o acidente.
27. O arguido teria visibilidade superior a 22 metros para a recta da qual provinha o motociclo se avançasse com o seu veículo até a um ponto que ainda não atingia o meio da hemi-faixa por onde seguia a vítima.”.
Foi considerado provado:
“19. Caso o falecido circulasse então com observância do limite de velocidade ali imposto, teria tido tempo de parar e/ou de abrandar ao avistar o arguido, manobrando o motociclo em conformidade.”
Verifiquemos então se há fundamento para considerar provada a matéria de facto impugnada que foi dada como não provada.
Pois bem ouvidos todos os depoimentos invocados e designadamente os testemunhas MD e PA que eram ocupantes do veículo conduzido pelo arguido, desde logo se verifica que estes últimos têm um discurso excessivamente preocupado em desresponsabilizar o arguido na ocorrência do acidente, indo ao ponto de alterarem significativamente o depoimento que por elas fora prestado no primeiro julgamento.
Assim enquanto nesse julgamento disseram que o arguido havia parado no stop vertical existente na berma, agora evoluem dizendo que a paragem ocorreu no stop existente mais à frente no chão, isto é já em local em que se permite, conforme a matéria de facto dada como provada no ponto 10, apenas uma visibilidade que “ não ultrapassava trinta metros nem era inferior a 22 metros”.
Ora se daí se tem uma visibilidade tão curta, muito inferior será aquela que se alcançava do local onde estava o sinal de stop vertical, pois estava situado mais atrás.
Mas não tiveram qualquer problema estas testemunhas em alterar o seu depoimento de acordo com a conveniência do arguido e por isso agora chegaram um pouco mais à frente o local onde alegadamente havia parado, é que daí, como dissemos sempre se poderia ter uma visibilidade não inferior a 22 metros.
Só que para que tal pudesse vingar seria necessário que essa alteração nos depoimentos das testemunhas tivesse tido alguma justificação que não fosse a de ser mais conveniente à versão do arguido.
E por isso nenhuma credibilidade se lhes pode atribuir !
Aliás a testemunha MD, a determinado passo do seu depoimento, deixa escapar nesta audiência, referindo-se ao arguido que “ ele afrouxou à placa de stop, praticamente quase parou e depois apanhou a faixa”. Quer dizer no decorrer do seu depoimento, assumiu a não paragem, embora logo de seguida retome a versão da desresponsabilização do arguido.
Por sua vez a testemunha PA, depois de inicialmente ter dito que a paragem foi no stop escrito no chão, chega no decorrer do seu depoimento a dizer que até parou nos dois stops.
Tais contradições e divergências relativamente à facticidade que esteve na origem da acusação e a versão que agora decidiram apresentar em julgamento, deixam-nos muitas dúvidas sobre a verdade dos factos relatados.
É que não há qualquer razão que justifique, a não ser o interesse em desresponsabilizar o arguido, que as testemunhas mudem tão radicalmente a versão quanto a pontos essenciais.
É que não são aspectos de pormenor ou laterais.
Na verdade se é certo que não se põe em causa que essas testemunhas acompanhassem o arguido na viatura, já a sua versão levanta muitas dúvidas sobre a sua veracidade relativamente ao relato feito, pelo que, não se lhes pode atribuir qualquer credibilidade.
Manifestam um claro interesse na defesa da posição do arguido, não sendo por essa razão isentos naquilo que dizem.
Já o mesmo não acontece relativamente ao depoimento prestado pela testemunha AF
Com efeito, esta testemunha que presenciou o acidente prestou um depoimento isento e desinteressado, não se vislumbrando nenhuma razão para que a mesma não mereça credibilidade e muito menos o facto de em matérias perfeitamente secundárias e laterais sobre as razões que o levaram a abandonar o local após o acidente ser diversa relativamente ao primeiro julgamento. São questões de pormenor irrelevantes relativamente à questão de fundo – descrição da forma como efectivamente ocorreu o embate.
Com efeito relatando aquilo que viu diz:
“ Vinha de Miranda para Meãs no passeio do lado direito. Quando se dá o acidente estou no separador, quando se aproxima o carro deste senhor vindo dessa cortada, chegou ali, entrou na estrada e nessa altura bateu-lhe a mota.
Aquilo foi muito rápido. Eu estou à espera da viatura do arguido passar para atravessar a cortada de onde vinha o carro. Mal eu atravesso a estrada ouço o embate da mota contra o carro…
Vi precisamente o carro.. o carro sai da via rápida, desce a via rápida e desce em direcção a Miranda a aproximar-se do sítio que eu ia atravessar… é normal que tenha abrandado, mas não parou, avançou sempre, mas não parou. Até cheguei a pensar que talvez não tenha parado porque eu estava ali para atravessar. Mas mesmo que tivesse parado ali não tinha visibilidade para a estrada, teria que avançar mais para diante. Ele começa logo a fazer a manobra de mudança de direcção.
Quando acabo de atravessar a estrada ouço o estrondo da mota contra o carro.”.
Mais refere a referida testemunha, para caracterizar a visibilidade do local, quando aí passava a conduzir, que “ eu quando chegava ali, abria o vidro para ouvir algum motor, algum barulho, pois no sentido de Miranda se parasse no stop não tinha visibilidade. Tinha de entrar mesmo, meter a frente do carro, ultrapassar a linha longitudinal cerca de 1 metro e só assim tinha visibilidade de cerca de 100/150 metros. Podia-se ver pelo espelho, mas às vezes não dava. Ia entrando”….
“ O sr. S… não parou, abrandou, mas continuou sempre a andar, porque eu estava ali para fazer a travessia, foi sempre andando, metendo o carro na faixa de rodagem que vem de Miranda para as Meãs”.
Por outro lado, no seu depoimento a testemunha FL , cabo da GNR que à data tomou conta da ocorrência e elaborou o croquis, cujas medições confirmou, que o condutor que parasse em cima da linha de stop pintada na estrada tinha uma visão de 20/30 metros, mas que, avançando a frente do carro cerca de 1,5 m, já se teria visibilidade total.
Esclareceu ainda que o local do embate assinalado no croquis foi o local onde a roda do veículo, por via da pancada sofrida, foi arrastada, bem como os vidros e óleo aí existente. Refere também que do motociclo não havia qualquer travagem.
No que respeita à testemunha R F, residente no local, este descreve-o como sendo um sítio de má visibilidade “ por experiência própria, a gente para entrar na estrada, tinha que entrar na estrada para ver se vinha alguma coisa ou não. Havia dificuldade de ver para Miranda, para ver alguma coisa, se parasse no stop vertical não via nada, se parasse no stop do pavimento só havia visibilidade para a esquina da casa… teriam que entrar sempre na faixa de rodagem, para aí meio da faixa de rodagem Miranda/Meãs e nessa posição já teriam a visibilidade da estrada”.
Pois bem da conjugação de tais depoimentos com a demais facticidade provada e croquis junto parece-nos que dúvidas não podem existir de que o arguido ao desobedecer ao sinal de stop deu causa determinante ao acidente.
Com efeito o sinal de STOP é, nos temos do artº 3º-A do Regulamento do Código da Estrada, um sinal de paragem obrigatória na intersecção e que se destina a dar a indicação de que o condutor é obrigado a parar antes de entrar na intersecção junto da qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar.
Há pois a obrigação do condutor proveniente da estrada onde se acha colocado o referido sinal, de interromper a marcha, concedendo a prioridade de passagem àqueles que circulam na estrada onde pretende circular.
Mas para além disso e uma vez que o arguido pretendia efectuar uma manobra de mudança de direcção sobre si impendia também a especial obrigação de só iniciar a manobra depois de se assegurar que da mesma não resultava perigo ou embaraço para o trânsito (artº 35º CE).
E a provar que o arguido não respeitou tais imposições legais está o facto de ter sido imediatamente embatido após ter avançado para a faixa de rodagem onde circulava o motociclo.
Não era pois o condutor deste, que circulava na via onde o arguido pretendia entrar, cruzando-a, que estava obrigado a prever a falta de prudência ou inconsideração do arguido que, não obstante ter dois sinais de stop, sendo um vertical e outro pintado no pavimento, fosse capaz de desprezar tais avisos.
E mais, também não estava obrigado a prever que o arguido fosse capaz de avançar para a via onde circulava o motociclo e sobre a qual tinha uma visibilidade reduzidíssima, sem tomar as devidas precauções já que era previsível que desse lado pudesse surgir uma viatura.
Resulta do exposto, e como referimos anteriormente que tais cautelas não foram tomadas em conta pelo arguido, maxime quando este até conhecia bem o local.
Daí que se entenda que só o facto de ter entrado inopinadamente na via por onde circulava a vítima possa justificar que esta não tenha tido qualquer hipótese de evitar o embate.
Foi manifestamente surpreendido pela manobra temerária do arguido!
Por isso se entende que o embate se ficou a dever a culpa deste.
Mas parece-nos que não só a ele se deve o acidente.
Na verdade, estando provado que a vítima circulava a velocidade superior a 47, 2 km/hora e sendo a velocidade permitida no local de 40 km/hora, bem como a gravidade e a quantidade de lesões que do embate para ela resultaram, dúvidas não há de que esse excesso de velocidade pese embora irrisório, traduzido em 7,2 km/hora contribuiu também para a eclosão do acidente.
Na verdade, como é sabido, em matéria de velocidade, constitui princípio geral, que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (artº 24º nº 1 CE vigente à data dos factos).
Em suma, naquelas condições era exigível à vítima igualmente uma maior prudência, pois todos os condutores tenham ou não prioridade de passagem, têm a obrigação de reduzir a velocidade nos entroncamentos (artº 25º nº 1 f) CE).
E quem assim não age, pratica, à semelhança do arguido, uma condução temerária.
Na verdade exige-se que os condutores adequem a velocidade de forma a poderem parar no espaço livre e visível à sua frente.
Como refere Dario Martins de Almeida Manual de Acidentes de Viação, pág. 481. “ o domínio da marcha impõe-se a todo o condutor como regra de prudência; e exige, por isso o conhecimento prático das possibilidades do veículo, do seu poder de aceleração ou desaceleração e da sua capacidade de travagem e paragem. Conduzir para além dessa capacidade de domínio é conduzir com velocidade excessiva”.
Deste modo, as descritas condutas quer do arguido quer da vítima, foram manifestamente culposas, porque reveladoras de inconsideração e imperícia, contribuindo assim ambas para o acidente.
Um porque em vez de parar ao sinal de stop e seguidamente entrar lentamente na via até que pudesse avistar com segurança quem por ela circulava, não o fez. E outro porque não adequa a velocidade ao limite imposto no local, pois seguramente que, se circulasse dentro desses limites conseguiria dominar o velocípede ou não o conseguindo, reduziria substancialmente as consequências do embate.
Finalmente diga-se ainda que do facto da vítima ser na altura portadora de uma TAS de 0,76 g/l, não agrava a sua responsabilidade no acidente, porquanto não ficou estabelecido qualquer nexo de causalidade entre esse facto e a sua ocorrência.
Assim face ao exposto verifica-se a concorrência de culpas com a vítima na produção do acidente, sendo que a do arguido, porque determinante no acidente, terá de considerar-se substancialmente superior, Por essa razão fixa-se em 4/5 a culpa do arguido, e em 1/5 a da vítima.
Do que fica dito modifica-se a matéria de facto, no sentido de considerar provada a seguinte matéria de facto:
“ - Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido, antes de decidir empreender a manobra de mudança de direcção à esquerda, não se certificou do trânsito que se fazia neste sentido.
- O arguido não parou no stop, i. é., não imobilizou completamente o seu veículo de modo a dar passagem ao motociclo conduzido pela vítima Rui Daniel que se aproximava do entroncamento.
- O arguido não se rodeou dos cuidados adequados nem imprimiu à sua conduta a actuação e perícia necessária para evitar o acidente, acabando por invadir a mão de trânsito onde circulava a vítima RD este sem espaço e tempo útil para evitar a colisão, provocando desse modo os ferimentos descritos que foram causa directa e necessária da sua morte.
- O arguido actuou com negligência, imperícia e inconsideração não adoptando comportamento adequado a evitar as lesões e a morte que causou.
- O arguido não cuidou de verificar o trânsito de veículos ao longo da hemi-faixa em que circulava o motociclo.
- Atravessando a sua viatura de forma súbita, como atravessou, na hemi-faixa em que circulava o motociclo ----LX, não apenas impediu a passagem deste na mão de trânsito em que circulava, como também não deu ao condutor do motociclo qualquer hipótese de evitar o choque com o ligeiro de passageiros.
- O condutor do motociclo viu a faixa de rodagem em que circulava subitamente obstruída sem que por sua parte houvesse qualquer possibilidade de evitar o acidente.
- O arguido teria visibilidade superior a 22 metros para a recta da qual provinha o motociclo se avançasse com o seu veículo até a um ponto que ainda não atingia o meio da hemi-faixa por onde seguia a vítima.
Por outro lado e pelas mesmas razões inexiste motivo que justifique alterar o ponto da matéria de facto dada como provada em 19, o qual se manterá.
Deste modo, face à matéria de facto assente, resulta que com a sua conduta incorreu o arguido na prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º nº 1 CP.
A assistente no seu recurso pugna pela sua condenação.
Mas terá a assistente legitimidade para interpor recurso nesta vertente, sendo que o Ministério Público não o fez?
Parece-nos que não.
Nos termos do disposto no artº 401º nº 1 b) CPP, o assistente tem legitimidade para recorrer, de decisões contra ele proferidas.
Ora parece-nos que a absolvição de um arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, aceite pelo Ministério Público, não interpondo recurso, em nada vai bulir com os interesses do assistente, pois o seu interesse é de natureza de reparação civil.
È que estamos perante crime de natureza pública cuja titularidade da acção penal pertence exclusivamente ao Ministério Público, como estabelece os artºs 219º nº 1 CRP, artº 1º do Estatuto do Ministério Público (Lei 60/98, de 27/8, artº 48º, 49º, 284º e 287º CPP)
Por sua vez os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei (artº 69º nº 1 CPP).
Daí que se concorde em absoluto com a posição do Exmº Conselheiro Pereira Madeira, no AcSTJ 01.11.22 CJSTJ 3/01, 222., quando refere:
“ Assim, o caso é de clara, ampla e irrestrita titularidade da acção penal pelo Ministério Público, tal como emerge com carácter geral do artigo 48º do mesmo diploma, que atribui a titularidade da acção penal àquele órgão do Estado.
Como assim, cumpre-lhe a prossecução penal que se efectiva através do exercício da acção penal e da represen­tação da acusação no processo em juízo.
Mas, sendo assim, isto é, se é o Ministério Público o titular - neste caso, titular exclusivo - a acção penal, se lhe compete também em exclusivo, representar a acusação e se, em contraponto, as assistentes são in casu meras colaboradoras subordinadas, não se vê bem onde ancorar a pretensão de, por único alvedrio destas, contra o enten­dimento do titular da causa, e necessariamente movidas, por motivações que, por válidas e compreensíveis que possam ser, não rescindirão da contemplação do processo penal à lupa de interesses pessoais, sejam eles ou não de cariz puramente material, mas, em qualquer caso, distintos do interesse público que subjaz à causa penal, emancipá­-las do seu estatuto subordinado, para, em suma, lhes permitir a assunção, a partir de certo momento - que será o da conformação definitiva do MP com a decisão proferida - de titulares efectivas da causa penal, invertendo claramente os papéis de cada um deles.
O que viria a erigir, a final, nestes casos, o interesse pessoal em motor da acção penal, em detrimento da assumida objectividade do MP, titular efectivo da causa, com todos os perigos e inconvenientes facilmente adivinhá­veis, como seria, por exemplo, a possibilidade de instrumen­talização da causa penal, facilmente posta ao dispor da simples vindicta.
Nesta perspectiva, naturalmente de afastar, não poderá deixar de ter-se o assistente como não afectado pela decisão que qualifique os factos contra o seu entendimento, ou, por outra via, de entender-se que tal decisão não é contra ele proferida, pese embora, como em relação qualquer outro cidadão, indirectamente, a sentença o possa ter também atingido.
Pois, tendo em conta os interesses públicos subjacentes à dinâmica da causa penal, mormente desencadeada por crimes públicos, o interesse relevante para aferição da legitimidade para recorrer é - só pode ser - o do titular dela, numa palavra, do Ministério Público.
Pode mesmo ir-se mais longe e sustentar que, em casos como o presente, o assistente careceria de interesse em agir, já que, não sendo sua a titularidade da acção, repousa sobre os ombros do quem a tem a responsabilidade de a levar até ao fim, nomeadamente quanto ao acerto da incriminação, a responsabilidade da condução do processo (de que o assistente está exonerado nessa exacta medida, e, assim, para garantia da legalidade não precisa aquele de tomar qualquer iniciativa processual, movendo o recurso e lançar mão da respectiva demanda, pois o MP tem o dever funcional de o fazer). Num caso como este, com efeito, e como ressalta das transcritas conclusões da motivação, estando apenas em causa, imediatamente, o rigor da incriminação, e nada mais, dificilmente se poderia afirmar por banda das assistentes um «concreto e próprio» interesse [em agir] no recurso, acaso, mesmo aqui, fosse entendido ser de aplicar também a doutrina do acórdão uniformizador.”.
Daí que se conclua ser o recurso nesta fatia inadmissível e, como tal não se conhece do mesmo nessa parte.
B) Da violação do artº 496º CC
É entendimento da Seguradora que os pais do falecido não deverão ser abrangidos pela indemnização fixada a título de danos não patrimoniais, pois o regime das sucessões não é aqui aplicável, mas sim o disposto no artº 496º nº 2 CC, cuja redacção não deixa, na sua perspectiva, lugar a dúvidas de interpretação.
Vejamos.
Estatui o artº 496º que:
"1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior".
Conforme decorre de tal disposição legal, estabelecem-se claramente nela três grupos com o direito à indemnização por morte da vítima:
1- O cônjuge e os descendentes;
2- Na falta destes, os pais e outros ascendentes;
3- Os irmãos ou sobrinhos com direito de representação.
É já velha a questão agora suscitada neste recurso, e que ao fim e ao cabo se traduz em saber se os direitos não patrimoniais derivados da perda do direito à vida por parte da vítima, nascem na esfera jurídica deste e depois se transmitem, por via sucessória, para os seus herdeiros, de acordo com as regras de sucessão ou se, pelo contrário, esses direitos nascem de iure proprio por direito originário, no património das pessoas a que se refere o nº 2 do art. 496º.
E aqui o elemento histórico é a nosso ver esmagador.
Sobre ele se pronunciou Antunes Varela, por forma clara e cristalina, pelo que nos limitaremos a transcrevê-lo, sendo por isso desnecessário dizer por outras palavras, aquilo que tão bem ele nos disse RLJ, Ano 123, págs. 191 e 192.:
“ Quem acompanhar atentamente os trabalhos preparatórios do Código Civil sem nenhuma ideia preconcebida afivelada à cabeça, não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no património da vítima e transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, a lei adoptou deliberadamente a segunda posição.
No artigo 759º do Anteprojecto geral de Vaz Serra sobre o “ Direito das Obrigações” ao regular-se a questão da “ satisfação do dano não patrimonial”, e depois de no nº 2 dessa disposição se atribuir aos parentes, afins ou cônjuge da pessoa morta por culpa de outrem uma satisfação (pecuniária, é evidente) pelo dano não patrimonial que o facto lhes tivesse causado, prescrevia-se no nº 4 relativamente aos danos não patrimoniais causados ao próprio lesado, o seguinte: “ O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, mesmo que o facto lesivo tenha causado a sua morte e esta tenha sido instantânea”.
Era a consagração inequívoca, na hora de ponta (ou seja, no caso extremo da morte instantânea) da aquisição derivada do direito à indemnização pelo dano da morte, através do puro canal da devolução sucessória.
Na 1ª revisão ministerial dos diversos anteprojectos, que foi, como todos sabem, mais uma tarefa de redução, expurgação e reordenação sistemática de textos do que um reexame substancial de afinação e uni­formização de soluções, o artigo 476. ° (do Livro das Obrigações) continuava ainda a distinguir nos nºs 2 e 3 entre os danos não patrimoniais causados à vítima da lesão e os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vitima. E, quanto aos primei­ros, o texto da disposição mantinha de igual modo, com suficiente clareza, a tese trans­mitida pelo Anteprojecto de VAZ SERRA.
“ O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vitima, dizia efec­tivamente o nº 2 desse artigo (476. °), trans­mite-se aos herdeiros desta, ainda que o facto lesivo tenha causado a sua morte imediata», numa clara aceitação da tese da aquisição derivada do direito à indemnização, por via hereditária, mesmo no caso de morte ins­tantânea.
Porém, na 2ª revisão ministerial, na qual todas as normas seleccionadas pela lª revi­são foram como que passadas a pente fino, com vista ao aperfeiçoamento substancial das soluções e à uniformização de critérios própria de toda a legislação codificada, a posição da lei perante a indemnização da morte da vítima sofreu uma alteração radical.
No artigo 498. ° saído dessa revisão (cor­respondente ao art. 496º da versão defini­tiva do Código) deixa de falar-se na trans­missão do direito à indemnização (pelo dano da morte), não se alude mais à hipótese da morte instantânea e não se chamam sequer os herdeiros a recolher a indemnização colada à herança da vítima.
Tal como na versão final do nº 2 do artigo 496. ° do Código, passou antes a dizer-se que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os represen­tem.
Com esta eliminação da referência à transmissão do direito à indemnização, com a substituição dos herdeiros, na titularidade da indemnização, pelo cônjuge e familiares mais próximos da vitima, à margem da sucessão legítima, em termos diferentes da ordem normal da vocação sucessória, o legis­lador quis manifestamente chamar estas pessoas por direito próprio, a receberem, como titulares originários do direito, a indemniza­ção dos danos não patrimoniais causados à vitima da lesão mortal - e que a esta com­petiria, se viva fosse. E é confrangedor verificar que ainda hoje há julgadores – e julgadores qualificados - que interpretam e aplicam o disposto no nº 2 do artigo 496º do Código Civil, como se o preceito legal não tivesse história ou o intérprete desdenhosamente fizesse gala de a ignorar ou como se o texto da versão definitiva da disposição coincidisse integralmente com a redacção das normas correspondentes, quer do anteprojecto de VAZ SERRA, quer da 1ª revisão ministerial”.
Também no AcSTJ 96.05.09 BMJ 457, 275. se tomou posição no sentido propugnado pelo Prof. Antunes Varela, isto é de que os direitos em causa nascem de iure proprio.
Aí se escreve: “ propendemos para a orientação que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio, na titularidade da pessoas designadas no nº 2 do artigo 496º, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas….argumentação esta sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artigo 496º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização pelos danos morais sofridos pela própria vítima”
Assim e concordando-se de há muito com esta posição, e, considerando que a vítima era casada à data da sua morte, os danos não patrimoniais a considerar para efeitos de indemnização são apenas os sofridos pela vítima e os sofridos pela viúva, que cabem apenas a esta, porque integrante do 1º grupo mencionado no artº 496º nº 2 CC.
Não há pois lugar a indemnização aos ascendentes.
C) Dos montantes indemnizatórios
Neste segmento a recorrente seguradora discorda quanto à valoração indemnizatória dos danos patrimoniais e não patrimoniais que foram fixados.
Passemos à sua apreciação.
Para que exista responsabilidade civil por facto ilícito é preciso que se verifiquem simultaneamente os seguintes pressupostos: acção, ilicitude, culpa do agente, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano (artº 483º nº 1 CC).
Nenhuma dúvida existe quanto aos pressupostos acção, ilicitude e dano quer perante a factualidade provada quer perante o alcance conceitual dos mesmos.
E igualmente inexistem dúvidas que os danos foram causados pelas condutas dos condutores intervenientes no acidente pelo que, face a uma concausalidade, não se poderá excluir a existência do pressuposto nexo de causalidade entre tais condutas e os danos da vítima (artº 563º CC) e ainda de que se verifica o pressuposto culpa (artº 497º nº 2 CC).
Deste modo, verificados se encontram todos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e, assim reconhece-se aos requerentes um direito de indemnização por danos e à seguradora a respectiva obrigação por via do respectivo contrato de seguro.
Dirijamos então a nossa atenção para os montantes que foram fixados, para que possamos verificar se os mesmos foram correctamente fixados.

Como é sabido o artº 496º CC admite a existência de dois danos não patrimoniais: um sofrido pela própria vítima e outro pelos seus parentes com direito a indemnização, precisamente e apenas a assistente, na sua qualidade de cônjuge supérstite, como já anteriormente referimos.

Recorde-se que por força do artº 496º nº 2 CC, em matéria de danos não patrimoniais, atento o facto de existir cônjuge sobrevivo da vítima, aos ascendentes não lhes é reconhecido direito a danos não patrimoniais, quer os sofridos pelo filho quer os sentidos na qualidade de pais, pelo que nessa medida a seguradora será absolvida do pedido nesse restrito segmento.

O cálculo dessa indemnização deve ser feito segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do titular da indemnização e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem (Artºs 496º nº 3 e 494º CC).
Como referia Vaz Serra RLJ, Ano 113, pág. 104. “ A satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, tratando-se, antes, de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é susceptível de equivalente.
É, assim, razoável que, no seu cálculo, se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselhe sejam tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante.
O recurso aos “ padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência” não é o único elemento a ter em atenção, não sendo senão um dos que podem contribuir para uma equitativa avaliação da indemnização”.
Feita esta introdução diremos ser facto notório, não carecendo de prova, que a morte do cônjuge provoca sofrimento e, como tal reveste-se de tal gravidade que merece a tutela do direito, sendo certo que no seu cálculo ter-se-á de ter em consideração não só o grau de culpabilidade do causador do acidente mas também a situação económica deste e dos titulares da indemnização (artº 496º nº 3 CC).
Ora considerando tal exigência e ainda que ficou provado que a vítima geria a sua própria empresa, tendo o exercício em 2002 atingido um volume de negócios de € 142.378,46, e gerado lucros no montante de € 7.748,21, cremos que a indemnização fixada em € 30.000,00 se afigura exagerada.
Entendemos que face à matéria provada é mais justo e equilibrado fixar a indemnização em € 25.000,00 euros para a viúva, atento o natural desgosto e profunda dor por esta sofrida com a brutal perda do companheiro.
No que respeita aos sofrimentos e dores intensas que a vítima suportou como resultado dos ferimentos sofridos até à sua morte a qual ocorreu menos de 30 minutos após o embate (ponto 44 da matéria de facto provada), entende-se que a compensação fixada em € 2.500,00 foi justa e equilibrada, e como tal se confirma.
E que dizer no que concerne à indemnização pela perda do direito à vida?
Como é sabido, na nossa civilização e na nossa sociedade o direito à vida é o mais elevado dos direitos de personalidade.
O Prof. Leite de Campos Estudo publicado no BMJ 365, pág. 5 e ss., considera que “o direito à vida é um direito ao respeito da vida perante as outras pessoas, é um direito “excludendi alios” e só nesta medida é um direito. É um direito a exigir um comportamento negativo dos outros. Eis o único conteúdo do direito à vida – expressão incorrecta, mas que não rejeitaremos, utilizando-a a par “de direito ao respeito da vida”, por causa da dignidade que obteve em mil combates ao serviço do homem.
Atentar contra o direito ao respeito da vida produz um dano – a morte – superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica.”

E continua “ O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros”...” A morte é um dano único que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais. O montante da sua indemnização deve ser, pois, superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis.”.
Nos termos do artº 496º nº 3 CC “ o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”, isto é o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
Por morte da vítima a indemnização, repete-se mais uma vez, cabe aos familiares indicados no artº 496º nº 2 CC.
Como se escreveu no AcSTJ 86.05.13 BMJ 357, 399 na indemnização devida pela perda do direito à vida, há que atender, não só ao valor do bem da vida, em si mesmo considerado, que é o mais valioso dos bens que integram os chamados direitos de personalidade, como ainda ao apego da vítima à vida, que pode ser aferido, à falta de outros elementos para o efeito relevantes, pela sua idade, o seu estado civil, a sua situação profissional e familiar, e a sua condição sócio-económica.
Ora a vítima tinha à data do acidente 31 anos de idade, era saudável e casado.
Vendo suprido o seu direito à vida, que a nossa sociedade considera como o mais alto dos direitos de personalidade, é evidente que não podem os tribunais fixar montantes simbólicos nem quantias manifestamente incompatíveis com aquele entendimento.
É que como já se escrevia no AcSTJ 93.12.16 CJSTJ 3/93, 182., já vai sendo tempo de se abandonarem os miserabilismos indemnizatórios, que, acrescentamos nós, não têm qualquer razão de ser.
O tribunal fixou a indemnização em 60.000,00 euros.
Ora considerando tudo quanto já ficou referido anteriormente, parece-nos que não se pode justificar de modo algum que se proceda a qualquer redução nesse montante, o qual se nos afigura muito equilibrado e justo, pelo que se confirma.
Passemos de seguida aos danos patrimoniais.
Neste ponto vem reclamado pela assistente e pais da vítima a quantia de € 4.906.06, referente ao valor da mota destruída à data do acidente (€ 3.600,00), à mala e respectivos acessórios (€ 386,16) e às despesas com o funeral (€ 919,90)
Como resulta da matéria de facto dada como provada, não se logrou provar o custo da mala e do suporte relativos ao motociclo, pelo que o prejuízo efectivo se fixou no montante de € 4.519,90.
No que concerne aos danos futuros a assistente reclama a quantia de € 257.756,77.
O tribunal recorrido fixou esse montante em € 139,675,06.
A seguradora entender ser exagerado.
Entremos na sua análise.
Ficou provado que a vítima trabalhava por conta própria (factos 36 a 39), tinha 31 anos de idade (facto35), que em 2002, auferia mensalmente € 298,29, para além dos lucros obtidos (facto 59), que entre 01.01.02 e 31.12.02, a empresa gerou lucros no montante de € 7.748,21 (facto 60), que à data estava casado com a assistente há 5 anos e 8 meses (facto 40 e ainda que era a vítima quem suportava todas as despesas inerentes à economia doméstica e às necessidades pessoais dos elementos do agregado familiar, constituído por si e pela assistente (facto 62).
Pois bem de tal matéria resulta que em virtude da morte de seu marido, a totalidade dos rendimentos do seu trabalho deixou de entrar no lar conjugal, sendo certo que, como é natural, parte deles era consumido pela própria vítima
Como escreve Vaz Serra (RLJ 113, pág. 326) “ Para que o tribunal possa atender a danos futuros, é necessário que eles sejam previsíveis com segurança bastante, porque, se o não forem, não pode o tribunal condenar o responsável a indemnizar danos que não sabe se virão a produzir-se; se não for seguro o dano futuro, a sua reparação só pode ser exigida quando ele surgir”.
Daí que se possa afirmar que os lucros cessantes, designadamente os danos futuros, desde que os mesmos sejam previsíveis e determináveis, são indemnizáveis.
Dito isto diremos que a demandante, na qualidade de cônjuge supérstite, tem direito ao quantum indemnizatório correspondente ao lucro cessante da vítima, até ao fim da vida média activa, isto é, até que perfizesse setenta anos, sendo certo que aquele tinha 31 anos de idade à data da ocorrência do infeliz acidente que tão violentamente lhe tirou a vida.
É evidente que o cálculo dos referidos danos não é tarefa fácil na medida em que assenta sempre numa previsão sobre dados futuros.
Contudo a jurisprudência vem entendendo que essa indemnização deve ser calculada em atenção ao tempo provável de vida do lesado por forma a representar um capital que com os rendimentos gerados e com a participação do próprio capital o compense até ao esgotamento AcSTJ99.03.16, CJSTJ 1/99, 167., lançando frequentes vezes mão das tabelas usadas no foro laboral tabelas financeiras ou outras fórmulas, sempre, e de uma maneira geral, como meros instrumentos de trabalho.
Assim, lançando mão dos referidos critérios, e sem aderir a fórmulas ou tabelas matemáticas, atenta a idade da vítima, e os rendimentos que auferia e àquilo que naturalmente consumia, e fazendo apelo a um juízo de equidade, entendemos que os aludidos danos patrimoniais se deverão fixar em € 120.000,00
Face a tudo o que acaba de se expor a assistente terá então direito a uma indemnização no montante global de 207.500,00 euros e, conjuntamente com os ascendentes e respectivos herdeiros habilitados do pai da vítima, à indemnização de 4.519,90 euros.
Acontece, porém, que se estabeleceu uma concorrência de culpas, entre o arguido e a vítima, na proporção de 4/5 para aquele e 1/5 para este, sendo certo que na determinação da indemnização ter-se-á de atender à proporcionalidade estabelecida.
Assim, a título de danos não patrimoniais a assistente tem direito à indemnização global de 166.000,00 euros e conjuntamente com os ascendentes da vítima à indemnização de 3.615,92 euros.

DECISÃO

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes desta Relação, em:
A) Conceder parcial provimento aos recursos interpostos pela assistente AM e pelos demandantes MM e JD e Companhia de Seguros L.. … SA, e em consequência alteram a sentença recorrida, condenado agora a referida seguradora, nos seguintes termos:
- a pagar à assistente a quantia global de 166.000,00 (cento e sessenta e seis mil euros), a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora nos termos fixados na decisão recorrida;
- a pagar conjuntamente à assistente e demandantes a quantia de 3.615,92 euros (três mil seiscentos e quinze euros e noventa e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da notificação até integral pagamento;
B) Absolvem a demandada Companhia de Seguros L... SA, da indemnização que contra si vinha formulada a título de danos não patrimoniais por parte dos ascendentes da vítima.
Relativamente à parte criminal fixam a taxa de justiça devida pela assistente em três Ucs.
No que concerne às custas cíveis estas ficam a cargo de assistente, demandantes e demandada na proporção do vencimento.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Tribunal da Relação de Coimbra, 13 de Janeiro de 2010.