Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3258/23.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: REVISÃO DE INCAPACIDADE PARA O TRABALHO POR DOENÇA PROFISSIONAL
CENTRO NACIONAL DE PROTEÇÃO CONTRA OS RISCOS PROFISSIONAIS (CNPRP)
EXCEÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
FALTA DE PRÉVIA TRAMITAÇÃO/DECISÃO ADMINISTRATIVA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283.º, N.ºS 1 E 7, DO CÓDIGO DO TRABALHO, 138.º, N.º 3, 140.º DA LEI DOS ACIDENTES DE TRABALHO, 9.º DA PORTARIA N.º 135/2012, DE 8-05, 155.º DO CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO, 493.º, N.º 2, E 495.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O CNPRP não é um tribunal, mas uma mera entidade administrativa, onde está previsto um procedimento administrativo obrigatório, prévio à propositura da ação judicial para reconhecimento dos direitos emergentes de doença profissional quando o doente discorde da decisão do dito Centro.
II – A certificação e a revisão das incapacidades é da exclusiva responsabilidade do serviço com competência na área da proteção contra os riscos profissionais – artigo 138º, 3 da LAT.

III – Sem a decisão do CNPRP o processo judicial não pode ter seguimento, sendo a sua ocorrência um verdadeiro pressuposto processual inominado, mas que constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, dando lugar à absolvição da instância, nos termos do disposto nos artigos 493º, nº 2, e 495º, do CPC.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:    *

   Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

   RELATÓRIO

                AA apresentou incidente de revisão de incapacidade para o trabalho por doença profissional contra Instituto da Segurança Social, IP, a qual deve ser fixada em 36%.

                Para fundamentar a sua pretensão alegou que:

-em 05/06/2018 dirigiu ao ISS pedido de pensão por incapacidade para o trabalho por doença profissional;

-por decisão proferida pelo Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social, a 11/03/2022, foi reconhecida à requerente uma IPP de 4,5000%;

-consequentemente, foi-lhe atribuída Pensão por Incapacidade para o Trabalho no valor mensal de €17,72;

-com o passar do tempo viu o seu estado de saúde agravar-se, relacionado com a doença profissional e, a 16/11/2022 foi emitido à requerente, atestado médico de incapacidade multiuso que atesta uma Incapacidade Permanente Global de 36%;

-a diferença em termos percentuais da IPP e da IPG é fundamento suficiente para o recurso ao presente requerimento para revisão da incapacidade em juízo.

O ISS Departamento de Proteção contra Riscos Profissionais contestou, invocando, além do mais as exceções inominadas: doenças que não foram participadas ao réu; falta de pedido de revisão/alteração do grau de IPP junto do réu, estando assim precludida a possibilidade de iniciar a fase contenciosa, sem ter esgotado a fase administrativa (ou conciliatória).

A autora pronunciou-se quanto às invocadas exceções, sustentando a improcedência das mesmas.

Foi proferido despacho que julgou procedente a invocada exceção inominada (de falta de prévia comunicação/tramitação e decisão junto da entidade administrativa), e, em consequência, absolveu o réu da instância, nos termos do disposto nos artigos 278º, n º 1 al. e), 576º, n º 1 e 2, 578º e 590º, n º1 todos do CPC.

A requerente recorreu deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1ª/ O Tribunal a quo ao julgar improcedente a ação, fez uma incorreta interpretação

e aplicação da lei, nomeadamente da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e dos arts. 145.º e 155.º do CPT.

2ª/ Determina o art.º 155.º, n.º 1 do CPT que “O disposto no art.º 117.º e seguintes aplica-se, com as necessárias adaptações, aos casos de doença profissional em que o doente discorde da decisão do Instituto da Segurança Social, I.P., em matéria de doenças emergentes de riscos profissionais”, encontrando-se estabelecido no art.º 145.º do CPT o pedido de revisão da incapacidade em juízo.

3ª/ A lei é clara no sentido em que é possível requerer judicialmente a revisão da incapacidade decorrente de doença profissional.

4ª/ Sendo certo que o Tribunal a quo o admite, ainda que em situação diferente do que aquela dos presentes autos.

5ª/ O art.º 138.º, n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 4 setembro estabelece que “a certificação

e revisão das incapacidades é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da proteção contra os riscos profissionais, sem prejuízo do diagnóstico presuntivo pelos médicos dos serviços de saúde, para efeitos da atribuição da indemnização por incapacidade temporária”.

6ª/ Resulta deste normativo que quando o legislador diz que a certificação e revisão das incapacidades é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da proteção contra os riscos profissionais, quis dizer que a certificação e revisão das incapacidades não pode ser feita por qualquer serviço médico público ou privado, mas apenas e tão-só pelo Departamento de Proteção Contra Riscos Profissionais.

7ª/ Tal leitura e interpretação decorre não só do objeto daquele diploma como da própria norma transcrita que apresenta uma exceção no caso de atribuição da indemnização por incapacidade temporária.

8ª/ Pois quando o legislador aprovou a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro pretendeu

regulamentar as disposições dos arts. 281.º a 284.º do Código do Trabalho, i.é., da lei material donde constam os direitos dos trabalhadores em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

9ª/ Não se trata de uma norma de carácter adjectivo, pois quanto à lei adjectiva já está demonstrado que encontra-se previsto no art.º 145.º, por referência ao 155.º do CPT, o mecanismo para reagir quando o trabalhador/doente discorde da decisão do Instituto da Segurança Social, I.P.

10ª/ Em suma, não há qualquer disposição legal, nem o Tribunal a quo invoca, que determine a obrigatoriedade da Autora pedir a revisão da incapacidade junto da Ré antes de recorrer aos meios judiciais.

11ª/ A sentença recorrida limita-se a citar o sumário do Acórdão do TRG de 21/01/2021, proferido no âmbito do processo n.º 1223/20.1T8VRL.G1 para fundamentar a mesma.

12ª/ No entanto, uma leitura atenta do sumário e do Acórdão na íntegra, demonstra

muito claramente que apenas está vedado o recurso ao pedido de revisão de incapacidade em juízo quando não há decisão definitiva por banda da Ré.

13ª/ Nos presentes autos, a decisão que determinou à Autora uma IPP de 4,5% foi notificada à mesma em 11/03/2022 e tornou-se definitiva após o de curso do prazo de 3 meses para recurso hierárquico ou impugnação judicial.

14ª/ Apesar de a Autora ter a faculdade de efetuar o pedido de revisão de incapacidade junto à Ré, iniciando um novo procedimento administrativo, não o fez, como resulta do PA junto ao processo pela Ré.

15ª/ O que significa que existe uma decisão administrativa definitiva, aquela que fixou à Autora uma IPP de 4,5%, e da qual a Autora pode reagir através do pedido de incapacidade em juízo, conforme resulta da lei.

16ª/ O Tribunal a quo, para além de uma incorreta interpretação da lei, fez uma incorreta interpretação da jurisprudência ao utilizar o Acórdão mencionado para fundamentar a sentença recorrida, dado que se tratam de duas situações distintas — uma em que existe uma decisão definitiva e outra que não.

17ª/ Uma interpretação do art.º 155.º, n.º 1 do CPT que considerasse que a Autora teria que iniciar junto da entidade administrativa um procedimento administrativo para revisão da incapacidade antes de poder recorrer ao pedido de incapacidade em juízo seria inconstitucional por violar o disposto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP ao vedar o acesso da Autora à justiça e aos tribunais.

TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, consequentemente, ser proferida decisão que substitua a sentença recorrida por outra que determine o prosseguimento dos autos.”

O recorrido Instituto da Segurança Social, I.P., apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…).
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso e a sentença mantida, nos seus precisos termos, em parecer a que as partes não responderam.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
                                                                           *
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635, nº 4 e 639, nº 1 do Código de Processo Civil), salvo as questões de conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608, nº2, in fine, e 635º, nº5, do Código de Processo Civil).
Nesta conformidade, a questão a resolver é a seguinte:
Se verifica a exceção dilatória (inominada) de falta de prévia comunicação/tramitação e decisão junto da entidade administrativa.
                                                                           *
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São os constantes do relatório, designadamente:
-Por decisão proferida em 11/03/2022 pelo Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social, foi reconhecida à requerente uma IPP de 4,5000.
-Em 16/11/2022 foi emitido à requerente, atestado médico de incapacidade multiuso que atesta uma Incapacidade Permanente Global de 36%.
                                                                           *
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Se verifica a exceção dilatória (inominada) de falta de prévia comunicação/tramitação e decisão junto da entidade administrativa.
                   Prescreve o art.º 283.º do Código do Trabalho que “1- o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional”.
                   E do n.º 7 do citado preceito resulta que “A responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais é assumida pela segurança social, nos termos da lei.”
Estabelece o art.º 1º, nº 2 LAT[1] que “Sem prejuízo do disposto no capítulo III, às doenças profissionais aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas relativas aos acidentes de trabalho constantes da presente lei e, subsidiariamente, o regime geral da segurança social”.
   Dispõe o artigo 93º da LAT:
“1- A proteção da eventualidade de doenças profissionais integra-se no âmbito material do regime geral de segurança social dos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho e dos trabalhadores independentes e dos que sendo apenas cobertos por algumas eventualidades efetuem descontos nas respetivas contribuições com vista a serem protegidos pelo regime das doenças profissionais.
2- Podem, ainda, ser abrangidos pelo regime previsto no presente capítulo os trabalhadores aos quais, sendo apenas cobertos por algumas eventualidades, a taxa contributiva que lhes é aplicável integre o custo da proteção nas doenças profissionais.”
                   De acordo com o artigo 96º da LAT “A avaliação, graduação e reparação das doenças profissionais diagnosticadas é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da proteção contra os riscos profissionais”.
   Nos termos do art.º 138.º, n.º 1, “a certificação das incapacidades abrange o diagnóstico da doença, a sua caracterização como doença profissional e a graduação da incapacidade, bem como, se for o caso, a declaração da necessidade de assistência permanente de terceira pessoa para efeitos de prestação suplementar. Acrescenta o n.º 3 que a certificação e a revisão das incapacidades é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da proteção contra os riscos profissionais, sem prejuízo do diagnóstico presuntivo pelos médicos dos serviços de saúde, para efeitos da atribuição da indemnização por incapacidade temporária”.
O art.º 140.º sublinha que a aplicação do regime previsto naquele capítulo III compete aos serviços com competências na área da proteção contra os riscos profissionais, com a colaboração das demais instituições de segurança social, no âmbito das respetivas funções.
Os arts. 144.º a 153.º regulamentam a organização dos processos, designadamente no que concerne ao requerimento das prestações previstas no capítulo III perante o serviço com competências na área da proteção contra os riscos profissionais.
                   Daqui resulta que em caso de doença profissional, a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes é assumida pela Segurança Social.
A reparação das doenças profissionais é, assim, assegurada pelo Sistema de Segurança Social, através do Centro Nacional de Proteção Contra os Riscos Profissionais – CNPRP - que é, precisamente, o organismo do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e que tem por missão assegurar a prevenção, o tratamento, a recuperação e a reparação de doenças ou incapacidades resultantes de riscos profissionais.
Por outro lado, resulta da Portaria n.º 135/2012, de 8/05, que aprova os Estatutos da Segurança Social, IP., designadamente do seu art.º 9.º que estabelece as competências do Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais, que a este compete, além do mais, avaliar e fixar as incapacidades das lesões, perturbações funcionais ou doenças emergentes de riscos profissionais (al. a)).
Assim sendo, segundo as disposições citadas, compete ao CNPCRP quer o diagnóstico, quer a fixação do grau de IPP, quer a revisão do grau de IPP anteriormente atribuído.
Ou seja, à semelhança do que acontece com os acidentes de trabalho, corre perante o Centro Nacional de Proteção Contra Risco Profissionais uma fase conciliatória, com a diferença que no primeiro caso a mesma é dirigida pelo Ministério Público e processa-se no tribunal de trabalho, ao passo que na doença profissional processa-se perante uma entidade administrativa e não nos tribunais.
Mas também à semelhança do que acontece no caso dos acidentes de trabalho, caso o doente não se conforme com a decisão do CNPCRP, designadamente quanto ao reconhecimento de doença profissional, quanto à fixação do grau de incapacidade ou quanto ao pedido de revisão de incapacidade permanente pode dar inicio à fase contenciosa agora já no tribunal de trabalho.
No que à lei processual respeita, o art.º 155.º do Código de Processo do Trabalho dispõe:

 “1- O disposto nos artigos 117º e seguintes aplica-se, com as necessárias adaptações, aos casos de doença profissional em que o doente discorde da decisão do Centro Nacional de Proteção contra os Riscos Profissionais.

   2- Nesses casos, o tribunal requisita o processo organizado naquela instituição, que é apensado ao processo judicial e devolvido a final.”

   “Deste esquema tramitacional resulta que o doente profissional pode requerer ao tribunal de trabalho que reveja a incapacidade que o CNPCRP lhe atribui, decisão para a qual o tribunal é competente. Para tanto é pressuposto que esta entidade tenha proferido decisão na matéria.

   No caso, o requerente precipitou-se dado que deu início à fase contenciosa em tribunal de trabalho, sem que a fase conciliatória junto da entidade administrativa tivesse sido esgotada e concluída, na medida em que ainda não foi proferida decisão, o que impede que o tribunal possa de imediato apreciar o pedido. A fase contenciosa que se processa no tribunal do trabalho pressupõe um procedimento prévio obrigatório que decorre junto da referida entidade administrativa até que esta profira decisão.[2]

 Assim sendo, o presente processo não pode ter seguimento e o tribunal não pode apreciar o mérito, faltando um requisito ou pressuposto processual inominado (a prévia tramitação e decisão junto do CNPCRP), exceção dilatória que leva ao indeferimento liminar (ou absolvição da requerida da instância se detetado mais tarde) e é de conhecimento oficioso- 278º, 1, e), 576º, 1 e 2, 578º, 590º, 1, CPC[3].
                                                                           *
DECISÃO
Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pelo apelante, atendendo ao seu vencimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
                                                                                                           Coimbra, 29 de maio de 2024
Mário Rodrigues da Silva- relator
Paula Maria Roberto
Felizardo Paiva
                                                                           *
Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):
(…).

                   Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original


([1]) Lei nº 98/2009, de 4/9.
([2]) Ac. do TRG, de 21-01-2021, proc. 1223/20.1T8VRL.G1, relatora Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso, www.dgsi.pt.
([3]) Acs do TRC, de 25-09-2008, proc. 305/05.4TTCTB.C1, relator Azevedo Mendes, do STJ, de 1-10-2023, proc. 17552/20.1T8LSB.L1.S1, relator Mário Belo Morgado e do TRL, de 19-04-2023, proc. 17552/20.1T8LSB.L1-4, relator Alda Martins, www.dgsi.pt.