Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CRISTINA BRANCO | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PROVAS PRODUZIDAS OU EXAMINADAS EM AUDIÊNCIA CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS ACTA DE JULGAMENTO IMPUGNAÇÃO DOS FACTOS CONFESSADOS CONCURSO DE CRIMES | ||
Data do Acordão: | 04/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 30.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 99.º, 169.º, 344.º, N.º 1, 355.º, N.º 1, 362.º E 399.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGOS 369.º E 371.º DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I – A decisão do tribunal sobre o carácter livre, integral e sem reservas da confissão é susceptível de impugnação por via de recurso.
II – De acordo com o disposto nos artigos 99.º e 362º do Código de Processo Penal, a acta da audiência de discussão e julgamento é o auto destinado a fazer fé quanto aos termos que a mesma se desenrolou, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante quem o redige, contendo ainda, além do mais, a indicação de todas as provas produzidas ou aí examinadas III – Não tendo sido impugnadas as decisões nela vertidas nem arguida a sua falsidade, como documento autêntico que é a acta faz prova plena dos factos materiais que lhe cumpre certificar, concretamente faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo tribunal, assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções do juiz. IV – Sendo a confissão livre, integral e sem reservas, como meio de prova, percepcionada pelo tribunal na audiência e mandada exarar em acta, essa confissão constitui um facto inelutavelmente provado, mesmo que ausente do segmento da sentença recorrida onde foram arrumados os “Factos Provados». V – Ao confessar integralmente os factos, a arguida aceita o teor da pronúncia e que sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da alínea a) do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Penal, pois sendo sem reservas a confissão não admite condições ou alterações aos factos admitidos, tal como constam da acusação ou da pronúncia. VI – Tendo confessado integralmente e sem reservas os factos não é possível, em sede de recurso, pôr em causa a matéria de facto fixada em consonância com o que constava da pronúncia, quando a arguida não impugnou, no momento próprio, o despacho que assim o considerou nem a fidedignidade da acta. VII – Face à confissão integral e sem reservas, as declarações das testemunhas de defesa apenas podem ser valoradas relativamente a factos que não tenham sido objecto de confissão. VIII – Se, perante aquela confissão, o tribunal tivesse julgado não provados os factos imputados na acusação ou na pronúncia, incorreria no vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, do artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal. | ||
Decisão Texto Integral: | Relatora: Cristina Pego Branco 1.º Adjunta: Alexandra Guiné 2.º Adjunta: Ana Carolina Cardoso
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. … 2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença na qual foi decidido, para além do mais (transcrição): 3. Inconformada com esta decisão, interpôs a arguida o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): «I - O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou a recorrente pela prática do crime de dez crimes de dano, p. e p. pelo art. 212º, do CP; II – Bem como, julgou parcialmente procedente e provado o pedido de indemnização cível deduzido pela assistente, aqui recorrida e, em consequência , condenou a arguida / demandada e aqui recorrente a pagar-lhe a quantia global de 8446,50 euros … III - A arguida, aqui recorrente apresenta o presente recurso por entender que a pena em que foi condenada não lhe deveria de ter sido aplicada e que a ser-lhe aplicada é manifestamente desproporcionada. IV– E ainda, porque entende que o pedido de indemnização civil não deveria de ter sido julgado procedente, como foi. V- Os factos que sobre si recaem foram confirmados pela arguida que os confessou integralmente e sem reservas, de livre e espontânea vontade e demonstrando um arrependimento sincero; VI- Tal circunstância não a impede de nesta sede impugnar matéria que foi dada indevidamente como provada, por não confessada e ainda em face da prova documental constante nos autos, bem como a prova testemunhal produzida com vista à sua condenação criminal e à sua condenação no pedido cível. VII - Bem como igualmente não a impede, de nesta sede se apurar se os factos que efectivamente praticou, os quais confessou integralmente e sem reservas, constituem ou não crime ou seja se tais factos devem ou não ser punidos criminalmente. VIII - Pois, uma coisa é a arguida, aqui recorrente, ter confessado a prática dos factos pelos quais foi pronunciada e coisa bem diferente é apurar se os factos praticados constituem crime e, em consequência devem de ser merecedores de punição criminal. IX - A sentença recorrida considerou provado, erradamente, o facto dado como provado na alínea 3) da sentença recorrida: … X – A sentença recorrida considerou provado que as decisões judiciais proferidas no âmbito do processo 874/15...., pelo Juízo Local Cível da Covilhã (Juiz ...) do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.03.2019, referidas nas líneas 1) e 2) dos factos dados como provados, foram de levantamento de embargo, o que não corresponde de todo à realidade dos factos. … XIII - Por outro lado, dos documentos carreados para os autos, como querendo provar o licenciamento da obra, se percebe, a fls 112 ( no inquérito fls.36), que se trata de um pedido de prorrogação de prazo com uma data aposta no canto superior direito de 12/04/2020, até posterior aos factos, e outro um pedido de consulta de processo que acompanha o de fls 111 ( no inquérito fls 35) que não é mais do que o deferimento da consulta desse processo!!! XIV - Donde, não se pode concluir conforme se concluiu e deu-se como provado na alínea 3) dos factos provados … XV - Deste modo e em face da prova documental produzida nos autos e atrás enunciada – Sentença e Acordão proferidos no processo n.º 874/15.... (fls. 93 a 110) e documentos camarários ( fls.110 e 111) -, não há um único elemento de prova carreado para os autos que permita dar como provada toda a matéria contida na alinea 3) dos factos dados como provados na sentença de que ora se recorre e que por esta forma se impugna totalmente. … XVIII - Diversamente, devia a sentença de que ora se recorre ter concluído que a continuação das obras levadas a cabo pela Assistente, aqui recorrida, não foram legitimadas ou autorizadas nem por decisão do Tribunal, nem por decisão camarária e que esta de acordo com as decisões judiciais proferidas (fls. 92 a 110) foi condenada a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade da arguida, aqui recorrente. XIX – A sentença recorrida considerou, ainda, provado, erradamente, o facto dado como provado na alínea 4) da sentença recorrida … XX – Ora tal facto não deveria de ter sido dado como provado, pois resulta da prova documental produzida e fls. 92 a 110 e 111 a 112, que a arguida, aqui recorrente, não praticou os factos confessados e aí descritos por se sentir”… insatisfeita e inconformada com as decisões judiciais proferidas…”, conforme foi dado como provado na alínea 4) dos factos dados como provados na sentença que ora se recorre, mas antes, praticou aqueles factos e que integralmente confessou por se sentir insatisfeita e inconformada por a assistente, aqui recorrida, não respeitar as decisões judiciais proferidas e em que foi condenada a respeitar o direito de propriedade da arguida, aqui recorrente. … XXII - O que de per si revela porquanto a arguida, aqui recorrente praticou os facto que confessou em defesa de um direito de propriedade seu … XXIII - Ora, logo aqui se olvida que o levantamento da parede encostada ao prédio da arguida, aqui recorrente, não está justificado ou assente em qualquer acórdão sendo que tal infração/ violação decorrente da Lei motivou quer a apresentação de queixa crime assim como determinou uma reclamação camarária … XXIV - É verdade que a arguida abriu a sua janela sita na sua parede novamente, não por estar descontente com as ações judiciais, mas sim descontente com o despautério e a violação quer das decisões judiciais proferidas ( fls. 92 a 110), quer da Lei geral, … XXV – Discorda também a recorrente dos factos dados como provado nas alíneas 5) a 19) da sentença recorrida pois atendendo à prova documental produzida de fls. 92 a 110 e 111 a 112, deverá forçosamente concluir-se que esses factos praticados pela arguida, aqui recorrente, que foram dados como provados e por ela confessados, foram motivados pelo desrespeito por parte da Assistente, aqui recorrida, das decisões judiciais proferidas (fls. 92 s 110) e em defesa do seu direito de propriedade. … XVII – A recorrente também não se conforma com o facto de a sentença recorrida considerar provados os factos dados como provados nas alíneas 20) a 24), 26) e 27) da sentença recorrida … XVIII - Na verdade, o muro que foi objecto dos factos praticados pela arguida, aqui recorrente e descritos nas alíneas 20) a 24), 26) e 27) da sentença de que ora se recorre é da exclusiva propriedade da arguida … XXIX - E fê-lo, para impedir que a assistente, aqui recorrida, em total desrespeito pelo seu direito de propriedade, nele colocasse as referidas caixas dos contadores da água e da electricidade … … XXXI – O que aliás resulta da prova testemunhal … XXXII - Na verdade, a sentença de que ora se recorre desconsiderou por completo o depoimento das testemunhas BB, CC, DD e EE, que têm pleno conhecimento de quem é a proprietária do muro em causa, por há muito saberem da sua existência e também porque foi este último que o construiu. XXXIII – Tais depoimentos demonstraram, sem margem para dúvidas, que a assistente, aqui recorrida é que ao colocar as caixas dos contadores da água e da electricidade num muro que não lhe pertencia e sem a autorização ou consentimento da sua legitima proprietária – a arguida, aqui recorrente - violou o direito de propriedade desta e não respeitou as decisões judiciais constantes de fls. 92 a 110, dos autos. … XXXV – A recorrente também discorda que a sentença recorrida tenha considerado provado o facto dado como provado na alínea 25) da sentença recorrida … XXXVIII – Deste modo, a sentença recorrida ao dar como provados os factos constantes nas alíneas 3), 4), 5) a 19), 20) a 24), 25) e 26) da sentença recorrida: nas versões que constam da fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, do CPP, … … XL - Por outro lado, a sentença recorrida ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento – documental e testemunhal, violou, ainda, o disposto no art. 355º, nº 1, do CPP e, com efeito, de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas na audiência. XLI – Em face de toda prova documental e testemunhal produzida – referidas e acima transcritas, a sentença recorrida deveria de ter concluído inexistência do crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do CP … XLII – Assim, a justiça privada abrange todos os casos em que a justiça pública se revela impotente ou deficiente para a satisfação das pretensões do titular do direito violado ou ameaçado … XLIII - Atente-se que a arguida, aqui recorrente, sendo proprietária do muro que danificou e com uma decisão que afirma que a parede é sua ( conf. fls 92 a 110 dos autos), já recorreu à tutela pública, que na sua lentidão, ainda nada decidiu … … XLV - “O art.º 336.º do CC preceitua claramente que só é lícito recorrer à ação direta quando este instituto é “indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais” (n.º 1), expressão correspondente a “meios normais” do instituto da legítima defesa (Art. 337.º, n.º 1 do CC). Os meios coercivos normais correspondem aos meios de tutela pública (tutela do Estado), como resulta do vertido dos Arts. 21.º e 202.º, n.º 1 da CRP, Art. 1.º do CPC e Art. 8.º do CPP. Porém, a justiça privada necessitada regulada nos Arts. 336.º e 338.º do CC, ainda que subsidiária, tem caráter geral. Este caráter resulta do próprio Art. 336.º, n.º 1 do CC, in princípio, sem qualquer distinção quanto aos direitos suscetíveis de serem realizados ou assegurados por meio de ação direta. Qualquer direito pode, assim, ser assegurado por ação direta, mesmo que seja voltado a citar-se em outros institutos, como é o caso da defesa da posse in judice (Art. 1277.º do CC).- in O Instituto da Ação Direta na Defesa da Posse no Código Civil Português., Jorge bonito; … XLVII - Ainda, o erro sobre a ilicitude verifica-se quando o agente não conhece a norma de proibição que respeita ao facto, ou, conhecendo-a, tem-na por não válida, ou, em consequência de uma interpretação incorrecta, representa defeituosamente o seu âmbito de validade, considerando, em consequência disso, o seu comportamento como juridicamente admissível. … XLVIII -Atendendo-se à expressão que afasta esta causa de exclusão: “quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar”, não se pode concluir que o interesse da assistente, aqui recorrida é superior ao da arguida, aqui recorrente, donde, inequivocamente, é lícito, nos termos do Art. 336º, 1 do C. Civil, o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, pelo que não se verificam os elementos do crime de dano, p.e p. pelo art.212º do CP; XLIX - … sempre se dirá que a figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva. L - Donde, o cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m). LI - Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê. … LIV - Mesmo que a actuação do agente se traduza numa pluralidade naturalística de acções, executadas em momentos separados no tempo, existe um só crime desde que aquelas estejam subordinadas a uma única resolução criminosa, sendo de esclarecer que a existência de certa conexão temporal que ligue os vários momentos da conduta do agente é um índice importante da unidade de resolução … … LVI – Deste modo, sem prescindir e admitindo por mera hipótese académica como provados todos os factos em que assentou a sentença objecto de recurso, constatamos, claramente, que o recorrente não praticou dez crimes de dano, p. e p. pelo art. 212º, do CP; LVII – Por outro lado, e tendo ficado demonstrado que resulta que o comportamento da arguida, aqui recorrente, assentou em motivações não censuráveis, pelo que estamos perante uma situação de falta de consciência da ilicitude não censurável, que opera como causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 17º, nº 1, do CP, cfr., neste sentido, TAIPA DE CARVALHO in “Comentário Conimbricense …”, p. 335. LVIII – Pelo exposto, o Tribunal não interpretou, nem aplicou, correctamente o art. 212º, do CP, pois não restam dúvidas que os factos praticados pela recorrente, não constituem crime, verificada a falta de consciência da ilicitude, bem como pela verificada causa de exclusão da ilicitude no exercício da acção directa (Art. 336º, nº1, do CC). LIX - Nos termos do supra alegado e não tendo a recorrente praticado o crime em que foi condenada, deve a mesma ser absolvida do pedido de indemnização civil. LX- Sem prescindir do supra alegado e admitindo, por mera hipótese a condenação da arguida, aqui recorrente, ainda assim o pedido civil não podia ter sido dado como provado, conforme o foi na sentença que ora se recorre, porquanto não ficaram provados os factos dados como provado nas alíneas 30) e 31) da sentença recorrida: … LXI - Ao contrário do referido na sentença que ora se recorre, a arguida/ demandada, aqui recorrente não teve intenção alguma de destruir e causar estragos na habitação da assistente/demandante, aqui recorrida aliás, como resulta de todo o exposto, teve sim a intenção de proteger e acautelar o seu próprio património sendo que o interesse desta nunca será inferior ao da assistente/demandante, aqui recorrida. … LXVIII - Donde, pelo supra referido, não se podem de todo aceitar os valores em que a arguida / demandada e aqui recorrente, foi condenada na sentença recorrida, por os mesmos não terem sido provados. LXIX - No que concerne aos danos morais em que a arguida / demandada e aqui recorrente, foi condenada, que se reduzem a conceitos vagos como triste e inquietação certo é que, teriam esses danos de ser causados por uma atitude grave e ilícita da demandada o que, por tudo o alavancado para esta peça, que já vai longa, se conclui inexistir e igualmente senão provou. LXX - Assim, também nesta parte o pedido de indemnização civil não deveria de ter sido considerado provado, devendo a arguida / demandada, aqui recorrente deve ser absolvida da totalidade do pedido, em face de todo o acima exposto e demonstrado. LXXI - Em suma, sentença recorrida padece de erro de julgamento e, não restam dúvidas de que a que a arguida e aqui recorrente, não praticou os crimes em que foi condenada, pelo que deverá ser absolvida ou assim não se considerando, o que só por mera hipótese se admite e sem prescindir, deverá quanto muito ser condenada apenas pela prática de um crime de dano. …» 4. O recurso foi admitido, por despacho de 26-09-2022 (Ref. Citius ). 5. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta (cf. Ref. Citius 3041569) na qual, sem formular conclusões, se pronuncia pela improcedência do recurso. 6. A demandante, FF não respondeu ao recurso. 7. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer (cf. Ref. Citius 10541137), no qual acompanha, no essencial, o teor da resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, ao qual acrescenta doutas considerações, pronunciando-se contudo pela parcial procedência do recurso, no sentido de a arguida ser condenada pela prática de um crime continuado de dano. 8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta. 9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso … In casu, de acordo com as suas conclusões[1], a recorrente: i) questiona a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando que determinados factos foram incorrectamente julgados, em violação do princípio da livre apreciação da prova e do disposto no art. 355.º, n.º 1, do CPP; ii) discorda da qualificação jurídico-penal operada, por considerar que não se verificam os elementos típicos do crime de dano, uma vez que se mostra excluída a ilicitude da sua conduta ou a sua culpa, pelo que deveria ter sido proferida decisão absolutória do ilícito criminal e do pedido de indemnização civil; iii) para o caso de assim não se entender, sustenta que devia ter sido condenada por um único crime de dano, ainda que na forma continuada, tendo nesta matéria sido violado o «princípio geral da aplicação da lei mais favorável» e o princípio constitucional do non bis in idem. * 2. Da decisão recorrida Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida. * …* MOTIVAÇÃO:Fundou o tribunal a sua convicção no conjunto das declarações prestadas pela arguida ,dos depoimentos prestados pelas testemunhas produzidos em sede de audiência final , bem como no teor da prova documental junta aos autos , analisada de forma critica , no cotejo das regras de experiencia comum – cfr. Art. 127 ,do C. P. Penal - . … Quanto ao demais : II No restante , e na formação da convicção, basicamente, numa apreciação livre da prova (artigos 127º do C.P.P.), tal qual a mesma se produziu em sede de audiência de discussão e julgamento , tomou-se em consideração a seguinte prova : AS DECLARAÇÕES PRESTADAS PELA ARGUIDA : As mesmas mostraram-se relevantes, por credíveis, tendo a mesma confessado , integralmente e sem reservas , todos os factos que lhe são imputados no despacho de pronúncia . Na verdade , admitiu que « era tudo verdade » , desculpabilizando-se com um comportamento « alterado » em consequência de « nervos » . Tais declarações prestadas , foram de molde a formar a convicção do Tribunal , pois a arguida, além de ter assumido todo o seu comportamento , admitiu que os « nervos tomaram conta de si própria ». Na verdade , as declarações assim assumidas em sede de audiência de discussão e julgamento , afiguraram-se-nos verdadeiras e sentidas , factualidade essa constatada não só pelas palavras ditas , assim como pela imediação do comportamento e modo de estar visíveis na pessoa da arguida , a qual , para além do mais , demonstrou uma atitude de « encolhimento » perante a descrição factual com a qual foi confrontada pela leitura do conteúdo dos factos que lhe vinham imputados . No mais . No que toca ao pedido de indemnização civil atendeu-se, desde logo, ao teor dos documentos juntos nos autos que acima demos conta e o que da sua liberalidade resulta conjugados com as regras da experiência e da normalidade , do teor das declarações prestadas pela arguida , a qual confessou , integralmente e sem reservas , toda a factualidade constante do despacho de pronúncia que lhe vem imputado (sendo , pois , certo que estamos perante uma situação de indivisibilidade da confissão , em conformidade com o disposto no art. 360 , do CCivil) e , ainda, dos depoimentos prestados pelas testemunhas: … III Perante o cotejo da prova acima elencada e analisada, não tem este Tribunal qualquer dúvida de que as circunstancias conhecidas e provadas ao nível da factualidade de cariz objectivo, permitem e impõem , mediante um raciocínio logico , pelo método indutivo, concluir de forma firme, segura e solida, no que concerne à prova dos factos de índole subjectiva, que os mesmos se passaram nos termos vertidos na matéria de facto dada como provada . Na verdade, era a arguida quem tinha um conflito com FF, a propósito da sua residência, atuando sempre da mesma forma, ou seja, destruindo as partes da sua habitação que considerava violarem o seu direito de propriedade. No mais, quem atua da forma como a arguida atuou, age de forma livre, deliberada e consciente, com a intenção de provocar estragos na residência de FF, sabendo que a mesma não lhe pertencia, que atuava contra a vontade desta e que a sua conduta era proibida e punida pela lei. Com efeito, existindo conflitos quanto à legalidade das obras efetuadas por FF, mesmo após as decisões proferidas e referidas nos pontos 1) e 2), dos factos provados supra, a verdade é que as dúvidas a esse propósito sempre deveriam ser resolvidas em sede própria, não se afigurando que a arguida desconhecesse que não poderia atentar, pelas suas próprias mãos, contra a propriedade de FF, o que, necessária e claramente , permite extrais a ilação de inexistência de uma ação direta , tal como a prevista no art. 336 , do CCivil, e/ou uma ,eventual ,evocação de falta de consciência da ilicitude, prevista no art. 17, do CPenal. Em todos estes elementos assentou a convicção do Tribunal.» * 3. Da análise dos fundamentos do recurso Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão. Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. Por fim, das questões relativas à matéria de direito. Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas. * A recorrente questiona a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando que determinados factos foram incorrectamente julgados, em violação do princípio da livre apreciação da prova e do disposto no art. 355.º, n.º 1, do CPP. Alegando que a circunstância de ter confessado os factos pelos quais foi pronunciada não a impede de «impugnar matéria que foi dada indevidamente como provada, por não confessada», nem que se apure se os factos confessados constituem crime e se devem ser punidos criminalmente, refere-se, em concreto, aos pontos 3, 4, 5 a 19, 20 a 24, 25, 26, 27, 30 e 31 da matéria de facto provada. Afirma, em síntese, que o que consta dos pontos 3, 4, 25, 30 e 31 não resulta dos elementos de prova produzidos nos autos; que o que motivou a prática dos factos constantes dos pontos 5 a 19 «foi a circunstância de a assistente, aqui recorrida, não respeitar as decisões judiciais proferidas (fls. 92 a 110) e ter desrespeitado o direito de propriedade da arguida», que praticou os factos que confessou «em defesa de um direito de propriedade seu», porquanto «o levantamento da parece encostada ao prédio da arguida, aqui recorrente, não está justificado ou assente em qualquer acórdão», matéria que devia ter sido dada como assente; e que os factos dados como provados nos pontos 20 a 24, 26 e 27, por si confessados, foram cometidos num muro de sua propriedade (facto que deveria ter sido dado como provado, em face da prova testemunhal produzida) de que a aqui assistente se apoderou ilegalmente e onde colocou as caixas dos contadores da água e da luz, pelo que a sua actuação não é criminalmente punível.
Vejamos. Conforme resulta da fundamentação da matéria de facto vertida na sentença recorrida, acima transcrita, o Tribunal sedimentou a sua convicção, designadamente, nas declarações prestadas pela arguida, aí se lendo que «as mesmas mostraram-se relevantes, por credíveis, tendo a mesma confessado, integralmente e sem reservas, todos os factos que lhe são imputados no despacho de pronúncia. Na verdade, admitiu que «era tudo verdade», desculpabilizando-se com um comportamento «alterado» em consequência de «nervos». Tais declarações prestadas, foram de molde a formar a convicção do Tribunal, pois a arguida, além de ter assumido todo o seu comportamento, admitiu que os «nervos tomaram conta de si própria». Na verdade , as declarações assim assumidas em sede de audiência de discussão e julgamento, afiguraram-se-nos verdadeiras e sentidas, factualidade essa constatada não só pelas palavras ditas, assim como pela imediação do comportamento e modo de estar visíveis na pessoa da arguida, a qual, para além do mais, demonstrou uma atitude de «encolhimento» perante a descrição factual com a qual foi confrontada pela leitura do conteúdo dos factos que lhe vinham imputados.» E da acta da audiência de julgamento de 15-11-2021 (Ref. Citius 33881713), na parte que ora importa, consta: «(…) Pela arguida foi dito que desejava prestar declarações, o que passou a fazer confessando integralmente os factos, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11 horas e 47 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 56 minutos. * * Perguntado pela Mmª. Juiz de Direito, disse que tal confissão é de livre vontade, fora de qualquer coacção, integral e sem reservas. Dada a palavra ao Digno Procurador e aos ilustres advogados presentes, pelos mesmos foi dito nada terem a opor à confissão da arguida. * Seguidamente, pela Mmª. Juiz de Direito foi proferido o seguinte: DESPACHO Nos termos do art.º 344º, n.º 2, al. a) do C. P. Penal, em face da confissão livre, integral e sem reservas da arguida, os factos imputados consideram-se provados, renunciando o Tribunal à produção demais prova testemunhal arrolada na acusação pública. Notifique. Logo, todos os presentes foram devidamente notificados. * * Após, foi pedida a palavra pelo ilustre mandatário da demandante, o qual no uso da mesma disse prescindir do depoimento das testemunhas II, JJ, KK e LL, mantendo-se a inquirição da demandante FF e das testemunhas II e MM. (…)»
Seguiu-se a inquirição da demandante (e não também assistente) e de duas testemunhas por si arroladas, tendo na sessão de 16-12-2021 (Ref. Citius 33999345) sido concluída a discussão da causa, com a inquirição das testemunhas de defesa e as alegações orais, após o que a audiência foi interrompida, com designação de data para a leitura da sentença. Da acta da audiência de julgamento de 15-11-2021 resulta, pois, que foram cumpridas as formalidades previstas no art. 344.º, n.º 1, do CPP. Se alguma nulidade (ou irregularidade) houvesse, a mesma seria sanável, e deveria ter sido arguida, sob pena de sanação, até ao final da audiência de julgamento (cf. arts. 119.º e 120.º, n.ºs 1, 2, e 3, al. a), a que a ora recorrente e a sua mandatária estiveram presentes. Por outro lado, a decisão do Tribunal sobre o carácter livre, integral e sem reservas da confissão é susceptível de impugnação por via de recurso (cf. art. 399.º do CPP). A recorrente, repetimos, presente na audiência de julgamento e acompanhada da sua Ilustre mandatária, não arguiu qualquer nulidade ou irregularidade e não impugnou o despacho em que o Tribunal declarou ter ocorrido confissão integral e sem reservas, perante a qual foi prescindida pelo MP e dispensada pelo Tribunal a produção de prova da acusação, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 344.ºdo CPP. Ora, de acordo com o disposto no art. 99.º do CPP, a acta da audiência de discussão e julgamento é o auto destinado a fazer fé quanto aos termos que a mesma se desenrolou, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante quem o redige, contendo ainda, além do mais, a indicação de todas as provas produzidas ou aí examinadas (cf. art. 362.º do CPP). Como documento autêntico que é (cf. arts. 169.º do CPP e 363.º, n.º 2, do CC), a acta faz prova plena dos factos materiais que lhe cumpre certificar, concretamente, faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo tribunal, assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções do juiz. Já os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador (cf. arts. 99.º, n.º 4 e 169.º, do CPP, e 369.º e 371.º, ambos do CC). Não tendo sido impugnadas as decisões nela vertidas nem arguida a sua falsidade, a acta da audiência a que vimos aludindo tem a força probatória acabada de enunciar. Tendo a confissão livre, integral e sem reservas da arguida, como meio de prova, sido percepcionada pelo Tribunal na audiência e mandada exarar em acta, essa confissão constitui um facto inelutavelmente provado, mesmo que ausente do segmento da sentença recorrida onde foram arrumados os “Factos Provados”[2].
Sobre este meio de prova escreveu Marques Ferreira[3]: «3.2. Durante a audiência de discussão e julgamento a confissão reassume a importância de “rainha das provas”. 3.2.1 Se o crime for punível com pena de prisão não superior a três anos, se se tratar de um só arguido e este declarar que confessa e que o faz de livre vontade, sem coacção e de forma integral e sem reservas o tribunal ouvi-lo-á em declarações ou procederá a outras diligências que julgue necessárias para apreciar a declaração confessória. Findas estas, ou o tribunal suspeita do carácter livre da confissão ou da veracidade dos factos confessados (artº 344º, nº 1 e nº 3 al. b) e o valor probatório desta será livremente fixado pelo tribunal em conjunto com os demais meios de prova que vierem a ser produzidos. Ou inexistem os motivos enumerados na alínea b) do nº 3 do artº 344º e o tribunal fica colocado perante uma “confissão integral e sem reservas” com o valor probatório da prova legal pleníssima por não se admitir qualquer produção de prova subsequente e os factos constantes do acto confessório deverem considerar-se provados».
Assim, ao confessar integralmente os factos, a arguida aceita o teor da pronúncia e que sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da al. a) do n.º 2 do art. 344.º do CPP. Dito de outro modo, sendo sem reservas, a confissão não admite condições ou alterações aos factos admitidos, tal como constam da acusação ou da pronúncia. Não pode, por isso a recorrente vir agora, em sede de recurso, pôr em causa a matéria de facto fixada em consonância com o que constava da pronúncia, como se não tivesse efectuado uma confissão integral e sem reservas, quando não impugnou, no momento próprio, o despacho que assim o considerou nem a fidedignidade da acta. Como certeiramente se refere no Acórdão do STJ de 14-07-2010[4], «Sendo a matéria de facto (…) fixada a partir da confissão do arguido dirigida à tese da acusação, não se vê como depois se possa pretender impugnar a matéria de facto dada por provada, quando justamente o assentamento da facticidade se deveu a contributo decisivo do arguido (na medida em que com a sua postura foi prescindida a produção de prova arrolada pela acusação). (…) Pretender agora discutir a matéria de facto quando se contribuiu para a sua fixação de forma livre, sem reservas e com a consequência de a acusação prescindir de produzir prova, constitui de certo modo um venire contra factum proprium, embora sem sintonizar necessariamente a atitude na figura prevista no artigo 334.º do Código Civil.»
No caso vertente, a arguida não põe sequer em causa que tenha produzido uma confissão integral e sem reservas. Contudo, pretende que, apesar dela, o Tribunal não dê como provados determinados factos, concretamente os narrados nos pontos 3, 4, 5 a 19, 20 a 24, 25, 26, 27, 30 e 31 da matéria de facto provada. Ora, os pontos 3 a 27, que contêm a matéria factual adequada a preencher os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de dano que vinham imputados à arguida, bem como o valor global dos danos patrimoniais causados à ofendida pelos comportamentos que aquela levou a cabo, constavam já do despacho de pronúncia, tendo tal factualidade sido integralmente confessada pela ora recorrente, sem quaisquer reservas. E os pontos 30 e 31 dos factos provados (alegados no pedido de indemnização civil) que também se reportam aos danos materiais provocados pela arguida na casa da ofendida e ao respectivo valor global, não são mais do que a repetição do que já resultava dos pontos 4 a 26 da matéria provada. As declarações das testemunhas de defesa que a recorrente agora invoca (subtraídas ao contraditório e excluída a produção de prova por parte da acusação) não poderiam, face à sua confissão integral e sem reservas, modificar essa factualidade provada (e, em consequência, a não provada) no sentido que pretende, pois que redundariam na alteração do acervo factual que ela próprio aceitara. Na verdade, tais depoimentos só poderiam ser valorados relativamente a factos que não tivessem sido objecto de confissão, pois que, como acima referimos, de acordo com o disposto no art. 344.º, n.º 2, al. a), do CPP, a confissão integral e sem reservas implica renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados; Ao efectuar uma confissão integral e sem reservas, a arguida abdicou de pôr em causa a factualidade constante da pronúncia, não podendo, por isso, pretender, como pretende agora, ver dados como não provados os factos que dela constavam e dada como provada matéria que a contradiga (designadamente integradora de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa), nem tendo qualquer cabimento assacar à decisão recorrida a violação do princípio da livre apreciação da prova ou do preceituado no art. 355.º, n.º 1, do CPP. É que, perante aquela sua confissão, nunca poderiam os factos que alega ser considerados provados (e não provados os que foram dados como assentes, descritos na pronúncia), sob pena de o Tribunal incorrer no vício a que alude o art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, que se verifica «quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal»[5]. Em suma, os pontos 3, 4, 5 a 19, 20 a 24, 25, 26, 27, 30 e 31 da matéria de facto dada como provada, porque objecto de confissão integral e sem reservas por parte da arguida, não podem ser objecto de impugnação.
… [6] …
A recorrente pretende ainda pôr em causa os danos não patrimoniais sofridos pela demandante, apesar de não indicar os pontos de facto onde os mesmos constam. Mas fá-lo afirmando apenas que «teriam esses danos de ser causados por uma atitude grave e ilícita da demandada» que, na sua perspectiva, inexiste e não se provou. Essa impugnação esgota-se, assim, na mera discordância da convicção formada pelo Tribunal, sem que sequer seja indicado qualquer elemento de prova que imponha decisão diversa, sendo que a ilicitude da sua actuação e o conhecimento dessa ilicitude resultaram demonstrados através da sua confissão integral e sem reservas. Não se detecta, pois, qualquer erro de julgamento, não havendo motivo para alterar a matéria de facto fixada em qualquer dos pontos acima referenciados.
E, porque não se vislumbra no texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, qualquer dos vícios a que alude o n.º 2 do art. 410.º do CPP, pois que a decisão se mostra lógica, coerente, harmónica, destituída de lacunas ou antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, e sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para sustentar uma segura solução de direito, mostra-se a matéria factual intangível e definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido. * A recorrente discorda também da qualificação jurídico-penal operada pelo Tribunal recorrido, por considerar que não se verificam os elementos típicos do crime de dano. Afirma, em síntese, que «sendo proprietária do muro que danificou e com uma decisão que afirma que a parede é sua», já recorreu à tutela pública, que ainda nada decidiu, pelo que agiu procurando «manter uma situação de facto pré-existente a uma agressão, repelindo-a», exercendo uma justiça privada defensiva, ao abrigo do instituto da acção directa (art. 336.º do C. Civil), mostrando-se, por isso, excluída a ilicitude da sua conduta ou a sua culpa, por ter actuado «em situação de falta de consciência da ilicitude não censurável». E conclui que, por isso, deveria ter sido proferida decisão absolutória do ilícito criminal e, consequentemente, do pedido de indemnização civil nele fundado. Para o caso de assim não se entender, sustenta ainda que devia ter sido condenada por um único crime de dano, ainda que na forma continuada, tendo nesta matéria sido violado o «princípio geral da aplicação da lei mais favorável» e o princípio constitucional do non bis in idem.
O Tribunal recorrido pronunciou-se sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos apurados nos seguintes termos:
Afigura-se-nos correcto o enquadramento jurídico penal efectuado, pelo que pouco haverá a acrescentar. Assim, diremos, antes de mais, que, não tenho merecido acolhimento a alteração da matéria de facto provada propugnada pela recorrente, a apreciação da correcção da qualificação jurídica terá de fazer-se à luz da factualidade fixada pelo Tribunal a quo. Perante esta, designadamente a vertida nos pontos 1 a 27 dos factos dados como assentes, e tendo presentes os elementos típicos do ilícito em causa, que vêm analisados na decisão recorrida em termos que merecem a nossa concordância e que, por isso, nos dispensamos de aqui repetir, não oferece quaisquer dúvidas o preenchimento destes, não tendo sido violado qualquer preceito legal ou princípio constitucional. Na verdade, dessa factualidade não resulta que a recorrente tivesse actuado em defesa de qualquer agressão ao seu direito de propriedade, ou que tivesse fundamento razoável para, ainda que erroneamente, criar essa convicção, já que as decisões proferidas (em 1.ª instância e em sede de recurso) na acção declarativa de condenação que interpôs contra a aqui queixosa não deixavam margem para dúvidas relativamente à circunstância de a construção edificada por esta última não beliscar o direito de propriedade da arguida, por não ter ocupado qualquer faixa de terreno pertença desta e por a queixosa ter o direito de levantar a parede (sul) da sua habitação encostada à parede (norte) do prédio da arguida, mesmo que tal implicasse (como implicou) a vedação da abertura existente na parede desta, decisões cujo conteúdo a recorrente não podia razoavelmente ignorar. Inexistindo base factual que permita configurar qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, mostram-se, pois, preenchidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de dano, não ocorrendo qualquer fundamento para a pretendida absolvição da recorrente.
Para o caso de não proceder a sua pretendida absolvição, a recorrente sustenta que devia ter sido condenada por um único crime de dano, ainda que na forma continuada, tendo nesta matéria sido violado o «princípio geral da aplicação da lei mais favorável» e o princípio constitucional do non bis in idem.
Dispõe o art. 30.º do CP, na parte que ora importa: «1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. (…)»
Para melhor exegese do preceito penal em foco, importa ter presentes, ainda hoje, os ensinamentos do Prof. Eduardo Correia[7]: «(…) Ora bem, para dar realidade a este pensamento possui a técnica legislativa um engenhoso recurso, que consiste precisamente no tipo legal de crime – tatbstand -. Nele descreve o legislador aquelas expressões da vida humana que em seu critério encarnam a negação dos valores jurídico-criminais; que violam, portanto, os bens ou interesses jurídico-criminais. Neles vasa a lei em moldes os seus juízos valorativos, neles formula de maneira típica a antijuridicidade, a ilicitude criminal. Depois, uma vez formulados esses tipos legais de crimes, impõe-os ao juiz como quadros, a que este deve sempre subsumir os acontecimentos da vida para lhes poder atribuir a dignidade jurídico-criminal. Nisto consiste precisamente a chamada tipicidade, intimamente ligada ao princípio do nullum crimine sine lege (…)». Mais adiante, a págs. 112, refere: «(…) O tipo legal é, pois, o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante a qual se acham colocados os tribunais e o intérprete». E conclui, no mesmo local: «(…) Mas sabido isto, e se dermos mais um passo, fica a saber-se através de que critérios é possível determinar a unidade ou pluralidade de valores ou bens jurídico-criminais que uma certa actividade criminosa viola e, portanto, a unidade ou pluralidade de crimes a que ela dá lugar. Na verdade, se todos os juízos de valor jurídico-criminais hão-de ser fornecidos através de tipos legais de crime, é, por outro lado, certo que cada tipo legal há-de ser informado por um específico valor jurídico-criminal, no sentido amplo que lhe demos (…)». Como se alcança de tudo quanto ficou expresso, o art. 30.º, n.º 1, do Código Penal perfilha o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo ao número de tipos legais de crimes efectivamente preenchidos pela actuação do agente ou ao número de vezes que essa conduta desenhou o mesmo tipo legal de crime. No entanto, embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura – dolo ou negligência. Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verifica um ou mais crimes – e se sob a forma dolosa ou negligente: é o que se deduz do advérvio “efectivamente” e dos princípio basilares sobre a culpa. Para que exista uma infracção, não é suficiente a antijuridicidade, ou seja, a realização do tipo legal de crime, sendo necessária a responsabilidade da conduta, isto é, a culpa, assim se podendo dizer que há infracção, na realização do mesmo tipo legal de crime, quantas vezes a conduta se torna reprovável e que a pluralidade de infracções resultará, para o mesmo tipo legal, da pluralidade dos mesmos juízos de censura ou reprovação. Assim, as normas jurídico-criminais, a par da valoração objectiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, para agir como contra motivo no momento da resolução, assim havendo infracções da norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinativa da vontade, porque o que indicia quantas vezes essa ineficácia ocorre é a resolução, ou seja, quantas vezes o indivíduo resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma. Quantas as vezes, pois, que o arguido decidiu agir de modo contrário ao ditame da norma, tantas vezes se observa a sua violação. Há, assim, unidade de resolução quando se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de determinação, sem serem determinados por nova motivação[8]. O art. 30.º do CP em matéria de unidade e pluralidade de infracções admite três importantes modalidades de figuras jurídicas, a saber: - um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial. Ou seja, se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único, já que subsumível a um mesmo tipo criminal, ou seja, ofensivo de idêntico bem jurídico; - um só crime continuado, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligada por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas. Ou seja, se o comportamento do arguido revelar uma pluralidade de resoluções poder-se-ão colocar – e só então·– as hipóteses de pluralidade de infracções ou de crime continuado; - um concurso de infracções, se não se verificar qualquer um dos casos anteriores. Ou seja, tendo havido mais do que uma resolução, a regra será o concurso real de crimes, constituindo a continuação criminosa uma excepção a aceitar quando a culpa se mostre consideravelmente diminuída, mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas. Como refere o Prof. Eduardo Correia[9], deve «considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades do agente uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo da motivação».
À luz de tais considerações, revertamos ao caso dos autos.
Os comportamentos em causa nos autos consistiram em a arguida causar estragos em bens da propriedade da aqui queixosa, concretamente nas paredes da construção que esta edificava na sua propriedade, na cimalha ou cornija dessa construção, na chapa metálica ali colocada para tapar um buraco aberto pela arguida, na caleira instalada na fachada, no pavimento exterior da habitação, nos contadores da água, electricidade e telefones, nas respectivas caixas e no muro onde se encontravam colocados, o que sucedeu em dez ocasiões situadas entre 12-02-2020 e 15-06-2020. Ao longo desse período temporal, e em cada uma das ocasiões em que actuou, munindo-se dos necessários instrumentos para o efeito, a recorrente renovou a sua resolução criminosa de assim agir, ocorrendo, pois, uma pluralidade de resoluções. Poderá dizer-se que essa actuação foi executada de uma forma essencialmente homogénea, com procedimentos semelhantes ou similares, e é inequívoco que os comportamentos ilícitos adoptados violam o mesmo bem jurídico. Mas a simples reiteração das condutas, mesmo que perpetrada de forma essencialmente homogénea, não basta para permitir falar em continuação criminosa para os efeitos do disposto no art. 30.º, n.º 2, do CP.
Como vimos, o traço distintivo da figura do crime continuado, que determina os seus limites e natureza, está na circunstância de a acção se desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a poder dizer-se que era para este cada vez menos exigível que se comportasse de acordo com o direito, ou seja, em aproveitamento de um condicionalismo exterior que propicia a repetição do crime, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente. O fundamento de tal figura jurídica encontra-se na considerável diminuição da culpa do agente devido à existência de um factor de ordem externa ao agente (e não de uma tendência, interna, deste) que lhe cria uma especial solicitação para o crime. Ora, na factualidade provada (e só a ela podemos atender) não descortinamos nenhum factor de ordem externa que houvesse estimulado a recorrente para a prática dos ilícitos, de modo a ter-se como consideravelmente diminuída a sua culpa. O que bem se compreende, porquanto não se trata aqui de um conflito de vizinhança de contornos juridicamente difusos ou pouco claros, em que a arguida pudesse estar convencida de que lhe assistia razão, pois que, por intervenção dos Tribunais cíveis a solicitação da própria arguida (e do marido) e em data anterior aos factos em apreço, a situação jurídica havia já sido clarificada/definida e dirimido o conflito de vizinhança, não podendo a ora recorrente deixar de estar ciente de que não lhe assistia razão e de que repetidamente violava o direito de propriedade da queixosa, já judicialmente reconhecido. O que se verifica é uma clara persistência criminosa (em algumas das ocasiões, voltando a arguida a reabrir o buraco na parede já reparada depois da sua anterior actuação), em ostensivo desrespeito às decisões judiciais que reconheceram o direito de propriedade da queixosa e à decisão camarária que permitia a esta a continuação da sua obra, nos termos acima concretizados, o que afasta a acentuada diminuição da culpa que é indispensável à verificação de um crime continuado. Não ocorre, assim, qualquer violação do princípio constitucional non bis in idem[10], não merecendo reparo a qualificação jurídico-penal operada na sentença condenatória ao concluir que a ora recorrente cometeu dez crimes de dano (e não apenas um, na forma continuada), nem a medida concreta das penas pecuniárias, parcelares e única, fixadas que, de resto, não vêm questionadas[11]. Improcede, pois, também este segmento do recurso. * Por fim, a recorrente peticiona a improcedência total do pedido de indemnização civil. Relativamente aos danos não patrimoniais, funda essa pretensão na absolvição da prática dos crimes, por entender que tais danos teriam de ser causados por uma sua atitude grave e ilícita que, na sua perspectiva, não ficou demonstrada. Quanto aos danos patrimoniais, questiona, para além da ilicitude do seu comportamento, o montante do prejuízo apurado, que, em seu entender, também não se provou, o que pretendia demonstrar em sede de impugnação da matéria de facto. Ora, mantendo-se a condenação da recorrente pela prática dos crimes que lhe vinham imputados, subsiste a sua responsabilidade civil nela fundada, improcedendo por isso a pretendida absolvição. E, como vimos, o montante global dos prejuízos patrimoniais sofridos pela demandante em consequência das condutas da arguida, que figura nos pontos 25 e 31 da matéria provada, é insusceptível de alteração, por ter resultado provado mediante a confissão integral e sem reservas da arguida. Assim, também nesta parte o recurso não pode deixar de improceder. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, AA, confirmando a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa). Notifique. * * Coimbra, 26 de Abril de 2023 [1] Embora na sua conclusão LXXIII a recorrente afirme que foi violada a norma contida no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, que, como é sabido, prevê a nulidade da sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, a verdade é que tal questão não vem suscitada no corpo da motivação. Como é sabido, as conclusões destinam-se a resumir as razões do pedido e não a introduzir questões que não foram colocadas no corpo da motivação, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre questões relativamente às quais falta, na motivação, a enunciação dos seus fundamentos, pelo que a invocação de tal nulidade não será considerada, sem prejuízo da apreciação da sua ocorrência enquanto matéria de conhecimento oficioso. [2] Cf., neste sentido o Ac. do STJ de 10-03-2010, Proc. n.º 1353/07.5PTLSB.S1 - 3.ª, in www.dgsi.pt. [3] In Meios de Prova, Jornadas de Processo Penal – O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, Coimbra, págs. 249-250. [4] Proferido no Proc. n.º 408/08.3PRLSB.L2.S1 - 3.ª, ibidem. [5] Cf. Acs. do STJ de 06-10-1999 e de 13-10-1999, in Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2.ª Ed., pág. 1058. [6] … [7] In A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Unidade e Pluralidade de Infracções, Livraria Atlântida, Coimbra, pág. 107. [8] Cf. Ac. do STJ de 15-05-1991, BMJ 407.º/159. [9] In ob. cit., pág. 125. [10] E, salvo o devido respeito, não estando em causa nos autos qualquer situação de sucessão de leis no tempo, não colhe sentido invocar, em matéria de qualificação jurídica, a violação do «princípio geral da aplicação da lei mais favorável», que decorre, como é sabido, do princípio consagrado no art. 29.º, n.º 4, da CRP, que estabelece que «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se rectroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.». [11] Cf., a este propósito, o acórdão do STJ de 09-07-2020, proferido no Proc. n.º 22/98.0GBVRS.E2.S2- 5, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de acórdãos): « Se o recorrente restringiu o âmbito do recurso à questão da culpabilidade da parte crime, negando a prática dos respectivos factos, não considerando, ainda que em via subsidiária, a questão da determinação da sanção e porque a apreciação de tais matérias não cabe nos poderes de conhecimento oficioso do tribunal de recurso, a improcedência do recurso quanto àquela parte autónoma da decisão leva à aceitação da parte autónoma cindida, da aplicação da pena e correspondente medida.» |