Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3347/23.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: INFRAÇÕES DISCIPLINARES LABORAIS DE DIREITO PRIVADO
AMNISTIA
Data do Acordão: 09/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 6.º DA LEI N.º 38-A/2023, DE 02-08
Sumário: As infrações disciplinares laborais de direito privado não se encontram abrangidas pela amnistia prevista no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 (lei da amnistia aprovada aquando das “JMJ”).

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam[1] na Secção Social (6ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA, residente em ..., ...

  intentou a presente ação declarativa de processo comum contra

  Banco 1..., SA, com sede no ...

   alegando, em síntese, que a Ré lhe aplicou uma sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição pelo período de 5 dias, por alegada violação do segredo profissional e da proteção de dados, no entanto, o Autor não prestou qualquer informação relativa a qualquer dado do processo, limitou-se a dizer que o empréstimo “estava aprovado”; não praticou uma infração disciplinar e não violou nenhum dever, impondo-se a anulação ou revogação da decisão disciplinar.

Termina, pedindo que:

“Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V.ª Ex.ª, deverá ser julgada procedente a presente acção, por provada e, consequentemente, anulada ou revogada a sanção disciplinar de suspensão de trabalho por cinco (5) dias com perda de retribuição aplicada ao Autor e ser o Réu condenado a:

- Restituir ao Autor o respectivo montante indevidamente descontado a título de sanção disciplinar, acrescido dos juros legais desde a data da indevida retenção da retribuição e até integral pagamento;

- Pagar ao Autor a quantia de € 5.001,00, a título de indemnização, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, deve a Ré ser citada para fazer juntar o processo disciplinar e responder, querendo, no prazo e sob cominações legais, seguindo-se os ulteriores termos até final.

                                                                       *

Teve lugar a audiência de partes e na qual não foi obtido acordo.   

                                                             *         

Foi, depois, proferido despacho (fls. 212) com o seguinte dispositivo:

“Assim sendo, julgo amnistiadas as infrações disciplinares em causa nos presentes autos e, em consequência julgar extinto o procedimento disciplinar, ficando sem efeito a sanção disciplinar aplicada no âmbito do mesmo, devendo a ré devolver ao autor as quantias que reteve na sequência do mesmo.

                                                            ***

Face à decisão que julga amnistiadas as infrações disciplinares em causa, julgo extintos os presentes autos, bem como prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas nos mesmos, incluindo o pedido de condenação em danos não patrimoniais.”

                                                             *

A Ré, notificada desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

(…).

                                                             *

O Autor apresentou resposta concluindo que:

(…).       

                                                             *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Questões a decidir

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do CPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.

Assim sendo, cumpre conhecer as seguintes questões:

1ª – Se a infração disciplinar imputada ao Autor não devia ter sido amnistiada.

2ª – Se não devia ter sido determinada a devolução ao Autor, por parte da Ré, das quantias retidas por esta na sequência do procedimento disciplinar.

                                                             *

III – Fundamentação

a-) Factos Provados:

Os constantes do relatório que antecede e ainda:

1.  A Ré aplicou ao Autor a sanção disciplinar de suspensão do trabalho por cinco dias com perda de retribuição.

2. A infração disciplinar imputada ao Autor respeita a factos ocorridos em fevereiro/março de 2022.

*

                                                             *

b) - Discussão

Apreciando as questões suscitadas pela Ré recorrente:

1ª questão

Se a infração disciplinar imputada ao Autor não devia ter sido amnistiada.

A Ré recorrente alega que a lei da amnistia traduz-se numa renúncia parcial e momentânea do estado ao seu poder de punir, o que, como tal, não poderá consubstanciar-se numa renúncia ao poder de punir por parte de entidades privadas, alheias a esta tomada de posição e, como tal, não poderá aplicar-se ao caso em análise, sob pena de violar a constituição da república portuguesa.

A este propósito consta da decisão recorrida o seguinte:

“Os presentes autos tiveram inicio sob o impulso processual do autor AA, o qual instaurou a presente ação declarativa que segue a forma de processo comum contra o réu, Banco 1..., S.A. pedindo que a presente ação seja julgada procedente e, consequentemente, anulada ou revogada a suspensão de trabalho por cinco dias com perda de retribuição aplicada ao autor e o réu seja condenado: a) a restituir o respeito montante indevidamente descontado a titulo de sanção disciplinar, acrescido de juros legais desde a data da indevida retenção da retribuição e até integral pagamento; b) pagar ao autor a quantia de € 5.001,00 a titulo de indemnização, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

As infrações disciplinares em causa reportam-se a factos ocorridos em fevereiro/março de 2022.

Atenta a entrada em vigor da lei 38-A/2023 de 2 de agosto foi determinada a notificação das partes para, querendo se pronunciarem.

Por requerimento de fls. 208/209 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, veio o autor pugnar pela aplicação da referida Lei.

Por requerimento de fls. 210/211 veio pugnar pela inaplicabilidade da referida Lei por entender que a sanção já foi cumprida.

Cumpre apreciar e decidir:

Estabelece o artigo 2º, n º2 al. b) da Lei 38-A/2023 que “Estão igualmente abrangidas pela presente lei as: (…) b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos do artigo 6º”.

E, o artigo 6º da mesma Lei que “São amnistiadas as infrações disciplinares (…) que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.

Ora, tendo as infrações em causa sido alegadamente praticadas em 2022, às quais foram aplicadas pena não superior a suspensão, estão as mesmas abrangidas pela amnistia prevista na citada Lei.

Assim sendo, julgo amnistiadas as infrações disciplinares em causa nos presentes autos e, em consequência julgar extinto o procedimento disciplinar, ficando sem efeito a sanção disciplinar aplicada no âmbito do mesmo, devendo a ré devolver ao autor as quantias que reteve na sequência do mesmo.

***

Face à decisão que julga amnistiadas as infrações disciplinares em causa, julgo extintos os presentes autos, bem como prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas nos mesmos, incluindo o pedido de condenação em danos não patrimoniais.

Apreciando:

Foi aplicada ao Autor a sanção disciplinar de suspensão do trabalho por cinco dias com perda de retribuição, prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 328.º do CT.

Como se decidiu no acórdão da RL, de 24/01/2024, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos:

Nos termos do artigo 98.º do Código do Trabalho, “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.”

Como se escreve no sumário do Acórdão do STJ de 21.03.2012, Proc. 161/09.3TTVLG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, “I - A titularidade do poder disciplinar, enquanto emanação essencial contida no contrato de trabalho, (que, por definição, conforma a posição de supremacia ou autoridade do empregador, nessa relação, por contraposição à característica subordinação jurídica do trabalhador), está legalmente conferida ao empregador.

E, sendo um direito potestativo ambivalente, (com reconhecido carácter gravoso nesta sua mais característica manifestação de poder punitivo), importa reconhecer que o seu exercício – conferindo embora ao seu titular uma certa margem de natural elasticidade/discricionariedade – acarreta simultaneamente uma acrescida responsabilidade ante os limites gerais decorrentes da boa fé e do abuso do direito.

(…).”

E como também elucida o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2022, Proc. 9443/19.5T8LRS.L1, igual pesquisa: “I– O poder disciplinar caracteriza-se por ser um poder subjetivo do empregador, que se reconduz à categoria de direito potestativo, traduzindo-se para o trabalhador numa posição de sujeição face às alterações que o exercício de tal poder implicam na sua esfera jurídica.

(…).”

E de acordo com o mesmo aresto, trata-se de um poder exclusivo do empregador, que pode ser exercido directamente pelo empregador ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele (art.º 329.º n.º 4 do Código do Trabalho),

No exercício do poder disciplinar, o empregador pode aplicar as sanções elencadas no n.º 1 do artigo 328.º do Código do Trabalho, sem prejuízo das previstas nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (cfr. n.º 2).

Em suma, o empregador é o titular do poder disciplinar e é a ele que incumbe aferir da oportunidade do seu exercício e escolher, de entre o rol de sanções disciplinares e com respeito pelos limites estabelecidos no n.º 3 do artigo 328.º do CT, a que, em seu entender, se adequa ao caso concreto.

A posteriori caberá ao Tribunal o controlo e fiscalização das sanções aplicadas pelo empregador sem que, contudo, lhe seja permitida a alteração das mesmas.

Na verdade, como afirmado no Acórdão do STJ de 16.05.2012, Proc. 3982/06.5TTLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt e que também vem citado pela Recorrente, “Contrariamente ao adrede aduzido pela recorrente, o efeito da neutralização de uma circunstância, tida então como agravante da responsabilidade disciplinar na prática posterior de uma outra infracção, apenas pode ver-se reflectido, quando muito, na determinação do ‘quantum’/medida da pena.

Mas ainda aqui sem possibilidade de intervenção ou controlo jurisdicional.

Sem se justificar discorrer sobre a fundamentação/natureza dogmática do poder disciplinar – onde tradicionalmente se confrontam teorias contratualistas e institucionalistas, como é sabido[2] - este, embora de cariz sancionatório, constitui uma excepção ao princípio da justiça pública, sendo as sanções disciplinares ‘penas privadas’.

A sua natureza, mais do que tornar problemática[3], exclui dos limites de fiscalização/controlo judicial, (realizáveis logicamente a posteriori), a possibilidade de alteração/substituição, não comportando a hipótese de graduação da pena aplicada.

O critério de graduação das sanções pertence ao empregador[4], norteado pragmaticamente por princípios gestionários e de oportunidade, e apenas condicionado pela tipologia legal das sanções e pelos seus limites, estes estabelecidos concretamente quanto às penas de feição pecuniária e de suspensão do trabalho – art.ºs 366.º e 368.º do Código do Trabalho/2003.”

Não obstante, o despacho recorrido considerou que a sanção disciplinar aplicada à Autora está amnistiada.

A amnistia, embora sem definição legal, está prevista no Código Penal, Título V (Da Extinção da responsabilidade criminal), Capítulo III (Outras causas de extinção).

Nos termos do n.º 1 do artigo 124.º do Código Penal, “A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.”

E de acordo com o n.º 2 do artigo 128.º do Código Penal, “A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.”

Nos termos do artigo 161.º als. c) e f) da Constituição da República Portuguesa, compete à Assembleia da República “Fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo” e “ Conceder amnistias e perdões genéricos;”

A amnistia, é assim, uma medida de clemência emanada da vontade do poder político.

E como se afirma no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2023, Proc. n.º 2436/03.6PULSB-D.L1, consultável em www.dgsi.pt, “A amnistia e perdão são medidas penais que concedem a graça inerente, ou seja, amnistiando certos crimes e/ou perdoando certas penas, de determinada natureza e dentro de determinados limites, como ali se imponha.

Enquanto reminiscências históricas e manifestação de soberana vontade de quem assim podia dispor dos poderes do Estado, chega aos nossos dias sobretudo com um âmbito que, ainda por conceder uma vantagem decorrente de uma circunstância não especificamente judiciária, se prefigura mais como a oportunidade de esbater os efeitos da generalidade e abstracção das normas legais.”

Por outro lado, há que ter presente que as Leis de Amnistia têm um carácter excepcional pelo que não comportam aplicação analógica (art.11.º do Código Civil). E como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.2023, Proc. 24/21.4PEPRT-B.P1, consultável em www.dgsi.pt, “II – (..) desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.”

Veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2023, Proc. 401/12.1TAFAR-E.E1, consultável em www.dgsi.pt, onde se escreve: “É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”

A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia) que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigos 15.º e 1.º).

Nos termos do artigo 2.º da referida Lei:

“1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º

2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;

b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º

Sob a epígrafe “Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares” estatui o artigo 6.º da mesma Lei que “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”

Sucede, porém, que, nem o artigo 2.º n.º 2 al. b), nem o artigo 6.º da Lei esclarecem sobre a natureza das “infracções disciplinares” contempladas pela amnistia colocando-se, pois, a questão de saber se nelas estarão incluídas as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores de empresas privadas.

Ora, limitando-se as mencionadas normas a aludir às “infracções disciplinares” sem operar qualquer distinção entre as praticadas por trabalhadores de empresas privadas e trabalhadores ao serviço de empresas ou organismos públicos e sendo conhecido o brocardo “onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir”, à primeira vista, a conclusão a retirar seria a de que a Lei da Amnistia também abrangeria as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados por relação laboral privada.

Mas dizemos à primeira vista porque não será assim.

Como é sabido, a interpretação da lei não se cinge ao elemento literal.

Com efeito, estatui o artigo 9.º do Código Civil:

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Como escrevem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição Revista e Actualizada, com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, pág. 58, “2. Resumindo, embora, sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3.”

Donde, a letra da lei é o ponto de partida e não pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha o mínimo de expressão no texto da Lei.

A par, impõe-se ao intérprete socorrer-se dos demais elementos de interpretação da lei, assumindo, por vezes, particular importância, na busca da mente do legislador, a proposta que antecedeu a lei.

No caso, importa atentar no teor da Proposta de Lei n.º 97/XV/1ª que antecedeu a Lei da Amnistia, consultável em https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/15/01/245/20230619/349?pgs=348353&org=PLC&plcdf=true, em cuja “Exposição de motivos” consta:

“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.

Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000€, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa.”

A redacção do artigo 2.º que constava da Proposta de Lei era a seguinte:

“Artigo 2.º

Âmbito

Estão abrangidas pela presente lei as infrações praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.”

E era a seguinte a redacção do artigo 1.º “A presente lei estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens.”

Contudo, não foram estas as redacções que passaram para a versão final da Lei; o artigo 1.º da Lei prevê que: “A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” e o artigo 2.º foi alterado, aditando-se-lhe ainda o n.º 2 acima citados.

Porém, no que respeita à questão em análise, a “Exposição de motivos” nada adianta quanto ao que extrair do artigo 2.º n.º 2 al. b) e 6.º na parte relativa às “infracções disciplinares.”

Sustenta a Recorrente que o elemento histórico aponta no sentido de que as “infracções disciplinares” não respeitam às praticadas por trabalhadores de empresas privadas e chama à colação a Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, referindo que esta estendeu a amnistia mas limitada às infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos e que a Lei n.º29/99, de 12 de Maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais” e incluía as “infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares.”

A Recorrida, por seu turno, invoca que a inclusão de matéria disciplinar laboral comum no regime de amnistias, ao contrário do que alega a Recorrente, não foi apenas contemplada na Lei n.º 23/91 de 4 de Julho, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria constantes na Lei n.º 17/85, de 17 de Julho e na Lei n.º 16/86, de 11 de Junho, mas reconhecendo que as amnistias anteriormente decretadas foram aplicadas a empresas públicas, concluindo, contudo, não haver fundamento para negar a amnistia a infracções disciplinares no domínio das relações laborais privadas.

Analisadas as referidas Leis constata-se que a Lei n.º 23/91 de 4 de Julho amnistiou as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos (art.º 1.º al. ii) e a Lei 29/99 de 12 de Maio, amnistiou as infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituíssem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não fosse superior à suspensão ou prisão disciplinar, desde que não constituíssem ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral (artigo 7.º al. c).

De tal análise cremos poder concluir que a história recente das Leis de Amnistia nunca seguiu no sentido de abranger as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.

E a explicação para tanto parece dever radicar na circunstância de o Estado não ter poderes para dispor de um direito de que não é titular.

Sobre esta questão escrevem António de Lemos Monteiro Fernandes e João Vilaça, em RH Magazine, 12 de Setembro de 2023, consultável em https://rhmagazine.pt/atualidade-laboral-estarao-as-infracoes-laborais-cobertas-pela-amnistia/:

“Em termos de consequências práticas, importará saber se as infrações que, no quadro das relações de trabalho privadas, tenham sido punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição) devem considerar-se cobertas pela amnistia estabelecida, impondo-se o seu apagamento dos respetivos registos disciplinares e a eventual devolução de valores salariais retidos.

Em geral, os anteriores diplomas referentes a amnistias não deixavam espaço significativo para tal dúvida. Tomando como exemplos os que assinalaram as visitas a Portugal do Papa João Paulo II, encontramos dois enunciados diferentes, mas que respondiam no mesmo sentido à questão posta. A Lei n.º 23/91, de 4 de julho estendia a amnistia às infrações disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, excetuando aquelas que, em simultâneo, constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida lei e tivessem sido punidas com despedimento. Por seu lado, a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais”, e incluía ao mesmo tempo nesse âmbito as “infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares”, sob as mesmas condições definidas pela lei anteriormente citada. Era assim claro que, pelo menos, as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas com as quais tivessem relações reguladas pela legislação laboral geral estariam excluídas do âmbito da amnistia.

Por outro lado, é estabelecida uma amnistia, a qual cobre as infrações penais cuja pena não ultrapasse 1 ano ou 120 dias de multa, e “as infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até àquela data, que não se revelem, em simultâneo, como ilícitos penais, e desde que não superiores a suspensão ou prisão disciplinar” – ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias.

Quanto a este último ponto, todavia, a Lei n.º 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar.

A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei n.º 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art.º 6º da Lei n.º 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia.

Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa.

Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores.

A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos art.ºs 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art.º 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional.

Assim, pode bem interpretar-se o art.º 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.”

Considerando o que acima se referiu sobre os contornos do poder disciplinar e sobre as Leis de Amnistia acompanhamos aquela interpretação, sendo certo que considerar o contrário violaria o quadro constitucional vigente.

Com efeito, a interpretação de que o artigo 2.º n.º 2 al. b) da Lei da Amnistia quando refere “infracções disciplinares” está a incluir os ilícitos de natureza laboral praticados por trabalhadores vinculados a empregadores privados, para além de esvaziar o poder disciplinar do empregador sem, em simultâneo, alterar o Código do Trabalho na parte relativa àquele poder, representaria uma intromissão por parte do Estado na gestão e organização das empresas privadas, não permitida por chocar com o direito à livre iniciativa, à liberdade de iniciativa e de organização empresarial e com o princípio de que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial, consagrados nos artigos 61.º n.º 1, 80.º al. c) e 82.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, como afirmado por aqueles autores.

Por conseguinte, resta concluir no sentido de que a Lei n.º 38-A /2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia), não abrange as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados-.”

No mesmo sentido se decidiu no acórdão da RP, de 20/05/2024 e no acórdão da RG, de 02/05/2024, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim sendo, impõe-se a revogação da decisão recorrida com o consequente prosseguimento dos autos, ficando prejudicada a 2ª questão supra enunciada.

                                                             *

Procedem, assim, as conclusões da recorrente.                                                                                                                    *

                                                             *                                                        

IV – Sumário[2]

(…).

                                                               *

                                                             *

V - DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na procedência do recurso acorda-se:

- em revogar a decisão a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais.

                                                             *

                                                             *

Custas a cargo do recorrido.

                                                             *

                                                             *


 Coimbra, 2024/09/27

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 (Paula Maria Roberto)

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 (Mário Rodrigues da Silva)

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  (Felizardo Paiva)


                  


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
 Adjuntos – Mário Rodrigues da Silva
                – Felizardo Paiva

[2] O sumário é da responsabilidade exclusiva da relatora.