Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
220/06.4GAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
CRIME DE RECEPTAÇÃO
Data do Acordão: 01/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º DA CRP ;14ºE 231º DO CP; 127º,412º, 428ºE 431Ç DO CPP
Sumário: 1.O reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso.
2. É inequívoco com base na prova produzida e contrariamente ao juízo efectuado pelo Tribunal da primeira instância, que estão provados os seguintes factos: O arguido R solicitou ao arguido J P que guardasse na sua residência parte dos bens que tinha na sua posse ao que este acedeu apesar de suspeitar da proveniência ilícita dos mesmos que o arguido J P transportou então, parte dos bens que estavam na posse do arguido R. para sua casa. No dia 23 de Dezembro deslocaram-se a casa do arguido J P, S e R e o arguido entregou-lhes três camisolas, que aí foram apreendidas pela GNR de Leiria.

3.A determinação da pena compete ao tribunal da 1.ª instância e ao Tribunal que elaborou a sentença. Por um lado, porque o direito ao recurso é uma das garantias de defesa reconhecidas constitucionalmente ao arguido (art.º 32 n.º 1 do CRP), garantia que ficaria defraudada se – tendo o arguido sido absolvido na 1.ª instância –, viesse agora a ser condenado nesta instância, sem que desta decisão pudesse recorrer (como não poderia, face ao disposto no art.º 400 n.º 1 al.ª e) do CPP). Por outro lado, porque a relativa autonomização do momento da determinação da sanção estabelecida no art.º 369 n.º 2, com referência ao art.º 371 do CPP, leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere da necessidade de prova suplementar (para a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar) e da eventual reabertura da audiência com vista à determinação da sanção.

Decisão Texto Integral: 22

I. RELATÓRIO.

No processo Comum singular n.º …/06.4GAMGR.C1 foram julgados os arguidos R., P. e J., acusados o primeiro de um crime de furto qualificado p.p. pelos artigos 203º e 204º nº1 alínea a) e n.º 2 alínea e) e 26 do C. Penal e os segundos de um crime de receptação previsto e punido pelo artigo 231º n.º 1 do C. Penal.

O arguido R. foi condenado como autor material de um crime de furto qualificado p.p. pelos artigos 203º e 204º nº1 alínea a) e n.º 2 alínea e) e 26 do C.Penal na pena 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao regime de prova através do Plano Individual de Reinserção Social a elaborar pela equipa da DGRS. O arguido foi ainda condenado no pagamento de taxa de justiça e nas custas do processo e procuradoria e ainda no pagamento de 1% da taxa de justiça devida nos termos do artigo 13º n.º 3 do DL 423/91, de 30 de Outubro.

Os arguidos J. e P. foram absolvidos.

Não se conformando com a decisão de absolvição destes arguidos o Ministério Público veio interpor recurso da mesma para este Tribunal, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

1- O Tribunal condenou o arguido R. pela prática de um crime de furto e absolveu os arguidos P. e J. do crime de receptação, pelo qual estavam acusados.

2- De acordo com a motivação, o Tribunal fundou-se “no teor das declarações essencialmente confessórias do arguido R, no teor dos documentos juntos aos autos, maxime nos autos de apreensão acima directamente identificados, no teor do depoimento escorreito e aparentemente isento das testemunhas de acusação J L, J, S, R, C. M , B. e M A .

3- Como se constata, o Tribunal deu toda a credibilidade ao depoimento do arguido R. e das testemunhas acima indicadas, considerou-os como bons para proceder à decisão da causa, condenando o arguido R. mas, contraditoriamente, a nosso ver, não deu como provados os factos pelos mesmos relatados, a não ser aqueles que têm suporte documental, no caso das testemunhas

4- Ora, tendo aceitado a confissão do arguido R., bem como dado toda a credibilidade e relevância ao depoimento das testemunhas acima mencionadas, e ainda alicerçado nos autos de apreensão juntos aos autos e na experiência comum, o Tribunal não esclareceu a razão pela qual acabou por não dar como provados os restantes factos pelas mesmas relatados na ia pessoa, pois que tiveram neles intervenção directa, a saber:

- Que o arguido R., logo após o assalto, entregou ao arguido J P um número não determinado de peças de roupa e outros bens para que as guardasse, por tempo indeterminado

.-Que o arguido R. informou o arguido J P, na ocasião, da proveniência daqueles artigos de vestuário;

- Que, no dia seguinte, o arguido R. contou à arguida P. como havia obtido aqueles artigos de vestuário e outros que levou para casa;

- Que o arguido J P deu à P alguns dos artigos que lhe haviam sido entregues para guarda e lhe deu a conhecer a proveniência dos mesmos;

- Que a arguida P., em data não determinada, vendeu, no estado de novo, à testemunha CF, as peças de roupa discriminadas no auto de apreensão de fis. 9, datado de 3-4-2007, pelo preço de 5.,00 euros cada peça;

- Que o arguido J P, em data próxima do Natal, ofereceu às testemunhas S e R. as peças de vestuário constantes do auto de apreensão de fis. 75, todas por estrear;

- Que a arguida P, poucos depois do assalto, vendeu, em estado de novo, à testemunha Maria F 4 casacos pelo preço de 5/10,00 euros, cada peça, a pagar mais tarde;

- Que, no dia seguinte, a testemunha M F, ouvindo falar do assalto à loja “Mitus”, foi devolvê-los à sua proprietária;

- Que a maior parte dos bens subtraídos não foram recuperados e os que o foram estavam inutilizados;

- Que os arguidos P e J P agiram livre, voluntária e conscientemente e com intenção de obterem uma vantagem patrimonial a que não tinham direito;

- Sabendo que a sua conduta era punida por lei;

- Que a arguida P. sofreu as condenações constantes do CRC de fis. 299 e segs;

- Que o arguido J P sofreu as condenações constantes do CRC de fis. 297;

- O que consta do relatório social de fls. 322 e segs relativamente ao arguido João Pedro

5. Tribunal recolheu provas e valorizou-as como boas mas não as fez verter para a fundamentação de facto (factos provados), pois que se o tivesse feito a decisão seria necessariamente outra relativamente aos arguidos J P e P, ou seja impunha-se a condenação destes arguidos pela prática de um crime de receptação p. e p. pelo n°1 do art.23 1° do C. Penal.

6-Verifica-se uma contradição entre a fundamentação de facto e a motivação.

7- Ao crime de receptação, na sua forma dolosa, corresponde uma pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.

8- Considerando a gravidade do crime, na medida em que a receptação incrementa o crime de furto, a culpa dos arguidos, o seu passado criminal, a estabilidade social e familiar alcançada pelo arguido J P e a necessidade de prevenção especial e geral da prática destes ilícitos, que é elevada, afigura-se-nos como adequada a condenação do arguido J P com a pena de 100 dias de multa à razão de 6,00 euros, o que perfaz a quantia de 600,00 euros.

9- E a arguida P com a pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova.»

Os arguidos não apresentaram contra-alegações.

O Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto nesta Relação pronunciou-se pela procedência do recurso.

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FUNDAMENTAÇÃO

Face às conclusões decorrentes da motivação de recurso a questão em apreciação decorre apenas da reavaliação da prova efectuada por erro de julgamento (e não contradição insanável da fundamentação) que levou à absolvição dos dois arguidos.

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Para conhecimento do recurso importa fixar a matéria de facto provada na sentença bem como a motivação da decisão.

«Factos Provados
1.Na noite de … para …. de 2006, o arguido R, introduziu-se no estabelecimento comercial denominado” M…”, sito na Travessa da…. Praia … , para se apoderar de bens, que o mesmo tem para venda.
2.Para tanto partiu o vidro da entrada do mesmo e logrou introduzir-se naquele.
3.Uma vez no seu interior, apoderou-se dos bens constantes da Relação de fls.5 e 6, que se dá por reproduzida, no valor de € 5.558. 78, levando os objectos consigo, assim os fazendo seus, apesar de saber que não lhes pertencia e que o fazia contra a vontade do dono.
4.Os bens que ficaram na posse do arguido R, levou-os este, para a casa onde então residia com a arguida P, sita na Rua … Praia ….
5.Foram apreendidas as camisolas que constam identificadas no Auto de Apreensão de fls.75, que se dá por reproduzido pela GNR de Leiria.
6.As referidas camisolas vieram posteriormente a ser entregues na GNR de Leiria.
7.Na posse do arguido J P, foram no dia 03.04.2007, apreendidos os bens que constam dos Autos de Apreensão de fis. 80 e 85, que se dão por reproduzidos.
8.Na posse de C F foram apreendidos bens conforme Auto de Apreensão de fls.29, que se dá por reproduzido.
9.Na posse da arguida P foram apreendidos os bens que constam do Auto e Apreensão de fis. 134.
10.Foram entregues ao ofendido os bens recuperados e que constam do Termo de Entrega de ffs.90, que se dá por reproduzido.
11. Ao agir da forma descrita, fê-lo o arguido R, bem sabendo que se apoderava de bens que não lhe pertenciam e que o faziam contra a vontade do dono.
12.Sabia, que tal conduta era proibida por lei.
13.Confessou os factos no essencial.
14. 0 arguido foi condenado em 2003 pela prática de crime de condução ilegal em pena de multa; em 2004 pela prática de crime de roubo na forma tentada em pena de 1 ano e 18 meses de prisão suspensa na sua execução, com regime de prova, por 2 anos; e no mesmo ano por crime de furto simples em pena de multa.
15.Ao arguido R. não foram transmitidos padrões de vida em fase precoce, enveredou pela via do consumo de estupefacientes, vivenciando agora período mais estável da sua vida, disponibilizando-se a reiniciar tratamento e iniciar actividade laboral.
16.0 arguido sente-se arrependido do que fez.
17.Presentemente está desempregado apenas fazendo quando um tio lhe pede uns serviços de pintura.
18.0 seu filho está com a mãe da sua ex companheira.
19.Tem uma namorada que o próprio reconhece agora que o está a ajudar a ter outra vida.
2.2. Factos não provados:
Com relevância para a decisão não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, maxime a intervenção dos demais arguidos nos moldes descritos na acusação, designadamente a co-autoria no furto sendo que se determinou previamente à audiência a separação de processos, quanto ao arguido Luís, bem como a receptação no caso dos arguidos J P e P, ou até mesmo o seu conhecimento dos factos, visto que nada se provou à excepção da apreensão dos bens e da coabitação.
2. Motivação:
Considerando que no nosso ordenamento jurídico processual penal vigora o principio da livre apreciação da prova, salvo quando a lei o disponha de forma diversa, o que implica a apreciação da prova, legalmente produzida, de acordo com as regras de experiência e livre convicção da entidade julgadora (art. 127 do Código de Processo Penal), sujeita tal produção ao principio da imediação e contraditório (art. 355 do Código de Processo Penal), e que tanto pode assentar em prova directamente colhida como em prova indiciária (a este propósito atente-se no Ac. TRC, de 11-5-2005, Processo 1056/05 (UNANIMIDADE); Ac. TRC 1937/04, de 18-08-2004 (UNANIMIDADE); e Ac. TRE, de 29-11-2005, proferido no âmbito do P. 62 1/05.1 (UNANIMIDADE), a convicção do tribunal, relativamente aos factos que deu como provados, fundou-se no teor das declarações essencialmente confessórias do arguido Ruben; no teor dos documentos juntos aos autos, maxime aos autos de apreensão acima directamente identificados; no teor do depoimento escorreito e aparentemente isento das testemunhas de acusação J M, JS, S, R, CF MF, B e A., e ainda no teor do CRC junto aos autos a fis. 302, e no relatório social elaborado pela Equipa competente da DGRS que faz fis. 327 e segs.. Neste elemento obteve ainda o Tribunal suporte probatório para alicerçar a sua convicção quanto à personalidade e condições económico-sociais do arguido.
Acresce ainda o teor do depoimento das testemunhas abonatórias arroladas pela Defesa, tratando-se de elementos profundamente ligados ao arguido R pelas razões que indicaram e cuja credibilidade não temos dúvidas para fazer abalá-lo.
O arguido confessou, no essencial, os factos e de forma livre e espontânea. Descreveu como se efectuou a introdução no estabelecimento e as suas motivações. Afastou a execução de qualquer plano, antes se declarando movido por determinações exteriores ligadas à sua conduta aditiva a substâncias estupefacientes que o impeliam a ilícitos.
Acresce que ainda que se considerasse que o arguido actuou sob o efeito de estupefaciente não existiria qualquer diminuição da culpa, visto que quem se coloca voluntariamente numa situação de incapacidade mental — ainda que a mesma viesse a provar-se o que não sucedeu- mesmo nesse estado ela será responsável mesmo se nesse estado cometer um crime, na medida em que voluntariamente se colocou nesse estado (teoria da actio liber in causa).

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O que está em causa, neste recurso, é a reapreciação da prova produzida, tendo em conta que, segundo as alegações do recorrente, deveria ter sido outra a decisão do Tribunal em relação aos factos atribuídos aos arguidos J P e P na acusação, face ao conjunto da prova produzida em audiência.

Comece por referir-se que conforme decorre do disposto no art. 428.º, n.º 1, do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito, sendo que, segundo o art. 431.º “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”

No entanto o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso – vejam-se os Ac. do STJ de 16.6.2005, Recurso n.º 1577/05), e de 22.6.2006, do mesmo Tribunal. Este é um limite fundamental ao conhecimento do recurso que deve salientar-se.

No caso concreto o Ministério Público não solicitando a renovação da prova apela a uma nova reapreciação da prova produzida, de modo a ser modificada a matéria de facto dada como provada concluindo-se que os arguidos P e J P cometeram o crime de receptação de que estavam acusados.

No âmbito da reapreciação da prova com vista à verificação do eventual erro de julgamento, ouvidas as declarações prestadas em audiência, através do sistema de gravação em sistema de «cassetes», nomeadamente dos arguidos R e J P (que apenas prestou declarações na fase final do julgamento, após a produção da prova testemunhal) bem como das testemunhas S , R , M de F e C F identificadas no recurso do Ministério Público, e da sua conjugação com a prova documental existente no processo, que concluir face ao alegado?

a) Vejamos em primeiro lugar os factos imputados à arguida P.

Sobre a prova produzida relativamente à conduta atribuída à arguida P. são muito claras as declarações do arguido R. quando, para além de esclarecer que «vivia com a P.» (gravação 12.30), «deu-me para fazer aquilo» (gravação 12.51), «à noite» (gravação, 13.46) e «acordou com as peças em casa» (gravação 14.01), refere que «deu uma das peças à P.» (gravação 17.26) e «deu conhecimento [à P] do que tinha feito» (gravação 17.33) tendo ela «ficado com a camisola» (17.52). Mas é ainda mais claro o depoimento do arguido quando refere que «ela soube logo» (gravação, 23.43) e «ela vendeu alguns [bens]» (gravação 24.05).

Relativamente aos factos que na acusação eram imputados à arguida P, para além do depoimento do arguido é claro o depoimento da testemunha M F quando refere que «encontrou a P. e ela perguntou-lhe se ela queria comprar umas peças de roupa e ela disse que sim» (gravação, 1,25). «Comprou 4 casacos» (gravação, 3.09) e não se lembra do preço (gravação, 3.20). A referida testemunha quando chegou à fábrica onde trabalhava ouviu dizer que tinha sido assaltada a «Mitus» e «soube logo» (gravação, 1.40) e «no dia seguinte entregou as coisas com que tinha ficado à P. e foi levá-las» (gravação, 2.00). Mas a mesma testemunha é mais incisiva quando refere que «a partir daí a P. telefonava-lhe e ameaçava-a ao telefone» (gravação 2.28).

De igual modo a testemunha CF referiu que adquiriu as roupas «através da P.» (gravação 4.47) que «lhe levou as peças de roupa para saber se estava interessado» (gravação, 5.05), sendo certo que «estava em casa em pulseira electrónica» (gravação 6.34).

Tanto da prova testemunhal como das declarações do arguido é absolutamente evidente que a arguida P que vivia maritalmente com o arguido R teve conhecimento através do arguido R. do furto que este tinha levado a efeito sendo que este lhe deu para seu uso pessoal uma camisola marca Rip Curl tendo além dos bens que utilizou, tomado posse de outros bens dos quais providenciou a sua venda.

Decorre efectivamente da prova referida que «em data não concretamente apurada de Dezembro de 2006, a arguida P vendeu a C F um casaco e uma camisola por € 5.00 cada, provenientes do furto supra referido, sem que lhe desse conhecimento da proveniência ou este lhe tivesse inquirido sobre a mesma.

Os documentos juntos ao processo (fls. 29) demonstram igualmente que os referidos bens foram posteriormente apreendidos quando se encontravam na posse de C F.

Igualmente decorre da prova produzida e referenciada que «Em data não concretamente apurada, mas que se situará entre o Natal de 2006 e o principio do Ano de 2007, a arguida P abordou M F no sentido de saber se a mesma estaria interessada em comprar-lhe a roupa que trazia numa mochila e que de seguida lhe mostrou. A referida M F acedeu em comprar-lhe quatro casacos pelo preço total de €20.00».

Assim da prova produzida decorre que «Ao agir da forma descrita, f ê-lo a arguida de forma livre e consciente, bem sabendo que os bens que recebeu do seu companheiro, que usava na sua própria pessoa e que vendeu a terceiros, tinham sido por este furtados, pretendeu, no entanto obter uma vantagem patrimonial que sabia não ter direito. Sabia, além disso que tal conduta não era permitida por Lei».

É assim com base nesta factualidade resultante da prova produzida em audiência e que o Tribunal contraditoriamente não deu como provada e deveria ter dado, que importa efectuar a valoração e qualificação jurídica adequada.

«Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias» - artigo 231º n.º 1 do C. Penal.

Ora a factualidade que decorre da matéria de facto identificada e que resulta da prova produzida consubstancia, sem qualquer dúvida, a prática do crime de receptação pelo qual a arguida estava acusada, previsto e punível no artigo 231º n.º 1 do C. Penal citado, sendo, por isso, a arguida autora do referido crime (artigo 26º do C. Penal).

b) Relativamente aos factos imputados ao arguido J P

Quanto aos factos imputados a este arguido, importa referir que das declarações do arguido R. decorre que este «entregou as peças ao rapaz [J P] para guardar» (gravação, 18.41).

Também das declarações das testemunhas S e R decorre inequivocamente que «o P. é que lhe deu as camisolas» (gravação, 2.28 e 3.29) que depois «foram entregues à GNR» (gravação, 1.46).

Mas é sobretudo no depoimento do arguido J P que deve atentar-se para, a partir daí se valorar o que é dito. Segundo as suas declarações, «O R telefonou-lhe e disse-lhe que lhe guardasse umas roupas» (gravação, 0.53); «Deu-lhe as roupas à noite» (gravação, 1.47); Dois sacos (gravação, 1.00); «Quando viu o que era telefonou-lhe e no dia seguinte entregou-lhas» (gravação 3.00); «Eram roupas novas» (4.24); «Achou estranho; pensou que poderiam ter sido furtadas», (gravação, 4.34); «Ficou ainda um outro saco que nem sabia o que estava lá» (gravação 5.14); «No dia seguinte deu as roupas aos amigos e ainda tinha umas coisas» (gravação 4.44.); «Deu uma camisola ao R e uma sweat à S. (gravação 2.21.e.3.48); A propósito da incongruência detectada quer pelo Ministério Público, quer pela Senhora Juiz, relativa ao facto de «ter entregue os sacos ao R. e ainda assim ter ficado com outro saco de roupa» (gravação, 4.52), que foi apreendido, não consegue explicar para além de dizer que «isso ficou num outro saco» que «esteve para deitar fora» (gravação 5.10). Igualmente a solicitação do Ministério Publico não deu qualquer explicação para o facto de não ter voltado a ligar ao R. no momento em que terá visto o saco: «não o vi, não sei» (gravação, 5.26).

Ora do depoimento do arguido, bem como das testemunhas referidas e ainda do auto de apreensão de fls 27 (onde se constatam oito peças de roupa) e 30 (onde constam mais três peças de roupa entregues pelo arguido no dia seguinte) não pode extrair-se outra conclusão que não o facto de o arguido J P, no que respeita aos bens em causa, suspeitar da forma como os bens foram obtidos.

Nesse sentido e com base nas provas referidas não pode deixar de concluir-se que não estão provados os factos constantes da acusação que referem que «O arguido R solicitou ao arguido J P que guardasse na sua residência parte dos bens que tinha na sua posse ao que este acedeu apesar de saber da proveniência dos mesmos» e que «Ao agir da forma descrita fê-lo o arguido J P de forma livre e consciente, bem sabendo que guardava na sua residência bens que suspeitava que tinham sido furtados, agindo voluntária e conscientemente».

Mas, ao contrário, é inequívoco com base na prova produzida e contrariamente ao juízo efectuado pelo Tribunal da primeira instância, que estão provados os seguintes factos: «O arguido R solicitou ao arguido J P que guardasse na sua residência parte dos bens que tinha na sua posse ao que este acedeu apesar de suspeitar da proveniência ilicita dos mesmos que o arguido J P transportou então, parte dos bens que estavam na posse do arguido R. para sua casa. No dia 23 de Dezembro deslocaram-se a casa do arguido J P, S e R o arguido entregou-lhes três camisolas, que aí foram apreendidas pela GNR de Leiria.

Ao agir da forma descrita fê-lo o arguido JP de forma livre e consciente, bem sabendo que guardava na sua residência bens que suspeitava que tinham sido furtados, agindo voluntária e conscientemente.

Dispõe o artigo 231º n.º 2 do Código Penal que «Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 120 dias».

Ora a factualidade provada e referida consubstancia a prática de um crime previsto e punível no artigo 231º n.º 2 do C. Penal e não o crime previsto e punível pelo artigo 231º n.º 1, do C. Penal pelo qual o arguido vinha acusado.

Nessa medida, estamos em presença de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, de acordo com o artigo 1º alínea f) do CPP, importando, por isso, que se cumpra o disposto no artigo 358º n.º 1 do CPP, tendo em conta que essa alteração não resulta de factos alegados pela defesa. Ou seja há que efectuar tal comunicação ao arguido e conceder-lhe, se for requerido, o tempo estritamente necessário para a defesa.

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Relativamente a outra factualidade com relevância, não levada em conta pelo Tribunal ad quo, importa constatar que o Tribunal não valorou as provas constantes dos documentos de fls. 299 e 297, referentes às condenações anteriores dos arguidos P e J P, bem como dos factos que constam no relatório social de fls. 322 relativo à situação pessoal do arguido. Factos que o Tribunal poderia e deveria ter valorado positivamente. Tratando-se, no entanto, de factos que dizem respeito à personalidade do arguido e que são fundamentais para apreciar da medida concreta da pena será importante que sejam actualizados em relação à data em que for reaberta a audiência. Nesse sentido, deverá o Tribunal providenciar para que na sua posse tenha todos os elementos necessários e actualizados para tal, quando da realização da audiência com a finalidade de aplicar concretamente a pena ao arguido

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A determinação da pena compete ao tribunal da 1.ª instância e ao Tribunal que elaborou a sentença.

Por um lado, porque o direito ao recurso é uma das garantias de defesa reconhecidas constitucionalmente ao arguido (art.º 32 n.º 1 do CRP), garantia que ficaria defraudada se – tendo o arguido sido absolvido na 1.ª instância – viesse agora a ser condenado nesta instância, sem que desta decisão pudesse recorrer (como não poderia, face ao disposto no art.º 400 n.º 1 al.ª e) do CPP).

Por outro lado, porque a relativa autonomização do momento da determinação da sanção estabelecida no art.º 369 n.º 2, com referência ao art.º 371 do CPP, leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere da necessidade de prova suplementar (para a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar) e da eventual reabertura da audiência com vista à determinação da sanção.

Importa não esquecer que “os direitos de defesa do arguido no âmbito da determinação da sanção... (assumem) também uma função positiva, dentro de eventuais possibilidades de sancionamento que estejam dependentes da sua livre «vontade»”, como acontece nos casos em que é suposto o consentimento do condenado (cf. neste sentido Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Porto, 2002, Publicações Universidade Católica, p. 410 e acórdãos da Relação de Évora de 19.12.2006 e da Relação do Porto de 5.3.2008, processo 6287/07, in www.dgsi.pt).

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As razões referidas levam assim este Tribunal a decidir o seguinte, tendo em conta o artigo 431º do CPP:

1) Alterar a matéria de facto dada como não provada, considerando-se como provado que “a arguida P que vivia maritalmente com o arguido R teve conhecimento através do arguido R do furto que este tinha levado a efeito sendo que este lhe deu para seu uso pessoal uma camisola marca Rip Curl tendo além dos bens que utilizou, tomado posse de outros bens dos quais providenciou a sua venda.

«Em data não concretamente apurada de Dezembro de 2006, a arguida P vendeu a C F um casaco e uma camisola por € 5.00 cada, provenientes do furto supra referido, sem que lhe desse conhecimento da proveniência ou este lhe tivesse inquirido sobre a mesma.

Os referidos bens foram posteriormente apreendidos quando se encontravam na posse de CF .

Em data não concretamente apurada, mas que se situará entre o Natal de 2006 e o principio do Ano de 2007, a arguida P abordou M F no sentido de saber se a mesma estaria interessada em comprar-lhe a roupa que trazia numa mochila e que de seguida lhe mostrou. A referida M F acedeu em comprar-lhe quatro casacos pelo preço total de €20.00.

Ao agir da forma descrita, fê-lo a arguida de forma livre e consciente, bem sabendo que os bens que recebeu do seu companheiro, que usava na sua própria pessoa e que vendeu a terceiros, tinham sido por este furtados, pretendeu, no entanto obter uma vantagem patrimonial que sabia não ter direito. Sabia, além disso que tal conduta não era permitida por Lei.

O arguido R solicitou ao arguido J P que guardasse na sua residência parte dos bens que tinha na sua posse ao que este acedeu apesar de suspeitar da proveniência ilicita dos mesmos.

O arguido J P transportou então, parte dos bens que estavam na posse do arguido Ruben para sua casa. No dia 23 de Dezembro deslocaram-se a casa do arguido JP, S e R e o arguido entregou-lhes três camisolas, que aí foram apreendidas pela GNR de Leiria.

Ao agir da forma descrita fê-lo o arguido J P de forma livre e consciente, bem sabendo que guardava na sua residência bens que suspeitava que tinham sido furtados, agindo voluntária e conscientemente.

2) Revogar a sentença recorrida, no que respeita à matéria de direito, e decidir que em função dos factos provados a arguida P praticou um crime de receptação p. e p. pelo art.º 231º n.º 1 do CP e o arguido J P cometeu um crime de receptação p.p. pelo artigo 231º n.º 2 do C. Penal.

Assente que a conduta dos arguidos P e JP integram a prática dos crimes referidos - p. e p. pelo art.º 231 n.º 1 e 231º n.º 2, do CP, respectivamente – impõe-se a determinação da pena concreta a aplicar, em conformidade com o disposto no art.º 369 e seguintes do CPP e 70º e seguintes do CP que, como se referiu, deve ser efectuada pela primeira instância.

III. DECISÃO

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, decidem:

a) alterar a matéria de facto nos termos seguintes: considerando-se como provado que “a arguida P que vivia maritalmente com o arguido R teve conhecimento através do arguido R do furto que este tinha levado a efeito sendo que este lhe deu para seu uso pessoal uma camisola marca Rip Curl tendo além dos bens que utilizou, tomado posse de outros bens dos quais providenciou a sua venda.

«Em data não concretamente apurada de Dezembro de 2006, a arguida P vendeu a C F um casaco e uma camisola por € 5.00 cada, provenientes do furto supra referido, sem que lhe desse conhecimento da proveniência ou este lhe tivesse inquirido sobre a mesma.

Os referidos bens foram posteriormente apreendidos quando se encontravam na posse de C F.

Em data não concretamente apurada, mas que se situará entre o Natal de 2006 e o principio do Ano de 2007, a arguida P abordou M F no sentido de saber se a mesma estaria interessada em comprar-lhe a roupa que trazia numa mochila e que de seguida lhe mostrou. A referida M F acedeu em comprar-lhe quatro casacos pelo preço total de €20.00.

Ao agir da forma descrita, fê-lo a arguida de forma livre e consciente, bem sabendo que os bens que recebeu do seu companheiro, que usava na sua própria pessoa e que vendeu a terceiros, tinham sido por este furtados, pretendeu, no entanto obter uma vantagem patrimonial que sabia não ter direito. Sabia, além disso que tal conduta não era permitida por Lei.

O arguido R solicitou ao arguido J P que guardasse na sua residência parte dos bens que tinha na sua posse ao que este acedeu apesar de suspeitar da proveniência ilicita dos mesmos.

O arguido J P transportou então, parte dos bens que estavam na posse do arguido R para sua casa. No dia 23 de Dezembro deslocaram-se a casa do arguido J P, S e R e o arguido entregou-lhes três camisolas, que aí foram apreendidas pela GNR de Leiria.

Ao agir da forma descrita fê-lo o arguido J P de forma livre e consciente, bem sabendo que guardava na sua residência bens que suspeitava que tinham sido furtados, agindo voluntária e conscientemente

b) ordenar que os autos baixem à 1.ª instância e, pelo Senhor Juiz que elaborou a sentença seja dado cumprimento ao disposto no artigo 358 n.º 1 do CPP, no que respeita ao arguido JP - considerando que as condutas do arguidos, P e J P em face da factualidade apurada, integram a prática do crime de receptação, p. e p. pelos art.ºs 231º n.º 1 e 231º n.º 2 do CP, respectivamente – e, além disso, seja fixada a pena concreta a aplicar a cada um dos arguidos, de acordo com os elementos de prova existentes nos autos e a actualização dos que aí existem relativos à personalidade e situação pessoal dos arguidos.

Sem tributação.

Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Coimbra, 6 de Janeiro de 2010


Mouraz Lopes


Félix de Almeida