Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150/05. 7 TASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: FALSIFICAÇÃO
ELEMENTO OBJECTIVO
PREJUÍZO DE ORDEM MORAL
Data do Acordão: 10/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS, 255º, AL. A), 256º, Nº 1, ALS. A) E B) E N.º 4 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. No crime de falsificação de documento o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, no que respeita à prova documental.
2. O elemento objectivo do referido ilícito pode representar um prejuízo de ordem moral.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

A... veio interpor recurso da sentença que o condenou pela prática de um crime de falsificação de documento, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, n.º 2, 255º, al. a), 256º, nº 1, als. a) e b) e n.º 4 do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 386º, n.º 1, al. c) do mesmo Código, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 o que perfaz a quantia de € 900,00.
Na procedência parcial dos pedidos de indemnização civil deduzidos pelos demandantes P... e J..., foi ainda o arguido condenado a pagar a cada um deles, a quantia de € 500,00 a título de danos não patrimoniais.
*
A razão da sua discordância encontra-se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:
1- Os factos provados 1, parte final quando se diz "por um período de tempo indeterminado" 2 a 10 da parte crime, na íntegra, e 11 referente ao pedido cível, devem ser dados como não provados com os fundamentos seguintes.
2- A prova pericial, em face da opção tomada pelo MP durante o inquérito, não permite que a mesma tenha o alcance dado na Sentença, por ser parcial a sua análise, devendo por esse motivo ser desconsiderada como meio de prova.
3- A não desconsideração total dessa prova implica uma violação clara dos artigos 20.°,1 e 32.°, 1, 2, 3, 5, da Constituição da República Portuguesa, que especificadamente se invocam, porquanto ela implica uma restrição inaceitável do direito a uma defesa efectiva e plena por parte do arguido e ainda uma violação clara do princípio da presunção da inocência.
4- O depoimento dos queixosos em nenhum momento aduziu aos autos prova da autoria dos factos pelo arguido.
5- A testemunha M... produziu um testemunho que, em face de todos os elementos carreados para os autos, não pode merecer qualquer crédito do Tribunal, atentas as suas mudanças de testemunho, incongruências e falsidades.
6- A testemunha D...deve merecer crédito, atenta a sua razão de ciência, a lógica do seu depoimento, e as regras da experiência comum.
7- Mais deve merecer crédito a testemunha F..., atenta a sua razão de ciência.
8- Subsidiariamente, diz que o resultado da prova pericial, caso não seja excluída, só por si não permite concluir pela culpa do arguido, atenta a escala que o próprio exame apresenta.
9- Esta conclusão, associada às conclusões quinta a sétima, impede que o Tribunal condene o arguido apenas com base na perícia, tendo de valer o princípio "in dubio pro reo".
10- Devendo, com base na falta de prova, ou quanto muito, com base no princípio "in dubio pro reo", ser o arguido absolvido da prática dos crimes de que vem acusado.
11- Se por mera hipótese de retórica se admitisse a autoria do escrito pelo arguido, ainda assim não podia o mesmo ser condenado, por a conduta não preencher o tipo de crime de que vem acusado.
12- Não houve prejuízo patrimonial e/ou moral causado pelos documentos falsificados.
13- Os queixosos não exerciam qualquer função, nos termos do que é a definição da palavra na língua portuguesa, pelo que o fundamento do prejuízo na exoneração não querida da função configura um prejuízo impossível de ocorrer, não se preenchendo, por esse motivo, o tipo de crime.
14- Não se encontra provada a intenção que o arguido tinha para a prática deste crime, sendo certo que se quisesse apenas que os ofendidos deixassem o corpo activo dos Bombeiros bastava passá-los à reserva, o que naquela altura tinha exactamente os mesmos efeitos da exoneração, e não dependia de pedido ou de assinatura dos ofendidos, o que implicava que se provasse porque é que o arguido teria actuado desta forma e não de outra, o que não sucedeu.
15- Não se preenchendo estes dois elementos do tipo, a saber, a intenção de causar um prejuízo querido ou previsto e/ou a possibilidade de verificação desse prejuízo em função do conceito de função, seja em conjunto, ou separadamente, não se pode afirmar que a conduta se subsume ao tipo de crime de que o arguido vinha acusado.
16- Devendo, por esse motivo, o arguido ser absolvido.
17- Mais deve ser absolvido do pedido cível, seja por ser absolvido do crime, seja por inexistir qualquer possibilidade de existir prejuízo moral.
18- Foram violados os artigos 163.° e 368.° do CPP, os artigos 30.°, 255.°, 256.° e 386º do CP, e os artigos 20. °1 e 32. ° 1, 2, 3, 5, da CRP.
Termos em que, deve o arguido ser absolvido do crime de que vem acusado e do pedido cível que contra ele foi formulado.
*

Respondeu o Magistrado do MP junto do tribunal a quo defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e a sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Os autos tiveram os vistos legais.
***


II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da sentença recorrida:
A. Factos provados
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. P… e J... integraram o quadro activo dos Bombeiros Voluntários de Y... desde 1994 e 1992, respectivamente, até 6 de Junho de 2002, data em que foram considerados exonerados, embora tivessem estado sem comparecer ao serviço daquele Corpo de Bombeiros por um período de tempo indeterminado.
2. Desde data não concretamente apurada até Outubro ou Novembro de 2002, o arguido foi Comandante da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Y..., Associação de utilidade pública, sendo certo que ocupou aquele posto durante vários anos, ininterruptamente até 2002.
3. No dia 4 de Maio de 2002, no Quartel dos Bombeiros Voluntários de Y..., o arguido, então Comandante daquela Associação, escreveu com o seu próprio punho nos espaços por preencher de uma carta/requerimento pré-impresso, no local destinado ao nome, categoria, número mecanográfico, data e assinatura: "J...", "2º classe", "09920994", "15 Maio", e ainda o nome de J... como se tratasse da assinatura deste.
4. Nas mesmas circunstâncias, sendo o arguido Comandante daquele Corpo de Bombeiros, escreveu também com o seu próprio punho, nos espaços por preencher de um requerimento pré-impresso, no local destinado ao nome, categoria, número mecanográfico, data e assinatura: "P...', "3º classe", "09940629', "1 Janeiro 1998", e ainda o nome de P... como se tratasse da assinatura deste.
5. Os dois requerimentos preenchidos pelo arguido consubstanciavam-se em pedidos de exoneração do Corpo de Bombeiros Voluntários de Y..., alegando indisponibilidade por motivos profissionais e familiares.
6. Após este procedimento, com data de 4 de Maio de 2002, o arguido mandou que, por ofício, fossem enviados para a Inspecção Distrital de Bombeiros da Guarda os dois requerimentos de exoneração por si elaborados e assinados como descrito, tendo sido autorizadas as exonerações de P... e de J..., em 6 de Junho de 2002, por aquela Inspecção Distrital.
7. Ao proceder como descrito, preenchendo, assinando e determinando que viessem a produzir aqueles efeitos os dois pedidos de exoneração, como se efectivamente J... e P... os tivessem feito, o arguido pôs em crise a veracidade e credibilidade que aqueles documentos mereciam, bem sabendo que o fazia sem o conhecimento e consentimento dos visados, conseguindo com a sua conduta que P... e J... deixassem de pertencer ao Corpo de Bombeiros.
8. O arguido actuou aproveitando a facilidade que o desempenho das funções de Comandante lhe conferia quanto ao conhecimento da forma e do procedimento a adoptar para os pedidos de exoneração e por constatar que os visados não compareciam nos Bombeiros há muito tempo sem terem eles tomado a iniciativa de o fazer.
9. Sabia o arguido que, sendo o Comandante, o envio por si dos pedidos de exoneração ao Comando Distrital teria como efeito a exoneração dos visados e a sua exclusão do Corpo de Bombeiros, já que estes não tomaram iniciativa nesse sentido.
10. Actuou de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
Relativamente ao pedido de indemnização civil provou-se ainda que:
11. Por virtude dos factos supra descritos P... e J... sentiram-se apreensivos, angustiados e tristes, sendo que os mesmos nunca manifestaram a vontade de exoneração do corpo activo dos Bombeiros Voluntários de Y....
*
Quanto às condições económicas do arguido provou-se que:
12. O arguido trabalha numa empresa de metalurgia e aufere, em média, cerca de 500 Euros líquidos mensais;
13. É actualmente o Comandante da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Y...;
14. Faz parte ainda da Comissão de Defesa da Floresta Municipal e é Coordenador de Recolha de Sangue.
15. Tem o 9º ano de escolaridade e está a frequentar o Centro de Novas Oportunidades na EDP, com vista a ficar com equivalência ao 12º ano de escolaridade.
16. A sua esposa é funcionária num lar e aufere 500 Euros mensais.
17. Vive com os seus pais, em casa própria destes, com a sua esposa e uma filha, que tem 13 anos de idade, e que se encontra a estudar.
*
Quantos aos antecedentes criminais provou-se que:
18. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
B. Factos não provados
Da prova produzida em audiência não resultaram provados quaisquer outros factos, maxime todos os que estejam em contradição com os supra enunciados e, designadamente, que:
1. O Arguido actuou, da forma supra descrita, por entender ser essa a situação que mais interessava aos Bombeiros Voluntários de Y....
2. As exonerações determinaram para J... e P..., para além do mais, que tivessem de entregar as fardas e quaisquer outros bens pertencentes àquele Corpo de Bombeiros, que tivessem podido manter consigo..
***

APRECIANDO

Perante as conclusões da motivação, no presente recurso impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando ter sido efectuada errada apreciação da prova produzida em julgamento, com violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.
Subsidiariamente, vem ainda invocada a incorrecta subsunção dos factos ao direito.
*
A-
Vem o recorrente questionar a apreciação da prova produzida e examinada em audiência, impugnando parte da matéria de facto que foi dada como assente na decisão recorrida, concretamente, a parte final do ponto 1º e os pontos 2º a 11º, os quais considera incorrectamente julgados, porquanto discorda que, no essencial, o tribunal a quo se tenha baseado na prova pericial, no depoimento de M... e dos queixosos e, ao invés, não tenha valorizado o depoimento de F… e de D....

Por serem de conhecimento oficioso, desde já se refere que inexiste qualquer insuficiência na matéria de facto provada, qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou, erro notório na apreciação da prova, vícios estes previstos no n.º 2 do artigo 410º do CPP, os quais teriam de resultar do próprio texto da sentença recorrida, por si só, ou conjugados com as regras da experiência comum, não podendo o tribunal ad quem socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo.
Este preceito está intimamente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, n.º 2 do mesmo diploma, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

Vejamos como o tribunal recorrido alcançou as conclusões a que chegou:
Convicção do tribunal:
O tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com a prova documental e pericial junta aos autos, e com as regras da experiência.
Assim, e no que concerne aos factos dados como provados, relevaram desde logo:
- Os documentos de fls. 151 e 152 (pedidos de exoneração); 4 e 5 (fotocópias dos cartões de identidade como Bombeiros dos queixosos J... e P...); 13 a 16 (ofícios relativos aos referidos pedidos de exoneração); 124 a 127 (relação de pessoal do Corpo de Bombeiros de Y...); 213 (informação que atesta a declaração de utilidade pública da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Y..., conferida pela Presidência do Conselho de Ministros, em despacho publicado no DR II série, nº 250, de 27 de Outubro de 1984);
- Exame pericial de fls. 139 a 193, onde se conclui, designadamente, que:
"Admite-se como muito provável que a escrita suspeita constante do preenchimento e da assinatura "P..." no requerimento, de fls. 38 (Doe. 1 deste relatório), não seja da autoria de P....
Admite-se como muito provável que a escrita suspeita constante do preenchimento e da assinatura "J..." no requerimento, de fls. 39 (doe. 2), não seja da autoria de J....
Admite-se como muito provável que a escrita suspeita constante do preenchimento e das assinaturas "P..." e "J..." nos requerimentos, de fls. 38 e 39 (does. 1 e 2), seja da autoria de A...".

- Nas declarações do arguido na parte em que admitiu os factos dados como provados no ponto 1 e 2. Esclarece-se ainda que o arguido negou a prática dos demais factos de que vinha pronunciado e designadamente ter preenchido e assinado os pedidos de exoneração em causa, constantes de fls. 151 e 152 dos autos - sendo certo que nesta parte tais declarações não se afiguraram credíveis tendo em conta o exame pericial supra aludido, conjugado com os depoimentos dos queixosos e da testemunha M... conforme adiante se fará alusão;
- No depoimento dos queixosos J… e P..., os quais depuseram com rigor e isenção e de forma credível, tendo ambos confirmado, designadamente os factos dados como provados nos pontos 1 e 11, e esclareceram ainda o modo como tiveram conhecimento dos pedidos de exoneração em causa, constantes fls. 151 e 152, e que não preencheram nem assinaram os mesmos, nem nunca tiveram intenção de efectuar qualquer pedido de exoneração. Mais referiram ambos que, não obstante os pedidos de exoneração em causa tenham sido deferidos, não entregaram as fardas nem quaisquer outros bens pertencentes ao Corpo de Bombeiros de Y....
- No depoimento da testemunha M... - cujo depoimento foi prestado antecipadamente, para memória futura a fls. 556 e 557, e cuja transcrição foi efectuada a fls. 585 a 606, e foi lido em audiência - o qual depôs de forma isenta e credível, e referiu designadamente que foi ele, enquanto Secretário dos Bombeiros V. de Y..., quem elaborou no computador as respectivas minutas dos pedidos de exoneração; que entregou ao arguido - que na altura era Comandante daquela Corporação de Bombeiros -, a pedido deste, cerca de 20 minutas, de pedidos de exoneração, e que este, posteriormente, cerca de uma hora a uma hora e meia, entregou-lhas, já devidamente preenchidas e assinadas - incluindo as que constam de fls. 151 e 152 - esclarecendo que, nessa ocasião, não se encontrava lá mais ninguém, a não ser ele e o arguido. Mais referiu que nesse mesmo dia, a pedido do arguido, elaborou o ofício que consta de fls. 15 a 16 dos autos, datado do dia 4 de Maio de 2002, tendo posteriormente enviado o mesmo para a Inspecção Distrital de Bombeiros da Guarda.
- No depoimento da testemunha C..., que depôs com rigor e isenção, relativamente à matéria do pedido de indemnização civil, tendo o mesmo confirmado designadamente que os demandantes ficaram indignados e tristes quando tiveram conhecimento dos pedidos de exoneração em causa.
Relativamente à testemunha D... . - arrolada pelo arguido na sua contestação - importa salientar que o tribunal não deu credibilidade à mesma, uma vez que o mesmo depôs de forma manifestamente parcial, a favor do arguido, e de forma inflamada. Acresce que esta testemunha nem sequer demonstrou ter conhecimento dos factos em apreço. Com efeito, este depoimento visou tão só abalar a credibilidade da testemunha M... (tendo inclusivamente manifestado expressamente que estava de relações cortadas e zangado com o mesmo), o que não logrou conseguir, já que o depoimento desta última testemunha, ao invés do seu, afigurou-se sereno, isento e credível.
Face à importância que reveste - e tendo em conta particularmente a defesa apresentada pelo arguido na sua contestação -, importa aqui salientar que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano, que jamais pode basear-se na absoluta certeza. Com efeito, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade, que permita afastar a situação de dúvida razoável, e que tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando.
As provas directas (no sentido de provas "históricas"), fornecem a representação directa do facto objecto da imputação (factum probandum), e as provas indirectas (provas "críticas"), demonstram, pelo contrário, a existência de um facto secundário e, portanto, de um facto do qual é possível retirar o facto principal a provar através de uma inferência lógica.
Estas considerações acabadas de tecer são relevantes para o caso em apreço, na medida em que o Tribunal utilizou para formar a sua convicção, para dar como provada a autoria por parte do arguido dos factos dados como provados nos pontos 2 a 10, as provas indirectas (provas "críticas") supra referidas - designadamente o referido exame pericial, e os depoimentos dos queixosos J... e P... e da testemunha M... - conjugadas com as regras da experiência comum, e a demais prova documental supra referida.
Quanto às condições pessoais do arguido relevaram as suas próprias declarações.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais relevou o CRC junto aos autos.
Quanto aos factos dados como não provados no ponto 1, não foi produzida qualquer prova que lograsse convencer o tribunal da sua verificação.
Quanto aos factos dados como não provados no ponto 2, resultou prova em contrário, uma vez que, conforme supra se aludiu, ambos os queixosos, J... e P..., referiram que não obstante os pedidos de exoneração tenham sido deferidos, não entregaram as fardas nem quaisquer outros bens pertencentes ao Corpo de Bombeiros de Y.....

Encontra-se a decisão recorrida devidamente fundamentada, tendo o Tribunal a quo indicado quais os meios probatórios em que se baseou e explicado a credibilidade que os mesmos lhe mereceram. Assim, atendeu o tribunal à prova produzida e examinada em audiência, conjugada com a prova documental e pericial junta aos autos, e com as regras da experiência.
Por outro lado, indicou o tribunal por que não conferiu credibilidade às declarações do arguido (relativamente aos factos que lhe eram imputados) e ao depoimento da testemunha de defesa D..., e acreditou no depoimento da testemunha M… e dos queixosos J... e P....

Sustenta o recorrente que a perícia “deveria ser excluída como meio de prova, ao ser parcial o objecto sobre o qual incidiu, já que o arguido não era o único a ter condições de praticar o crime (aqui se referindo à test. M...)”.
Antes de mais, salienta-se que o recurso visa a reapreciação de questões de que tenha ou devesse ter conhecido a decisão recorrida (cfr. art. 410º, n.º 1), não devendo ser confundido com um “novo julgamento” da matéria de facto.
Ora, sobre a perícia realizada, como bem salienta o MP na sua resposta ao recurso, «teve o arguido possibilidade de requerer ao abrigo dos artigos 158º e 350º do CPP a realização de uma segunda perícia ou de solicitar a prestação de esclarecimentos por parte dos peritos, o que não fez, (…) nem requereu o que quer que fosse, neste particular, em sede de audiência de julgamento, maxime ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP».
A prova pericial é uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do CPP pois, aquela só pode ser afastada quando o julgador fundamentar a divergência, conforme artigo 163º do mesmo diploma.
A este propósito escreveu o Prof. Germano Marques da Silva ( - in Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 178. ) que “a presunção que o artigo 163º n.º 1 consagra não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial.
Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que depois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser apreciado na base de argumentos da mesma natureza”.
Analisando a decisão recorrida constatamos que o tribunal fundamentou a sua convicção com base no relatório pericial que admitiu como “muito provável” que a escrita suspeita constante do preenchimento e da assinatura nos requerimentos, de fls. 38 e 39, não era da autoria dos queixosos, mas da autoria do arguido, não se vislumbrando quaisquer razões para que tal perícia fosse excluída como meio de prova.
Porém, socorreu-se o tribunal de outros meios de prova para formar a sua convicção, designadamente o depoimento da testemunha M..., prestado para memória futura, e cuja transcrição consta a fls. 585/606, e ainda o depoimento dos queixosos J... e P....
Acontece que o recorrente adquiriu uma diferente convicção probatória sobre a suficiência da prova e a credibilidade dos meios de prova apreciados em julgamento, em contraposição com a apreciação e valoração efectuada pelo tribunal a quo à luz dos princípios da livre apreciação da prova, da imediação e da oralidade e de acordo com as regras da experiência comum.
Com efeito, pretende o recorrente que face à prova produzida em audiência seja feita uma outra apreciação, que coincida com a sua própria, esquecendo a disciplina do artigo 127º do CPP, que estabelece como critério geral da apreciação das provas, o princípio da livre convicção ou livre apreciação.
Livre apreciação da prova, não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável. Não significando, porém, que seja totalmente objectiva pois, não pode nunca dissociar-se da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “(…) desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (…), (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 205).
E, muito embora o princípio da livre apreciação da prova seja válido em todas as fases processuais, é na fase do julgamento que assume particular relevo, apoiado por outros dois princípios basilares da boa e justa apreciação da prova: o da oralidade e da imediação.
Os princípios da oralidade e da imediação tornam possível, na apreciação das provas, a formação de um juízo insubstituível sobre a credibilidade da prova; as razões que servem para acreditar em determinadas provas, e não acreditar noutras, sem dúvida que só são susceptíveis de ser apreciadas directamente pela pessoa que as avalia - o juiz de julgamento em primeira instância.
É evidente que o tribunal de recurso poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico que levou à consideração de que era uma, e não outra, a prova que se produziu. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Este tribunal de recurso procedeu à audição das declarações e depoimentos prestados em audiência e leu a transcrição do depoimento prestado para memória futura, tendo verificado que a fundamentação da decisão de facto está conforme com a prova produzida em julgamento. Com efeito, não tem razão o recorrente quando põe em causa a materialidade apurada, não se vislumbrando razões que permitam criticar a convicção firmada na decisão
recorrida, não tendo havido por banda do tribunal de 1ª instância a violação do princípio da livre apreciação da prova ou qualquer outro, designadamente o da presunção da inocência e o in dubio pro reo invocados pelo recorrente.
O princípio da presunção de inocência significa que sem um juízo de culpa não pode haver condenação, e está intimamente ligado ao princípio in dubio pro reo. Todavia, na situação em apreço, não existe qualquer possibilidade de ter sido violado o princípio geral da prova “in dubio pro reo” porquanto, o tribunal não ficou em dúvida, como resulta da factualidade dada como provada e da fundamentação da decisão, tendo sido apurados todos os elementos típicos da infracção por que o arguido vinha pronunciado.
Na verdade, na situação em apreciação, da prova produzida não resultou um non liquet que tivesse de ser valorado a favor do arguido.
*

B-
Alega ainda o recorrente que, ainda que se admitisse ter sido o autor dos escritos em causa, a sua conduta não preenche o tipo do crime de que vem acusado, dado não ter havido prejuízo patrimonial e/ou moral causado pelos documentos falsificados, nem se provou a intenção de causar um prejuízo querido ou previsto e/ou a possibilidade de verificação desse prejuízo.

Estabelece o artigo 256º, n.º 1, als. a) e b) (ou als. c) e d) com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4-9) do Código Penal que:
«1- Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Conforme o entendimento apontado por Helena Moniz ( - in Código Penal Conimbricense, Parte especial, Tomo II, pág. 676 e ss.) dir-se-á que, constituindo a falsificação de documentos uma falsificação de declarações incorporada no documento importa distinguir as formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.
Na al. a) do n.º 1 do art. 256º prevêem-se casos de falsificação material e na alínea b), casos de falsificação intelectual. Como refere Maia Gonçalves ( - in Código Penal Português, anotado, 10º ed., 1966, pág. 747.) verifica-se a falsificação ou falsidade material quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente, verifica-se a falsificação ou falsidade intelectual ou ideológica quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar.
Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico. Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante.
No crime de falsificação de documento o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, no que respeita à prova documental; visa-se aqui proteger a segurança relacionada com os documentos, tendo em conta as duas funções que o documento pode ter: função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana e função de garantia, pois cada autor do documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal qual como ele num certo momento e local as expôs.

O facto de o agente ter de actuar com a específica intenção de causar prejuízo ou de obter benefício ilegítimo, não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não constitui objecto de protecção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos, mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental.
Aquando da prática do crime de falsificação o agente deverá ter conhecimento de que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo ou utilizá-lo. Ou seja, para que, o agente actue dolosamente tem que ter conhecimento e vontade de realização do tipo, o que implica um conhecimento dos elementos normativos do tipo.
Constituindo o documento um elemento normativo do tipo, apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção jurídica, maxime da noção jurídico-penal.
No caso vertente, o arguido tinha consciência de que aquilo que afirmava nos requerimentos de fls. 38 e 39 não correspondia à realidade e que a sua afirmação produzia consequências jurídicas relevantes, ou seja, a exoneração do Corpo de Bombeiros Voluntários de Y.... Na verdade, não tendo sido os pedidos de exoneração da iniciativa dos queixosos, a conduta do arguido representou um prejuízo para aqueles, de ordem moral, tendo em conta a consideração social de que gozam todos aqueles que integram este tipo de instituições.
Por conseguinte, mostrando-se preenchidos os respectivos elementos objectivo e subjectivo do tipo, não nos merece qualquer reparo a sentença recorrida quando condenou o arguido pela prática do crime de falsificação e nos pedidos de indemnização civil dele decorrentes.
*
Improcede, na totalidade, a argumentação do recorrente.
*****

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça.

*****
Coimbra,