Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3596/10.5TJVNF-B.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: IMPENHORABILIDADE
INSTRUMENTO DE TRABALHO
EXECUTADO AGRICULTOR E CRIADOR DE GADO
PENHORA DE IMÓVEL ONDE O EXECUTADO EXERCE TAIS ACTIVIDADES
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
TEXTO INTEGRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA, COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 737.º E 837.º, 2, DO CPC
Sumário: I - A impenhorabilidade relativa do artº 737º nº2 do CPC, que proíbe a penhora dos instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executadolato sensu, que podem incluir bens móveis ou imóveis -, emerge se se provar que o bem penhorado é estritamente indispensável ao exercício de tal atividade, em termos tais que a cessação desta implique intolerável efetação/prejuízo para os interesses vitais e de subsistência do executado, unicamente considerados, e ainda por reporte à afetação do status económico financeiro do exequente decorrente da pretendida impenhorabilidade.

II - Provado que o executado é agricultor e criador de gado, exercendo tais atividades no prédio misto penhorado, e que delas ele retira a esmagadora maioria – mais de 120 mil euros - dos seus proventos, sendo a exequente a CGD, emerge a impenhorabilidade relativa deste bem dado à penhora.

Decisão Texto Integral: Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: Luís Cravo
Alberto Ruço

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

Nos autos em epígrafe,  em que é exequente Caixa Geral de Depósitos, SA e  executado AA, este  deduziu oposição à penhora.

 Pediu:

O levantamento da penhora realizada, por esta ser legalmente inadmissível, com o fundamento previsto no artigo 784.º, n.º 1, al. a) do CPC, uma vez que viola a isenção de penhora imposta pelo artigo 737.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

Alegou, em suma:

 No âmbito da execução foi penhorado ao executado o “Prédio Misto, terra de semeadura e olival, na qual se encontra construída uma ordenha e um estábulo, com anexos e logradouro, sito em Quinta ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...30/... e inscrito nas respetivas matrizes prediais, urbana ...10... e rústica ...10º, ambas da União das freguesias ..., ... e ....

É agricultor e criador de gado, sendo que exerce tais atividades no prédio penhorado. Também cria gado ovino, nomeadamente ovelhas para “engorda”, utilizando o estábulo existente no prédio para pernoita e abrigo dos animais, e o pasto existente no prédio para alimentação e pastoreio daqueles.

Existe no prédio penhorado um olival que é por si  tratado e explorado, que procede também à “apanha” da azeitona.

Igualmente utiliza ainda a terra de semeadura existente no prédio para levar a cabo a sua atividade agrícola, nomeadamente com diversas culturas agrícolas.

Por isso, o prédio penhorado é um instrumento de trabalho e um objeto indispensável ao exercício das atividades (Agricultura e Pecuária).

E está claramente isento de penhora, uma vez que é um instrumento de trabalho e um objeto indispensável ao exercício das atividades profissionais do executado (Agricultura e Pecuária), sendo este um bem relativamente impenhorável e não se verificando nenhuma das exceções previstas nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 daquele normativo legal.

Ora, tal penhora impede o executado de exercer as suas atividades profissionais e, consequentemente, impede o executado de obter receitas (que eventualmente permitiriam o pagamento da dívida exequenda), incidindo sobre um bem que está isento de penhora.

Assim, tal penhora subsume-se no artigo 784.º, n.º 1, al. a) do CPC, sendo fundamento de oposição à penhora, em virtude da “Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos(...)”, uma vez que o bem penhorado está isento de penhora, ao abrigo do artigo 737.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, pelo que se requer o levantamento da penhora.

A exequente contestou.

Impugnou toda a materialidade invocada pelo oponente e concluindo pela manutenção da penhora sobre o imóvel, que considera não dever ser isento dessa penhora.

Por decisão de 27-02-2023, foi julgada procedente a oposição à penhora.

Interposto recurso de apelação,  este Tribunal da Relação decidiu revogar a decisão recorrida.

Procedeu-se à produção de prova.

 

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a presente oposição à penhora, decidindo considerar isento de penhora o prédio misto descrito no Auto de Penhora de 26.05.2022, e determino consequentemente o levantamento dessa penhora.»

3.

Inconformada recorreu a exequente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Nos autos, foi penhorado um imóvel, pertencente ao Executado, composto por terra de semeadura e olival, na qual se encontra construída uma ordenha e um estábulo, com anexos e logradouro.

2. O Executado alega exercer as atividades de agricultura e pecuária naquele imóvel, pelo que o mesmo deve ser considerado impenhorável, ao abrigo do disposto no art. 737.º, n.º2 do CPC, por ser seu instrumento de trabalho.

3. No entanto, entende a Recorrente que o conceito de “instrumento de trabalho” não pode incluir os imóveis correspondentes aos locais de trabalho, sendo esta interpretação demasiado abrangente e suscetível de causar excessivo prejuízo aos credores.

4. Isto porque, a ser assim, não poderiam ser penhorados quaisquer imóveis nos quais fosse exercida qualquer atividade profissional, como lojas e escritórios, ou até as habitações nas quais exerçam as suas funções os trabalhadores em teletrabalho.

5. E não podia ser essa a intenção do legislador que, inclusive, prevê a possibilidade de penhora de estabelecimentos comerciais.

6. Pelo que não são instrumentos de trabalho impenhoráveis os imóveis afetos a atividades profissionais, como seja o prédio ora em apreço, cuja penhora é legal e admissível.

Contra alegou o opoente pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais.

1. A douta sentença recorrida, do Tribunal a quo, não enferma de qualquer interpretação errónea de facto e de Direito;

2. Não merecendo qualquer reparo pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra;

3. Não se vislumbrando qualquer erro de julgamento, quer quanto à matéria de facto quer quanto à matéria de direito;

4. Tanto assim o é que a Recorrente tanto insistiu pela produção de prova testemunhal para colocar em crise a Sentença anterior, porém, com o presente recurso não faz qualquer menção à mesma;

5. Pois que resultou claro da Audiência e Discussão de Julgamento qual o fim do prédio misto penhorado.

6. Vejamos, citando a decisão recorrida: “Ou seja, a prova documental junta pelo executado, para além de ter ficado corroborada pelas três testemunhas inquiridas e acima referidas, revela que o prédio misto penhorado é elementar como instrumento de trabalho e objeto indispensável ao exercício da atividade principal na agricultura e pecuária desempenhada pelo executado, sendo a sua fonte de rendimento. Tal prédio misto está afeto ao exercício da atividade profissional do executado.”

7. Sem prescindir, o que somente por mera cautela de patrocínio se equaciona, a alegação da Exequente, aqui Recorrente, não merece acolhimento, pois que o prédio misto aqui em discussão é um verdadeiro instrumento e objeto de trabalho do Executado, aqui Recorrido;

8. Esta questão acrescenta per si factualidade relevante (e dada como assente) para a boa decisão do presente pleito, dado depender a sua subsistência da posse plena do prédio misto;

9. Vejamos, citando a decisão recorrida:

“Donde, esse imóvel é o garante da subsistência do executado, através do trabalho que realiza na sua atividade profissional. Portanto, os instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade profissional ou formação profissional do executado, por regra, não podem ser penhorados, nomeadamente os bens estritamente ligados ao desempenho da sua profissão.

E o termo “profissão” traduz-se como sendo a forma de abranger qualquer tipo de atividade lícita, qualquer ocupação, qualquer ofício por mais rudimentar ou modesto que seja. Tal significa que a norma do art.º 737.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tenta proteger o “ganha-pão” das profissões liberais e de qualquer trabalho manual ou formação.

A impenhorabilidade não resulta apenas da indisponibilidade (objetiva ou subjetiva) de certos bens ou de convenções negociais que especificamente a estipulem, resulta também da consideração de certos interesses gerais, de interesses vitais do executado ou do interesse de terceiros que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente.

Estão em causa interesses vitais do executado e os bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida são indispensáveis ao exercício da profissão do executado.

Neste sentido, podemos consultar os acórdãos do TRPorto de 05/12/2011, Proc.º n.º 771-H/2002.P1, do TRÉvora de 07/11/2019, Proc.º n.º 343/13.3TBVRS-B.E1, e do TRCoimbra de 09/02/2021, Proc.º n.º 275/19.1T8TCS-A.C1 (em www.dgsi.pt). Em conclusão, no caso presente e atendendo à materialidade dada como provada, verifica-se que o exercício pelo executado, aqui oponente, da atividade de CEREALICULTURA (exceto arroz) e da atividade concernente à agricultura de produtos hortícolas e criação de ovinos e caprinos é posto gravemente em causa com a penhora do prédio misto penhorado em 26-05-2022 e, neste sentido, verificam-se os requisitos que o nº 2 do citado artigo 737.º do CPC prevê.

Nestes termos, a oposição à penhora será julgada procedente.”

10. Ademais, versando o presente recurso sobre matéria de Direito, deveria a Recorrente observar o disposto no art.º 639.º n.º 2, als. a), b) e c) do CPC,

11. contudo, salvo o devido e merecido respeito por entendimento diverso, cremos que a Recorrente não deu cabal e integral cumprimento ao supra citado comando legal, porquanto, quer das alegações quer das conclusões apresentadas, não se vislumbra em concreto qual o normativo violado e qual a interpretação que no seu entender que lhe devia ser dado, ao invés do adotado pelo douto Tribunal de Primeira Instância.

12. Venerando Tribunal da Relação de Coimbra não podemos olvidar que a Exequente reconhece (agora, ainda que de forma indireta) o prédio misto como um imóvel instrumento e objeto de trabalho do ora Recorrido, não aceitando, no entanto, a sua não impenhorabilidade;

13. Portanto, não pode, o Recorrido, conformar-se com a argumentação de que o prédio misto é um bem não impenhorável;

14. Somos a concordar com a conclusão vertida na sentença do Tribunal a quo (datada, de 27/02/2023, com a REF.ª 90441223), que julgou a mesma improcedente, quando termina que “…, no caso presente e atendendo à materialidade dada como provada, verifica-se que o exercício pelo executado, aqui oponente, da actividade de CEREALICULTURA (excepto arroz) e da actividade concernente à agricultura de produtos hortícolas e criação de ovinos e caprinos é posto gravemente em causa com a penhora do prédio misto penhorado em 26-05-2022 e, neste sentido, verificam-se os requisitos que o n.º 2 do citado artigo 737.º do CPC prevê.”

15. A qual veio comprovar-se, agora com a Sentença proferida em 11-04-2024, com a Ref.ª 93614627, no entanto, novamente colocada em crise pela Exequente.

16. Assim, e atentando a este, bem como toda a prova produzida nos autos, partilhamos do entendimento que andou bem o Tribunal de primeira instância, não se vislumbrando nenhum vício ou erro na apreciação quer da matéria de facto quer de Direito, devendo, por conseguinte, Venerandos Juízes Desembargadores, se manter a decisão recorrida.

17. Devendo, por conseguinte, a alegação da Recorrente ser julgada totalmente improcedente por carecer de fundamento legal.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é a seguinte:

(Im) penhorabilidade do bem dado à penhora.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar:

1) Por decisão de 28-04-2022, a Sr.ª Agente de Execução decidiu renovar a instância executiva.

2) Através do auto de penhora de 26 de maio de 2022, foi penhorado ao executado AA o prédio misto composto de terra de semeadura e olival, na qual se encontra construída uma ordenha e um estábulo, com anexos e logradouro, sito em Quinta ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...30/... e inscrito nas respetivas matrizes prediais, urbana ...10... e rústica ...10º, ambas da União das freguesias ..., ... e ....

3) A responsabilidade total do executado ascende a 56.794,12€, assim discriminado:

- 37.268,32€ - quantia exequenda peticionada;

- 16.992,08€ - juros vencidos desde 02-11-2010 até 14-11-2022;

- 679.68€ - imposto de selo sobre juros;

- 1.777,64€ - honorários/despesas devidos à agente de execução;

- 76,50€ - Taxa de justiça paga pelo exequente.

4) À data de 14-11-2022 (comunicação da Agente de Execução de 14.11.2022 na execução principal), encontrava-se em dívida a quantia de 50.047,22€ euros.

5) O contrato de trabalho do executado BB na sociedade “A..., Ld.ª” (auto de penhora de 03-06-2011) cessou, uma vez que, em 04/09/2018, o executado já não apresentava registo de remunerações (v. informação prestada pela Segurança Social em 10-09-2018 – anexa à comunicação da Agente de Execução de 09-01-2023).

6) A atividade principal exercida pelo executado é desde 04-11-2016 a “CAE principal de CEREALICULTURA (exceto arroz)”.

7) E as outras atividades desenvolvidas são:

Cultura de produtos hortículas, raízes e tubérculos.

Criação de ovinos e caprinos.

Agricultura e produção animal combinadas.

 Aluguer de máquinas e equipamentos para a construção e engenharia civil.

Aluguer, equipamento, construção e demolição com operador.

Pesca em águas interiores.

8) O executado adquiriu o prédio misto acima descrito e que foi penhorado na execução principal em 6 de maio de 2021 (v. certidão permanente junta ao processo executivo).

9) Tal aquisição foi realizada no âmbito do processo de insolvência da sociedade “A..., LDA.”, que foi gerente dessa firma.

10) O executado, qui oponente, é agricultor e criador de gado, sendo que exerce tais atividades no prédio descrito em 2).

11) Para a criação de gado ovino, nomeadamente, ovelhas, o executado utiliza o estábulo existente no prédio para pernoita e abrigo dos animais e o pasto existente no prédio para alimentação e pastoreio daqueles.

12) O executado utiliza ainda a terra de semeadura existente no aludido prédio para levar a cabo a sua atividade agrícola, nomeadamente, para semear milho e pastagens.

13) Na liquidação de IRS de 2021, o executado declarou os seguintes rendimentos agrícolas, silvícolas e pecuários :

Vendas de produtos – 91.860,65 euros.

Prestação de serviços – 02,830,00 euros.

Rendimentos de capitais e de propriedade intelectual e industrial – 03.125,00 euros.

Subsídios à exploração -  30.681,78 euros.

Outros rendimentos de atividades agrícolas, silvícolas e pecuárias -  10,00 euros.

Soma total – 128.507,43 euros.

14) O executado beneficia de apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

6.

Apreciando.

6.1.

A julgadora decidiu aduzindo o seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«…estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda (cf. artº 735, n.º 1, do CPC).

O prédio misto do executado podia ser, como foi, penhorado, pois não pertence à categoria dos bens absoluta ou totalmente impenhoráveis constante do art.º 736, do CPC.

Mas é um instrumento ou objeto de trabalho do executado ?

Quanto às impenhorabilidades relativas, dispõe o artº. 737, nº. 2, do CPC, que

“2 - Estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, salvo se:

a) O executado os indicar para penhora;

b) A execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação;

c) Forem penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial.”.

Assim, os instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, por regra, não podem ser penhorados, qualquer que seja a profissão. Alberto dos Reis, a propósito desta temática, refere que «o fim claro da lei foi obstar a que o executado ficasse privado dos meios indispensáveis para ganhar a vida» .

A impenhorabilidade «não resulta apenas da indisponibilidade (objetiva ou subjetiva) de certos bens ou de convenções negociais que especificamente a estipulem, resulta também da consideração de certos interesses gerais, de interesses vitais do executado ou do interesse de terceiros que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente .

Também Amâncio Ferreira, seguindo na mesma linha, afirma que «a impenhorabilidade processual relativa filia-se em motivos de interesse económico, matizados com considerações de humanidade.

Abrange os instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado (artigo 823º, nº 2).

Pense-se num barco que o executado utilize no exercício da pesca, num trator que o executado empregue na sua profissão de tratorista ou na biblioteca jurídica dum advogado. A lei evita, assim, que se retirem ao executado os meios necessários para ganhar a vida e sustentar-se, bem como à sua família».

Analisando os factos dados como provados, verificamos que a atividade principal exercida pelo executado é desde 04-11-2016 a “CAE principal de CEREALICULTURA (exceto arroz)”. E a segunda atividade concerne à agricultura de produtos hortícolas e criação de ovinos e caprinos.

Ora, com a aquisição do prédio misto em maio de 2021, prédio esse composto de terra de semeadura, na qual se encontra construída uma ordenha e um estábulo, com anexos e logradouro… o executado pretendia continuar a exercer a sua atividade principal de agricultura e criação de gado, o que se verifica ainda – veja também a declaração de rendimentos feita na liquidação de IRS de 2021 e os valores envolvidos.

Ou seja, …o prédio misto penhorado é elementar como instrumento de trabalho e objeto indispensável ao exercício da atividade principal na agricultura e pecuária desempenhada pelo executado, sendo a sua fonte de rendimento. Tal prédio misto está afeto ao exercício da atividade profissional do executado.

Donde, esse imóvel é o garante da subsistência do executado, através do trabalho que realiza na sua atividade profissional.

E o termo “profissão” traduz-se como sendo a forma de abranger qualquer tipo de atividade lícita, qualquer ocupação, qualquer ofício por mais rudimentar ou modesto que seja. Tal significa que a norma do art.º 737.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tenta proteger o “ganha-pão” das profissões liberais e de qualquer trabalho manual ou formação.

Estão em causa interesses vitais do executado e os bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida são indispensáveis ao exercício da profissão do executado.

Neste sentido, podemos consultar os acórdãos do TRPorto de 05/12/2011, Proc.º n.º 771-H/2002.P1, do TRÉvora de 07/11/2019, Proc.º n.º 343/13.3TBVRS-B.E1, e do TRCoimbra de 09/02/2021, Proc.º n.º 275/19.1T8TCS-A.C1 (em www.dgsi.pt).

Em conclusão, no caso presente e atendendo à materialidade dada como provada,verifica-se que o exercício pelo executado, aqui oponente, da atividade de CEREALICULTURA (exceto arroz) e da atividade concernente à agricultura de produtos hortícolas e criação de ovinos e caprinos é posto gravemente em causa com a penhora do prédio misto penhorado em 26-05-2022 e, neste sentido, verificam-se os requisitos que o nº 2 do citado artigo 737.º do CPC prevê.»

6.2.

Perscrutemos.

Tal como em muitos outros campos e aspetos da aplicação do direito, também em sede executiva os direitos em presença dos intervenientes/interessados não podem, por via de regra, serem exercidos absoluta e incomensuravelmente.

Antes, por vezes, devendo ser restringidos e adaptados, tanto em função de valores e interesses de índole social geral,  como, inclusive, por perspetivação dos direitos e interesses das partes em presença.

Isto  de sorte a que a composição do litígio não se faça com intolerável afetação/compressão destes direitos e interesses, mas antes se opere de uma forma equilibrada, equitativa e, assim, ético juridicamente aceitável.

Em sede executiva tal restrição/adaptação passa, vg., por prever a impenhorabilidade, absoluta ou relativa, de certos bens.

Assim, e no que ora interessa, estatui o artº737.º do CPC.

«Bens relativamente impenhoráveis

1 - Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas coletivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas coletivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública.

2 - Estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, salvo se:

a) O executado os indicar para penhora;

b) A execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação;

c) Forem penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial.

3 - Estão ainda isentos de penhora os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na casa de habitação efetiva do executado, salvo quando se trate de execução destinada ao pagamento do preço da respetiva aquisição ou do custo da sua reparação.»

A expressão «instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional» assume-se como algo  genérica e abstrata, pelo que urge interpretá-la e densificá-la.

A interpretação tem de ser efetivada pelas regras gerais da exegese jurídica.

A densificação ou consubstanciação, emerge, ou não emerge, em cada caso concreto, em função dos específicos contornos fáctico-circunstanciais  nele provados ou não provados.

  Naquela vertente exegética há que ter presente que  a lei não se contenta que o bem penhorado esteja  apenas adstrito à atividade  do executado.

Antes exigindo que ele seja indispensável ao exercício de tal atividade.

Ou seja, que, sem ele, o exercício desta atividade não possa verificar-se.

E, pelas regras da lógica e da natureza das coisas,  deve entender-se que exige ainda mais.

Ou seja, que tal atividade seja essencial ou determinante para a vida do executado, de tal sorte que a sua cessação lhe possa causar danos de tal modo elevados ou graves, que, desde logo pelas regras da ética jurídica e dos valores sociais, e, também, por perspetivação dos direitos e interesses do exequente, não possam ser admitidos/tolerados.

Assim tendo interpretado a geral jurisprudência existente nesta matéria.

Destarte:

« A impenhorabilidade relativa prevista no nº 2 do artigo 823º do C.P.C. apenas abrange os instrumentos de trabalho e os objectos estritamente indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado.

Impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida (…) são indispensáveis ao exercício da profissão do executado (instrumentos de trabalho e objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade…»  Ac. RC de 09.02.2021, p. 275/19.1T8TCS-A.C1, cit. na sentença, e que o presente relator subscreveu como adjunto, in dgsi.pt.

Sendo que a ideia fulcral é a já supra exposta, ou seja:

« o sistema jurídico entende que certos interesses vitais do executado se devem sobrepor aos do exequente, pretendendo-se, assim, evitar que se retirem ao executado os meios necessários para garantir a sua subsistência e a do seu agregado familiar.

 A isenção de penhora prevista no nº 2 do artigo 737º do Código de Processo Civil visa obstar a que a penhora ponha em risco a situação ou possibilidade de sobrevivência do executado e radica em razões intrinsecamente pessoais.» -  Ac. RP de 20.06.2024, p. 2050/22.7T8AGD-A.P1.

Alberto dos Reis, a propósito do anterior  nº 13 do artigo 822º, referia que por este estava protegido tudo aquilo que fosse «estritamente indispensável ao exercício da função ou profissão». (…) «A isenção só abrange os objectos sem os quais é impossível ao executado exercer a sua actividade habitual» - Processo de Execução, Volume I,  págs. 379 e 380.

Neste mesmo sentido se afirma que:

«por razões económico-sociais do executado são impenhoráveis os bens indispensáveis à formação profissional e ao exercício da sua actividade profissional, sendo certo que é preciso que sem esses bens o executado não possa continuar a exercer a sua profissão habitual ou que a penhora deles ponha gravemente em causa esse exercício» -  J. P. Remédio Marques, Curso de Processo executivo à Face do Código Revisto, págs. 117 e seguintes.

Naquela segunda ótica densificante urge atentar, como aludido, no acervo factual de cada caso decidendo.

O caso vertente.

Provou-se, nuclearmente:

10) O executado é agricultor e criador de gado, sendo que exerce tais atividades no prédio descrito em 2).

11) Para a criação de gado ovino, nomeadamente, ovelhas, o executado utiliza o estábulo existente no prédio para pernoita e abrigo dos animais e o pasto existente no prédio para alimentação e pastoreio daqueles.

12) O executado utiliza ainda a terra de semeadura existente no aludido prédio para levar a cabo a sua atividade agrícola, nomeadamente, para semear milho e pastagens.

13) Na liquidação de IRS de 2021, o executado declarou os seguintes rendimentos agrícolas, silvícolas e pecuários :

Vendas de produtos – 91.860,65 euros.

Prestação de serviços – 02,830,00 euros.

Rendimentos de capitais e de propriedade intelectual e industrial – 03.125,00 euros.

Subsídios à exploração -  30.681,78 euros

Deste factualismo, máxime das partes sublinhadas, emerge suficientemente que o prédio em causa é  estritamente necessário, é conditio sine qua non,  para que o executado, enquanto agricultor e criador de gado, retire os proventos bastantes para a sua subsistência e, naturalmente, a  do seu agregado familiar.

Basta atentar que dos rendimentos que se provou ele auferir, a  sua esmagadora maioria - 91.860,65 euros+30.681,78 euros -  provêm da venda de produtos, naturalmente advenientes do prédio, e de subsídios à exploração,  os quais, obviamente, têm como fundamento e pressuposto o cultivo do terreno.

A assim ser, a conclusão final a retirar é que a penhora do prédio e a sua posterior venda iriam colidir com,  e cercear o, direito do executado à  sua subsistência pessoal e da sua família.

O que, como supra se expôs, a lei não permite.

A interpretação restritiva da recorrente, que, vg., parece limitar a previsão do citado preceito a bens móveis, não é de sufragar.

Da letra da lei não emerge tal restrição; antes pelo contrário, pois que a lei prevê, «instrumentos de trabalho» e outros «objetos», os quais, porque a lei não distingue/restringe,  tanto podem assumir o jaez de móveis como de imóveis.

Ora um terreno agrícola assume-se, desde logo em termos de terminologia de direito económico, como um fator de produção; e, desta definição e essência, mais técnico jurídica, transitando-se para um sentido mais vulgar, pode ser considerado, porque instrumento/fator necessário para tal produção, um instrumento de trabalho.

Depois, o que essencialmente releva, é o desiderato teleológico da lei: o que ela pretende evitar é que a penhora de um instrumento, objeto ou bem, prejudique, num grau intolerável, os direitos/interesses pessoais fundamentais do executado; e tal tanto pode verificar-se com a penhora de um bem móvel, como, e por vezes até com maior gravidade/acuidade, com a de um bem  imóvel.

Assim, vg., Ac. da RP  05-12-2011 citado na sentença, consideraram-se impenhoráveis  veículos automóveis que o executado, empreiteiro da construção civil, adstringia a esta atividade.

De notar que o artº 837º nº2 apenas se aplica a pessoas singulares, o que diminui em grande medida a impenhorabilidade, vg., de imóveis onde estejam sedeados estabelecimentos comerciais, normalmente explorados por sociedades.

Depois, para uma decisão equitativa e mais justa, há que apreciar  as consequências negativas/nefastas – vg., perspetivando o status económico financeiro da exequente e do executado – advenientes da (im)penhorabilidade.

In casu, do lado da exequente não se vislumbra, nem sequer foi alegado, que a impenhorabilidade dimanante de tais factos lhe possa provocar prejuízos de tal modo graves que tivessem também de ser ponderados para aferir, e eventualmente concluir,  pela penhorabilidade do bem.

Antes pelo contrário, afigurando-se – por ser facto notório ou quasi notório perante a  pública dimensão e  estabilidade financeira  da CGD -  que a impenhorabilidade seguramente não irá provocar  no seu status económico financeiro danos e prejuízos relevantes de tal monta que  impliquem a grave afetação/prejuízo da sua atividade.

Já no atinente ao executado, e perante os factos apurados, a conclusão seria a inversa, ou seja, a  penhora e venda subsequente provocariam na economia pessoal do executado e da sua família uma míngua tal que, com toda a probabilidade, iria provocar na sua economia do seu agregado familiar,  uma intolerável  afetação.

Pelo que, também por aqui, a justa composição do pleito, com justiça e equidade, passa por concluir pela impenhorabilidade do bem.

Improcede o recurso.

(…)

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas recursivas pela recorrente.

Coimbra, 2024.11.12.


«Vencido. Revogaria a decisão, pelas seguintes razões:
1 - Quando no artigo no artigo 737.º, n.º 2 do CPC, se isentam de penhoras os "instrumentos" de trabalhos e os "objetos" indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, têm-se em vista, em regra, bens móveis (instrumentos/objetos) cujo valor não é elevado, mas que permitem ao executado sobreviver profissionalmente.
Procura-se, pois, com esta isenção, proteger o executado, por razões humanitárias, transferindo para a esfera jurídica do exequente o custo desse benefício atribuído pela lei ao executado, mas sem que esse ónus colocado sobre o exequente seja desproporcionado, até porque, em abstrato, o exequente pode estar tão necessitado economicamente como o executado (em concreto, no caso dos autos, essa paridade não ocorre).
Deste modo, um imóvel composto por terra de semeadura e olival, na qual se encontra construída uma ordenha e um estábulo, com anexos e logradouro, não cabe no conceito de "instrumentos de trabalho", nem no de "objetos indispensáveis ao exercício da atividade profissional do executado".
2 – Em processo executivo, no contexto da penhora os conceitos de "instrumentos" e "objetos" referem-se a bens penhoráveis e estes estão distribuídos por três categorias, móveis, imóveis e direitos.
Deste modo, deve-se fazer uma interpretação dos conceitos "instrumentos" e "objetos" no âmbito destas categorias de bens e dentro destas categorias não é usual em sede de penhora o legislador deferir-se a imóveis como "instrumentos" ou "objetos".
O legislador pode referir-se a um imóvel como "objeto" afirmando que certo prédio é objeto do direito de propriedade, mas aqui o conceito "objeto" é utilizado num contexto filosófico, onde se alude a uma relação jurídica entre o sujeito dos direitos e o objeto dos direitos.
No caso da penhora tal não ocorre, objeto é algo móvel, não um imóvel e o mesmo vale para o conceito de instrumento.
3 – Se o bem penhorado fosse considerado impenhorável, então seriam impenhoráveis inúmeros estabelecimentos comerciais ou, como diz a recorrente, «imóveis nos quais fosse exercida qualquer atividade profissional, como lojas e escritórios, ou até as habitações nas quais exerçam as suas funções os trabalhadores em teletrabalho."
Julgaria, pois, procedente o recurso.
Alberto Ruço. »