Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||||||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||||||||||||||
Relator: | HELENA LAMAS | ||||||||||||||
Descritores: | CRIME DE PECULATO MASSA INSOLVENTE CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE | ||||||||||||||
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Data do Acordão: | 03/12/2025 | ||||||||||||||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||||||||||||||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 1 | ||||||||||||||
Texto Integral: | S | ||||||||||||||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||||||||||||||
Decisão: | REVOGADA | ||||||||||||||
Legislação Nacional: | ALÍNEA E), DO Nº 1 DO ARTIGO 68º E ART 69º DO C.P.P.; ARTIGO 46º, Nº 1 DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE), APROVADO PELO DL. 53/2004 DE 18/3. | ||||||||||||||
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Sumário: | 1 - Atendendo-se que ao arguido está imputada a prática de vários crimes de peculato, a massa insolvente de sociedade comercial, representada pelo administrador da insolvência, tem legitimidade para se constituir assistente no âmbito de processo penal, ao abrigo da alínea e), do nº 1, do artigo 68º do C.P.P..
2 - No caso, a legitimidade para a constituição de assistente cabe a «qualquer pessoa», por estamos perante um dos crimes do catálogo do artigo 68º, nº 1, al. e) do C.P.P. 3 - As efectivas vítimas da prática dos factos imputados ao arguido (que na qualidade de respectivo administrador de insolvência, terá utilizado em seu proveito pessoal quantias que pertenciam às massas insolventes) - são as massas insolventes e não as sociedades insolventes, sendo àquelas que verdadeiramente assiste «interesse em agir». | ||||||||||||||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra: I. RELATÓRIO 1.1. A decisão No Processo Comum Colectivo nº 3655/15.8T9AVR do Juízo Central Criminal de Leiria, em 28/6/2024 foi proferido o seguinte despacho: «Refª 10561632 e refª 10561633 – Pedidos de Constituição de Assistente – Massa Insolvente de ‘A..., Lda’ e de Massa Insolvente de ‘B..., Lda’: A Massa Insolvente de sociedade comercial, representada por Administrador Judicial, não tem legitimidade para se constituir assistente, prevendo a lei o âmbito de atuação específica do Administrador na pendência do processo de insolvência, restrita à matéria patrimonial que interesse à insolvência, continuando a pertencer aos órgãos sociais das referidas sociedades a representação das mesmas em matéria criminal – cfr., entre vários outros, se estabeleceu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.05.2017 (Proc 108/15.8PCLRA) e no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.06.2022 (Proc 725/20.4T9PTL-A.G1), ambos integralmente publicados in www.dgsi.pt, e cfr. ainda despacho de não admissão de constituição como assistente proferido nos presentes autos a 29.01.2019 (refª 106707338) e transitado em julgado. Termos em que se indefere, porque carecidos de legitimidade para tanto, os pedidos de constituição como assistente em referência. Notifique.».
1.2.Os recursos 1.2.1. Das conclusões da requerente Massa Insolvente de A..., Lda Inconformada com a decisão, esta requerente interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): I - O critério para aferição e atribuição da legitimidade para a constituição de assistente tem de ser aferido caso a caso e analisada á luz do artigo 68.º n.º1 alínea a) do C.P.P., que se desdobra em dois requisitos cumulativos: a) a condição de ofendido, no sentido de pessoa que sofreu os prejuízos resultantes da prática do crime; b)a titularidade de direitos ou interesses directamente implicados no bem jurídico visado pela incriminação. – neste sentido vide Ac. relação de Lisboa, processo n.º 324/14.0TELSB-ED.L1-3, disponível em www.dgsi.pt. II - Ora no caso em apreço tais requisitos estão preenchidos, em primeiro lugar, porque escorre da acusação pública a imputação ao arguido AA a prática de vários crimes de peculato, e que este arguido terá subtraído quantia de 112.761,50 Euros, pertencente à Massa Insolvente de A..., Lda e não à sociedade Insolvente. III - A Massa Insolvente recorrente é titular do interesse imediato e direto no resultado do processo-crime na medida em que este versa e tem por objeto a subtração de bens (Dinheiro) que integravam a Massa Insolvente como produto da liquidação e venda do património insolvente, que tinha como destino a satisfação dos créditos dos credores da insolvente, e que o arguido vem acusado de se ter apropriado enquanto Administrador Judicial. IV - Pelo que, a ofendida nestes autos, entre outras, é a Massa Insolvente A...., Lda, sendo manifesto que também é ela a única titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - Neste sentido a contrário vide o Ac Relação de Lisboa AC. R. Lisboa p. n.º 7888/15.9TDLSB.L1-5 de 17-05-2022, disponível em www.dgsi.pt. V - Efetivamente, o montante de 112.761,50 Euros foi subtraído da esfera patrimonial da Massa Insolvente recorrente, uma vez o mesmo se destinava a ser depositado na conta desta para posteriormente ser distribuído aos credores e, ao ter sido subtraído, não chegou a ser rececionado pela massa insolvente que obviamente por força da subtração da mencionada importância monetária ficou lesada, pelo que a mesma por maioria de razão nunca poderá deixar de ser considerada ofendida à luz do citado preceito penal supra citado. VI - Assim, dúvidas não podem restar que a massa insolvente foi patrimonialmente lesada e ofendida, existindo uma lesão de caráter patrimonial que interessa à massa insolvente, - compreendida nos poderes conferidos ao Administrador de Insolvência, pelo artigo 81.º do CIRE – e não à insolvente, sendo por isso titular do direito/interesse protegidos pelo crime de peculato, no que respeita à quantia subtraída. VII - Ademais, mesmo que assim não se entendesse - o que não se admite e apenas aqui se coloca para efeito de mero raciocínio académico – uma vez que vem o arguido acusado no processo crime da pratica de vários crimes de peculato, sempre teria de ser admitida a constituição de assistente da massa insolvente, porque assim o determina a alínea e) do nº 1 do artigo 68º do CPP, na medida que ali está prescrito que no caso de crime de peculato qualquer pessoa se pode constituir assistente. VIII - Assim, impunha-se, face às circunstâncias particulares do caso e ao tipo legal de crime em causa que se concluísse que a Recorrente, surge como única titular de um interesse digno de tutela e acautelado pela norma incriminadora em apreciação, pelo que, neste contexto a mesma tinha e tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos. IX - Razão pela qual, face ao supra exposto, o Douto despacho violou a alínea a) e e) do n° 1 do artigo 68° do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado o douto despacho recorrido por outro que admita a constituição de assistente da recorrente.
1.2.2. Das conclusões da requerente Massa Insolvente de B..., Lda Igualmente inconformada com a decisão, esta requerente também interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): I - O critério para aferição e atribuição da legitimidade para a constituição de assistente tem de ser aferido caso a caso e analisada á luz do artigo 68.º n.º1 alínea a) do C.P.P., que se desdobra em dois requisitos cumulativos: a) a condição de ofendido, no sentido de pessoa que sofreu os prejuízos resultantes da prática do crime; b) a titularidade de direitos ou interesses directamente implicados no bem jurídico visado pela incriminação. – neste sentido vide Ac. relação de Lisboa, processo n.º 324/14.0TELSB-ED.L1-3, disponível em www.dgsi.pt. II - Ora no caso em apreço tais requisitos estão preenchidos, em primeiro lugar, porque escorre da acusação pública a imputação ao arguido AA a prática de vários crimes de peculato, e que este arguido terá subtraído quantia de 64.683,07 Euros, pertencente à Massa Insolvente de B..., Lda e não à sociedade Insolvente. III - A Massa Insolvente recorrente é titular do interesse imediato e direto no resultado do processo-crime na medida em que este versa e tem por objeto a subtração de bens (Dinheiro) que integravam a Massa Insolvente como produto da liquidação e venda do património insolvente, que tinha como destino a satisfação dos créditos dos credores da insolvente, e que o arguido vem acusado de se ter apropriado enquanto Administrador Judicial. IV - Pelo que, a ofendida nestes autos, entre outras, é a Massa Insolvente B... Lda, sendo manifesto que também é ela a única titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - Neste sentido a contrário vide o Ac Relação de Lisboa AC. R. Lisboa p. n.º 7888/15.9TDLSB.L1-5 de 17-05-2022, disponível em www.dgsi.pt. V - Efetivamente, o montante de 64.683,07 Euros foi subtraído da esfera patrimonial da Massa Insolvente recorrente, uma vez o mesmo se destinava a ser depositado na conta desta para posteriormente ser distribuído aos credores e, ao ter sido subtraído, não chegou a ser rececionado pela massa insolvente que obviamente por força da subtração da mencionada importância monetária ficou lesada, pelo que a mesma por maioria de razão nunca poderá deixar de ser considerada ofendida à luz do citado preceito penal supra citado. VI - Assim, dúvidas não podem restar que a massa insolvente foi patrimonialmente lesada e ofendida, existindo uma lesão de caráter patrimonial que interessa à massa insolvente, -compreendida nos poderes conferidos ao Administrador de Insolvência, pelo artigo 81.º do CIRE – e não à insolvente, sendo por isso titular do direito/interesse protegidos pelo crime de peculato, no que respeita à quantia subtraída. VII - Ademais, mesmo que assim não se entendesse - o que não se admite e apenas aqui se coloca para efeito de mero raciocínio académico – uma vez que vem o arguido acusado no processo crime da pratica de vários crimes de peculato, sempre teria de ser admitida a constituição de assistente da massa insolvente, porque assim o determina a alínea e) do nº 1 do artigo 68º do CPP, na medida que ali está prescrito que no caso de crime de peculato qualquer pessoa se pode constituir assistente. VIII - Assim, impunha-se, face às circunstâncias particulares do caso e ao tipo legal de crime em causa que se concluísse que a Recorrente, surge como única titular de um interesse digno de tutela e acautelado pela norma incriminadora em apreciação, pelo que, neste contexto a mesma tinha e tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos. IX - Razão pela qual, face ao supra exposto, o Douto despacho violou a alínea a) e e) do n° 1 do artigo 68° do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado o douto despacho recorrido por outro que admita a constituição de assistente da recorrente.
1.2.3. Da resposta do Ministério Público
Respondeu em 1ª instância o Ministério Público, defendendo a improcedência do recurso, argumentando que: A Massa Insolvente é um património autónomo – composto por todos os bens e direitos (ativo) que integram o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens e direitos que este adquira na pendência do processo de insolvência (art. 46º do CIRE) – e que visa a satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, sendo para o efeito liquidada. Por isso, os poderes do Administrador da Massa Insolvente cingem-se, tão só, à liquidação do dito património, não tendo poderes de representação da sociedade insolvente para além dos que se dirigem àquela liquidação. Ou seja, a Massa Insolvente não pode ser confundida com a sociedade insolvente. Não é a Massa Insolvente que é titular de um interesse imediato e direto no resultado do processo-crime, na medida em que o processo-crime não tem por objeto os bens que integram a massa, mas a realização da Justiça penal. Ou seja, não é a recorrente quem é ofendida nos autos, em termos de se poder dizer que é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.»
1.2.4. O Exmº Procurador-Geral Adjunto teve vista do processo, defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente, pois a massa insolvente não pode ser tida como uma «pessoa». 1.2.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., respondeu o arguido AA em 6/12/2024. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.
II. OBJECTO DO RECURSO De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso. Assim, examinadas as conclusões de recurso, importa conhecer e decidir da legitimidade das recorrentes para se constituírem assistentes.
III. FUNDAMENTAÇÃO Definida a questão a tratar, importa considerar o seguinte acto processual, por contender com a decisão a proferir: Em 19/5/2021 foi proferida acusação pelo Ministério Público contra, entre outros, o arguido AA, a quem imputa, entre outros, crimes de peculato pelos seguintes factos: «89' Na sequência de Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Processo Especial de Revitalização 16gg113.6TJCBR, no qual foi julgada procedente a apelação e, em consequência, foi recusada a homologação do plano de recuperação da sociedade "A..., Lda', foi instaurado em 22 de Maio de 2014 o processo |422\14...., o qual corre termos no ... Juízo cível da Comarca de Coimbra. 90' Por Sentença proferida em 26 de Maio de 2014, foi declarada a insolvência dessa sociedade e nomeado, para exercer as funções de Administrador de Insolvência, o arguido AA … 91' No dia 15 de Maio de 2015, mediante recurso à Leiloeira C..., o arguido promoveu a venda dos bens constantes de fls 306 a 307 desse Apenso, no montante de €501.450,00. 92' Em 4 de Fevereiro de 2016 o arguido ainda não tinha prestado aos credores qualquer informação sobre o destino daquele montante…, conduta que manteve até 10 de Março de 2016 e que levou vários credores a pedirem a sua destituição …,isso não obstante ter sido notificado pelo MMo Juiz para se pronunciar, … só o fazendo em 14 de Abril desse ano … 93. Por requerimentos constantes de fls 414 a 418, 4l9 a 421, 424 a 425 do Apenso os credores pediram informações que não foram cabalmente prestadas' sendo que só em 2l de Junho o arguido AA juntou aos autos informações sobre as contas bancárias da Massa Insolvente… 94. Pelo facto de os extractos apresentados revelarem a existência de despesas alheia à Insolvente, como despesas com Hotéis, comissões de levantamento fora da zona Euro e compras diversas, … os diversos credores insistiram pela destituição de funções do arguido e pela justificação por parte do mesmo desses movimentos, … 95. Por despacho proferido em 8 de setembro de 2016, … o arguido foi destituído do cargo de Administrador além do mais' porque: ,, (...) analisado o extracto da conta titulada pelo administrador da insolvência e junto aos autos pelo próprio Sr. AI, verifica-se o registo de pagamentos em restaurantes (cfr. fls. 121 I e l2I2), hotéis, levantamentos em numerário, diversas comissões de levantamento fora da Zona euro, compras diversas. Tais pagamentos não foram justificados pelo administrador da insolvência, sendo que se desconhece qual a relação de tais despesas com a liquidação da massa insolvente' tal como conclui o Banco 1..., S.A. no seu requerimento de fls' 1253 e seguintes' Por outro lado, estranhamente, verifica-se que a maior parte dos montantes pecuniários resultantes dos actos de liquidação se encontram depositados na conta titulada pelo Sr. AI e não na conta titulada pela massa insolvente' Para além disso, é notório que os pagamentos efectuados na referida conta não coincidem com as despesas referidas no ponto 7 da resposta apresentada nos autos pelo administrador da insolvência' De salientar, ainda, que o Sr. AI informa que a conta por si titulada apresenta um saldo de € 331.934,79, sendo que, de acordo com os extractos juntos em Abril de 2016,a referida conta apresentava um saldo de € 386.073,02, existindo, por isso, uma diferença de €54. 138,23, para a qual não foi apresentada qualquer justificação. Acresce que, apesar de o Sr. AI ter protestado juntar documentação relativa à cobrança de vários créditos da insolvente, ainda não informou o tribunal, nem os credores do montante efectivamente cobrado até à presente data e em que conta foi depositado esse montante. (...) Por outro lado, a sua conduta revela falta de transparência na utilização das quantias resultantes dos bens vendidos, designadamente com a abertura de uma conta em nome próprio, de onde resulta a realização de despesas não justificadas, com prejuízo claro para os credores. Estes, por sua yez, apesar dos esforços despendidos em requerimentos ao administrador da insolvência e ao tribunal, não veêm as suas dúvidas dissipadas nem esclarecidas relativamente ao paradeiro das quantias resultantes da liquidação dos bens móveis vendidos, sentindo-se lesados, por outro lado, com os furtos dos bens ocorridos nas instalações da insolvente. Assim sendo, resulta evidente que o comportamento do Administrador da Insolvência tem-se traduzido numa violação reiterada e grosseira dos seus deveres, nada mais restando ao tribunal do que determinar a sua destituição. (...) Dê conhecimento deste despacho ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes. " 96. Em face da comunicação efectuada ao Ministério Público foram extraídas as certidões que constituem ao Apenso 6.2, cfr. fls 612 do Apenso e instaurado o Inquérito que integra esse Apenso, com o NUIPC 35561I6.2T9C8R, o qual está por sua vez apensado a estes autos. 97. Com toda a conduta supra descrita o arguido AA conseguiu pleno acesso ao património da Insolvente "A...", gerindo o património desta Insolvente como bem entendeu e com intenção de se apoderar do máximo de valores que o cargo de Administrador de Insolvência lhe permitisse, de facto, apoderar. 98. Com os poderes daí resultantes o arguido AA efectuou os movimentos bancários que se passam a especificar de seguida. 99. Em 14 de Janeiro de 2015 o arguido abriu, em seu nome pessoal, a conta no ...97 sedeada no Banco 1... na qual movimentou valores pertencentes a esta Massa Insolvente, cfr. fls ... e 122 do Separador 35 do Apenso Bancário. 100. Os movimentos nesta conta tiveram início em 16 de janeiro de2015 e resumem-se no seguinte quadro: 101. Ao nível das entradas, esta conta foi creditada com receitas da Massa Insolvente a saber: 102. 4 Transferências efetuadas pela empresa C... SA, na sequência da venda, no leilão supra mencionado, dos bens da insolvente: [Não foi possível copiar o quadro] 103. Outras transferências, uma proveniente do próprio arguido e outra proveniente de clientes da Insolvente: [Não foi possível copiar o quadro] 104. Depósito em 15 de Janeiro de2016 de um cheque emitido em22 de Dezembro de 2015 pela Conferência Episcopal Portuguesa, à ordem da massa insolvente da A..., Lda. 105. Ao nível dos movimentos de saída, e com relevância para os presentes autos, o arguido efectuou os seguintes, em seu benefício pessoal em detrimento da Massa Insolvente: 106. Duas transferências no valor global de €6.000,00, que fez seu, para a sua conta pessoal sediada na Banco 2... com o NIB ...04: [Não foi possível copiar o quadro] 107 . Dez Levantamentos em numerário no valor global de €72.225,00, que fez seu, efectuados ao Balcão da agência do Banco 1... na ...:108. Levantamentos em ATM: 108. Levantamentos em ATM:
109.Sendo de destacar o levantamento do montante global de €942,76 em ATM sito na ..., Tailândia, fraccionado do seguinte modo: [Não foi possível copiar o quadro] 110. Pagamentos electrónicos no montante de €5.253,15 em hotéis e restaurantes sem qualquer relação com a Massa Insolvente: 111. Não obstante ter sido destituído da função de Administrador de Insolvência em 8 de Setembro de 2016, o arguido não se coibiu ainda, de proceder ao supra mencionado levantamento avulso em numerário de €6.150,00 no dia 14 de Setembro de 2016, mostrado desprezo pelo despacho de destituição. 112. Ao agir da forma descrita o arguido sabia que, usando a sua qualidade de Administrador Judicial nomeado no processo 1422/14...., teria total acesso a valores pertença da Massa Insolvente da A..., Lda. 113. Aproveitando-se dessa qualidade e da proximidade que a mesma lhe proporcionava ao montantes que lhe cumpria administrar, o arguido decidiu, do modo supra descrito, fazer seu o montante global de €90.880,30, bem sabendo que tal montante não lhe era devido, era pertença da Massa que lhe incumbia administrar e destinava-se a servir de pagamento aos credores reconhecidos como tal no processo. 114. O arguido tinha perfeito conhecimento de que, enquanto administrador judicial lhe estava cometida uma função de natureza pública, compreendida dentro da função jurisdicional do Estado. 115. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei. (…) 116. Após intervir como Administrador Judicial Provisório no âmbito do Processo Especial de Revitalização referente à sociedade "A..., Lda" que correu termos nos Juízos Cíveis de Coimbra sob o nº 240l/13...., cfr. fls 18 do Apenso 5. 30 (vol. I), o arguido AA foi nomeado Administrador de Insolvência da Massa Falida desta sociedade por despacho proferido em 12 de Maio de 2014 no processo 1085/14.... do ... Juízo Cível de Coimbra, cfr. fls 26 a 28 daquele Apenso. 117. Aproveitando-se da sua qualidade de Administrador de Insolvência, o arguido AA fez suas diversas quantias pertença da Massa, do modo que se irá expor de seguida. 118. Em 16 de Janeiro de 2015, procedeu à abertura, em seu nome pessoal, da conta ...30 sediada no Banco 1..., balcão de ..., cfr. fls 8 e 9 do Separador 45 do Apenso Bancário. 119. Entre 2015 e 2018 a conta apresentou a seguinte movimentação: 120. Ao nível das entradas são de destacar as seguintes, com relevância para a presente Acusação: l21. Duas transferências ordenadas pela empresa C... SA, referente à venda de verbas pertencentes à Massa Insolvente: 122. Outras transferências e depósitos [Não foi possível copiar o quadro] 123. Dos montantes supra referidos, pertença da Massa Insolvente, o arguido AA fez seu os seguintes: 124. Transferência do montante de €3.500,00, que ordenou a seu favor: [Não foi possível copiar o quadro] 125. Levantamentos em numerário, no valor global de €50.430,00 que efectuou ao balcão da agência do Banco 1... em ...: 126. Levantamentos em ATM na Tailândia e em Paris, no montante de €902126,: 127. Levantamentos em ATM em Portugal no montante global de €5.500,00, cfr. extractos de fls 2 a 7 do Apenso 45 128. Pagamento de refeições em restaurantes, no período compreendido entre 2015 e 2017 no montante global de €4.176,11, … 129. Pagamento de Estadas em Hotéis, em 2015 e 2016, no valor de €174100, cfr. I22,258 e 262 da Verba 16 do Apenso de Busca 130. Ao agir da forma descrita o arguido sabia que, usando a sua qualidade de Administrador Judicial nomeado no processo 1085/14...., teria total acesso a valores pertença da Massa Insolvente B..., Lda. 131. Aproveitando-se dessa qualidade e da proximidade que a mesma lhe proporcionava ao montantes que lhe cumpria administrar, o arguido decidiu, do modo supra descrito, fazer seu o montante global de €64.683,07, bem sabendo que tal montante não lhe era devido, era pertença da Massa que lhe incumbia administrar e destinava-se a servir de pagamento aos credores reconhecidos como tal no processo' 132. O arguido tinha perfeito conhecimento de que' enquanto administrador judicial lhe estava cometida uma função de natureza pública, compreendida dentro da função jurisdicional do Estado. 133. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente' bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.».
IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO As recorrentes defendem dever ser admitida a sua constituição como assistente, por estarmos perante crimes de peculato e os bens de que o arguido está acusado de se ter apropriado pertenciam-lhes. Mais invocam que, ao terem sido patrimonialmente lesadas, são consideradas ofendidas. A constituição de assistente está prevista no artigo 68º do C.P.P. da seguinte forma: «1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a)Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos; b)As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; c)No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime; d)No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime; e)Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção. 2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º 3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz: a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento; c) No prazo para interposição de recurso da sentença. 4 - O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho, que é logo notificado àqueles. 5 - Durante o inquérito, a constituição de assistente e os incidentes a ela respeitantes podem correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão.». Esta intervenção dos particulares no processo penal tem inclusivamente assento constitucional, no artigo 32º, nº 7 da C.R.P.: «O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei». Nas palavras do Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora 2009, p. 180, «Em sede de processo penal é importante fazer a distinção entre as figuras processuais de assistente, ofendido, vítima, lesado e parte civil. Ofendido é o titular do interesse especialmente protegido pelo tipo legal de crime – conceito que é imprescindível para efeito de se poder constituir assistente – mas vítima do ilícito penal e lesado pelo mesmo ilícito pode ser outra pessoa, que não só o ofendido, que directa, necessária e adequadamente tenha visto prejudicado um seu interesse protegido por lei por causa do comportamento do arguido.». Isto para dizer que, não é pelo facto de os recorrentes terem deduzido pedidos de indemnização civil e, por isso, invocarem terem sido lesados com a prática dos crimes, que lhes é conferida automaticamente legitimidade para se constituírem assistente, como parece decorrer das respectivas motivações de recurso. No caso concreto, estando em causa a prática de um dos crimes referidos na alínea e) transcrita supra, não há que recorrer à definição de «ofendido». «A alínea e) prevê uma espécie ou forma de «acção popular penal», através da atribuição do direito à constituição de assistente «a qualquer pessoa«»; a constituição de assistente em processos pelos crimes referidos é considerada pelo legislador como uma expressão do exercício de um direito de cidadania, face à natureza e relevância comunitária dos valores universais da dignidade da pessoa humana, ou não individualizáveis em direitos próprios» - Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal comentado, 4ª edição revista, Almedina, p. 208. Ou, como afirma Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume I., Verbo, p. 314, «A possibilidade de qualquer pessoa se poder constituir assistente nestes crimes – acção penal popular – justifica-se pelo desejo de obter a colaboração de todos na detecção e processamento de tais crimes…». Pedro Soares de Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Almedina, p. 799, indica que «Razões de política criminal relacionadas com a natureza («sem vítima») dos crimes em causa, e por aí com a dificuldade de controlo da ação do MP (no caso de arquivamento), e com a danosidade social e dificuldade de investigação deles, estarão na raiz da solução legislativa de desvinculação do fundamento da legitimação de qualquer relação com o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, simplesmente erigindo como critério o estarem em causa crimes especificados na norma: é tratar-se de crime de certa natureza – e não ser ofendido em razão da prática desse crime ou o estar em certa relação com o ofendido – que legitima, sem mais, a constituição como assistente». Depois, dúvidas não temos de que as pessoas colectivas podem constituir-se assistentes nos processos por crimes do elenco constante da alínea e), dado que esta fala em «qualquer pessoa» e as pessoas colectivas, leia-se associações, fundações e sociedades (cfr. o artigo 157º do C.C.), têm personalidade e capacidade jurídicas (cfr. os artigos 158º e 160º do C.C.). Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, volume I, 5ª edição atualizada, UCP Editora, p. 286, «…é admissível a constituição de pessoas coletivas como assistentes por crimes previstos no artigo 68º, nº 1, al. e), mesmo que os fins das pessoas coletivas não estejam diretamente relacionados com os bens jurídicos tutelados pelas incriminações em causa, dada precisamente amplitude da expressão legal «qualquer pessoa» que inclui pessoas singulares e coletivas, sem qualquer restrição relativa ao interesse em agir destas». O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação entende que o recurso deve ser julgado improcedente, além do mais, por a «massa insolvente» não poder ser tida como uma «pessoa». Entendemos que não lhe assiste razão. A noção de massa insolvente surge no artigo 46º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL. 53/2004 de 18/3: abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Trata-se de um património de afectação, dado que, como resulta claro dessa mesma norma, destina-se à satisfação dos interesses dos credores da insolvência.
V. DECISÃO Nestes termos e pelos fundamentos expostos: Julgam-se procedentes os recursos interpostos, pelo que se revoga o despacho proferido em 28/6/2024 e, em sua substituição, admite-se a Massa Insolvente de ‘A..., Lda’ e a Massa Insolvente de ‘B..., Lda’ a intervir nos autos como assistentes. Sem custas. Coimbra, 12 de Março de 2025 (Helena Lamas - relatora) (João Abrunhosa – 1º adjunto) (Rosa Pinto – 2ª adjunta, vencida, nos termos da declaração que se segue)
Voto de vencida: Votei vencida por entender que a Massa Insolvente não é uma pessoa (nem mesmo pessoa colectiva) e, por essa razão, não é abrangida pela previsão da alínea e) do nº 1, do artigo 68º do Código de Processo Penal. A situação sub judice não se encontra abrangida pela letra da lei, nem mesmo pelo seu espírito. Como refere Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar e outros, pág. 242, “a alínea e) prevê uma espécie ou forma de acção popular penal, através da atribuição do direito à constituição de assistente a qualquer pessoa; a constituição de assistente em processos pelos crimes referidos é considerada pelo legislador como uma expressão do exercício de um direito de cidadania, face à natureza e relevância comunitária dos valores universais da dignidade da pessoa humana, ou não individualizáveis em direitos próprios …” Acresce que, como resulta do artigo 81º, nº 4, do CIRE e já foi afirmado por esta Relação no seu Ac. de 9.6.2021, in www.dgsi.pt, “a figura do Administrador de Insolvência tem alcance ao nível da questão patrimonial da empresa. Portanto, a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência”. Em suma, a Massa insolvente de sociedade comercial, representada pelo administrador da insolvência, não tem legitimidade para se constituir assistente no âmbito de processo penal – cfr. igualmente o Ac. da RC de 24.5.2017, in www.dgsi.pt.)
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