Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
105/20.1T8CDR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
EFEITO COMINATÓRIO SEMIPLENO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CASTRO DAIRE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 549.º, N.º 1, 1092, N.º 1, AL.ª B), 1093.º, N.º 1, E 1105.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Em resultado do novo modelo procedimental que lhe foi consagrado na lei processual, e em razão do disposto no art.º 549º n.º 1 do CPC, é aplicável ao processo de inventário o efeito cominatório semipleno previsto para a processo comum de declaração, designadamente quando, notificado nos termos e para os efeitos do art.º 1105º n.º 1, o cabeça-de-casal não responde às reclamações contra a relação de bens deduzidas pelos demais interessados.
II – No inventário, não sendo caso do previsto no art.º 1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando, nos termos do art.º 1093, nº 1, da referida lei, a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

   

1. Relatório

Nestes autos de inventário, por morte de AA e BB (ocorridas em 30.06.2017 e 11.03.2020), o interessado CC veio reclamar da relação de bens a fls 217 e sgs., apresentada pela, à data, cabeça de casal DD, acusando:

1. Impugnação dos valores atribuídos às verbas 3 e 4, as quais deverão ter o valor de 9.510,99€ e de 12.682,82€, respectivamente;

2. A falta de relacionamento dos dinheiros em poder da cabeça-de-casal de que a mesma se apropriou elencados sob as alienas 27 a) a p) de fls 222 a 224;

3. A falta relacionamento do saldo da conta de BB na Banco 1...;

4. Falta relacionar saldo da conta existente no Banco 2...;

5. Falta relacionar o saldo da conta existente no Banco 3...;

6. Falta relacionar as rendas recebidas após o Ac. TRC de 22.10.2019;

7. Falta relacionar o dinheiro recebido pelo cabeça-de-casal relativo aos subsídios de funeral dos inventariados;

8. A falta de relacionamento dos créditos da herança, a saber, Crédito sobre a Camara Municipal ... no valor de 6.000,00€ e crédito sobre EE no valor de 8.005,34€;

9. A falta de relacionamento de todos os móveis existentes no sótão ou águas furtadas da residência dos inventariados, identificados no art. 37.º da reclamação à relação de bens;

10. A falta de relacionamento de bens imóveis que identifica sob os arts. 38 a 43.

Conclui pedindo:

“a) - Devem ser retificados na relação de bens os valores indicados nos nºs 3 e 4, nos termos alegados nos artºs 11º e 12º desta reclamação.

b) – Deve ordenar-se o relacionamento das quantias referidas em todo o artº 27º desta reclamação, sob pena de a cabeça de casal não o fazer se concluir que a mesma está a sonegar esses valores da partilha com as consequências legais.

c) – Deve ordenar-se o relacionamento do saldo das contas de BB, de AA no Banco 2... e no Banco 3...;

d) – Deve a cabeça de casal relacionar o saldo das rendas recebidas dos prédios urbanos arrendados, pertencentes à herança, desde Novembro de 2019, até ao presente.

e) – Deve a cabeça de casal relacionar o dinheiro recebido relativo ao subsídio de funeral de ambos os inventariados;

f) – Deve a cabeça de casal relacionar como créditos da herança os referidos no artº 33º;

g) – Deve a cabeça de casal relacionar todos os móveis existentes no sótão ou águas furtadas, da residência dos inventariados em ... – ...;

h) – Deve a cabeça de casal relacionar os imóveis referidos nos artºs 38º a 43º”.

Para prova do alegado foi requerido depoimento do cabeça-de-casal, a requisição dos documentos de fls 229:

Para isso, requer que se requisitem os seguintes documentos:

1 - Saldo da conta de BB na Banco 1..., a requerer a essa entidade;

2 - Solicitar ao Banco 3..., extrato da conta de AA com o nº ...06 ou outras contas em nome individual do mesmo, coletivo ou singular, desde 1 de Janeiro de 2014 a 31 de Julho de 2017;

3 - Solicite ao Banco 2..., extrato da conta de AA entre 1 de Janeiro de 2014 a 31 de Junho de 2017, sendo que a conta tem o NIF ...27;

4 - Solicite ao Banco 4..., extrato da conta corrente de AA, desde 1 de Janeiro de 2014 a 31 de Junho de 2017 e relativo à conta com o nº ...47;

5 - Se solicite ao Banco 3... cópia do cheque que deu entrada na conta de DD, com o nº ...25, em 5/03/2014, conforme extrato de 1/05/2014 no montante de 100.000,00 Euros, cheque esse identificado como “deposito de cheques sobre OIC”;

6 - Requer se solicite à mesma entidade bancária – Banco 3... – ainda designado Banco 5... e relativamente ao extrato de 1/06/2014, relativo à mesma conta do anterior: documento comprovativo da transferência de DD de 10.001,98 Euros e transferência de DD M. Coelho de 90.000,00 Euros e transferência de DD da quantia de 100.000,00 Euros e ainda, documento comprovativo da transferência em 7/05/2014, para DD de 100.000,00 Euros e, da transferência para DD da mesma quantia de 100.000,00 Euros, em 9/05/2014.

7 - Se notifique a cabeça de casal, para apresentar a relação de todos os contratos de arrendamento existentes entre 1 de Novembro de 2019 até à presente data, com indicação dos respetivos inquilinos e as rendas recebidas;

8 - No ofício dirigido às entidades bancárias atrás referidas, deverá mencionar-se que o interessada que as solicita é herdeiro de AA e BB e autoriza a prestação de tais informações.

9 - Se oficie à Segurança Social ..., solicitando informação de qual o montante dos subsídios de funeral relativos a AA falecido em 30 de Junho de 2017 e de sua esposa BB falecida em 11 de Março de 2020, e a indicação da pessoa que recebeu os referidos subsídios;

10 - Mais se deve solicitar informação sobre a quantia que DD descontava para a Segurança Social em 2013, 2014 e 2015, a qual tem o contribuinte fiscal nº ...35 e beneficiária da Segurança Social nº ...73.

e arrolou prova testemunhal.

*

A cabeça-de-casal foi notificada, nos termos e para os efeitos do disposto no art.1105.º, do Código do Processo Civil, por despacho datado de 07.06.2021 e não apresentou qualquer resposta.

*

Após, por requerimento de 14.05.2021 veio o interessado concretizar a falta de relacionamento dos dinheiros em poder da cabeça-de-casal de que a mesma se apropriou elencados sob as alíneas 27 a) a p) de fls 222 a 224, juntando os respectivos documentos.

Alega, em suma, que:

- relativamente aos saldos da Banco 1...: que o de cujus era titular de uma conta na Banco 1... que teria o saldo de 2.762,00€ e uma poupança a prazo no montante de 230.447,52€, o que totalizava o valor de 233.210,27€, conta essa movimentada pela cabeça-de-casal. Sucede que esse montante foi movimentado pela cabeça-de-casal, inclusive parte dele quando já estava se encontrava em juízo a acção de interdição do inventariado.

Refere, finalmente, que se perdeu o rasto de 255.000,00€ tendo sido a cabeça-de-casal quem se apropriou de tais montantes;

- no que tange às contas do Banco 6..., sucedido pelo Banco 2...: o inventariado era detentor, em 12.11.2012, de um depósito a prazo no montante de 50.000,00€ e de um depósito à ordem no valor de 5.005,66€. Por seu turno, a sociedade AA, Lda, tinha, em agosto de 2012, um saldo de 31.369,20€. Ora, em 6.3.2014 saiu da conta particular do inventariado a quantia de 100.000,00€ para a sociedade gerida, de facto, pela cabeça-de-casal. Em 12.06.2013 existia na conta do inventariado a quantia de 50.000,00€, conforme resulta do documento junto, encontrando-se naquele um apontamento do punho da cabeça-de-casal que indica os vários valores da conta do pai, no montante global de 296.346,49€. Em 30.04.2015 já só existia um depósito na ordem dos 27.274,66€, saldos esses movimentados irregularmente porque já o foram após a data fixada da interdição, e cuja movimentação o interessado imputa à cabeça-de-casal;

- relativamente às contas do Banco 5... e no Banco 3...: o inventariado era titular de uma conta com o saldo de 19.580,97€, a qual, após sentença de interdição, tinha um saldo de 9.019,44€ e em 31.05.2016 já estava reduzida a zeros. Sendo que em 25.10.2015 a cabeça-de-casal foi nomeada tutora do seu pai e foi nessa função que fez desaparecer aquele montante.

Por outro lado, a sociedade AA, Lda, tinha um produto de vida – Seguro Vida, no Banco 5..., o qual passou para o Banco 3..., tendo sidos efectuados resgates parciais no montante de 20.000,00€, 10.000,00€ e 30.000,00€, sendo que quem movimentava tais contas era a cabeça-de-casal. Assim, terá, a seu ver, de averiguar-se qual o montante seguro, quais os resgates efectuados e por quem.

Nessa sequência, requereu:

“48. A fim de poder apurar-se o destino de várias quantias atrás mencionadas e que saíram do património de AA, deverá oficiar-se à Autoridade Tributária de ..., solicitando copia das declarações de IRC da Sociedade AA Ldª, com sede em ... – ..., NIPC ...90 referentes aos exercícios de 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017.

49. Deverá a cabeça de casal, para além das verbas reclamadas na reclamação sobre a relação de bens, relacionar como dinheiro em seu poder, os valores referidos no artº 41º deste articulado e outros que resultem da apreciação dos documentos ora juntos.

50. Deverá oficiar-se ao Banco 3..., solicitando informação sobre as movimentações do seguro de vida contratado através da apólice ...74, devendo ser indicado o capital seguro, os resgates parciais e o saldo porventura existente, bem como a que contas se destinaram os resgates que porventura tenham sido efetuados”.

*

Notificada a cabeça-de-casal, a mesma nada disse e/ou requereu.


*

O Juízo de Competência Genérica de Castro Daire considerou, que as questões a decidir são – com interesse para esta instância de recurso:

(…) se devem ser aditados à relação de bens os dinheiros em poder da cabeça-de-casal de que a mesma se apropriou elencados sob as alienas 27 a) a p) de fls 222 a 224; o saldo da conta de BB na Banco 1...; o saldo da conta existente no Banco 2...; o saldo da conta existente no Banco 3....

Proferindo, a final, a seguinte decisão:

“Nestes termos e face ao exposto, o Tribunal decide:

(…)

b) Remeter os interessados para os meios comuns relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da cabeça-de-casal de que a mesma se apropriou elencados sob as alíneas 27 a) a p) de fls 222 a 224;

Valor do incidente: o do inventário – arts. 304.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

Custas: condena-se a interessada nas custas do incidente que se fixam em 2UC e o reclamante nas custas do incidente que se fixam em 1UC, atento o decaimento de ambos – art. 7.º, n.º 4 e tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

*

Registe e notifique.

*

Após o trânsito em julgado da presente decisão:

a) deve o cabeça-de-casal, no prazo de 10 dias, juntar nova relação de bens corrigida em conformidade com o susodito;


*

CC, na qualidade de cabeça de casal, não se conformando com o teor do despacho proferido no dia 21 de Março de 2024 - com a referência 94900052 - , notificado ao mesmo no dia 22 de Março de 2024, vem dele interpor recurso de apelação, cujo objeto se cinge com a contradição existente entre o teor despacho descrito e o teor do despacho proferido no dia 31 de Maio de 2023 nos presentes autos, o que faz com base nos artigos 1123.º, n.º 1 e 1123.º, n.º 2, alínea b), do C.P.C, formulando as seguintes conclusões:

(…).


*

2. Do objecto do recurso

Alega o Apelante:

1. O Recorrente não se conforma com o despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, no dia 21 de Março de2023, devidamente notificado ao mesmo no dia 22 de Março de 2023, onde se determinou a remessa dos interessados para os meios comuns na parte respeitante à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da Recorrida e de que a mesma se apropriou.

(…)

Tendo o Recorrente, no dia 14 de Maio de 2021, apresentado, ao abrigo do disposto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C. reclamação à Relação de Bens apresentada pela Recorrida onde alegou, em suma, que a Recorrida se havia apropriado, indevidamente, de quantias avultadas nas contas que os inventariados eram titulares na Banco 1..., no Banco 6..., no Banco 5... e no Banco 3..., não tendo tais quantias sido relacionadas na relação de bens por si apresentada.

Com vista a comprovar o por si alegado, juntou o Recorrente diversa documentação bancária demonstrativa dos saldos existentes bem como, dos movimentos realizados, nas contas de que os inventariados eram titulares nas instituições bancárias descritas.

Em virtude da reclamação à relação de bens apresentada pelo Recorrente foi proferido despacho, no dia 7 de Junho de 2021, pela Meritíssima Juiz do Tribunal de 1.ª instância, ordenando a notificação da Recorrida nos termos e para os efeitos do artigo 1105.º, n.º 1, do C.P.C.

Acontece que, apesar de a Recorrida ter sido notificada para responder à questão suscitada na reclamação de bens apresentada pelo Recorrente, no dia 23 de Junho de 2021, a mesma não se pronunciou sobre os factos aí alegados.

Alem disso, por requerimento datado de 22 de Novembro de 2021, a Recorrida renunciou ao cargo de cabeça de casal a favor do seu irmão, aqui Recorrente tendo este, expressamente aceitado tal cargo por requerimento datado de 23 de Novembro de 2021.

Acontece que, por despacho proferido no dia 31 de Maio de 2023, a Meritíssima Juiz do Tribunal de 1.ª instância determinou o seguinte:

"(...) inexistindo sequer resposta a essa reclamação nos termos e para os efeitos do art.º 1105.º, n.º 6 Código de Processo Civil pela interessada DD com o inerente efeito cominatório nos termos da conjugação dos artigos 549, n.º 1 e 574.º do Código de Processo Civil."

Tendo considerado, através do teor do despacho supra exposto, os factos elencados na reclamação à relação de bens deduzida pelo Recorrente admitidos por acordo em virtude da falta de impugnação dos mesmos por parte da Recorrida.

Para espanto do recorrente, foi proferido o despacho recorrido, pela Meritíssima Juiz do Tribunal de 1.ª instância, onde se determinou, relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da Recorrida e que a mesma se apropriou, o seguinte: "a remessa dos interessados para meios os comuns, prosseguindo os autos de inventário quanto aos demais bens relacionados, nos termos do art.º 1105.º, n.º 1 do Código do processo Civil."

Consubstanciando tal circunstância, com todo o devido respeito pelo Tribunal que proferiu o despacho supra descrito, uma clara incongruência face ao que já havia ficado decidido quanto à falta de resposta, por parte da Recorrida, à reclamação de bens apresentada pelo Recorrente.

Isto porque, conforme se mencionou e aqui se reitera, já havia sido proferido despacho pelo Tribunal de 1.ª instância a considerar a falta de resposta à reclamação apresentada pelo Recorrente como admissão dos factos aí elencados por parte da Recorrida, nos termos da conjugação dos artigos 549.º, n.º 1 e 574.º do C.P.C.”

Tem razão o recorrente na sua alegação, não quanto à existência do caso julgado formal, que na nossa interpretação não existe, mas sim, quanto à remessa, mau grado a confissão ficta dos factos alegados, por parte da, aquela época, cabeça de casal, da decisão para os meios comum.

Senão vejamos.

No seu despacho de 31.5.2023, escreve a julgadora da 1.ª instância:

“Conforme despacho deste Tribunal de 19-04-2023 foi ordenada, a pedido dos interessados, a suspensão da instância pelo prazo de 30 dias ao abrigo do art. 269.º, al. c) e 272º n.º 4 do Código de Processo Civil).

Transcorrido integralmente o prazo concedido, os interessados nada disseram.

Nestes termos, declara-se cessada a suspensão da instância (art. 276.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil).

Notifique.

*

E nestes termos notifique-se os interessados para requererem o que tiverem por pertinente, desde logo, quanto à ulterior marcha da lide pois que o reclamante apresenta agora a qualidade de cabeça-de-casal, inexistindo sequer resposta a essa reclamação nos termos e para os efeitos do art. 1105.º, n.º 6 do Código de Processo Civil pela interessada DD com o inerente efeito cominatório nos termos da conjugação dos arts. 549.º, n.º 1 e 574.º do Código de Processo Civil sem embargo das exclusões legais.

Adverte-se, na hipótese de nada ser dito e ou requerido, desde já, para a patente no art. 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Prazo: 10 dias (art. 149.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Notifique”.

Tem-se entendido que a expressão limites e termos em que julga, constante do art.º 673.º do Código do Processo Civil - correspondente ao actual artigo 621.º-, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ela define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção – neste preciso sentido, por ex., o acórdão do STJ de 12.07.2011, pesquisável em www.dgsi.pt; com efeito, toda e qualquer decisão assenta em concretos pressupostos, quer de facto, quer de direito, sendo o caso julgado referenciado com um âmbito extensivo a certos fundamentos.

Na verdade, como escreve Manuel de Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, pág. 306 -, “seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença”.

Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior - artigo 580.º, n.º 2 - ou seja, têm por fim evitar que o tribunal julgue duas vezes a mesma causa. Subjacente a estes institutos estão, pois, necessidades de certeza e segurança jurídica.

Anselmo de Castro - Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, p. 391 s.- citando Manuel de Andrade, ensina que “o caso julgado visa apenas a obstar à contradição prática e não já à contradição teórica ou lógica da decisão. (...) Ele visa apenas a obstar decisões contraditórias concretamente incompatíveis; isto é que em novo processo o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por posição anterior, ou seja, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos ou tutelados.”

Ora, salvo o devido respeito pelo Apelante, quando a 1.ª instância, posteriormente decide que, relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da recorrida e que a mesma se apropriou, "a remessa dos interessados para meios os comuns, prosseguindo os autos de inventário quanto aos demais bens relacionados, nos termos do art.º 1105.º, n.º 1 do Código do processo Civil", não está a violar o caso julgado, eventualmente formado pelo despacho de 31.5.2023, mas antes, fez uma errada interpretação, neste particular, das normas dos artigos 549.º, n.º 1, 574.º, 1105.º e  1093.º.

A 1.ª instância, nesta decisão, mantém o que decidiu no despacho de 31.5.2023, aqui escrevendo:

“Não se prevendo nas normas próprias do inventário qualquer efeito cominatório, por via do disposto no art. 549º, nº 1 do C. P. Civil, há que aplicar ao mesmo as regras próprias do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial, não se descortinando “qualquer razão plausível ou ponderosa que justifique, para o processo de inventário, o afastamento do efeito cominatório estabelecido no nosso Código para os processos e incidentes em geral, pelo que, por aplicação das regras supletivas, a falta de impugnação determina a aplicação do efeito cominatório semipleno” (v. Ac. Relação de 02/06/22, in www.dgsi.pt) – cfr. neste sentido, Ac. TRG de 23.03.2023, proc. n.º 2203/21.5T8GMR.G1 e Ac. TRG de 23.03.2023, proc. n.º 392/21.8T8VLN.G1, disponíveis in www.dgsi.pt).

Referem a este propósito ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA (Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 572 que “A não ser que a lei disponha de modo diverso, por aplicação supletiva das regras gerais, a falta de oposição determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos da conjugação dos arts. 549º, nº 1 e 574º.

Assim como, regra geral, e sem embargo das exclusões legais (v.g. prova documental necessária), ocorre a admissão dos factos que não tenham sido impugnados por qualquer dos requeridos diretamente interessados na resposta ou antecipadamente”. (no mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in O –novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 83).”

Por isso, mais do que uma questão de excepção de caso julgado - que visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior – trata-se de uma questão de acomodar os factos trazidos aos autos pelo interessado reclamante/apelante à interpretação do artigo 1105.º.

Diz-nos tal norma:

1- Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior (Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação (…) Apresentar reclamação à relação de bens), são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º.

A resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis – ver os arts. 191.º e 1105.º, n.º 3.

Como escrevem ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA - Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2020, p. 547 (…) A doutrina não deixa de dar exemplos de casos em que não se revela adequada a tramitação incidental no âmbito do processo de inventário. Assim: “quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação, por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. n.º 5 do art.º 1105.º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art.º 1339.º do CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias.

(…)”

Por isso, o legislador, na sua sapiência, determina no artigo 1093.º, que se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster -se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

Assim, e em regra, sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo a partilhar é o juiz do processo de inventário quem deve dirimir as questões controvertidas suscitadas em obediência ao art.º 91º - O processo de inventário é hoje uma verdadeira acção, obrigando a que os interessados concentrem os meios de defesa no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.

Como se escreve no acórdão da Relação do Porto de 20.5.2024, pesquisável em www.dgsi.pt:

 “I - Num processo de inventário, a decisão de remessa das partes para os meios comuns, prevista no art.º 1093.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, C.P.C., deve ser devidamente ponderada.

II – Tal decisão não pode integrar nem um subterfúgio para o tribunal se abster de decidir sem justificação cabal – dado que tal remessa implica que a matéria de facto seja complexa e que a decisão a tomar implique redução de garantia das partes –, nem pode consubstanciar o deferimento de uma pretensão meramente dilatória de uma parte, que pretende com tal invocação obstar à tomada de uma decisão.

III – A parte que pretenda a remessa para os meios comuns deverá concretizar em que medida a decisão da questão implica uma redução das suas garantias a título incidental no processo de inventário.”

Ou seja, a remessa para os meios comuns apenas se justifica quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificada e às limitações probatórias que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto no art.º 1105.º n.º 3 - só em face do resultado das diligências requeridas é possível apreciar a reclamação apresentada à relação de bens ou eventualmente concluir que a matéria de facto a apreciar é demasiado complexa, nos exatos termos previstos no art.º 1093.º , ex vi art.º 1105.º, n.º 3, devendo então o Tribunal abster-se de decidir, remetendo as partes para os meios comuns.

A remessa para os meios comuns pressupõe que dada a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revela inadequada - a diminuição das garantias reflecte-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam uma larga indagação factual ou probatória.

Mais, nos termos do artigo 549º, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum, nomeadamente a norma do artigo 574.º - ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor; consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”.

De facto, por força da entrada em vigor da Lei nº117/2019, de 13/09, o processo de inventário judicial passou a estar configurado como uma verdadeira acção declarativa, sendo que a este processo especial são plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias.

Por isso, em resultado do novo modelo procedimental que lhe foi consagrado na lei processual, e em razão do disposto no art.º 549º n.º 1, é aplicável ao processo de inventário o efeito cominatório semipleno previsto para a processo comum de declaração, designadamente quando, notificado nos termos e para os efeitos do art.º 1105º n.º 1, o cabeça-de-casal não responde às reclamações contra a relação de bens deduzidas pelos demais interessados.

Neste preciso sentido, por ex.:

- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa - Código de Processo Civil Anotado, Almedina, II volume, páginas 572 e 573 -  que afirmam que “A não ser que a lei disponha de modo diverso, por aplicação supletiva das regras gerais, a falta de oposição determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos da conjugação dos artigos 549º, número 1 e 574º.”;

- Lopes do Rego - A recapitulação do inventário, Julgar Online, dezembro de 2019, páginas 12 e 13. Disponível em: file:///C:/Users/MJ01945/Downloads/20191216-ARTIGO-JULGAR-A-Recapitula%C3%A7%C3%A3o-do-Invent%C3%A1rio-revis%C3%A3o-Carlos-Lopes-do-Rego-v5%20(1).pdf. - que defende que: “(…) do regime estabelecido no art. 1104.º CPC decorre obviamente um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa que os citados entendam dever deduzir perante a abertura da sucessão e os elementos adquiridos na fase inicial do processo, em consequência do conteúdo da petição de inventário, eventualmente complementada pelas declarações de cabeça de casal; e isto quer tais impugnações respeitem à tradicional oposição ao inventário e à impugnação da legitimidade dos citados ou da competência do cabeça de casal, quer quanto às reclamações contra a relação de bens e à impugnação dos créditos e dívidas da herança (instituindo-se aqui explicitamente um efeito cominatório, conduzindo a revelia ao reconhecimento das dívidas não impugnadas, salvo se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 574.º CPC) . Ou seja, adota-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no art. 573.º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes(…)”;

- Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres - O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, páginas 44 - afirmam, ainda, que: “importa salientar que, no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (arts. 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art. 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário (…) em regra – nada se prevendo sobre esta matéria no âmbito do processo de inventário, com exceção do que se estabelece para o reconhecimento do passivo (art. 1106.º, n.º 1) – vigora o efeito cominatório semipleno, considerando-se, no caso de revelia, confessados os factos alegados no requerimento de inventário (art. 567.º, n.º 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574.º, n.º 1)”.

Também a jurisprudência tem vindo a afirmar as consequências, respetivamente preclusiva e cominatória semiplena, da falta de oposição à relação de bens e da falta de resposta a tal reclamação, respetivamente.

Neste sentido encontram-se, por ex., os seguintes acórdãos:

- do Tribunal da Relação do Porto de 07.12.2023;

- do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.03.2023 - Relativamente à relação de bens, o efeito cominatório da falta de reclamação contra a mesma ou da apresentação de uma reclamação restrita (o interessado só impugna algumas verbas daquela relação ou alega a existência de bens ou dívidas não relacionados) é o que decorre do regime contido, para o processo declarativo comum, nos artigos 566º e 567º, nº 1, do CPC, para a situação de revelia, e no artigo 574º, nº 1, para o incumprimento do ónus de impugnação, sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 1106º quanto ao reconhecimento do passivo. É um efeito cominatório semipleno: no caso de revelia, consideram-se confessados os factos alegados na relação de bens (art. 567º, nº 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574º, nº 1), com as exceções à produção de tal efeito estabelecidas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4.

- da Relação de Lisboa de 09.02.2023 em que se conclui: “Não se descortina qualquer razão plausível ou ponderosa que justifique, para o processo de inventário, o afastamento do efeito cominatório estabelecido no Código de Processo Civil para os processos e incidentes em geral, pelo que, por aplicação das regras supletivas, a falta de impugnação determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos conjugados dos artigos 549º nº 1 e 574º do Código de Processo Civil.”;

- da Relação de Évora de 13.10.2022 em cujo sumário se pode ler: “Estando em causa a falta de resposta pelo cabeça de casal à reclamação quanto à relação de bens, o efeito cominatório semipleno estabelecido nos artigos 574.º e 587.º, n.º 1, aplicáveis por força do artigo 549.º, n.º 1, todos do CPC, circunscreve-se à factualidade nova alegada na reclamação deduzida, desde que não se mostre antecipadamente impugnada em função da posição assumida pelo cabeça de casal no requerimento inicial ou na relação de bens apresentada”;

- da Relação de Guimarães de 16.11.2023 em que se sumaria: “Não tendo sido apresentada resposta pelo cabeça de casal à discriminação dos bens efetuada pela Interessada que reclamou contra a relação de bens, quanto aos bens que integram a verba 6 - genericamente relacionada pelo cabeça de casal como «Recheio do imóvel sito na Rua (…)» -, têm-se por admitidos os factos da reclamação nos termos gerais dos artigos 549.º e 574.º do CPC, com a consequente obrigação de relacionar os bens indicados pela reclamante” – todos os acórdãos ora citados estão acessíveis em www.dgsi.pt.

Dúvidas não há que - não estando afastado por qualquer forma tal efeito nem havendo qualquer razão para o afastar -, se deve aplicar ao inventário o princípio geral que resulta do processo comum, devendo extrair-se da falta de resposta/oposição à reclamação à relação de bens efeito cominatório que, contudo, se reflete apenas ao nível dos factos que se devem considerar admitidos por falta de impugnação - prova de factos por decorrência da confissão ficta -, não sendo automática a procedência da reclamação por via da referida falta de oposição - desde logo porque, como previsto no número 1 do artigo 574º, a falta de impugnação apenas acarreta que se considerem “admitidos por acordo os factos que não forem impugnados” se não “estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”.

Ora, neste particular, o Apelante CC, interessado e requerente nos autos de inventario por óbito de seus pais AA e BB, e em que é a cabeça de casal DD veio, em cumprimento de despacho de aperfeiçoamento, juntar aos autos 31 documentos, com vista a completar a sua reclamação sobre a relação de bens, no que respeita a montantes em dinheiro, em poder da cabeça de casal.

Leva a tal requerimento o seguinte:

“Para melhor entendimento de Vª Exª. vai indicar uma nota, relativamente aos documentos que só agora pode juntar.

E assim:

A) DOCUMENTOS RELATIVOS A SALDOS DA Banco 1....

1. O Sr. AA era titular na conta da Banco 1... a que respeitam os documentos que abaixo se indicarão.

2. Conforme resulta do doc. nº 1, em 9/12/2011, o saldo da conta à ordem era de 2.762,00 Euros, e consta do mesmo uma poupança a prazo no montante de 230.447,52 Euros, ou seja o saldo da conta tinha o total de 233.210,27 Euros.

3. Esta conta era movimentada pela cabeça de casal DD, como consta do documento junto sob o nº 2.

4. Em 25/01/2013, essa conta já se encontrava reduzida ao saldo de 171.630,11 Euros – ver documento nº 3.

5. Mas em 5/11/2014, quando já se encontrava em Juízo a ação de interdição, de que a cabeça de casal logo teve conhecimento, o saldo encontrava-se reduzido a 8.523,21 Euros – Doc. nº 4.

6. A ação de interdição de, deu entrada no Tribunal Judicial ... em 6/10/2014, por já desde anos anteriores, o pai dos interessados, praticar atos incongruentes, inexplicáveis e em prejuízo do seu património que, levaram a que o requerente intentasse a referida ação de interdição para salvaguarda desse património e bem estar do seu pai.

7. Já anteriormente à propositura da ação era a filha DD quem orientava (diga-se, que mal) e movimentava as respetivas contas bancárias.

8. Bem conhecendo a propositura daquela ação, e do estado mental do seu pai.

9. Esse processo com o nº 457/14...., do Juízo Central Cível ... – Juiz ..., foi julgado por sentença de 25/10/2015, decretando a interdição de AA.

10. Foi fixada a data da incapacidade em 13/04/2015, por não haver elementos clínicos referentes a data anterior.

11. Assim, em 5/11/2014, após ter sido conhecida a propositura a ação de interdição, foram levantados da Banco 1... as avultadas importâncias atrás referidas.

12. Perdeu-se inteiramente o rasto a 225.000,00 Euros num curto espaço de tempo e que só pode daí resultar uma conclusão, que houve uma apropriação indevida por parte da cabeça de casal, de tais importâncias.

B) – CONTAS NO Banco 6... SUCEDIDO PELO Banco 2...

13. O Sr. AA era titular da conta no Banco 6... com o nº ...01.

14. Em 12/11/2012, como resulta do documento nº 5, tinha um deposito a prazo no montante de 50.000,00 Euros e um depósito à ordem de 5.005,66 Euros.

15. A Sociedade AA Ldª, tinha em Agosto de 2012, um saldo da conta à ordem de 31.369,20 Euros, sendo que, essa conta era movimentada pela DD.

16. O saldo da conta do Banco 6... de AA, passou para o Banco 2..., como resulta dos documentos nºs 8 e 9.

17. Em 6/03/2014, saiu da conta particular de AA, a quantia de 100.000,00 Euros, para a conta da Sociedade que estava a ser administrada de facto pela cabeça de casal, embora a sua atividade fosse muito reduzida. (Doc. nº 10)

18. Em 12/06/2013, ainda existia na conta particular de AA, um deposito a prazo de 50.000,00 Euros. (Doc. nº 11)

19. Nesse documento encontra-se um apontamento do punho da cabeça de casal DD, em que indica os valores das várias contas de seu pai, no montante global de 296.346,49 Euros.

20. Esse apontamento corresponde ao saldo das contas constantes dos documentos nºs 12, 13, 14, 15 e 16.

21. O documento nº 17, refere um deposito a prazo de 100.000,00 Euros e o documento nº 18, refere vários depósitos a prazo, nomeadamente de 90.705,99 Euros, 40.000,00 Euros e 50.705,99 Euros.

22. No documento nº 19, datado de Janeiro de 2014, referem-se saldos de depósitos a prazo nos montantes de 155.000,00 Euros e 100.000,00 Euros.

23. No documento nº 20 de Fevereiro de 2014, refere-se a existência de um deposito á ordem de 103.749,16 Euros e um deposito a prazo de 55.000,00 Euros.

24. No documento nº 21 de 30/11/2014, já só existe um deposito a prazo de 52.001,53 Euros e um deposito à ordem de 1.347,55 Euros.

25. Em 30/04/2015, existia apenas um deposito á ordem de 27.274,66 Euros.

26. Note-se que este saldo foi irregularmente movimentado pois que foi fixada a data da interdição com efeitos a partir de 13/04/2015. (Doc. nº 22)

27. Mas, como resulta do documento nº 23, com a data de 30/11/2015, após ter sido declarada a interdição, ou seja após a data da sentença da interdição, já só existia um saldo da conta à ordem de 1.324,68 Euros, o qual igualmente desapareceu, conforme consta do documento nº 24, datado de 12/10/2017.

28. Verificando-se que as anomalias psíquicas de AA, se vinham manifestando pelo menos a partir de 2012 e tendo a cabeça de casal DD poder de movimentação das contas de seu pai e da Sociedade, pertencente exclusivamente a seus pais, fácil é perceber que desapareceram elevadas quantias que a mesma reconheceu existir no respetivo património.

29. Desapareceram centenas de milhares de Euros das contas da Banco 1... e das contas do Banco 6... e Banco 2..., sem qualquer justificação.

30. AA e esposa, eram duas pessoas extremamente modestas, muito económicas e que levavam uma vida frugal.

31. AA, recebia de rendas dos vários prédios de que era proprietário, importâncias superiores a 40.000,00 Euros anuais, quantiam mais que suficiente para prover às suas parcas necessidades.

32. Conforme resulta das declarações de IRS que já se encontram junto aos autos.

33. Não tinha qualquer necessidade de proceder ao levantamento de depósitos a prazo e, reduzir praticamente a zero as contas à ordem, bem como resgatar seguros de vida, como os documentos agora juntos, exemplarmente retratam.

C) – CONTAS NO Banco 5... E NO Banco 3...

34. AA era titular da conta nº ...06, que depois passou para o Banco 3..., pelas razões do conhecimento geral.

35. Em 28/01/2015, essa conta tinha o saldo de 19.580,97 Euros, conforme documento nº 25.

36. Mas em 9/11/2015, já após ser proferida sentença de interdição, a conta referida ainda tinha um saldo de 9.019,44 Euros.

37. Havia desaparecido dessa conta a quantia de 10.568,68 Euros.

38. O saldo de 9.029,79 Euros, ainda existia em 30/04/2016.

39. Mas em 31/05/2016, já estava reduzida a zero.

40. Por sentença de 25/10/2015, a DD fora nomeada tutora de seu pai AA e foi enquanto exerceu a tutela, que fez desaparecer das contas do mesmo, a quantia total de 9.019,44 Euros como antes fizera desaparecer a quantia de 10.568,68 Euros.

41. Terá de relacionar a quantia de 19.580,97 Euros em seu poder sob pela de sonegação. (Doc.s nºs 26 e 27)

42. Acresce que a Sociedade AA Ldª, tinha um produto - Seguro de Vida, no Banco 5..., com o número da apólice aí referida.

43. Esse produto passou depois para o Banco 3....

44. Foram efetuados resgates parciais, no montante de 20.000,00 Euros + 10.000,00 Euros + 30.000,00 Euros, conforme consta dos nºs 28, 29 e 30).

45. Sendo certo que, quem movimentava todas essas contas era a cabeça de casalo conforme documento nº 31.

46. O curioso é que os resgates parciais, atrás referidos, não têm sequer a assinatura do segurado como ordenante.

47. Terá de averiguar-se qual o montante do seguro, cuja apólice está indicada no documento nº 29, quais os resgates efetuados e por quem e, se houve algum saldo referente a esse seguro e se ele ainda existe, nas contas do Banco 3..., ou se foi levantado a parte residual e por quem e em que data.

48. A fim de poder apurar-se o destino de várias quantias atrás mencionadas e que saíram do património de AA, deverá oficiar-se à Autoridade Tributária de ..., solicitando copia das declarações de IRC referentes aos exercícios de 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017.

49. Deverá a cabeça de casal, para além das verbas reclamadas na reclamação sobre a relação de bens, relacionar como dinheiro em seu poder, os valores referidos no artº 41º deste articulado e outros que resultem da apreciação dos documentos ora juntos.

50. Deverá oficiar-se ao Banco 3..., solicitando informação sobre as movimentações do seguro de vida contratado através da apólice ...74, devendo ser indicado o capital seguro, os resgates parciais e o saldo porventura existente, bem como a que contas se destinaram os resgates que porventura tenham sido efetuados.

REQUER:- Se oficie nos termos constantes da requisição de documentos constante dos meios de prova, indicados na reclamação contra a relação de bens e ainda se requisitem os seguintes documentos:

1. Declarações de IRC da Sociedade AA Ldª, com sede em ... – ..., NIPC ...90, relativo aos exercícios da Sociedade dos anos de 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017, com vista a apurar quais os dinheiros ou suprimentos efetuados à mesma Sociedade de AA a título individual ou se as transferências das contas da Sociedade foram desviadas do seu destino e para quem.

2. Se oficie ao Banco 3... nos termos indicados no art.º 50º”.

Como se pode ler, no acórdão desta Relação de Coimbra de 7.5.2024, pesquisável em www.dgsi.pt:

 “No inventário, não sendo caso do previsto no art. 1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando, nos termos do art. 1093, nº 1, da referida lei, a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

No caso, admitidos os movimentos bancários, discutido apenas se o dinheiro é economia do casal, transferido, por acordo de pais e filho, para este, para o “esconder”, considerando que a prova se limita aos documentos aceites e aos depoimentos desta família, não se justifica aquela remessa”.

Ou seja, contrariamente ao entendimento da 1.ª instância - na verdade, não se trata de questão meramente incidental, mas sim, de uma verdadeira ação declarativa versando sobre apurar rastos de dinheiro, com a envolvência de uma sociedade, na qual poderá inclusive suscitar-se questões de sigilo bancário, além das inúmeros diligências probatórias que foram requeridas (…) Mais a mais, pode suscitar-se outras questões relacionadas com a capacidade do falecido (…) Deste modo, afigura-se que no âmbito de um incidente da instância o tribunal não pode decidir em consciência uma questão daquela natureza, além de poder eternizá-lo -, os factos assentes pela confissão da, à data, cabeça de casal, os documentos juntos pelo reclamante, o processo com o nº 457/14...., do Juízo Central Cível ... – Juiz ..., que por sentença de 25/10/2015, decretou a interdição de AA, e o mais requerido pelo reclamante, permite que se profira decisão final neste incidente relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da recorrida e que a mesma se apropriou , não se mostrando, por isso, fundamento para a remessa para os meios comuns.

Procede, pois, o recurso.


*

Conclusões:

(…).


*

3. Decisão

Assim, na procedência da instância recursiva, revogando a decisão proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Castro Daire, ordenamos o prosseguimento dos autos incidentais, na parte em que remeteu os interessados para os meios comuns relativamente à falta de relacionamento dos dinheiros em poder da cabeça-de-casal de que a mesma se apropriou elencados sob as alíneas 27 a) a p) de fls 222 a 224.

Sem custas.

Coimbra, 10 de Setembro de 2024

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Helena Melo – 1.ª adjunta)

(Arlindo Oliveira – 2.ª adjunta)