Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
435/04.0TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: QUESTÃO PREJUDICIAL
PROCESSO PENAL
NULIDADE DE INSUFICIÊNCIA DA INSTRUÇÃO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 04/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: – COIMBRA – TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 7º; 120.º, N.º 2, ALÍNEA D) DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: Questão prejudicial é a questão jurídica concreta que, embora autónoma quanto ao seu objecto relativamente à questão principal do processo em que surge e podendo por isso ser objecto próprio de um outro processo, se revela como questão condicionante do conhecimento e decisão da questão principal (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4ª Ed., 114);

II. - A questão prejudicial funciona como pressuposto lógico substantivo da decisão da questão prejudicada.

III. - São características da questão prejudicial, a antecedência lógico-jurídica relativamente, a autonomia e a necessidade, relativamente à decisão da questão principal (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., 115 e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed. 1974, Reimpressão, 165).

IV. - O C. Processo Penal consagra um sistema misto quanto à questão da prejudicialidade: a regra é ser a questão prejudicial resolvida no processo penal; quando o juiz entenda que tal questão não pode ser convenientemente julgada no processo penal, é devolvida a sua resolução ao tribunal competente (excepção).

V. - A suspensão do processo penal para efeitos de conhecimento de questão prejudicial só pode ser requerida depois da acusação ou do requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, mas pode ser ordenada oficiosamente pelo tribunal (art. 7º, nº 3, do C. Processo Penal). Não pode pois a suspensão ser ordenada pelo Ministério Público no decurso do inquérito.

VI. - A insuficiência do inquérito e da instrução constitui uma nulidade genérica que respeita unicamente à omissão de actos que a lei prescreve como obrigatórios (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 84).

VII. – O objecto do processo, na instrução requerida pelo assistente, é constituído pelos factos concretos imputados ao arguido que constam do respectivo requerimento de abertura de instrução.

VIII. - Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar uma alteração não substancial dos factos descritos no dito requerimento, o juiz deve comunicá-los ao arguido para que fiquem asseguradas as garantias de defesa do arguido, protegendo-o, através da vinculação temática do tribunal, dum julgamento arbitrário quanto inesperado alargamento do objecto do processo.

IX. - A identidade entre o objecto da acusação ou do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente por um lado, e o objecto da pronúncia por outro, podem não ser absolutamente coincidentes. A pronúncia pode divergir relativamente aos factos que não constituam uma alteração substancial dos naqueloutros mencionados.

X. - A alteração não substancial dos factos pressupõe que, não obstante a sua verificação – e que pode decorrer até da subtracção de factos constantes da acusação ou do requerimento para abertura da instrução (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 177, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 759) – se mantenha a imputação de um crime ao arguido ou seja, que não obstante a tal alteração, se mantenha viável a prolação de despacho de pronúncia.

Decisão Texto Integral: 27

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. RELATÓRIO.
Findo o inquérito no âmbito do processo nº 435/04.0TACBR, dos serviços do Departamento de Investigação e Acção Penal, Distrito Judicial de Coimbra, em que foi constituído arguido JCC, pela Digna Magistrada do Ministério Público foi proferido despacho de arquivamento relativamente aos factos participados pelo assistente AA..
Pelo assistente foi requerida a abertura da instrução, com vista à pronúncia do arguido, como autor de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal, sem que tenha sido indicada qualquer diligência probatória a realizar.
Aberta a instrução, teve lugar o debate instrutório.
Foi depois proferida a decisão instrutória, com o seguinte teor (transcrição):
“ (…).
O Tribunal é competente.
Ministério Público e assistente dispõem de legitimidade para o exercício da acção penal.
Inexistem questões prévias a decidir.
Inconformado com o despacho de arquivamento com que o Ministério Público pôs termo à fase de inquérito, o assistente, JC, requereu a instrução com vista à pronúncia de B pelo crime de falsificação de documento, p.p. pelo artº 256º, nºs 1 e 3 do Código Penal.
Na perspectiva do requerente, o arguido estaria incurso na prática de tal crime porque, contra a verdade por si conhecida, alterou a área constante da matriz …. por majoração da área do pátio, que era de 50 m 2, para 88 m2, o que fez à custa da inclusão da área de um muro e serventia de inquilinos que o requerente considera serem partes integrantes do prédio pertença da sua família.
Certo é que, mercê daquela alteração da área, primeiro na matriz e, depois, levada à descrição predial, o arguido conseguiu obter da Câmara Municipal de Coimbra autorização para ali ser construída uma moradia unifamiliar que, com a área de 170 m2, nunca ali poderia ser autorizada, estando actualmente edificada habitação, pertença de terceira pessoa (ED) que, entretanto, adquiriu o imóvel ao aqui arguido.
O dissídio deu já origem a acção declarativa com processo ordinário que corre termos nas Varas Cíveis desta cidade, com o nº 1708/04.7TBCBR (fls. 219).
O Ministério Público considerou que o arguido agiu sem dolo por não existirem nos autos elementos que permitam concluir que o mesmo sabia que o aumento da área foi efectuado à custa do sacrifício da área da propriedade de assistente e familiares.
Com tal forma de abordagem não concorda o assistente que considera que da verificação do tipo objectivo do crime de falsificação se deve presumir o dolo quando inexistem outros elementos de sinal oposto.
Todavia, e de alguma forma antecipando a orientação final deste despacho, diremos que os autos não reúnem indícios sequer da verificação de uma qualquer falsificação intelectual ou até de simples declaração contrária à realidade.
Embora não se almeje nesta fase o apuramento exaustivo da realidade dos factos o que, na situação que nos é dada a ponderar, exige dilucidação de matéria cível da área jus-real e dominial, é imperioso que a prova seja suficiente, isto é, que se anteveja como muito provável a condenação para que sobrevenha decisão de pronúncia (artºs 283º, nº2, e 308º, nºl do Código de Processo Penal).
Para que o arguido pudesse considerar-se autor de um crime de falsificação por via da alteração documental da área de prédio urbano que em tempos adquiriu, conforme pugna o assistente, seria mister que dos autos resultasse que o arguido pretendeu, dessa forma, fazer crer que o seu prédio tinha uma área superior à área real.
Ora, o assistente afirma que o acrescento – 38 m2 – foi efectuado mercê da inclusão da área de uma serventia de inquilinos e da área de um muro de que assistente e familiares são comproprietários e que aquela serventia constitui parte integrante do imóvel da sua família ao qual corresponde o artº matricial 671º e a descrição predial 535 (cfr. artºs 1º e 18º da petição apresentada na referida acção ordinária – fls. 220 e ss.).
Na verdade, o arguido começou por apresentar na Câmara desta cidade o requerimento de fls. 56 com vista ao apuramento da viabilidade de edificação de uma moradia unifamiliar no prédio com o artº 179º, e fez acompanhar tal requerimento do documento de implantação de fls. 57 onde se observa que a delimitação que dali consta relativamente a tal imóvel não inclui a serventia e o muro que se observa do lado esquerdo desta serventia (considerando o posicionamento desde a Rua da Lima).
Claro que os serviços administrativos, verificando tal área, pronunciaram-se negativamente, desde logo, por a proposta não respeitar a capacidade construtiva do terreno (fls. 58), mas nem isso motivou a desistência do arguido que, a 1.2.01, requereu na lª Repartição de Finanças de Coimbra a alteração da área de 170 m2 para 208 m2, juntando a mesma planta de implantação, desta feita, desenhando a delimitação do imóvel de modo a ali incluir a serventia e muro (fls. 61 e 62), vendo assim satisfeita sua a pretensão (fls. 60), sem audiência prévia de assistente e familiares (quiçá por não constarem como titulares de prédios confinantes com o artº matricial 179º – fls. 152).
Reunido aquele elemento e mais a alteração que se impunha na Conservatória respectiva, a Câmara Municipal veio a autorizar edificação no lote, edificação que, entretanto, foi já levada a efeito, agora na titularidade de um terceiro adquirente (fls. 159 e ss.). Embora não resulte, inicialmente, que assistente (fls. 84 e ss.) e testemunha por si indicada, A... (fls. 95), seu cunhado e pessoa que o auxiliou na dilucidação dos processos administrativos atinentes àquela autorização, considerem que tal serventia pertence ao prédio do primeiro, como é visível do depoimento da testemunha: "o declarante sabe que a sua família possui uma propriedade situada na localidade de Taveiro. Que a propriedade confina com uma "serventia de inquilinos" (fls. 95), é distinta a posição apresentada na referida acção ordinária onde os demandantes afirmam que o imóvel pertença da família do assistente, há décadas, onde está implantada uma indústria, inclui a serventia e o muro (artºs 2º a 5º do articulado de fls. 220 vº e 221).
De facto, não constando que a serventia de inquilinos seja res publica ou res nullius, a mesma haveria de estar implantada em algum dos terrenos e o assistente considera estar a mesma implantada no imóvel que pertence à sua família.
Mas, não é essa a realidade apurada em inquérito e talvez o Ministério Público tenha concluído bem embora por fundamentos distintos pois centrou o arquivamento na ausência de dolo quando, na realidade, o que não se apurou é que a serventia de inquilinos (o muro será compropriedade) não seja parte integrante do imóvel que teve o artº 179º.
Os testemunhos de quem ali já viveu ou vive e que conhece os prédios e seu antepossuidores foram eloquentes.
Assim, B... que vendeu o artº 179º ao arguido, afirmou a fls. 296 e 297, que a escritura foi celebrada muitos anos após a venda verbal e que o prédio era composto por uma casa em ruínas, um pátio e uma serventia de passar e andar. Este prédio era herança de sua mulher e foi pertença da madrinha desta. Naquela serventia, que constitui parte integrante do prédio da madrinha, apenas ali passava, no tempo da madrinha e avós de sua mulher, um tal C... que tinha uma casa ao fundo deste imóvel e que ia ali vindimar, imóvel este que os herdeiros do mesmo C… já venderam a D... , actual proprietário do artº 179º (facto que, em termos cíveis, poderá até determinar a extinção da serventia por via do disposto no artº 1569°, nº1 al. a) do CC, caso não haja outros inquilinos).
De resto, a madrinha da sua esposa usava a serventia até para secar milho e arroz, e foi isso mesmo que o vendedor disse ao arguido quando lhe vendeu o artº 179º.
Já o muro que delimita a propriedade do assistente e família da dita serventia terá sido construído pelo pai do assistente ainda em vida dos avós de sua mulher e tal facto não foi sequer do agrado daquele antepassado do cônjuge da testemunha. Tal vez por isso foi deixada no muro uma abertura para que por ali se passasse para o prédio do assistente para regular uma balança, mas até isso foi impedido pela avó da mulher deste vendedor que mandou fechar tal abertura.
F... (fls. 303) afirmou ter sido criado em casa dos avós do assistente, no prédio que pertence a este e restantes herdeiros, pelo que o conhece, assim como aos prédios vizinhos. O terreno que constitui o artº 179º pertenceu ao Sr. E... , pai da madrinha do vendedor (ou da esposa), que ali tinha a sua casa cuja porta dava para aquela serventia. Por tal caminho passava o C... , também conhecido por C… para aceder à adega sita por detrás da casa do E... . Só o E... e o C... usavam a serventia e nem os avós do assistente ou pessoas ao seu serviço por ali passavam, considerando a testemunha que a serventia era do E... e o C... tinha direito de por ali passar.
O muro foi construído quando começou a laborar a fábrica existente no prédio do assistente, mas os veículos não acediam às instalações fabris por tal local embora passassem a usá-lo para inverterem a marcha.
G... afirmou, a fls. 305 e 306, que vive perto da Rua da Lima e chegou a trabalhar na fábrica de papel pertença dos avós do assistente, sabendo que o prédio que hoje pertence ao Sr. Eduardo (que o adquiriu ao arguido) era do Sr. E... que ali tinha casa térrea e eira, existindo uma faixa de terreno em frente à entrada principal da casa e para a qual davam os degraus desta, que era usada pelo E... e pelo K… que assim acedia à sua adega, sita nas traseiras da casa do E... .
A serventia não era usada pelos antecessores do assistente, nem por ali se passava para a fábrica cujo acesso era efectuado por entrada existente na rua de baixo.
Pelo que lhe foi dado observar, a faixa de terreno que constitui a serventia sempre pertenceu ao prédio do Sr. E... , hoje de J... .
H… , genro do falecido K… (fls. 307), conhece os prédios há cerca de 40 anos e afirmou que a serventia era usada pelo seu sogro e pela família do Sr. E... embora se recorde que, por vezes, para fazerem manutenção da balança que existia na fábrica de papel, os homens da manutenção por ali acedessem.
Do que acabamos de observar não deflui que, quando solicitou à testemunha Adalberto Caceiro, engenheiro civil que efectuou o levantamento topográfico que serviu de base à rectificação da área nos documentos matriciais e prediais (fls. 114), o arguido quisesse adulterar a realidade ou que tivesse consciência que a serventia e muro não pertenciam, de todo, ao imóvel que comprou a Américo Pimentel.
Simplesmente, não é apenas o elemento subjectivo do tipo – o dolo – que claudica, mas, outrossim, toda a materialidade objectiva, consistente na declaração de facto falso, que ficou por demonstrar, assistindo-se, ao invés, à demonstração de factos que parecem secundar a versão do actual proprietário do artº 179º (e do imóvel sito nas traseiras) no processo de licenciamento da sua moradia (cfr. fls. 196 e 197).
Aceitando o assistente que o muro é meeiro, como alega no ponto f), parte final, da participação, dos autos apenas se recolhe que, a ter existido um erro de cálculo na área do prédio com o artº 179º em benefício desse imóvel, esse erro terá porventura a grandeza de metade da área do muro, cuja dimensão real se ignora, mas que o arguido, na contestação apresentada na acção ordinária, refere ser da ordem dos 4 m2 (artº 21º da sua contestação fls. 242 vº).
Consequentemente, na ausência de indícios de que o arguido tenha tido intenção de causar prejuízo a quem quer que seja ou tenha, sequer, feito constar dos pertinentes documentos qualquer factual idade falsa, decido não pronunciar Joaquim Caldeira da Cunha pelo imputado crime de falsificação de documento, mantendo o arquivamento dos autos.
Custas pelo assistente (artº 515º, nº l al. a) do Código de Processo Penal).
Notifique.
(…)”
Inconformado com a decisão, o assistente dela interpôs recurso, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…).
1. A participação criminal elaborada, que deu origem ao presente inquérito, indicava factualidade susceptível de configurar os elementos constitutivos do crime de falsificação a que alude o artigo 256.º do Código Penal;
2. O despacho ora em recurso arranca de pressuposto que se encontra em plena contradição com a decisão emitida pelo Ministério Público no sentido de arquivamento e cuja comprovação era objecto da instrução requerida;
3. Nesta decisão do Ministério Público, era assumida a existência de uma declaração falsa só que, num plano subjectivo, entendia-se que carecia de demonstração a existência do dolo;
4. A decisão recorrida omitiu qualquer pronúncia sobre tal circunstância e decidiu, com base em pressuposto totalmente diferente – e sem atender ao que constava da decisão do Ministério Público e da impugnação que sobre a mesma se produzira – que não se constata o preenchimento dos elementos objectivos que consubstanciam o crime de falsificação.
5. Para assim decidir atendeu a Mma. Juíza a quo aos depoimentos produzidos pelas testemunhas arroladas pelos Réus na acção cível para decidir a temática que denomina a "dilucidação de matéria cível da área jus-real e dominial";
6. Entende-se que existe uma manifesta confusão conceptual da forma como foi equacionado o silogismo que deveria dar lugar à decisão correcta no caso vertente. Na verdade, a questão a ser respondida nos presentes autos para aferir da responsabilização criminal é se o arguido declarou, ou não, falsamente que a imóvel sua propriedade tinha uma determinada área.
7. A incursão da decisão recorrida pelo tema da dominialidade de uma área denominada "serventia de inquilinos", que constitui o objecto da acção cível com julgamento a decorrer, suscita a mais profunda perplexidade;
8. Na verdade, tal não constitui questão prejudicial à decisão sobre a responsabilidade criminal do arguido e, ao pronunciar-se nos termos em que, o fez decisão recorrida pronunciou-se sobre o que não devia e não se pronunciou sobre o que devia, merecendo a mais profunda discordância;
9. Uma decisão que incide sobre uma falsificação intelectual impressa nas declarações constantes de diversas entidades oficiais reconduz-se a uma não pronúncia operada sem que se tenha procedido à mínima análise de qualquer documento;
10. O despacho recorrido decide que não existe elemento objectivo do crime de falsificação sem a mínima referência, ou indagação, sobre o objecto do mesmo crime, ou seja, o documento onde aquela se corporiza;
11. O despacho recorrido não se pronunciou sobre o objecto específico do crime imputado – a concreta falsidade intelectual mas antes decidiu questão estranha a tal objecto;
12. Tal omissão é tanto mais grave quanto é certo que a prova documental constante dos autos; a citada nos mesmos e aquela que não foi, e devia ter sido junta, não só imprime a ideia de inexistência de qualquer questão prejudicial, nomeadamente nos termos conformados pelo despacho recorrido, mas, essencialmente, indicia de forma vincada a ideia de que o arguido declarou o que declarou sabendo que declarava falso;
13. O prédio adquirido pelo arguido possuía a seguinte composição e confrontações constantes do registo predial e matricial: área coberta de oitenta metros quadrados, dependências com quarenta metros quadrados e pátio com cinquenta metros quadrados (área total de 170 metros quadrados), confrontando do Norte com B… ; Sul com serventia de inquilinos; nascente com rua pública e do poente com C… ;
14. Durante cerca de oitenta anos e em qualquer documento lavrado com intervenção dos respectivos proprietários, sempre o prédio adquirido pelo arguido foi objecto da mesma descrição e área, sem qualquer discrepância;
15. A denominada "serventia de inquilinos" era utilizada na exacta dimensão da respectiva funcionalidade sem que sobre a mesma se tivessem suscitado quaisquer questões;
16. Sucede, todavia, que em 12 de Outubro de 2000 o arguido efectua um pedido de ocupação prévia à Câmara Municipal de Coimbra apresentando plantas em que indica única e exclusivamente a propriedade do prédio supra referido – e em cujas plantas o arguido não integra no seu prédio um muro e uma serventia contíguos, mas antes deixa-os de fora do traçado dos limites da sua propriedade –, indicando todavia uma área de 208 que não é que consta das Finanças e da Conservatória;
17. O arguido e a testemunha Adalberto Caceiro – o qual foi autor das plantas apresentadas – trabalham na área da construção civil, não sendo pois cidadãos para quem os domínios de Conservatórias, Câmara, Finanças, licenças, documentos, etc., sejam áreas inóspitas e desconhecidas;
18. Perante a informação camarária de que a área bruta de construção não respeitava a capacidade construtiva do terreno, o arguido Caldeira da Cunha logrou uma forma de ultrapassar a situação de impasse ao inventar o aumento da área de um imóvel cujas características, desde sempre, eram, as referidas em 13;
19. Nessa sequência desloca-se à respectiva Repartição de Finanças e apresenta o requerimento de rectificação cuja cópia consta de fls. 61, onde afirma que a área total do prédio é já não de 170 mas sim de 208 metros quadrados, sendo todavia alterada somente a área descoberta (pátio) que passa de 50 metros quadrados para 88 metros quadrados. A alteração, saliente-se, refere-se ao prédio tal como está descrito nas Finanças e Conservatória e tem por objecto o respectivo pátio;
20. Ao aumentar a área do pátio em 88 metros quadrados o arguido Caldeira da Cunha sabia perfeitamente que tal declaração colidia com tudo o que ao longo de décadas foi declarado pelos sucessivos proprietários do prédio em causa e que este não podia agora aparecer num passe de magia com mais área do que aquela com que o tinha adquirido;
21. Foi, assim, que sem o mínimo de comprovação concreta pelas entidades oficiais, e num processo burocrático desfasado da realidade, o requerimento é deferido iniciando-se o processo de rectificação da área na Conservatória de Registo Predial. Nesta entidade procede-se à alteração respectiva passando a constar: Terreno para construção a confrontar do norte com B… , nascente com rua pública, sul com serventia de inquilinos e do poente com C… . Área total 208 metros quadrados. Área descoberta 208 metros quadrados;
22. A decisão recorrida não profere uma palavra a propósito da circunstância i) de o arguido ter apresentado a 12 de Outubro de 2000 – e conjuntamente com estudo prévio por si peticionado na Câmara uma planta – uma planta onde delineava a área e a configuração do seu imóvel, a qual não compreendia nem a serventia nem o muro contíguos; ii) sobre a diferença de áreas que por quase num século constaram dos documentos oficiais e a aquela que veio a ser introduzida pela declaração produzida pelo arguido; iii) sobre o facto de o próprio arguido reconhecer que as confrontações do prédio são as mesmas pelo menos desde 1935 ao só ter alterado a área mas não as confrontações no requerimento de rectificação de fls. 61; iv) sobre o facto de o arguido expressamente referir que a área que pretendia alterar era a do pátio e não qualquer outra; v) sobre a relação entre a denominada "serventia de inquilinos", as confrontações e área do prédio do arguido e aquilo que o mesmo alterou; vi) sobre as sucessivas alterações de plantas que o arguido apresentou com realidades diversas – que mais não são que adulterações da planta original apresentada pelo arguido na Câmara e na qual a serventia de inquilinos não integrava a propriedade do arguido – e contrárias ao que era a descrição predial do seu prédio; vii) sobre a circunstância de um construtor civil cometer tantas incorrecções e logo por coincidência para conseguir dotar de capacidade construtiva um prédio que não a tinha;
23. Tudo decidiu, pois, sem um olhar minimamente atento ou de exame sobre a prova documental produzida. Na verdade, bastava um mínimo de atenção a esta prova para concluir da existência de indícios de sucessivas declarações falsas de factos juridicamente relevantes, nomeadamente a incidir sobre a área do prédio;
24. Os elementos objectivos do tipo de crime de falsificação estão amplamente demonstrados. Por igual forma a mesma prova se acha feita sobre os elementos que constituem o elemento intelectual e volitivo do dolo, que se encontram pois plenamente indiciados quanto mais não fosse na sua vertente de dolo eventual;
25. O despacho recorrido incorre em manifesto erro de apreciação e julgamento porquanto omitiu em absoluto a prova documental produzida, não apreciando e muito menos retirando as ilações devidas;
26. Em lugar da apreciação da questão relativa à existência de indícios do elemento subjectivo do crime de falsificação a decisão recorrida enveredou por um outro caminho no entendimento de que a essência sobre a determinação da responsabilidade criminal do arguido pressupunha, a seu montante, uma questão de natureza cível;
27. É patente a confusão ao decidir que a existência de indícios de responsabilização criminal do arguido pela prática de um crime de falsificação residem numa questão que não é prejudicial por que não suscitada nos autos e, essencialmente, porque não relevante para a decisão.
28. Quanto à questão única e nuclear nos presentes autos (que era a de saber se existem, ou não, indícios de que ao declarar que o pátio do artigo 179 tinha uma área de 88 metros quadrados, em lugar de 50 metros quadrados, o arguido sabia, ou não, que estava a afirmar um facto falso e juridicamente relevante e, acrescente-se, com a finalidade de conseguir dotar aquele terreno de capacidade construtiva), a decisão recorrida não respondeu.
29. A decisão recorrida considera prejudicial uma questão exógena ao presente inquérito e que foi, por igual forma, suscitada pelo assistente nos meios cíveis adequados e cuja resolução não é prejudicial na definição da existência de indícios de responsabilidade criminal no presente processo;
30. A decisão recorrida ao assumir a decisão de uma questão prejudicial violou o artigo 7.º do Código de Processo Penal, potenciando decisões contraditórias e achando-se nos antípodas da teleologia do mesmo preceito;
31. Na verdade, encontrando-se em fase final a audiência de julgamento a acção cível, com a plenitude probatória e do exercício do contraditório inerentes, não se pode afirmar a conveniência da respectiva decisão no processo-crime. Aliás, dificilmente se encontraria uma outra situação que prefigurasse de forma tão evidente a hipótese de recair sobre o julgador da acção penal a obrigação de sobrestar a decisão;
32. Significa o exposto que assumindo – mal, como se afirmou – a existência de uma questão prejudicial cível objecto de uma Acção Ordinária e que se encontrava em fase de julgamento, o Ministério Público não suspendeu o inquérito, aguardando a respectiva decisão, mas procedeu à inquirição das testemunhas ali arroladas (no processo cível) criando uma inquirição paralela e com regras díspares pois que sem sujeição ao principio do contraditório;
33. Inquirição paralela e regras díspares que a Mma. Juíza prosseguiu em sede de instrução;
34. A existir uma questão prejudicial, e não existe, sempre deveria ter sido decidido da conveniência de a mesma ser decidida na própria acção cível quer pela sua natureza, quer pela complexidade; quer pelo fato de estar pendente e em fase final a mesma acção, quer pela necessidade de evitar decisões contraditórias;
35. Mesmo admitindo existir questão prejudicial a ser julgada nos presentes autos sempre a mesma foi mal julgada, sem observância do princípio da verdade material e sem respeito pela prova documental constante dos autos.
36. É que decidiu a Mma. Juíza a quo com referência a depoimentos que se limitam a atestar o uso que se fez da serventia de inquilinos e que se reportam a um período temporal que terminou há cerca de 40 anos atrás.
37. Por outro lado, as mesmas testemunhas não fazem mais que referir quem utilizava a serventia de inquilinos e de que forma o fazia. E foi com base nessas afirmações de uso que a Mma. Juíza a quo concluiu que a versão do Arguido ostentava estar secundada.
38. Sucede, todavia, que a conclusão que na decisão recorrida se extrai do depoimento das mesmas testemunhas configura um lapso na aplicação das regras «jus dominiais» cíveis. É que do uso da referida serventia por um dado indivíduo não se pode depreender a correspondente propriedade da mesma. Isto porque o próprio conceito de serventia de passagem envolve a faculdade de exercer as utilidades inerentes à mesma serventia sem dispor da correspondente propriedade.
39. Ou seja, da circunstância de os antepossuidores do arguido, do assistente ou dos demais confinantes passarem ou não pela serventia nenhuma conclusão se pode retirar quanto à efectiva propriedade do terreno onde aquela incide. Na verdade, e sendo a serventia um "ENCARGO IMPOSTO NUM PRÉDIO EM PROVEITO EXCLUSIVO DE OUTRO PRÉDIO PERTENCENTE A DONO DIFERENTE" (artigo 1543.º do Código Civil), não é possível aferir se quem a usa o faz na qualidade de proprietário do prédio serviente ou do prédio dominante.
40. E é por essa razão que a única fonte certa e fiável para sindicar da configuração da serventia, o terreno onde esta se insere e a consequente propriedade é o correspondente título constitutivo ou a Certidão da Conservatória do Registo Predial – certidão a que a Mma. Juíza a quo permaneceu de todo alheada. 41. Assim, e porque os referidos B… , F... , G... e H... atestam que os antepossuidores C… e José E... utilizavam a aludida serventia, conclui então a Mma. Juíza a quo que a referida serventia se acha integrada no prédio do arguido e que, como tal, este nada falsificou.
42. O que faz, realce-se, sem atender a qualquer elemento documental e com base em interpretação errada dos factos e das normas subsumíveis.
43. A decisão recorrida traz ainda à colação um objecto processual totalmente distinto da questão colocada no despacho do Ministério Público e sobre a qual o assistente foi chamado a pronunciar-se.
44. Existiu, assim, também uma alteração dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução deduzido, pelo que a Juiz de instrução Criminal deveria ter comunicado tal alteração ao defensor e interrogado o arguido nos termos do artigo 303.º do Código de Processo Penal.
45. Tal patologia invocada constitui uma nulidade processual artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal – a qual se terá consumado com a prolação da decisão recorrida e, consequentemente, após o encerramento da instrução – artigo 120.º, n.° 3 do Código de Processo Penal.
46. Se tivesse sido dado conhecimento ao assistente tal alteração não substancial dos factos, e em cumprimento do principio da verdade material, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal o mesmo logo teria apresentado documentos ou requerido que os mesmos fossem solicitados por forma a permitir à Mma. Juíza a quo avaliar quão incorrectos eram os pressupostos probatórios da sua decisão.
47. A decisão recorrida não só não cumpriu o dever de procura da verdade material que sobre si impendia, como também cometeu um manifesto erro de julgamento ao decidir com prova insuficiente sobre matéria irrelevante.
48. Discorda-se, pois – e com o devido respeito –, do despacho de não pronúncia, porquanto resultam dos autos indícios suficientes da verificação do crime de falsificação de documentos qualificado, p. e p. pelos artigos 256.° do Código Penal,
49. Ao decidir como decidiu, o douto despacho recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos 256.º e artigos 7.º, 303.º, 308.º e 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal;
50. À luz do que precede, e do mais que, doutamente, será suprido, deverá ser dado inteiro provimento ao presente recurso, revogando-se, na procedência das razões supra invocadas o, aliás douto, despacho recorrido.
NESTES TERMOS, E COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ SER DADO INTEITO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO REVOGANDO-SE O DESPACHO RECORRIDO E SUBSTITUINDO-SE POR OUTRO EM QUE SE DETERMINE A PRONÚNCIA DO ARGUIDO PELOS FACTOS DESCRITOS NO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO E CRIME AÍ IMPUTADO.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
(…)”.
Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…).
I - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286 do CP.P.
II - Na fase de instrução a M.ª JIC julgou a prova produzida durante o inquérito já que nenhuma outra foi requerida na fase de instrução;
III - Não houve qualquer alteração de factos ou de qualificação jurídica logo, não se verificou qualquer violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal, concretamente, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por omissão da prática de qualquer acto legalmente obrigatório ou de qualquer diligência que pudesse reputar-se essencial para a descoberta da verdade – art. 120, n.º 2, al, d) do CP.P.
IV - Tão pouco se verificou qualquer erro de julgamento;
V - A decisão recorrida pronunciou-se sobre o objecto específico do crime imputado – a concreta falsidade intelectual – não omitiu a prova documental, nem a prova testemunhal.
VI - A decisão recorrida não violou o art. 7 do CP.P., nem potenciou decisões contraditórias, porque tão só declara que não se apurou, em sede de inquérito, que a serventia não seja parte integrante do imóvel que teve o art. 179 (que foi propriedade do arguido).
Por não ter sido violada qualquer norma processual, muito concretamente os arts. 7, 256, 303, 308 e 410, n.º 2 al. c) todos do C.P.P., entende o M.P. que o recurso não merece provimento e a decisão de não pronúncia deve ser mantida quer com o fundamento expresso na decisão instrutória quer com o fundamento do M.P.
Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida,
Mas V. Exas. farão, como sempre, JUSTIÇA.
(…)”.
Também o recorrido respondeu ao recurso, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…).
1. O Tribunal a quo só poderia levar a cabo a tarefa de indagar se há, ou não, elementos que permitam concluir pela existência de indícios de sucessivas declarações falsas de factos juridicamente relevantes, e se tais indícios são suficientes para que, em sede de julgamento seja aplicada uma pena ou medida de segurança ao arguido.
2. E nessa tarefa, obviamente que teria a Mm.ª Juiz a quo que atender tanto ao elemento objectivo, como ao elemento subjectivo.
3. No despacho colocado em crise, não se vislumbra qualquer desfasamento ou desatenção à decisão do Ministério Público: Antes, porém, com os elementos constantes dos autos colocou a MM.ª Juiz a quo a tónica relevante, na apreciação da verificação do tipo objectivo do mesmo tipo legal de crime;
4. Para o efeito não se pôde deixar de verificar as circunstâncias de facto dos efectivos actos praticados pelo arguido.
5. Tem assim toda a propriedade para o silogismo reclamado à situação vertente a dilucidação de matéria cível da área jus-real e dominial: pura e simplesmente como um apuramento dos comportamentos do arguido em ordem a verificar se este, por via de tais comportamentos, preencheu, ou não, a factualidade típica do crime de falsificação de documentos.
6. De tais factos com respaldo nos autos, não resultam quaisquer indícios de estarmos perante uma falsificação, pois,
7. a própria declaração do arguido, independentemente do material em que está corporizada, ou a declaração enquanto representação do pensamento do arguido, objectivamente, não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica;
8. Porquanto a declaração do arguido corporizada nos levantamentos e requerimentos usados, é integralmente conforme à realidade jus-real e dominial conhecida por todos que conheciam a situação dos prédios em causa e retratada nos autos.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, E SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V.AS EX.AS DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENTE MANTENDO-SE O DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA DO ARGUIDO.
ASSIM É DE DIREITO, ASSIM SE FARÁ, JUSTIÇA!
(…)”.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
III. Fundamentação.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Desta forma, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões que urge decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A de saber se foi violado o art. 7º do C. Processo Penal;
- A de saber se ocorre a nulidade prevista na alínea d), do nº 2, do art. 120º do C. Processo Penal;
- A de saber se nos autos existem ou não, indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, com referência ao crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal.
1. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1 do C. Processo Penal).
Trata-se de uma fase facultativa e intermédia do nosso processo penal – entre o inquérito e o julgamento – que tem por objectivo a confirmação judicial da decisão do Ministério Público de deduzir acusação ou arquivar o inquérito ou da decisão do assistente de deduzir acusação por crime particular ou seja e por outras palavras, ajuizar da existência (ou não) de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art. 308º, nº 1, do C. Processo Penal).
Da competência de um juiz, a instrução compreende os actos que este entenda dever levar a cabo e que sejam necessários àquela comprovação judicial, sendo sempre obrigatória a realização do debate instrutório (arts. 288º, nº 1, 289º, nº 1 e 290º, nº 1, do C. Processo Penal).
Realizados os actos de instrução e o debate instrutório, se o juiz, procedendo à sua análise e valoração global, entender que foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, profere despacho de pronúncia pelos factos respectivos e, no caso contrário, profere despacho de não pronúncia (art. 308º, nº 1, do C. Processo Penal).
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art. 283º, nº 2 do C. Processo Penal, aplicável à fase da instrução, nos termos do disposto no art. 308º, nº 2, do mesmo código).
Ensina o Prof. Germano Marques da Silva que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a realidade dos factos mas apenas determinar se existem sinais, se existem indícios, da prática de um crime, de onde possa formar-se a convicção de que existe uma probabilidade razoável de, em julgamento, vir ao arguido a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, probabilidade esta que tem de resultar de um juízo objectivo, fundado na apreciação e valoração crítica das provas existentes (Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 179).
Também o Prof. Figueiredo Dias doutrinava, na vigência ainda do código de 1929, que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição (Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 133).
Dir-se-á assim, que a prova indiciária não nos leva a um julgamento de certezas.
A exigência legal de uma possibilidade razoável de condenação do arguido, não bastando pois, uma possibilidade mais ou menos longínqua, visa por um lado, impedir a sujeição do arguido a vexames e incómodos desnecessários e, por outro, não sobrecarregar o sistema judiciário com processos inúteis.
2. Pretende o recorrente que o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal.
O crime de falsificação de documento tem o seu tipo base previsto no art. 256º, nº 1, citado (na redacção anterior à da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro) que dispõe:
Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.
Este crime tutela a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Comentário Conimbricense do código Penal, Parte Especial, Tomo II, 680 e Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade, CJ, VIII, III, 21 e ss.), e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
- Objectivo; que o agente, a) fabrique documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante e, e) use documento falso, fabricado ou falsificado por terceiro;
- Subjectivo; o dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto e; o dolo específico, a intenção do agente de causar prejuízo a terceiro ou de obter um benefício ilegítimo.
O crime de falsificação de documento é um crime de perigo, pois a realização do tipo não pressupõe a lesão do bem jurídico protegido, e de perigo abstracto, pois o perigo não é elemento do tipo mas antes motivo da proibição (aqui, o perigo presume-se de forma enelidível).
Numa outra perspectiva, é também de um crime de mera actividade, pois o respectivo tipo fica preenchido pela execução de um determinado comportamento (não sendo exigida a produção de um resultado).
Entende-se por documento, no segmento que ora releva, a declaração corporizada em escrito, inteligível para a generalidade das pessoas que, permitindo reconhecer o seu autor, é idónea para provar um facto juridicamente relevante (art. 255º, a), do C. Penal).
Por sua vez, facto juridicamente relevante, é todo o facto apto a causar uma alteração no mundo do direito, a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica.
Ocorre a fabricação de documento falso quando não existe coincidência entre a declaração escrita incorporada no documento e a declaração prestada. Trata-se da falsificação intelectual, onde o documento é genuíno mas é inverídico.
Falsificar ou alterar documento significa a concepção de um documento inteiramente falso, como significa a alteração posterior, de um documento já existente. Aqui existe falsificação material, na qual o documento não é genuíno.
Fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante constitui a falsidade em documento. O agente narra, no documento, um facto falso, juridicamente relevante. O documento é genuíno porque é regular, mas é inverídico pois contém uma falsa declaração.
Quanto ao uso de documento falso, basta apenas referir que o agente utilizador terá que ser pessoa distinta da do autor da falsificação.

3. Aqui chegados, atentemos nos aspectos essenciais do despacho de arquivamento, do requerimento para abertura da instrução e do despacho de não pronúncia.
a) O despacho de arquivamento da Digna Magistrada do Ministério Público mostra-se fundado nas seguintes considerações:
- Porque da certidão da Conservatória do Registo Predial consta que o prédio (então) do arguido Joaquim da Cunha, confronta do Sul com serventia de inquilinos, esta serventia teria que existir em prédio pertencente a diferente dono o que, necessariamente, implicaria que serventia não integraria aquele prédio do arguido;
- Todas as testemunhas inquiridas afirmaram a existência da servidão de passagem, mas nenhuma delas sabia, incluindo o antecessor do arguido – B... – sabia a quem pertencia o terreno onde se situava a servidão;
- O arguido quando, ao pedir a rectificação da área do seu prédio, declarou que esta era, realmente, a de 208 m2, nela englobando a área da serventia e do muro que a limita, fez falsamente constar facto juridicamente relevante e desta forma, devido ao subsequente deferimento da sua pretensão, aumentou a área bruta do dito prédio e a sua capacidade construtiva para obter a concessão da licença de construção;
- Mas dos depoimentos das testemunhas não é possível concluir se o arguido tinha conhecimento e consciência de que o terreno da servidão não integrava o seu prédio ou se presumiu tal facto e por isso, se tivesse erradamente presumido que o terreno onde se situa a serventia pertencia ao seu prédio, não teria, atento o disposto no art. 16º, nº l, do C. Penal, actuado com dolo logo, não preenchendo o tipo do art. 256º do C. Penal;
- E assim, porque, face à factualidade apurada, se fosse deduzida acusação, seria mais provável a absolvição do que a condenação do arguido em julgamento, foi determinado o arquivamento dos autos.
Desta forma, podemos concluir que para a Exma. Procuradora da República existiam, por um lado, indícios suficientes de ter o arguido preenchido o tipo objectivo do crime imputado, e por outro, não existiam indícios suficientes de ter o arguido preenchido o tipo subjectivo do mesmo crime.
b) O requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, dando de alguma forma cumprimento ao disposto no art. 287º, nº 2, com referência ao art. 283º, nº 3, ambos do C. Processo Penal, e dado que este, como é sabido, é substancialmente uma acusação que fixa o objecto da própria instrução, começa por descrever a conduta do arguido tida como preenchedora do tipo do crime de falsificação de documento, para depois expor as razões de facto e de direito que dissentem da posição assumida pelo Ministério Público no inquérito, concluindo, sem requerimento de qualquer diligência, pela pronúncia do arguido pela prática de um crime p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal.
Sinteticamente, os factos descritos pelo assistente são:
- Até ao dia 9 de Maio de 2001, o prédio inscrito no artigo 179 da matriz predial urbana de Taveiro, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 1309/19991018, pertencente ao arguido tinha as seguintes características matriciais, constantes da descrição cadastral: “Casa de habitação, rés-do-chão, uma porta. Norte – proprietário Sul – serventia de inquilinos Nascente – rua pública Poente –C… Área coberta – 80,00 m2 Dependências 40,00 m2 Pátio – 50,00 m2”, características estas designadamente, confrontações e área total de 170 m2 (resultante da soma das áreas coberta, dependências e pátio) coincidentes com as que constavam da descrição predial respectiva;
- No dia 12 de Outubro de 2000, o arguido requereu à Câmara Municipal de Coimbra, a aprovação de um estudo prévio para construção de uma moradia no seu referido prédio, inscrito no artigo 179 da matriz predial urbana de Taveiro, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 1309/19991018;
- Neste requerimento, o arguido declarou, contrariamente ao que constava do cadastro matricial e da descrição predial, que o dito prédio tinha uma área aproximada de 208 m2, quando da planta por si então apresentada resultava que nem a serventia de inquilinos da confrontação Sul, nem o muro a esta contíguo, eram autónomos da moradia cuja construção era pretendida;
- O pedido foi analisado pela autarquia que, constatando que a área bruta de construção não respeitava os limites da capacidade construtiva do prédio, já que o cálculo tinha partido do princípio de que a serventia de inquilinos fazia parte do terreno, e que esta questão teria que ser esclarecida através de certidão da conservatória do registo predial, o indeferiu sem prejuízo de ser apresentado projecto revisto no qual, além do mais, se esclarecesse a questão da área bruta;
- Perante isto, o arguido, em Fevereiro de 2001, requereu na 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, a rectificação da área do seu prédio, invocando a realização de um levantamento topográfico rigoroso que constatou que a sua área total é a de 208 m2, pois a área descoberta – pátio – é, não de 50 m2, mas de 88 m2, apresentando para o efeito o levantamento topográfico o qual incluía, como área do prédio, a serventia de inquilinos e o muro, que perfazem 38 m2, levantamento que mais não é do que a planta apresentada na Câmara Municipal quando requereu a aprovação do estudo prévio, com as necessárias modificações;
- Por despacho de 9 de Maio de 2001, e sem que o assistente e seus familiares dele tivessem tido conhecimento, a repartição de finanças deferiu a requerida alteração da área do prédio do arguido, vindo este a apresentar os documentos emitidos pelas finanças na conservatória do registo predial, onde requereu então a rectificação da área do seu prédio, com fundamento em erro de medição, rectificação que obteve, passando a constar do registo que a área era a de 208 m2, tudo isto sem que a confrontação Sul com a serventia de inquilinos, tenha sido alterada, quer nas finanças, quer na conservatória;
- Obtida a alteração da área do prédio, o arguido apresentou na Câmara Municipal de Coimbra, em 10 de Janeiro de 2002, certidão da Conservatória do Registo Predial com a rectificação da área e as plantas topográficas que instruíram a rectificação, e requereu a reapreciação do projecto de arquitectura de construção de uma moradia no seu prédio, com vista à concessão da respectiva licença de construção;
- Esta licença foi emitida em 3 de Dezembro de 2003, mas em nome de D... , J… que, por escritura de 2 de Setembro de 2003, adquiriu ao arguido o prédio inscrito no artigo 179 da matriz urbana de Taveiro;
- Sucede que a serventia de inquilinos e o muro referidos integram um prédio urbano situado em Taveiro, inscrito na respectiva matriz no artigo 167, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra no artigo 00535/290989, pertencente ao assistente e familiares, e que na dita conservatória tem a seguinte descrição: “Prédio urbano – Taveiro – Edifício destinado a indústria, composto por r/chão – área coberta: 705 m2; 3 anexos com as áreas de 202 m2, 67 m2 e 504 m2; norte –C… e outro; sul – herdeiros de Fausto Figueiredo Vieira; nascente e poente – rua.”;
- O assistente teve conhecimento dos actos praticados pelo arguido em Julho de 2003, que são lesivos do seu direito, posto que subtraem e serventia de inquilinos e o muro ao seu prédio e poderão conduzir ao licenciamento da construção de uma moradia sobre eles, sendo que o assistente e familiares, enquanto proprietários confinantes, não foram ouvido quanto á rectificação da área, quer nas finanças, quer na conservatória do registo predial.
E passando depois à discussão das razões de discordância relativamente à abstenção de acusar do Ministério Público, o assistente começa por afirmar que o arquivamento se deveu ao entendimento de inexistência de prova quanto ao elemento subjectivo do tipo imputado, exprime o entendimento de ter existido um manifesto lapso na apreciação da prova na medida em que, sendo o dolo um fenómeno interior do agente, é insusceptível de apreensão directa, antes tendo que ser extraído dos factos materiais verificados conjugados com as regras da experiência e não dos depoimentos das testemunhas, e conclui que o dolo, face aos factos indiciados e aceites no despacho de arquivamento, se deveria ter dado como verificado, mesmo que na sua forma eventual, sendo inadequada a invocação do art. 16º do C. Penal.
Em suma, entende o assistente que, tendo o arguido declarado como área do seu prédio urbano, a de 208 m2, quando na matriz e na conservatória do registo predial tal área era de 170 m2, assim englobando nela a área correspondente a uma servidão de passagem e a um muro pertencentes a um prédio, confinante, de que o assistente e familiares são titulares, declaração que o arguido fez, sucessivamente, na câmara municipal, nas finanças e na conservatória, logrando a rectificação da área do prédio com o objectivo, conseguido, de obter do município a licença de construção para uma moradia, e que destes factos se extrai o seu comportamento doloso, com referência ao crime de falsificação de documento.
c) A decisão instrutória, não atendendo a pretensão do assistente, comprovou a decisão de arquivar o inquérito, mas por razões não completamente coincidentes, na medida em que, fundada na prova testemunhal que consta do inquérito e, de alguma forma, no que ressalta da acção ordinária em que, além do mais, é discutida a titularidade do terreno onde se situa a serventia de inquilinos, concluiu pela não pronúncia por falta de indícios, quer no que respeita à falsa declaração de facto juridicamente relevante, quer no que concerne à intenção de causar prejuízo.
4. Pretende o recorrente que, sendo a questão a que cumpria dar resposta na decisão instrutória, a de saber se o arguido declarou, ou não, falsamente, consciente e intencionalmente que o seu prédio tinha uma determinada área, que não correspondia à área real, a circunstância de naquela decisão se ter enveredado pelo conhecimento do domínio da área onde se situa a questionada serventia de inquilinos significa que o tribunal se pronunciou sobre o que não devia, já que a dita questão não é prejudicial nem é relevante, sendo indiferente para a responsabilização penal do arguido o que sobre ela se vier a decidir em sede civil, pois nem na participação, nem nas suas declarações, nem nas do arguido tal questão é suscitada, pois ninguém se arroga a propriedade de tal área.
Questão prejudicial é a questão jurídica concreta que, embora autónoma quanto ao seu objecto relativamente à questão principal do processo em que surge, podendo por isso ser objecto próprio de um outro processo, se revela como questão condicionante do conhecimento e decisão da questão principal (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4ª Ed., 114). A questão prejudicial funciona como pressuposto lógico substantivo da decisão da questão prejudicada.
São então características da questão prejudicial, a antecedência lógico-jurídica relativamente, a autonomia e a necessidade, relativamente à decisão da questão principal (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., 115 e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed. 1974, Reimpressão, 165).
É certo que na participação o recorrente não afirma ser o dono, juntamente com outros familiares, do terreno onde se situa a serventia de inquilinos pois nela apenas se diz, além do mais, que o arguido “com tal intuito apresentou também, levantamento topográfico (…) em que inclui como sua propriedade a referida «serventia de inquilinos», e, ainda, um muro de um prédio que é compropriedade do participante e inscrito na matriz sob o nº 671 (…)”.
Assim, é o próprio recorrente quem, logo no início do processo, afirma que o arguido se arroga a propriedade do terreno onde se situa a dita serventia. Já no que ao muro concerne, há que rectificar a afirmação que se pode ler no despacho recorrido segundo a qual o recorrente disse na participação que o muro era meeiro. Com efeito, o que se diz na participação é coisa diferente, pois o que foi afirmado é que o recorrente é comproprietário do prédio a que pertence tal muro (aliás, quer o arguido, quer o cidadão a quem vendeu o prédio, réus na acção ordinária, o dizem também, como resulta das respectivas contestações, juntas aos autos).
E grande parte dos documentos juntos aos autos pelo recorrente destinaram-se a demonstrar: por um lado, que os elementos matriciais e prediais evidenciavam que, há várias dezenas de anos, o prédio do arguido confinava com a serventia de inquilinos, que dele não fazia parte; por outro, que as sucessivas e modificadas plantas apresentadas pelo arguido, na câmara, nas finanças e na conservatória, integravam no prédio deste a dita serventia, como forma de aumentar a respectiva área de construção e assim obter a necessária e desejada licença.
Por outro lado, a dada altura do inquérito, a respectiva Magistrada titular, tendo conhecimento da pendência de uma acção cível na qual eram autores-reconvindos, o recorrente e seus familiares, e réus, o arguido e cônjuge e o cidadão que lhe adquiriu o prédio e cônjuge, estes últimos sendo também reconvintes, determinou a junção aos autos, além do mais, de cópia dos respectivos articulados, resultando da respectiva análise que, quer na acção, quer na reconvenção, o que essencialmente se discute, é a titularidade do terreno identificado como serventia de inquilinos.
Finalmente, já no requerimento de abertura da instrução, o recorrente afirma que o arguido se arrogou de proprietário da serventia e do muro contíguos (art. 54º), serventia e muro que pertencem a um prédio inscrito na matriz predial urbana de Taveiro no artigo 671 (lapso manifesto de escrita ao ser referido o artigo 167), pertencente ao recorrente e familiares (art. 14º e 56º).
Assim, a questão da titularidade do terreno denominado serventia de inquilinos, objecto da acção cível, encontra-se umbilicalmente ligada à questão de ter o arguido declarado, contra a verdade por si conhecida ou não, que o seu prédio tinha a área aproximada de 208 m2, por dela também fazer parte o terreno da dita serventia, objecto da acção penal. Na verdade, se a área da serventia pertencer ao prédio do arguido, não haverá declaração de facto falso. Se não pertencer, por pertencer ao prédio de que o recorrente é comproprietário, ou por ser caminho público, poderá haver declaração de facto falso.
Desta forma, tendo sido de facto suscitada no processo a questão da titularidade do terreno onde se situa a serventia de inquilinos, ela surge, face ao que ficou dito, como questão prejudicial, relativamente ao imputado crime de falsificação de documento.
5. A prejudicialidade encontra-se regulada no art. 7º do C. Processo Penal que consagra o princípio da suficiência da acção penal.
Dispõe o nº 1 deste preceito que, o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
Por sua vez, estabelece o nº 2 do mesmo artigo que, quando, para conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.
O C. Processo Penal consagra assim, um sistema misto quanto à questão da prejudicialidade: a regra é ser a questão prejudicial resolvida no processo penal; quando o juiz entenda que tal questão não pode ser convenientemente julgada no processo penal, é devolvida a sua resolução ao tribunal competente (excepção).
A suspensão do processo penal para efeitos de conhecimento de questão prejudicial só pode ser requerida depois da acusação ou do requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, mas pode ser ordenada oficiosamente pelo tribunal (art. 7º, nº 3, do C. Processo Penal). Não pode pois a suspensão ser ordenada pelo Ministério Público no decurso do inquérito.
O prazo fixado para a suspensão pode ser prorrogado até um ano, e se findo o prazo, a questão prejudicial não tiver sido resolvida, é decidida no processo penal (art. 7º, nº 4, do C. Processo Penal).
Já se deixou dito que a titularidade do terreno onde se situa a serventia de inquilinos, configura uma questão prejudicial, relativamente ao crime de falsificação de documento pelo qual pretende o assistente ver pronunciado o arguido.
O assistente se entendesse que esta questão era prejudicial (e não é este, como vimos, o seu entendimento) fosse pela complexidade que revestia, fosse pela inadequação da tramitação penal à própria natureza da questão, podia ter requerido a suspensão do processo. Mas não o fez.
Por sua vez, também a Mma. Juíza a quo não considerou que o caso concreto impusesse o recurso à devolução prevista no nº 2 do art. 7º, do C. Processo Penal.
Todavia, o despacho recorrido, não assumiu propriamente a decisão da questão prejudicial, pois nele não se conclui que o terreno onde se situa a serventia pertence ao prédio do arguido, ou pertence ao prédio de que o assistente é comproprietário ou ainda, não pertence a nenhum deles, sendo coisa pública.
Na verdade, o que no despacho se pode ler é que no inquérito – e só neste pois nenhuma diligência de prova teve lugar na instrução – ficou por demonstrar a declaração de facto falsa, “assistindo-se, ao invés, à demonstração de factos que parecem secundar a versão do actual proprietário do art. 179 (e do imóvel sito nas traseiras) no processo de licenciamento da sua moradia (…)”.
E o tempo verbal do verbo parecer usado, tem um específico peso, face ao inequívoco sentido dubitativo que exprime, incompatível com o assumir de uma decisão, e ao qual não é certamente alheia a fase processual em que foi proferido o despacho recorrido.
Não se vê pois que tenha sido violado o art. 7º do C. Processo Penal.
6. Pretende o recorrente que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 120º, nº 2, d), do C. Processo Penal, já que a mesma se debruçou sobre um objecto processual distinto da questão que o despacho do Ministério Público colocava.
Para tanto afirma que, perante o despacho de arquivamento, que considerou indiciado o tipo objectivo mas não o dolo, no requerimento para abertura da instrução sublinhou a importância da prova indiciária referente ao elemento subjectivo do tipo, vindo depois o despacho de não pronúncia a concluir que também o tipo objectivo não estava verificado.
E assim, ocorreu uma alteração dos factos descritos no requerimento de instrução, alteração que deveria ter sido comunicada pelo Juiz de Instrução ao defensor e levado ao interrogatório do arguido, nos termos do art. 303º do C. Processo Penal, pois que na apreciação daquele requerimento estava o Juiz de Instrução sujeito ao princípio da vinculação temática.
Porque tal alteração não substancial, em obediência ao princípio da igualdade, deveria ser também comunicada ao assistente, este poderia ter então, e em cumprimento do princípio da verdade material, junto ou requerido se requisitasse, a prova documental relevante para permitir à Mma. Juíza de Instrução avaliar a incorrecta avaliação dos pressupostos probatórios da decisão por si tomada (como são exemplo as cópias ora juntas, de uma escritura de justificação e de dois assentos de óbito que, pelo seu teor, abalam o depoimento da testemunha Américo Pimentel, que foi fulcral para a formação da convicção do julgador).
Dispõe o art. 120º, nº 2, d), do C. Processo Penal que constitui nulidade pendente de arguição, a insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
A insuficiência do inquérito e da instrução constitui uma nulidade genérica que respeita unicamente à omissão de actos que a lei prescreve como obrigatórios (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 84).
Por sua vez, dispõe o art. 303º, nº 1, do C. Processo Penal que, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.
Assim, sabido que é que o objecto do processo, na instrução requerida pelo assistente, é constituído pelos factos concretos imputados ao arguido que constam do respectivo requerimento de abertura de tal fase processual, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar uma alteração não substancial dos factos descritos no dito requerimento, o juiz deve comunicá-los.
Esta comunicação visa fundamentalmente, assegurar as garantias de defesa do arguido, protegendo-o, através da vinculação temática do tribunal, dum arbitrário quanto inesperado alargamento do objecto do processo.
Assim, a identidade entre o objecto da acusação ou do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente por um lado, e o objecto da pronúncia por outro, podem não ser absolutamente coincidentes. A pronúncia pode divergir relativamente a factos que não constituam uma alteração substancial dos naqueles outros, mencionados.
E os factos que não constituem uma alteração substancial são, face ao disposto no art. 1º, f), do C. Processo Penal, os que não têm por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Mas o que a alteração não substancial dos factos pressupõe sempre é que, não obstante a sua verificação – e que pode decorrer até da subtracção de factos constantes da acusação ou do requerimento para abertura da instrução (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 177, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 759) – se mantenha a imputação de um crime ao arguido ou seja, que não obstante a tal alteração, se mantenha viável a prolação de despacho de pronúncia.
Como já referimos, enquanto acusação alternativa ou implícita, o requerimento para abertura da instrução do assistente deve conter a enumeração e descrição dos factos concretos imputados ao arguido, preenchedores do tipo pelo qual se pretende a sua pronúncia.
No pressuposto de que o assistente deu cumprimento a este ónus no requerimento apresentado, a decisão instrutória ora posta em crise, ao não considerar indiciados os factos descritos, integradores do tipo objectivo (bem com do tipo subjectivo) do crime de falsificação de documento, não deu origem a uma alteração não substancial de tais factos, na medida em que nenhuma realidade jurídico-penalmente relevante subsistiu, para além deles.
Não tendo ocorrido a pretendida alteração não substancial, não havia lugar ao cumprimento do disposto no art. 303º, nº 1, do C. Processo Penal pelo que, nenhum acto obrigatório na fase de instrução foi omitido.
Não se verifica pois, a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, d), do C. Processo Penal.
7. Vejamos agora se é possível, como pretende o assistente, a pronúncia do arguido, como autor de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal.
Como já referimos, nas fases preliminares do processo penal – inquérito e instrução – não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas apenas indícios, sinais, de que um crime foi eventualmente praticado por um determinado agente.
Mas se à natureza indiciária da prova, nestas fases, está associada uma menor exigência no juízo a formular ou seja, se apenas se exige um juízo de mera probabilidade, o mesmo terá sempre que ser objectivo e fundado nas provas existentes nos autos. É da apreciação crítica destas provas que há-de resultar a convicção sobre a maior ou menor probabilidade de ter o arguido praticado os factos que lhe são imputados (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 178 e ss.).
Nos autos, apenas foi produzida prova na fase do inquérito, pois nenhuma diligência foi requerida ou oficiosamente determinada na fase da instrução.
No inquérito foi produzida prova por declarações e prova documental.
Passemos então à sua análise.
7.1. Relativamente à prova documental, temos a considerar a seguinte:
a) Fls. 53 a 59 – Fotocópia da descrição nº …..
Deste documento consta que:
- Em…, foi feito um averbamento de alteração, passando o prédio urbano, omisso na matriz, a estar assim descrito: Área Total de 170 e descoberta de 50, composto de casa de habitação, de rés-do-chão 80 m2, dependências 40 m2, e pátio 50 m2, confrontando do Norte com…., do Sul com serventia de inquilinos, do Nascente com rua pública e do Poente com….;
- Em 8 de Setembro de 2003, foi feito um averbamento de alteração, passando o prédio, já constante como…, a estar assim descrito: Área coberta de 120 e descoberta de 88, composto de casa de habitação, de rés-do-chão 80 m2, dependências 40 m2 e pátio 88 m2, confrontando do Norte com…., do Sul com serventia de inquilinos, do Nascente com rua pública e do Poente com ….(o nome deste confinante foi rectificado, );
- Em …, o direito de propriedade sobre o prédio descrito, foi inscrito a favor de …, tendo como causa a usucapião;
- Em …, o direito de propriedade sobre o prédio descrito, foi inscrito a favor do arguido …, tendo como causa a compra;
- Em… , o direito de propriedade sobre o prédio descrito, foi inscrito a favor …, tendo com causa a compra.
b) Fls. 56 – Requerimento de informação prévia dirigido ao….
Deste documento consta que:
- Deu entrada nos serviços municipais em…, nele figura como requerente o arguido, que o assinou;
- Através dele pretendia o requerente que fosse facultada aprovação do estudo prévio (ante-projecto) acerca da obra de construção de uma moradia unifamiliar que pretende executar, em conformidade com os documentos que anexa, e que se situa na….;
- O requerente juntou memória descritiva e justificativa, planta de localização à escala de 1/5000, planta de zonamento à escala de 1/25000, planta de implantação à escala de 1/200, definindo o alinhamento e perímetro dos edifícios, cérceas e números de pisos acima e abaixo da cota de soleira, área de construção e volumetria do edifício e identificação do uso a que se destinam as edificações;
- O requerente declarou que o terreno em causa tinha a área aproximada de 208 m2.
c) Fls. 57 – Planta de implantação e perfil à escala de 1/200.
Trata-se de uma planta referenciada no documento anterior e juntamente com ele apresentada na Câmara Municipal, de cuja visualização se extraem as seguintes considerações:
- A área desenhada a traço grosso, cheia a linhas finas paralelas, e em cujo interior se lê a palavra “Requerente”, tem, atenta a escala indicada, a área de cerca de [(9,44 x 10,70) + (1,18 x 7,38)] = 109,71 m2;
- Entre a área acabada de referir e a …mostra-se desenhada a traço mais fino, uma área sem designação específica, com uma área de cerca (agora com menor rigor, dada a dificuldade de leitura dos elementos numéricos e a sua irregularidade) de 35,65 m2;
- A Sul das duas áreas anteriormente referidas mostra-se desenhada, a traço fino e a tracejado, uma denominada “serventia de inquilinos”, com a área de cerca de (3,70 x 14,6) 54,02 m2.
d) Fls. 58 – Informação técnica….., que recaiu sobre o requerimento de informação prévia.
Trata-se da análise efectuada pelos serviços técnicos municipais à requerida informação prévia, de cuja leitura resultam as seguintes conclusões:
- O técnico que apreciou o pedido considerou que a área bruta de construção não respeitava a capacidade construtiva do terreno, tendo o cálculo sido efectuado partindo do pressuposto de que a serventia de inquilinos fazia parte do prédio, tal como se mostra delimitado nas plantas apresentadas;
- O mesmo técnico considerou que o pressuposto de que partiu para o dito cálculo deveria ser confirmado ou esclarecido em fase posterior, através de certidão da Conservatória do Registo Predial;
- E considerou ainda que existia incompatibilidade entre a planta de implantação e a planta topográfica de localização, a ser esclarecida.
e) Fls. 59 (também a fls. 191) – Planta topográfica.
Trata-se de uma planta de localização do prédio no agregado urbano onde se integra.
Nela, o prédio do arguido encontra-se identificado por linhas paralelas e a serventia colorida a azul.
Comparando-a com a planta de implantação, referida na antecedente alínea c), deve reconhecer-se alguma compatibilidade entre ambas, se bem que na planta topográfica, e ao contrário da planta de implantação, a zona da serventia não chegue até à Rua Lima.
f) Fls. 61 (também a fls. 149) – Requerimento de rectificação apresentado nas finanças.
Trata-se de um requerimento assinado pelo arguido e no qual figura como requerente, com entrada a …, e no qual é requerida a rectificação da área do artigo 179 urbano da freguesia de Taveiro, de 170 m2 para 208 m2.
Como fundamento para a rectificação, é invocada a realização de um levantamento topográfico rigoroso do referido artigo matricial, do qual resultou que a área real total do prédio é a de 208 m2, ocorrendo a alteração na área descoberta (pátio) que passa de 50 m2 para 88 m2.
g) Fls. 62 (também a fls. 150 e 194) – Planta de implantação e perfil entregue nas finanças acompanhando o requerimento de rectificação, referido na alínea anterior.
Esta planta acompanhou o referido requerimento precisamente porque se mostra certificada pelas finanças na cópia que constitui fls. 150.
Procedendo à sua visualização, conclui-se que:
- Trata-se da mesma planta de implantação e perfil apresentada pelo arguido na Câmara Municipal de Coimbra, quando requereu a informação prévia, referida na alínea c) que antecede, como resulta do número de projecto, escala, número de peça desenhada e data, que de ambas constam;
- Porém, como diferença, apresenta o documento em análise toda a área que considera como integrando o …, delimitada a traço grosso e a tracejado grosso, sendo que dentro do limite do tracejado grosso se encontra a zona denominada serventia de inquilinos, e ainda o que é, aparentemente, um muro;
- E contém ainda, de forma descriminada, as seguintes áreas: área coberta 80 m, dependências 40 m, área de pátio 88 m, no total de 208 m.
h) Fls. 60 – Informação dos serviços sobre a requerida alteração de área e despacho de deferimento.
Trata-se de uma informação prestada por uma técnica do serviço de finanças, limitando-se a dar parecer favorável ao pretendido pelo arguido, com base na planta junta, e do respectivo despacho tabelar de deferimento, este datado de 9 de Maio de 2001.
i) Fls. 73 a 74 (também a fls. 215 e v.) – Requerimento de apresentação entregue na….
Trata-se de um requerimento apresentado por Advogada em 22 de Março de 2001, para rectificação da área descoberta relativa ao pátio do prédio da descrição nº 1309 de Taveiro, que passa de 50 m2 para 88 m2 e, consequentemente, da área total, devendo-se a divergência a erro de medição.
O requerimento foi acompanhado do apresentado na 1… em …e planta topográfica, e ainda de certidão de roer matricial da mesma repartição e fotocópia dos bilhetes de identidade dos confinantes.
j) Fls. 75 (também a fls. 90 e 217) – Planta de implantação e perfil entregue na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, que acompanhou o requerimento de apresentação referido na antecedente alínea.
Pela sua visualização conclui-se que se trata de cópia, integral, da planta apresentada na 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, em 1 de Fevereiro de 2001, referida na alínea g) que antecede.
l) Fls. 76 (também a fls. 92) – Planta do existente.
Trata-se de planta idêntica à planta de implantação e perfil apresentada quer nas finanças, quer na conservatória, referidas nas alíneas g) e j) que antecedem, mas com a diferença de representar toda a área do prédio do arguido, mas agora sem pormenores, limitando-se a assinalar a serventia de inquilinos, e a mencionado a área total de 208 m2.
Também aqui, considerando a escala em que está feita e os elementos que dela constam, existe alguma dificuldade em obter a área total assinalada que, em nosso entender, apenas se aproxima dos 200 m2.
Aparentemente, esta planta terá acompanhado o pedido de apreciação do aditamento ao projecto, apresentado pelo arguido em 10 de Janeiro de 2002, na câmara Municipal de Coimbra (referido no ponto 4 da informação da mesma câmara de fls. 200 e ss.
m) Fls. 77 (também a fls. 195) – Alvará de licença de construção.
Trata-se do alvará nº 792/03, emitido pelo …em 3 de Dezembro de 2003, em nome de… , licenciando uma construção no prédio situado em Taveiro, descrito na …
n) Fls. 64 a 72 – Escritura pública de habilitação e partilha.
Dela resulta, além do mais, que do prédio urbano, composto de edifício destinado à …, no seu todo a confrontar do Norte com …e outro, Sul com herdeiros de…., Nascente e Poente com rua, no todo inscrito na matriz sob o artigo…, descrito na …foi adjudicada, na partilha, ao recorrente e familiares (1/6 indiviso a cada um).
o) Fls. 40 a 41 – Informação da….
Trata-se de uma informação prestada a solicitação do Ministério Público no âmbito do inquérito, esclarecendo dúvidas suscitadas pela informação técnica do…, que recaiu sobre o requerimento de informação prévia, informação técnica referida na alínea d) que antecede.
Da sua análise resulta que:
- A capacidade construtiva do terreno corresponde à área bruta de construção calculada resultante da aplicação do índice de utilização à totalidade do terreno delimitado nas plantas, nas quais se encontrava incluída a designada serventia de inquilinos;
- No pedido de informação prévia o cálculo foi realizado apenas no pressuposto de que a designada serventia de inquilinos fazia parte integrante do terreno, mas no pedido de licenciamento, com a apresentação da certidão da Conservatória do Registo Predial, verificou-se que a área do terreno, tal como constava da planta de implantação aprovada, que incluía a serventia, confirmava a que constava da certidão, 208 m2;
- Com base na planta de implantação aprovada, subscrita por técnico habilitado, verifica-se que a área do prédio, com a serventia, é de 208 m2, e sem a serventia é de 152 m2.
p) Fls. 87 – Documento fiscal relativo ao artigo 179 de Taveiro.
Trata-se de documento elaborado para efeitos fiscais, do qual consta uma alteração de nome do titular do prédio situado em Taveiro, inscrito no artigo 179, que passou de E… para I... , alteração datada de 1935, e onde o referido prédio tem seguinte descrição: casa de habitação, rés-do-chão e porta. Superfície coberta 80 m2, dependências 40 m2, pátio 50 m2, confronta do Nascente com rua pública, Sul com serventia de inquilinos, Poente com Manuel Parolo Cristino, Norte com o proprietário.
q) Fls. 91 – Planta de implantação entregue na Câmara Municipal de Coimbra.
Trata-se de planta igual à planta de implantação e perfil entregue na 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, e na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, referidas nas alíneas g) e j) que antecede, respectivamente.
r) Fls. 211 a 213 – Escritura pública de compra e venda.
Trata-se da escritura formalizadora do contrato de compra e venda celebrado entre o arguido e sua mulher, como vendedores, e D... , J… como comprador, em 2 de Setembro de 2003, tendo por objecto o prédio urbano composto de lote de terreno para construção, sito no lugar e freguesia de Taveiro, Coimbra, correspondente à totalidade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 1309, da referida freguesia, omisso na matriz mas com participação feita, anteriormente inscrito na mesmo matriz no artigo 179.
s) Fls. 282 v. e 283 – Requerimento de rectificação apresentado nas finanças por D... e levantamento topográfico que o acompanhou.
Trata-se de um requerimento assinado por J... , novo titular do prédio, e no qual figura como requerente, com entrada a 16 de Outubro de 2003 na 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, e no qual é requerida a rectificação da área do prédio descrito no nº 1309 da Conservatória do Registo Predial, de 208 m2 para 204 m2, devido a erro de pormenor, sendo as confrontações actuais do prédio, Norte B... , Sul serventia de inquilinos, Nascente Rua Lima e Poente herdeiros de K... .
O levantamento topográfico junto tem a particularidade de, contrariamente às demais plantas de implantação, não incluir na área do prédio a designada serventia de inquilinos, mas passando a incluir uma outra área que, naquelas plantas de implantação, se situava a Norte do limite por elas traçado situada a Norte.
7.2. Relativamente à prova por declarações, temos a considerar a seguinte:
a) MH.
Engenheiro em funções na Câmara Municipal e que analisou o requerimento de informação prévia apresentado pelo arguido, afirmou em síntese, que propôs o indeferimento porque a proposta de ocupação não respeitava a capacidade construtiva do terreno determinada no PDM, e que existiam dúvidas quanto a uma serventia de inquilinos fazer ou não parte do terreno, dúvida que poderia ser esclarecida através de certidão da Conservatória do Registo Predial.
b) Recorrente.
Afirmou em síntese, que tendo tido conhecimento de que um terreno contíguo a um prédio urbano seu estava à venda para construção o que estranhou dada a exiguidade do mesmo, dirigiu-se à câmara municipal onde consultou o processo, que depois se deslocou às finanças onde teve conhecimento do processo de rectificação da área, só tendo tido conhecimento do sucedido na conservatória do registo predial em 2004, que da análise dos documentos que obteve resulta a prática de actos ilícitos, pois o arguido tinha perfeita consciência de que a área do terreno que havia comprado e que estava agora à venda era a de 170 m2 e que tal terreno confrontava com uma serventia de inquilinos, e ao ver-se confrontado com a necessidade de aumentar tal área face ao decidido pela câmara municipal, requereu a alteração na repartição de finanças para 208 m2, fazendo constar das plantas que apresentou como parte integrante do seu prédio a dita serventia e um muro, que lhe não pertencem, bem sabendo que tal não correspondia à verdade, e depois de obtida a rectificação da área, apresentou plantas na câmara em que o terreno tinha 208 m2.
c) J.
Advogada do arguido, invocou o sigilo profissional e não prestou depoimento.
d) K.
Professor universitário e cunhado do recorrente, afirmou em síntese, que a sua família possui uma propriedade em Taveiro, que confina com uma serventia de inquilinos, com um prédio de um tal C… e com a Rua da Lima, que em Agosto de 2003 soube que o C…queria vender o seu prédio a um tal J… e que este ainda queria comprar um outro prédio contíguo à referida serventia inscrito na matriz no artigo 179, que o J… conversou com o recorrente tendo sido informado da existência da serventia e de que ela pertencia a todas as fracções ali existentes, que nas averiguações que fez na câmara constatou que a área do artigo 179 foi acrescentada em mais 38 m2, precisamente a necessária para que fosse aprovado o projecto, que todos os actos que levaram ao aumento da área foram praticados pelo arguido antes de vender o terreno ao J… , que este agora ocupa a serventia com materiais de construção como se fosse sua, estando a família do depoente lesada pois pode ficar impedida de usar uma passagem a que tinha direito, e que de acordo com a planta de implantação apresentada, o arguido não só colocava a serventia como fazendo parte do seu terreno como também se apoderava de um muro existente ao lado daquela, construído há vários anos pela família do depoente.
e) O.
Inquilino do recorrente, afirmou em síntese, que existe uma serventia de inquilinos para o terreno respectivo (ou seja, de que é inquilino) e que nada sabe quanto ao muro.
f) D.
Funcionária da 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, afirmou em síntese, que recebeu um pedido de rectificação de área, que reconheceu como sendo o de fls. 15 (e 61) dos autos, no qual o arguido solicitava a alteração da área do pátio de um prédio situado em Taveiro, de 50 m2 para 88 m2, tendo junto um levantamento topográfico de onde constava tal área, razão pela qual, dado trata-se de logradouro e a área ser pequena, deu parecer positivo, mas que a decisão final foi do seu superior hierárquico.
g) I.
Conservador da … afirmou em síntese, que apenas exerce funções desde 16 de Dezembro de 2003, tendo tido conhecimento dos factos através de um pedido de rectificação de área do prédio em questão solicitado pelo recorrente, mas que nada mais pode esclarecer, pois todo o processo correu antes na única conservatória e actual…..
h) RA.
….afirmou em síntese, que apenas fez os dois últimos averbamentos de actualização relativamente à composição do prédio em questão, e a inscrição a favor do actual proprietário, estando os documentos que analisou em condições normais.
i) Arguido.
Exerceu o direito ao silêncio.
j) N.
Engenheiro autor do levantamento topográfico do terreno do arguido, afirmou em síntese, que quando executou o levantamento se encontravam no local se encontravam o arguido e o indivíduo que lhe vendera o terreno, tendo sido eles quem indicaram os limites deste, e que mais tarde as medidas foram rectificadas nas finanças e na conservatória.
l) J.
Anterior dono do prédio inscrito no artigo 179, que vendeu ao arguido, afirmou em síntese, ter vendido o prédio há cerca de quinze anos, e que então o mesmo tinha uma casa em ruínas, da qual fazia parte um pátio e uma serventia com a largura de cerca de 2,5 m, que nada sabe sobre a rectificação da área do prédio que aliás não recorda, e não se encontrava presente quando foi feito o levantamento topográfico.
Ouvido novamente, em momento posterior, afirmou em síntese, que vendeu o prédio ao arguido há vários anos embota tenha feito a escritura muito depois, que quando fez o negócio o prédio era composto por uma casa em ruínas, um pátio e uma serventia de passar e andar, que a casa pertenceu aos avós de sua mulher e depois, a uma tia e madrinha desta, que dela a herdou, que a serventia era parte integrante do prédio e que no tempo dos antecessores de sua mulher nela apenas passava o Cristino, no tempo da vindima, para uma casa que tinha ao fundo do prédio, que na serventia, para onde deitava a porta e balcões da casa, a madrinha da mulher punha a secar milho e arroz, que a serventia não pertence ao assistente e familiares os quais, no tempo dos antecessores da sua mulher, nunca a utilizaram, que quando vendeu o prédio ao arguido não indicou as estremas por desnecessidade pois havia marcos e explicou-lhe o que sempre ouvira à madrinha da mulher ou seja, que por ela apenas passava o K… na vindima, que este faleceu há alguns anos sendo a casa vendida ao J... , e que o muro que existe à frente da serventia e divide os prédios foi construído pelo pai do assistente.
m) M
Tendo sido criado no prédio do assistente e família, onde viveu até aos treze anos de idade (nasceu a 12/08/1939), e deslocando-se ao local com alguma frequência aos fins-de-semana depois de ter deixado de aí residir, afirmou em síntese, que conhece bem quer o prédio onde viveu, quer o prédio vizinho, hoje do…., que o prédio deste pertenceu ao … e tinha então uma casa térrea e uma eira, que a porta principal da casa dava para uma serventia por onde passava o carro de bois, para a adega que possuía nas traseira, o … ou …, que esta faixa de terreno a que chama serventia, à frente da entrada da casa, tinha cerca de 3 m de largura e era apenas usada pelo … e pelo …., nunca tendo visto os familiares do assistente ou pessoas ao seu serviço a usá-la, que o muro foi construído quando a fábrica instalada no prédio do assistente e familiares começou a laborar, tendo-o separado da serventia, que na casa do Flores passou a viver uma filha que era madrinha do …, e que pelo que sempre observou considera que a serventia sempre pertenceu ao prédio do …, hoje do …, tendo o … direito de passagem de carro.
n) G.
Vivendo perto da …, e tendo trabalhado cerca de um ano na fábrica instalada no prédio do assistente e familiares, afirmou em síntese, que o prédio pertencente ao … foi, em tempos, do … que aí tinha uma casa térrea e uma eira, que em frente à entrada principal da casa havia uma faixa de terreno chamada serventia usada pelo … e pelo …, também conhecido por C…, este para carga e descarga e para passar com o carro de bois com uvas, para a adega que tinha nas traseira da casa do …, os degraus da casa do … ocupavam parte da serventia e esta fazia e faz estrema com o muro da fábrica de papel, que nunca viu a serventia ser usada pelos familiares do assistente ou por pessoas ao seu serviço, não havendo por ela passagem para a fábrica, que o …. comprou o prédio onde estava a adega do …, e que pelo que sempre pode ver, a faixa de terreno a que chamam serventia sempre pertenceu ao prédio do … , hoje do …, tendo o … direito a nela carregar e descarregar e de passar com o carro.
o) F.
….e conhecedor dos prédios do assistente e do …. há cerca de quarenta anos, afirmou em síntese, que o seu sogro teve uma adega nas traseiras do prédio que era do Flores, que neste prédio existia uma casa com dependências e uma eira, que a casa tinha uma entrada para a Rua da Lima mas que a entrada principal, com balcão, se situava na parte lateral que dava para uma serventia de inquilinos, que a serventia era utilizada com mais frequência pelo pai do seu sogro, depois por este, e desde há cerca de vinte anos pelo depoente, que depois da sua família era a família do … quem mais utilizava a serventia, que por vezes, e para fazerem a manutenção da balança da fábrica de papel a serventia era usada pelos homens da manutenção, que o … também é dono da adega que pertenceu ao seu sogro por lha ter sido vendida pelos herdeiros, e que entende que a faixa de terreno designada por serventia era de uso em primeiro lugar da família … , depois da família …, e mais raramente da família do assistente, mas não pertencia a nenhuma delas.
p) M.
…. conhecedora dos prédios do assistente e do…, afirmou em síntese, que teve uma adega, herdada de seu sogro, que recentemente vendeu ao Eduardo, situada ao fundo de um prédio que pertenceu ao … e agora é também do Eduardo, que a casa do E… dava para uma serventia de inquilinos que a este pertencia bem como à depoente e marido, por ele usada bem como pelo marido da depoente para aceder à referida adega, serventia que sempre teve a largura actual, que nunca a família do assistente fez uso da serventia, que já depois de funcionar a fábrica no prédio do assistente e familiares, foi construído um muro rente á serventia mas que não chegava à estrada, e que depois nesse muro foram feitas duas aberturas para a serventia, que depois foram tapadas com lata e tábuas, face à reclamação apresentada pelo marido da depoente.
q) T.
Tendo trabalhado na fábrica instalada no prédio do assistente e familiares, cerca de um ano, na década de cinquenta do século passado, afirmou em síntese, que entre o muro da fábrica de papel e o prédio que hoje é do …existe uma faixa de terreno com a largura de um carro que sempre foi utilizada para acesso a uma adega do…, situada ao fundo da passagem, que o prédio do … pertenceu ao … que vivia numa casa já demolida cuja entrada e degraus davam para a passagem, e que não sabe quem mais usava a passagem e a quem pertence o terreno respectivo.
r) L.
Residente há cerca de 22 anos em .., altura em que foi trabalhar para a fábrica instalada no prédio do assistente e familiares, afirmou em síntese, que já nessa altura existia um portão à entrada do terreno que dava acesso a uma garagem do … e igualmente à fábrica, que a serventia já existe há muitos anos e dá acesso à fábrica e à referida garagem mas que não pode afirmar quem é o proprietário do terreno onde ela se situa, e que o arguido disse, quando comprou o prédio, que o terreno da serventia lhe pertencia pois já pertencia ao anterior dono.
s) H.
Residente em …e tendo trabalhado mais de 30 anos na fábrica instalada no prédio do assistente e familiares (nasceu a 09/05/1944) afirmou em síntese, que a serventia está separada do terreno da fábrica por um muro que desconhece quem construiu, que a serventia dava acesso à garagem do…, que não sabe se o terreno onde se situa a serventia pertence à fábrica ou ao …mas em sua opinião, a este pertence.
8. Revendo e conjugando criticamente os meios de prova existentes nos autos que acabam de ser sintetizados, entendemos que deles resulta suficientemente indiciado que o arguido comprou a …. um prédio urbano, situado em…, então inscrito no artigo 179 da respectiva matriz e descrito na competente conservatória do…., tendo inscrito o respectivo direito de propriedade a seu favor, na mesma conservatória em 23 de Fevereiro de 2001.
Que este prédio urbano se encontrava descrito, quer na matriz, quer na conservatória, como casa de habitação, de rés-do-chão, com 80 m2, dependências com 40 m2 e pátio com 50 m2, confrontando do norte com…, do sul com serventia de inquilinos, do nascente com rua pública e do poente com …, e que os mesmos (excepção feita a B... ) elementos descritivos constavam já de um documento de 1935, elaborado para efeitos fiscais.
Que em Outubro de 2000 o arguido apresentou na …um pedido de informação prévia, relativo à viabilidade de construção uma moradia unifamiliar no dito prédio, indicando como área aproximada deste a de 208 m2, e juntando planta de implantação do mesmo prédio, nela constando devidamente assinalada uma faixa de terreno denominada “serventia de inquilinos”, mas não sendo claro que esta faixa integre o prédio.
Que tendo a informação prévia merecido parecer negativo da autarquia, porque a área bruta da construção proposta não respeitava a capacidade construtiva do prédio e porque no cálculo efectuado se partiu do princípio de que a “serventia” fazia parte integrante do prédio, questão que deveria ser posteriormente esclarecida com certidão da competente conservatória, o arguido requereu nas finanças, em Fevereiro de 2001, invocando nova e rigorosa medição, a rectificação da área do prédio, pretendendo que a mesma passasse a ser a de 208 m2, por aumento da área do pátio, de 50 m2 para 88 m2, e juntando planta de implantação do prédio, igual à apresentada anteriormente na câmara municipal, mas onde os limites assinalados para o prédio passam a compreender, de forma inequívoca, a faixa assinalada como “servidão de inquilinos”.
Que em Março de 2001 o arguido apresentou idêntico pedido de rectificação de área do prédio, agora na conservatória do registo predial, acompanhado de cópia do apresentado nas finanças bem como da referida planta de implantação.
E que o arguido obteve deferimento nas pretensões apresentadas nas finanças e na conservatória, passando o prédio em questão a ser descrito nestas, como tendo a área total de 208 m2, sendo a do pátio a de 88 m2, vindo depois a apresentar a alteração de área na câmara municipal assim obtendo a pretendida licença de construção, mas sendo já o respectivo alvará emitido em nome de terceiro (…) adquirente do prédio.
Assim, é evidente que o arguido, quando, primeiro na câmara municipal e depois, nas finanças e na conservatória do registo predial, declara em documentos que o seu prédio tinha a área de 208 m2, e apresenta plantas onde o prédio nelas delimitado tem, pelo menos de forma aproximada, a referida área, faz declarações que não têm correspondência com o que então constava das descrições matriciais e prediais existentes naquelas repartições públicas, nas quais a área do prédio constava como sendo a de 170 m2.
E se a área de 170 m2 que constava então das referidas descrições era, efectivamente, a área real do prédio, o arguido ao declarar que tal área era antes a de 208 m2, terá declarado um facto falso juridicamente relevante.
Por isso, a questão fulcral nos autos passou a ser também a de saber se está ou não indiciado aquele pressuposto ou seja, se o prédio do arguido tinha efectivamente 170 m2, como constava das descrições ou, pelo contrário, tinha 208 m2, como foi declarado pelo arguido, repetidamente, nas circunstâncias mencionadas. E esta questão da área do prédio se prende aquela outra de saber se a designada “serventia de inquilinos” faz parte integrante dele ou não, já que o aumento de área declarado pelo arguido, foi obtido à custa desta “serventia” (cremos que a questão do muro se torna irrelevante, face à área que lhe corresponde e às plantas apresentadas).
A designada “serventia de inquilinos” será, de acordo com o direito civil vigente, e face aos meios de prova produzidos, uma servidão predial no caso, uma servidão de passagem (para simplificar, diremos desde já que nenhuns elementos de facto foram trazidos aos autos que permitam considerá-la como coisa pública).
Como se sabe, a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (art. 1543º, do C. Civil).
A servidão é, antes de mais um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade do prédio com ela onerado, mas apenas isso. O gozo efectivo do prédio onerado por parte do respectivo proprietário fica limitado, na exacta medida em que não pode prejudicar o exercício da servidão mas tal não significa que, tratando-se de servidão de passagem, o titular desta se torne proprietário da faixa de terreno por onde a passagem se efectua.
Naturalmente que, se fosse conhecido o título constitutivo da servidão, dissipadas estariam, em princípio, quaisquer dúvidas sobre a identidade do prédio serviente e do, ou dos prédios dominantes. Sucede que nenhuma referência é feita nos autos a tal título.
Mas, por outro lado, não podemos concordar, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, com a afirmação do recorrente, de que fonte certa e fiável para decidir tal questão é a certidão da conservatória do registo predial. É que, como é entendimento jurisprudencial uniforme, a presunção juris tantum do art. 7º do C. do Registo Predial apenas abrange a existência do direito e a sua pertença ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, não beneficiando de tal presunção, os elementos descritivos que constam do registo, v.g. áreas e confrontações (Acs. do STJ de 23/09/2004, CJ, S, XII, III, 23, de 17/06/1997, CJ, S, V, II, 126, e de 11/05/1995, CJ, S, III, II, 75). Tal certidão, embora relevante, não tem um especial valor probatório quanto aos elementos descritivos do prédio.
Assim, atendendo apenas à prova documental, diríamos que a circunstância de a área declarada do prédio e suas confrontações constarem dos elementos documentais fiscais sem alteração desde há cerca de setenta anos, e constarem também da descrição constante da conservatória do registo predial, desde Outubro de 1999 – em especial, a área de 170 m2 e a confrontação sul com a dita “serventia de inquilinos”, confrontação esta que, como prova de primeira aparência, nos conduziria à conclusão de que, se o prédio confronta com a serventia é porque esta não faz parte dele – nos apontam para que a área real do prédio seja a de 170 m2, nele não se incluindo portanto, a dita serventia sem no entanto se esquecer a forma como, ontem mais do que hoje, se levavam estes elementos prediais descritivos à documentação fiscal e predial (mera declaração dos interessados, sem controle eficaz das entidades os recebiam).
E se assim fosse, as sucessivas declarações produzidas pelo arguido tinham por objecto um facto falso, um facto sem correspondência com a realidade.
Porém, há mais prova nos autos para além da documental, pois foi produzida abundante prova por declarações no inquérito, que tem também que ser considerada.
E esta prova por declarações, considerada no seu todo, abala seriamente a prova documental e consequentemente, a conclusão que antecede. Vejamos.
Pode afirmar-se que, face às declarações prestadas, é tendencialmente uniforme a afirmação de que a faixa de terreno designada por “serventia de inquilinos” era usada pelos antecessores do arguido (a família Flores) e pelos membros da família C… . Assim o afirmaram as testemunhas …..
Já não é tendencialmente uniforme a prova testemunhal no que concerne ao uso da “serventia de inquilinos” pelos antecessores do assistente. Assim, se as testemunhas …. afirmaram tal uso, já as testemunhas … afirmaram o contrário.
No entanto, porque o uso da servidão apenas pode relevar para determinar o titular do respectivo direito real menor e não, para determinar o proprietário do terreno sobre o qual aquela se exerce, é irrelevante a apontada divergência.
No que concerne à titularidade da faixa de terreno que vem sendo designada por “serventia de inquilinos”, as testemunhas … afirmaram que tal faixa de terreno sempre pertenceu ao prédio do I… ou seja, ao artigo 179 de Taveiro.
Já a testemunha …afirmou que a faixa de terreno não pertence a nenhum dos titulares da servidão portanto, não pertence nem ao prédio do arguido, nem ao prédio do assistente e familiares, nem ao prédio que era do C… , enquanto a testemunha L... afirmou uma coisa completamente diferente, que a dita faixa pertence ao prédio que era do C… .
Já do depoimento da testemunha…, não obstante as dificuldades que para um leigo certamente existirão em distinguir o direito de servidão do direito de propriedade do terreno por onde ela se exerce, parece depreender-se, face ao episódio relatado da abertura de duas entradas no muro e oposição do marido da depoente, que a faixa de terreno em questão não integrava o prédio do assistente e familiares.
E assim, começando por dizer-se não ser exacta a afirmação de que o arguido nunca se arrogou a propriedade da faixa de terreno designada por “serventia de inquilinos” – outro sentido não pode ter a apresentação de plantas de implantação nas quais tal faixa é representada, de forma clara, como integrando o prédio de que diz ser proprietário e no qual pretende construir – entendemos que os indícios fornecidos pela prova documental, e que apontam no sentido de ter sido feito constar de documento facto falso juridicamente relevante, se mostram esbatidos e enfraquecidos pela prova testemunhal (parte dela) que aponta no sentido inverso.
Desta forma, tornam-se tais indícios inconsistentes porque não concordantes, não permitindo em consequência, concluir por uma razoável probabilidade de, em julgamento, vir o arguido a ser condenado pelo imputado crime de falsificação de documento.
9. Face ao tudo o que antecede, considerando a análise globalmente efectuada dos meios de prova existentes nos autos, entendemos não ser possível concluir pela existência de indícios suficientes de estarem verificados os pressupostos de facto de que depende o preenchimento pelo arguido do tipo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d) e 3, do C. Penal.
III. DECISÃO.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente o despacho recorrido.

Coimbra, 30 de Abril de 2008