Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CARLOS MOREIRA | ||
Descritores: | RECUSA DE REGISTO PREDIAL CASO JULGADO | ||
Data do Acordão: | 09/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DAS CALDAS DA RAINHA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 205.º, 2, DA CRP ARTIGOS 34.º; 68.º; 80.º E 116.º, DO CRPREDIAL ARTIGOS 262.º; 263.º; 576.º, 2; 577.º, I); 578.º; 580.º; 581.º E 608.º, DO CPC | ||
Sumário: | I - Se a sentença decide com base em dois fundamentos: um primeiro e decisivo, e outro subsidiário, e se no recurso nada se diz quanto ao primeiro e apenas se esgrime quanto ao segundo, ela, por virtude do primeiro, intocado, fundamento, transitou em julgado, pelo que o recurso improcede.
II- Na exceção do caso julgado, para haver identidade sujeitos, basta que ela se verifique no atinente à sua qualidade jurídica, ie., atentos os interesses que prosseguem e o estatuto e legitimidade que invocam; pelo que se duas conservadoras do registo predial, mesmo que de conservatórias diferentes, recusam um registo, ademais com fundamentação essencialmente igual, e tal recusa é confirmada em ação judicial pretérita, tal identidade ocorre. III – As regras registrais valem por si próprias e visam uma finalidade específica, pelo que o registo de propriedade, com base num dado modo de aquisição, mesmo que original, como seja a usucapião, pode ser recusado por virtude de argumentos de índole registral, vg., a violação do trato sucessivo. | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Carlos moreira Adjuntos: Fonte Ramos Alberto Ruço
ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1. AA, interpôs recurso contencioso do despacho da Sra. Conservadora da Conservatória do Registo Predial de ..., proferido 30 de Janeiro de 2023, que recusou o registo da aquisição a seu favor de dois prédios rústicos, inscritos na matriz sob os artigos ...15... e ...16.º, ambos da freguesia ... [cf. apresentação n° ...12 de 05.12.2022]. Alegou, para tanto e em síntese: Instaurou, no Julgado de Paz ..., ação declarativa de aquisição por usucapião de dois prédios rústicos situados na ..., freguesia ..., concelho ..., provenientes do fracionamento do artigo rústico ...24.º da mesma freguesia; O Julgado de Paz julgou a ação procedente, por provada, e, em consequência: «- Declarou que o Demandante, AA, é exclusivo doo, legítimo proprietário e possuidor dos prédios identificados nas alíneas a) e b) do item 7 da sentença, por os haver adquirido por usucapião, com os respetivos efeitos a retroagir ao ano de 1994; - Ordenou a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial, bem como, nas Finanças de modo a que seja conformada a realidade registal com a realidade factual existente.»; A decisão proferida pelo Julgado de Paz transitou em julgado e todos os intervenientes estão devidamente identificados; A Autoridade Tributária inscreveu os ditos prédios, até então omissos, na matriz rústica da freguesia ..., atribuindo a cada um os artigos ...15... e ...16.º, respectivamente; Os prédios estão identificados e georreferenciados no Sistema de Informação Cadastral Simplificada; Em consequência, a viabilidade do pedido de registo cumpre o princípio da legalidade, “observando as doutas posições dominantes da vasta doutrina e da jurisprudência no que respeita a acção de justificação judicial, usucapião, trato sucessivo, fracionamento da propriedade rústica, terrenos aptos para a cultura, terrenos que se destinem a outros fins, aplicação da lei no tempo, interesse público, publicidade, nulidade e anulabilidade e usucapio contra tabulas.
A Srª Conservadora do Registo Predial sustentou a decisão recorrida, invocando, em síntese: O registo pretendido pelo Recorrente respeita à inscrição da aquisição a favor do mesmo de dois prédios rústicos com proveniência no prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...24.º da freguesia ..., concelho ..., o qual, por seu turno, se encontra descrito naquela Conservatória sob o n.º ...25 (parte), sob o n.º ...26 (parte) e sob o n.º ...33 (parte), com inscrição de propriedade a favor de BB, que não teve intervenção no processo que correu termos no Julgado de Paz, pelo que ocorre violação do trato sucessivo, não podendo, em consequência, a descrição predial ser atualizada oficiosamente; A menção na sentença que por força das desanexações já registadas naquele artigo deu origem a dois novos prédios rústicos não é título bastante para a criação daqueles dois prédios; Registralmente também não é possível desanexar estes dois prédios mencionados na sentença, havendo três descrições prediais com o mesmo artigo matricial; Sem prejuízo, o registo já foi anteriormente recusado na Conservatória do Registo Predial ..., tendo havido recurso judicial da decisão de recusa; que da procuração forense apresentada pelo apresentante não consta a autenticação, nos termos do código do notariado, dos poderes especiais para averbamento de actualizações das descrições.
O Ministério Público emitiu parecer a fls. 67-68. Suscitando a existência de caso julgado em face da decisão judicial anteriormente proferida no processo 174/22...., transitada em julgado, e, sem prescindir, caso assim não se entenda, reiterando a fundamentação expendida na referida decisão judicial. Pedindo: A improcedência do recurso ora interposto e pela manutenção da decisão de recusa impugnada. O recorrente respondeu, quanto ao caso julgado. Sustentando que, apesar de existir identidade da causa de pedir, inexiste identidade de sujeitos, na medida em que as Conservatórias, embora tenham a mesma qualidade jurídica, são dirigidas por Conservadores que são pessoas diferentes, com entendimentos e apreciações diferentes, tanto mais que, in casu, os fundamentos de recusa são substancialmente diferentes. 2. Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido: «Destarte, julgo verificado o caso julgado relativamente ao pedido formulado através da apresentação n.º...12 e, em consequência, mantenho a recusa impugnada.» 3. Inconformado recorreu o impugnante. Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões: I - O pedido de registo dos prédios criados ex novo refere-se aos artigos ...15... e ...16.º, rústicos, da freguesia ..., que estão deviamente identificados, a ponto da Senhora ... ter lavrado as descrições 2.../...11 -artº ...15 – e 22.../...211 -artº ...16/ .... II - A aquisição originária dos citados prédios consta da sentença emanada pelo Tribunal Julgado de Paz ... – ... – nos termos da sua competência legal. III - A sentença foi proferida na audiência do julgado e tem o valor das sentenças proferidas pelos tribunais de 1º Instância (artºs 60 e 61 da LJP) IV - As partes e as testemunhas estão devidamente identificadas e foram cumpridas as normas de citação e notificação. V - Estes terrenos são leiras sobrantes resultantes de fracionamento do prédio rústico artº ...24 /... anterior a 1994 e foram objecto de compra verbal nessa data, à Sociedade de Melhoramento de ..., Lda.- VI - Não são aptos para cultura - Artº 1377º alínea, in fine. VII - A usucapião visa satisfazer o interesse público da certeza dos direitos reais sobre as coisas e da respetiva titularidade e de a conseguir através da respetiva prova - a posse devidamente invocada, alegada e demonstrada. in Acórdão do STJ .2ª Secção – 30-05.2019 – Relatora Rosa Ribeiro Coelho. VIII - A aquisição por usucapião é originária, genética e endógena, na medida em que tem por causa, tem na sua génese apenas a posse por certo lapso de tempo. (Durval Ferreira). IX - A aquisição da propriedade pela usucapião destrói qualquer presunção iuris tantum como a derivada do registo (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-03-2007 e 03-12-2010). X - O pedido de registo dos prédios foi devidamente instruído. Nestes termos e nos mais de direito doutamente supridos por Vossas Excelências, deverá ser decretado que o processo de justificação de aquisição por via da usucapião dos prédios rústicos autónomos e destintos artigos nºs ...15 e ...16 da freguesia ..., cumpre a legislação em vigor, devendo ser registados conforme foi requisitado. Contra alegou o Digno Magistrado do MºPº, pugnando pela manutenção do decidido, com os seguintes argumentos finais: 1. Em ambas as apresentações, existe identidade, quer do pedido -inscrição dos prédios rústicos ...15 e ...16 em nome do recorrente -, quer da causa de pedir - aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião -, e bem assim identidade dos sujeitos - a Conservatória do Registo Predial, seja de ..., seja de ..., assumem a mesma não tem a qualidade de parte, mas sim de entidade decisora, que funciona, no âmbito do procedimento administrativo em causa, como "primeira instância", sendo irrelevante a identificação individual do Conservador em funções [tal como ocorre, aliás, com os tribunais judiciais]. 2. Verifica-se, assim, estar verificado caso julgado relativamente ao pedido formulado através da apresentação n....12, que integra o objecto do presente processo. 3. A excepção de caso julgado constitui urna excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância - cf. os arts. 576.º n.02.0, 577.0 al. i) e 578.0, todos do novo CPC -,in casu, à manutenção da decisão impugnada. 4. De todo o modo, sempre se dirá que sempre o presente recurso teria de improceder, corno igualmente referido na sentença recorrida. 5. Com efeito, não obstante as decisões do Julgado de Paz terem o valor de sentença proferida por tribunal de 1. ª instância para efeitos do disposto no art. 205.º n.02 da CRP, não podem substituir-se às demais autoridades, rnaxirne, do Conservador na prática dos seus actos próprios, nem sobrepor-se à competência especifica do mesmo." 6. Por isso, a decisão proferida pelo Julgado de Paz não pode ser entendida corno urna ordem directa e concreta dirigida ao Conservador, para a qual os tribunais judiciais não têm legitimidade. 7. Ou seja, compete ao Conservador, perante a decisão judicial que lhe é apresentada, verificar, além do mais, a identidade dos sujeitos e dos prédios e o respeito do trato sucessivo, de molde a praticar o acto próprio da sua competência [ registo da aquisição] em conformidade com a lei- cf. o art. 68º do Código de Registo Predial. 8. Ao invés, com o devido respeito, a inscrição do direito de propriedade invocado pelo recorrente nos termos decididos pelo Julgado de Paz ..., sem documentar e registar as desanexações que, alegadamente, terão dado origem às parcelas identificadas da referida sentença, e em violação dos arts. 34º, 80º e 116º do Código de Registo Predial, daria necessariamente origem à sobreposição de descrições prediais e à criação de dois tratos sucessivos incompatíveis entre si. 9. Assim, constatando, como constatou, a sra. Conservadora da Conservatória de ..., no exercício da qualificação, perante os documentos apresentados e as disposições legais aplicáveis, existirem razões de natureza registral e de quebra do trato sucessivo, que, aliás, também subscrevemos na íntegra, para recusar o pedido de registo concretamente formulado pelo recorrente, deve considerar-se legal a decisão de recusa sub judice, pelo que sempre o presente recurso sempre deveria ser julgado improcedente.
4. Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:
Admissibilidade do registo dos dois imóveis.
5. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 05.12.2022, através da apresentação n.º...12, o recorrente requereu, na Conservatória do Registo Predial de ..., o registo da aquisição, a seu favor, de prédios rústicos, localizados no ..., freguesia ..., inscritos na matriz predial sob os artigos ...15 e ...16 da mesma freguesia, omissos no registo – cf. requerimento de registo de fls. 10-12 e certidões prediais de fls. 48-48vs e 49-49vs. 2. Para o efeito juntou certidão, com nota de trânsito em julgado, da sentença proferida, a 26.02.2021, pelo Julgado de Paz ..., em que é demandante o aqui recorrente e é demandada a SOCIEDADE DE MELHORAMENTOS DO ..., LDA., nos termos da qual, julgando a acção procedente, se decidiu: «a) Declara-se que, por os haver adquirido por usucapião, com os respetivos efeitos a retroagir o ano de 1994, o Demandante é exclusivo dono, legítimo proprietário e possuidor, dos prédios identificados nas alíneas a) e b) do item 7 dos factos provados [onde se lê: «7. Por via das referidas desanexações, em data anterior ao descrito no item 8, o artigo ...24 prédio passou a integrar dois prédios autónomos e independentes, com áreas e confrontações bem definidas, tendo cada um acesso à via pública, não resultando o encrave de nenhum deles, com a seguinte composição: a) rústico, composto de terra de semeadura e mato, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 2.032,00m2, a confrontar do Norte com CC, do Sul com Delegação Marítima, do Nascente com DD e Outros e do Poente com Rua ... e Outros (…); b) rústico, composto de terra de semeadura e mato, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 626,00m2, a confrontar do Norte e Poente com AA, do Sul com Delegação Marítima, do Nascente com Rua ... (…);»]; b) Ordena-se a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial, bem como do Serviço de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente.» - cf. certidão de fls. 30-40, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 3. O acto requerido foi objecto de recusa por despacho de qualificação proferido no dia 30.01.2023 com a seguinte fundamentação exarada pelo Sr. Conservador: «Recusado o registo aquisição requerido pela apresentação supra, já recusado pela ap. ...39 de 2022-02-11 da Conservatória ..., e mantendo-se tudo o que foi alegado no douto despacho, com o qual concordamos na íntegra. Assim: A atualização do prédio, não pode ser lavrada oficiosamente, tal como foi ordenada na sentença proferida pelo Julgado de Paz pois cabe ao Conservador fazer as operações aritméticas para chegar ao que se pretende, depois de deduzir as áreas desanexadas. Poderá haver outras desanexações não registadas, só sendo possível a sua atualização com intervenção de entidades com legitimidade para o efeito. Continua a haver violação do trato sucessivo, pois o prédio encontra-se registado a favor de BB que não teve intervenção no processo, tendo o reclamante como sócio da sociedade MELHORAMENTOS DO ... comprado o referido prédio à sociedade, que nunca legrou registar. É requerida a aquisição de dois prédios rústicos, inscritos na matriz sob os artigos ...15 e ...16, resultantes da divisão do artigo ...24, todos da freguesia ..., sendo este fracionamento nulo (…) Apesar da sentença mencionar dois prédios rústicos, o certo é que a justificação teve por base o prédio inscrito sob o artigo ...24, não podendo haver a descriminação e abertura de descrição de dois novos prédios, com artigos criados de novo, como foi requerido. Também ainda não se encontra registada a sorte da impugnação judicial, pelo que o ato, se não fosse recusado, sempre seria provisório por natureza nos termos da alínea d) do n.º2 do artigo 92.º do Código do registo predial. (…) Fundamento legal: artigo 116 do Código do Notariado e artigos 34, 39, 43º, 68º e 69º, n.º2 e 71 todos do Código do registo Predial. (…)» - cf. despacho documentado a fls. 13. 4. De tal acto o requerente interpôs o presente recurso. 5. Tendo a Sra Conservadora lavrado despacho de sustentação do mesmo, documentado a fls. 2-2vs, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 6. No dia 11.02.2022, através da apresentação n.º539, o recorrente requereu, na Conservatória do Registo Predial ..., o registo da aquisição, a seu favor, de prédios rústicos, localizados no ..., freguesia ..., inscritos na matriz predial sob os artigos ...15 e ...16 da mesma freguesia, omissos no registo – cf. certidão de fls. 7-94vs, maxime o requerimento de registo de fls. 76-78, e certidões prediais de fls. 48-48vs e 49-49vs. 7. Para o efeito juntou certidão, com nota de trânsito em julgado, da sentença proferida, a 26.02.2021, pelo Julgado de Paz ..., acima referenciada em 2). 8. O acto requerido foi objecto de recusa por despacho de qualificação proferido no dia 07.03.2022 com a seguinte fundamentação exarada pelo Sr. Conservador: «(…) Na referida sentença identifica-se a descrição predial ...33 (anterior descrição em Livro ...60) bem como os prédios que entretanto foram dela desanexados. A descrição ...33 encontra-se desatualizada (após as referidas desanexações), mas não se procede à sua efetiva atualização, pela dedução das áreas entretanto desanexadas do prédio principal, no sentido de apurar a área atual, sua matriz e composição. A referida descrição predial mostra-se registada a favor de BB – Ap. ... de 1971/07/12. Aquele BB (ou, porventura os seus herdeiros) não são parte no referido processo. (…) Por outro lado, foi junto processo de inscrição de prédio omisso na matriz, tendo o referido processo dado origem aos artigos ...15 e ...16. Acontece que a sentença assentou sempre, ao identificar o prédio (ainda que dividido) no artigo ...24, pelo que não pode o justificante pretender (como parecer ser o caso), a abertura de duas descrições prediais, correspondentes a dois artigos criados ex novo. Por estar em causa a identidade do prédio, a falta de intervenção do titular inscrito, a existência de verdadeiro litígio, a base legal para a referida descriminação matricial e predial, RECUSA-SE o presente pedido de registo.» 9. De tal acto o requerente interpôs recurso de impugnação, - idem, cf. requerimento documentado a fls. 82-87, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 10. Tendo a Sra Conservadora lavrado despacho de sustentação - idem, cf. despacho documentado a fls. 89-91, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 11. No âmbito daquele recurso foi, então, proferida douta sentença, transitada em julgado em 13.07.2022, nos termos da qual se julgou o recurso de impugnação improcedente, mantendo, em consequência, o despacho de qualificação de recusa do pedido de registo – cf. sentença certificada a fls. 63-66, proferida no processo 174/22.... do Juízo de Competência Genérica ..., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 6. Apreciando. 6.1. Na sentença decidiu-se, de jure, nos seguintes termos: «Vem, desde logo, o Ministério Público, na sua resposta ao recurso, arguido a violação de caso julgado em face do recurso de impugnação que correu termos sob o citado 174/22..... Sustenta, para tanto, que, entre o presente recurso e o dito processo 174/22.... existe identidade de sujeitos (referindo, a esse particular, que pese embora estejam em causa Conservatórias diferentes sempre as mesmas assumem a mesma qualidade jurídica), de pedido e de causa de pedir. Ao invés, sustenta o recorrente que, embora a causa de pedir seja idêntica em ambos os recursos, inexiste identidade de sujeitos, na medida em que, apesar de o requerente ser o mesmo, as Conservatórias, embora tenham a mesma qualidade jurídica, são dirigidas por Conservadores que são pessoas diferentes, com entendimentos e apreciações diferentes; inexiste identidade de pedido, na medida em que as requisições dos pedidos de registo são diferentes, sendo que, além do pedido de registo de aquisição dos dois prédios rústicos em nome do recorrente, a requisição apresentada na Conservatória ... continha ainda a alínea b) da sentença do Julgado de Paz, pedido este que foi omitido na requisição apresentada na Conservatória .... Vejamos. A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira já ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cf. o art. 580.º n.ºs 1 e 2 do novo CPC). Desta forma, a excepção de caso julgado impede que seja proferida uma decisão de mérito na acção posteriormente intentada, razão pela qual é qualificada de excepção dilatória [cf. o art. 577.º al. i) do novo CPC], com os efeitos estabelecidos no art. 576.º n.º2 do mesmo código. O caso julgado que releva para efeitos da excepção em análise é o caso julgado material, no sentido em que transitada a sentença que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele quando se verifique a instauração de nova acção com a tríplice identidade quanto ao objecto [causa de pedir e pedido] e sujeitos processuais. Ou seja, como decorre do art. 581.º do novo CPC, a repetição de uma causa pressupõe, além da identidade de sujeitos, que se esteja perante o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o que cumpre analisar. Sobre a identidade dos sujeitos, dispõe o art. 581.º n.º2 do novo CPC que esta tem lugar “quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência que aquilo que interessa para o efeito não é a identidade física dos sujeitos, mas sim a sua identidade em face de uma concreta relação material controvertida, existindo identidade ainda que, processualmente, os sujeitos daquela relação material, processualmente, estejam em posições diferentes. No caso em apreço, cumpre apreciar da verificação de caso julgado, tendo por base os procedimentos iniciais de inscrição da aquisição dos dois prédios rústicos em nome do aqui recorrente. Ou seja, a Conservatória do Registo Predial, seja de ..., seja de ..., não tem a qualidade de parte, mas sim de entidade decisora, que funciona, no âmbito do procedimento administrativo em causa, como “primeira instância”, sendo irrelevante a identificação individual do Conservador em funções [tal como ocorre, aliás, com os tribunais judiciais]. Como tal, in casu, verifica-se a existência da identidade de sujeitos quanto ao aqui recorrente, que foi requerente de ambas as apresentações para registo de aquisição, sendo esta a única que releva. Por sua vez o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo requerente, é o efeito jurídico que o requerente pretende obter com a propositura da acção. A causa de pedir, por seu turno, é o facto concreto que serve de fundamento ao direito invocado pelo requerente. Descendo ao caso concreto, temos, assim, que, em ambas as apresentações, existe identidade, quer do pedido – inscrição dos prédios rústicos ...15 e ...16 em nome do recorrente -, e da causa de pedir – aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião. Ou seja, na medida em que o pedido de registo apresentado na Conservatória ... não introduz quaisquer factos novos em face da primeira decisão de recusa, proferida pela Conservatória ..., quiçá, não vem suprida a violação do trato sucessivo…, não vem suprida a sobreposição de artigos matriciais [ou seja, a criação ex novo de dois artigos/prédios tendo por base a desanexação de um artigo/prédio pré-existente], no caso dos autos torna-se evidente a existência de identidade de ambos os pedido de registo apresentados pelo recorrente e, bem assim, da causa de pedir subjacente aos mesmos. E, nesta medida, a apresentação de registo n.º...12, apresentada na Conservatória ..., consubstancia uma repetição da apresentação n.º539, apresentada e recusada [com decisão transitada em julgado] na Conservatória .... Termos em que importa concluir que existe caso julgado relativamente ao pedido formulado através da apresentação n.º...12, que integra o objecto do presente recurso, procedendo, em consequência, a excepção de caso julgado arguida pelo Ministério Público. A excepção de caso julgado constitui uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância - cf. os arts. 576.º n.º2.º, 577.º al. i) e 578.º, todos do novo CPC -, in casu, à manutenção da decisão impugnada. Ainda assim, mesmo que assim, não se entendesse, sempre o presente recurso teria de improceder. Efectivamente, tal como exarado na douta sentença proferido no processo 174/22...., que acompanhamos na íntegra, não obstante as decisões do Julgado de Paz terem o valor de sentença proferida por tribunal de 1.ª instância para efeitos do disposto no art. 205.º n.º2 da CRP, não podem substituir-se às demais autoridades, maxime, do Conservador na prática dos seus actos próprios, nem sobrepor-se à competência especifica do mesmo. Como tal, a decisão proferida pelo Julgado de Paz não pode ser entendida como uma ordem directa e concreta dirigida ao Conservador, para a qual os tribunais judiciais não têm legitimidade. Ou seja, compete ao Conservador, perante a decisão judicial que lhe é apresentada, verificar, além do mais, a identidade dos sujeitos e dos prédios e o respeito do trato sucessivo, de molde a praticar o acto próprio da sua competência [registo da aquisição] em conformidade com a lei – cf. o art. 68.º do Código de Registo Predial. Ao invés, com o devido respeito, a inscrição do direito de propriedade invocado pelo recorrente nos termos decididos pelo Julgado de Paz ..., sem documentar e registar as desanexações que, alegadamente, terão dado origem às parcelas identificadas da referida sentença, e em violação dos arts. 34.º, 80.º e 116.º do Código de Registo Predial, daria necessariamente origem à sobreposição de descrições prediais e à criação de dois tratos sucessivos incompatíveis entre si. Assim, transpondo para o caso em análise a douta sentença proferida no processo 174/22...., constatando, como constatou, a sra. Conservadora da Conservatória de ..., no exercício da qualificação, perante os documentos apresentados e as disposições legais aplicáveis, existirem razões de natureza registral e de quebra do trato sucessivo, que, aliás, também subscrevemos na íntegra, para recusar o pedido de registo concretamente formulado pelo recorrente, consideramos legal a decisão de recusa sub judice Concluindo, bem andou a Sra. Conservadora, termos em que o presente recurso sempre seria julgado improcedente.» 6.2. Verifica-se assim que na sentença o recurso foi indeferido e a decisão da Conservatória confirmada desde logo, em primeira mão e a título principal, por um motivo processual formal, qual seja a conclusão pela existência de caso julgado por reporte à sentença proferida no processo 174/22..... E apenas se desatendeu o recurso por motivos substantivos, corroborando-se os argumentos aduzidos pela Conservatória e confirmados neste processo 174/22, a título meramente subsidiário e, quiçá, ad abundantiam. Ora visto o teor do presente recurso constata-se que nem no corpo das alegações, nem nas respetivas conclusões, o recorrente aborda o tema, primeiro e decisivo, vertido na sentença, qual seja, a interpretação e entendimento de que existe caso julgado. Como supra se expendeu em 4. as conclusões do recurso definem o seu objeto. Assim, constitui jurisprudência pacífica que: «São as conclusões que delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal “ad quem” conhecer de questão que delas não conste.» - Ac. do STJ de 06.06.2018, p. 4691/16.2T8LSB.L1.S1, in dgsi.pt. Nesta conformidade, não se insurgindo quanto ao argumento principal e decisivo supra, tem de concluir-se que a sentença, neste fundamento primeiro essencial e determinante, transitou em julgado. E transitando em julgado tal questão, o caso está decidido e arrumado. Certo é que o recorrente se insurge contra a sentença na parte em que ela aborda a questão/vertente substantiva da causa, qual seja a suficiência da aquisição por usucapião que lhe foi reconhecida no Julgado de Paz. Mas esta vertente, reitera-se, é meramente secundária/subsidiária/acessória/facultativa. Ou seja, a causa foi, prévia e cabalmente, decidida em função do caso julgado. Pelo que, no rigor dos princípios, o conhecimento do restante fundamento ficou prejudicado. Podendo a julgadora nem sequer a ele se tendo reportado e analisado. E, estamos em crer, apenas tendo sobre o mesmo emitido pronúncia, a título meramente informativo e didático. Que não já a título obrigatório e estritamente necessário para a decisão da causa. A qual, reitera-se, tinha já sido decidida anteriormente, por motivos processuais-formais. Tudo, aliás, em consonância com o estatuído no artº 608.º do CPC, a saber: «Questões a resolver - Ordem do julgamento 1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.» Por conseguinte, se atingindo a final conclusão que a sentença transitou em julgado e o recurso queda improcedente. 6.3. Mas mesmo que o recorrente tivesse abordado o fundamento, primeiro e decisivo, do caso julgado pelos fundamentos já por ele aduzidos no processo, não teria razão. A exceção do caso julgado, prevista no artº 580º do CPC pressupõe a repetição de uma causa; e esta repete-se quando exista a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir. Para que haja identidade de sujeitos basta que ele se verifique no atinente à sua qualidade jurídica, ie., e determinantemente, atentos os interesses que prosseguem e o estatuto e legitimidade que invocam. Ou, por outras palavras, para este efeito, não releva o estrito conceito formal de parte, mas, na verdade, um conceito material de parte. Este apura-se pelo âmbito de eficácia material do objeto processual e não pela estrita e literal titularidade da instância. Daqui decorre que são idênticos, vg., o primitivo titular do direito que interveio na ação e as pessoas que, por sucessão, mortis causa ou entre vivos, -vg. compra, doação, permuta, etc -, assumiram a posição jurídica daquele, quer a substituição se tenha operado no decurso da ação – artsº 262º e 263º do CPC -, quer se tenha verificado só após ter sido proferida a sentença. E que não obsta à verificação de tal identidade a circunstância de nos dois processos as partes terem litigado na posição de réu e depois na de autor, ou vice versa – cfr. M. de Andrade: Noções Elementares, 1979, p. 310; A. Varela: Manual de Processo Civil, p.722; A. Neto: Breves Notas ao CPC, 2005, p.145 e Remédio Marques: Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, p.452. Já quanto ao pedido existe identidade do mesmo quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Assim o pedido tem a ver/conexiona-se/reporta-se ao objeto da ação como definido pelo autor, reside na pretensão por si formulada a qual se identifica através da providencia solicitada ao tribunal e através do direito a ser tutelado por esse meio. Na verdade: «A identidade de pedido …é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional – implícita ou explícita – pretendida pelo autor, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos. Ocorre identidade de pedidos se o autor, numa e noutra ação, pretende obter o mesmo efeito útil, isto é, compelir os réus ao cumprimento do contrato-promessa de compra e venda de parcela de terreno.» - AC STJ de 05.12.2017, p. 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 E há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. A causa petendi é pois o facto com relevância jurídica, ie. à qual a lei atribui potenciais efeitos jurídicos, mas que, ele mesmo, deve assumir essência e contornos materiais concretos, do qual dimanarão aqueles efeitos jurídicos se a pretensão deduzida for atendida. Há identidade de causas de pedir mesmo que os factos complementares sejam diversos. Se os factos aditados aos factos alegados na outra ação são apenas complementares ou concretizadores de uma causa de pedir que estava suficientemente individualizada, a causa de pedir é idêntica. Exemplo: se numa ação por acidente de viação se alega o facto danoso como tendo sido propositado e noutra ação como tendo sido inconsciente, há, ainda assim, identidade de causa de pedir. E há identidade de causas de pedir mesmo que a qualificação jurídica seja diversa. Assim, se o autor obteve a condenação do réu na restituição de quantia pecuniária cedida a título de mútuo fica também impedido de deduzir o mesmo pedido com fundamento nos mesmos factos, agora qualificados como contrato de mandato – cfr. Rui Pinto, in file:///C:/Users/Mj01096/Downloads/20181126-ARTIGO-JULGAR-Exce%C3%A7%C3%A3o-e-autoridade-do-caso-julgado-Rui-Pinto.pdf. Por outro lado importa ter presente que o caso julgado tem por objetivos defender o prestígio dos tribunais e a certeza e segurança jurídica, já que os mesmos seriam afetados por se decidir antagónica ou contraditoriamente a mesma situação concreta. Porém, esta figura, em termos concretos da vida real, «apenas se destina a evitar uma contradição pratica de decisões e não já a sua colisão teórica ou lógica…só pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas)…a que em novo processo o juiz possa estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão…» - M. Andrade, ob. cit, p. 317/8. (sublinhado nosso) Ora no caso sub judice é meridianamente evidente que existe, entre a presente ação e os autos 174 supra aludidos, desde logo identidade de pedido: o pedido de registo dos imóveis rústicos ...15 e ...16. E existe identidade de causa de pedir. Pois que o facto alicerçante fundamentador é o mesmo: aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião. E tudo isto foi alegado sucessivamente nas ... e de .... Já quanto à identidade de sujeitos ela outrossim se verifica, pois que as Conservatórias e os Tribunais são os mesmos na sua qualidade jurídica, já que exercem as mesmas competências funcionais. Inclusive, esta identidade sai reforçada, pois que as duas Conservatórias e o Tribunal, na ação 174, aduziram, na sua essencialidade relevante, os mesmos argumentos para indeferir o registo. E o facto de apenas existir uma discrepância geográfica entre as conservatórias, natural e quase obviamente, irreleva. 6.4. Finalmente e quanto ao argumento aduzido no recurso, dir-se-á, algo pleonasticamente, que nem aqui o recorrente teria êxito recursivo. Basta alertar sucintamente, que a força do poder aquisitivo da usucapião é um coisa. E as regras próprias do registo são outra. O registo não cria direitos: apenas os publicita, por razões de certeza e segurança. As regras registrais assumem um jaez próprio e autónomo e visam uma específica finalidade Destarte, figuras ou institutos, decorrentes de outras regras, de cariz e fito diversos, como seja a usucapião, não se sobrepõem, ao menos necessária e inelutavelmente, às regras registrais. No caso assim é, tendo as Srªs Conservadoras fundamentado a recusa do registo, vg, por violação do trato sucessivo. Este argumento é próprio da legislação registral, o qual, reitera-se, não é, necessariamente, prejudicado ou impedido por razões substantivas civilísticas, como seja a aquisição do domínio via usucapião. Esta pode atribuir a propriedade, mas o registo desta pode ser recusado pelas regras próprias do Código do Registo Predial.
Improcede, brevitatis causa, o recurso.
(…)
9. Deliberação. Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pelo recorrente.
Coimbra, 2024.09.24.
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