Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
721/13.8TACLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: RECURSO SOBRE MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DEFICIENTE
CONFLITO DE DEVERES
Data do Acordão: 05/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 412.º DO CPP; ART. 36.º DO CP
Sumário: I - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

II - Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

III - Quando o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, tal omissão não dá lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso já que as deficiências afectam o próprio corpo da motivação, ou seja, não estamos perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiência substanciais da própria motivação.

IV - No caso dos autos, os deveres em causa são de hierarquia jurídica diversa: o dever de entrega do veículo, atento o incumprimento do contrato de mútuo celebrado para a sua aquisição, tem uma génese contratual enquanto os deveres inerentes ao cargo de fiel depositário do veículo têm uma génese legal.

V - Os deveres são assim de hierarquia diferente, devendo o dever de base contratual ceder perante o dever legal.

VI - O “conflito de deveres” pressupõe ainda que o agente se veja na impossibilidade de alternativa.

Decisão Texto Integral:



Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 721/13.8TACLD, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Caldas da Rainha – Instância Local – Secção Criminal – J1, por sentença de 09/11/2015, depositada no mesmo dia, o arguido A..., com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática de um crime de violação de garantias aduaneiras, p. e p. pelo artigo 98.º do RGIT, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 500,00 (quinhentos euros).

2. Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição com renumeração dos artigos):

«1) Em primeiro lugar, importa referir que foram indevidamente valoradas as provas constantes dos Documentos 2 e 5 juntos aos autos.

2) No primeiro caso trata-se de um mandado de detenção para comparência em Tribunal Criminal no qual o arguido é acusado de desviar, em prejuízo de uma instituição de crédito, um veículo que tinha adquirido com uma cláusula de reserva de propriedade.

3) No segundo caso, trata-se do acordo amigável de restituição do veículo que permitiu a desistência de queixa e subsequente absolvição no processo-crime no qual era arguido perante o tribunal francês.

4) Ambas as provas esclareciam o Tribunal acerca da gravidade da situação do arguido perante a Justiça Francesa, da urgência de cumprir o dever de restituição do veículo e ainda da anterioridade da obrigação creditícia perante a instituição de crédito francesa relativamente à autuação pelas autoridades alfandegárias portuguesas.

5) A douta sentença recorrida começou por estabelecer uma distinção entre deveres ou ordens relativos a ações ou omissões, e conflitos entre dever de agir e dever de omitir para concluir que só a primeira situação seria enquadrável no conflito de deveres.

6) Tal distinção não releva para o caso concreto nem tão pouco tem apoio legal, jurisprudencial ou doutrinário.

7) A principal razão da existência de um conflito de deveres reside na ausência de uma terceira via, ou seja, uma alternativa ao incumprimento dos deveres em conflito, situação essa que implica que um dos deveres tenha de ser sacrificado.

8) A douta sentença não justifica nem aponta uma solução alternativa de modo a que o arguido pudesse evitar ser sancionado por qualquer uma das jurisdições que no caso concreto eram conflituantes.

9) Deste modo, a douta sentença veio indevidamente afastar a aplicação da causa de exclusão da ilicitude contida no artigo 36 nº 1 do CP.

10) Na realidade, a doutrina a e jurisprudência consideram que o debate se deverá centrar na hierarquização dos deveres conflituantes sempre que, perante um dilema de cumprir com um dever e sacrificar outro, o sujeito processual tenha que tomar uma decisão.

11) O arguido apercebeu-se que a citação e o mandado judicial emanados do tribunal francês teriam consequências muito mais gravosas em caso de incumprimento.

12) Deste modo, adotou o critério da prevalência em abstrato do cumprimento do dever perante a jurisdição francesa evitando, desse modo, ficar privado da liberdade no caso de não entregar de imediato a viatura à instituição de crédito.

13) Por outro lado, se quiséssemos aplicar o critério da anterioridade (aflorado no despacho de pronúncia) ou antiguidade relativa, sempre se diria que a obrigação creditícia do arguido data de 27-12-2005 sendo, portanto, muito anterior à aplicação da multa por contraordenação e subsequente nomeação enquanto fiel depositário da viatura penhorada.

14) Da mesma forma, face às circunstâncias do caso concreto, não se deverá optar pelo critério da anterioridade da constituição do dever perante a autoridade portuguesa na medida em que a ordem emanada do tribunal francês não só não apresentava alternativa ao arguido como ainda lhe dava muito pouco tempo de resposta.

15) Não se pode considerar que esteja preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime porque tal implicaria que se provasse que o arguido agiu com uma consciência, mais ou menos leviana, de desobediência às autoridades portuguesas.

16) É verdade que o arguido tinha a consciência de que estava a sacrificar um dever de obediência a uma autoridade administrativa portuguesa mas as consequências da desobediência à ordem judicial francesa eram muito mais graves e repercutir-se-iam na sua esfera jurídica de imediato.

17) Não se pode hierarquizar os deveres em conflito apelando a uma preferência perante a ordem jurídica portuguesa em detrimento da ordem jurídica francesa porque estão ambas no mesmo plano.

18) A resolução do conflito (ou colisão) de deveres sacrificando o dever perante a jurisdição portuguesa e optando pelo dever cujo incumprimento teria consequências mais gravosas opera a causa de exclusão da ilicitude.

19) Ainda que se possa considerar que ambos os deveres são de igual valor porque nos dois casos teriam consequências penais e, em última análise, o incumprimento de ambos implicaria que o arguido respondesse perante a Justiça, mesmo assim a causa de exclusão da ilicitude contida no artigo 36 nº 1 do CP continuará a operar.

20) Perante o concurso real de deveres, o arguido resolveu bem o conflito que se lhe deparou, deverá considerar-se como não preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime pelo qual foi condenado e, nessa medida, ser revogada a sentença condenatória substituindo-a por outra que absolva o arguido

                                                                              Com o que se fará Justiça!»

3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, acompanhando a bem fundamentada resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.

5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o arguido reiterou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso.

6.Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

Da acusação

1. No dia 14 de Abril de 2010, pelas 12:00 horas, em Caldas da Rainha, foi levantado pela Direcção-Geral as Alfândegas e dos Impostos Especiais Sobre o Consumo o auto de notícia a relatar que o arguido era proprietário do veículo de matrícula (...) AQQ (...) , Peugeot 807, sendo simultaneamente residente e exercendo profissão remunerada em Portugal.

2. No âmbito deste processo, a correr termos na Alfândega de Peniche, ao ora arguido foi apreendido este mesmo automóvel e foi nomeado fiel depositário do mesmo.

3. O arguido, que se encontrava presente no acto, foi constituído depositário idóneo do referido bem, que ficou na posse daquele, tendo assinado o auto respectivo e sido advertido que não podia utilizar, modificar, remover, alienar por doação, venda ou qualquer outra forma ou hipotecar, sem autorização da entidade competente da DGAIEC para regularização fiscal, sob pena de incorrer na prática do crime de violação das garantias aduaneiras, se não fizer inteira e completa entrega do mesmo no estado em que o recebeu e no prazo que lhe for designado, função e obrigações de que ficou ciente.

4. Apesar de saber estar vinculado a estas obrigações, o arguido, em data não concretamente apurada, mas anterior a 16 de Setembro de 2013, fez desaparecer aquele bem.

5. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que, na qualidade de depositário não lhe era permitido dispor daquele bem por qualquer meio, sem que estivesse legalmente autorizado, e desta forma frustrando as garantias aduaneiras.

6. Não ignorava o carácter censurável da sua conduta e que era proibida e punida por lei penal.

Da Contestação

7. O arguido já não reside de forma permanente em Portugal desde a insolvência da sua empresa, a qual foi declarada em 2005 no âmbito do Processo 1173/05.1 TBCLD, o qual correu os seus trâmites no extinto 1° Juízo do Tribunal de Caldas da Rainha.

8. O arguido desloca-se regularmente a Portugal para tratar de assuntos relacionados com a insolvência da empresa da qual foi sócio-gerente.

9. No decurso destas viagens, o arguido foi fiscalizado e autuado pela mesma infracção no âmbito dos processos de contra-ordenação 433/2008 e 273/2009.

10. As autuações referidas em 10. respeitavam a circulação do veículo em violação do disposto no artigo 30º do Código do Imposto sobre Veículos, por o arguido constar das base de dados da Autoridade Tributária, como tendo domicílio fiscal em Portugal e sendo sócio-gerente de uma empresa.

11. O arguido só ocasionalmente reside em Portugal, e nas circunstâncias referidas em 9.

12. O arguido não pagou a contra-ordenação a que respeita a apreensão do veículo em causa nos presentes autos porque, no seu entender, os funcionários da Alfândega de Peniche estariam a desconsiderar as razões por si anteriormente alegadas quanto à sua permanência em território nacional.

13. Após ter assinado o documento que o constituía como fiel depositário, datado de 14 de Abril de 2010, o arguido foi citado pelo Tribunal de Grande Instance de Montpellier, no âmbito de processo-crime pelo facto de ser acusado de ter desviado em prejuízo da empresa C (...) um veículo de marca PEUGEOT 807, com a matrícula (...) AQQ (...) .

14. O processo no âmbito do qual foi efectuada a citação do arguido referida em 13. Tinha na origem o incumprimento do contrato de mútuo celebrado pelo arguido para aquisição do veículo dos autos, no qual estava incluída uma cláusula de reserva de propriedade.

15. A audiência à qual o arguido deveria comparecer teve lugar no dia 1 de Setembro de 2011 pelas 14 horas no Tribunal Correcional de Montpellier.

16. O arguido foi notificado a 29 de Julho de 2011 para devolver o veículo à C (...) .

17. A 3 de Agosto de 2011 é-lhe comunicado que a desistência da queixa-crime será efectuada no Tribunal após a restituição do veículo por meio de um acordo amigável que veio a ser assinado pelo ora arguido em 26 de Agosto de 2011.

18. O arguido foi julgado e absolvido no âmbito do processo identificado em 15.

19. O arguido sabia que não podia, na sua qualidade de fiel depositário, levar o veículo para França.

20. Todavia, face à ordem do tribunal francês, entregou-o ao agente de execução.

21. O arguido contribuiu para o Centro Distrital de Leiria nos seguintes períodos:

a) Setembro de 1999 a Outubro de 2000;

b) Março de 2001 a Julho de 2003;

c) Outubro de 2003 a Dezembro de 2004.

22. Do auto de notícia de fls. 2 consta que “condutor é proprietário com residência fiscal em território nacional – após consulta à base de dados do contribuinte condutor é socio de duas empresas em território nacional – no local da fiscalização apresentou acta de assembleia de credores com cessação da administração pelo devedor – situação já reincidente”

Mais se provou:

23. O arguido reside em França, em casa da progenitora.

24. O arguido encontra-se reformado, recebendo € 457,78 de pensão, não auferindo quaisquer rendimentos em território nacional.

25. O arguido tem três filhos, de 13, 17 e 23 anos de idade.

26. O arguido tem o 12º ano de escolaridade.

27. Do certificado de registo criminal do arguido constam averbadas as seguintes condenações:

a) Por sentença proferida em 20.07.2014, no âmbito do Processo Comum Singular nº 415/01.7GBCLD do extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha, pela prática de um crime de dano qualificado, p.p. pelo artigo 212º, nº 1 do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, praticado em 12.07.2001;

b) Por sentença proferida em 11.10.2007, no âmbito do Processo Comum Singular nº 496/05.4TACLD, do extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha, pela prática de um crime de arrancamento, destruição ou alteração de editais, p.p. pelo artigo 357º do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, praticado em 26.10.2007;»

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida(transcrição):

«Discutida a causa resultaram não provados os seguintes factos:

Da acusação

a) Que o arguido tenha feito desaparecer o veículo identificado em 1. de forma não apurada, em data não concretamente apurada, mas anterior a 16 de Setembro de 2013.

Da contestação

b) Que no decurso das viagens que o arguido efectua a Portugal referidas em 8., o arguido foi seis vezes abordado pelos funcionários da Alfândega de Peniche.

c) O arguido, embora compreenda a língua portuguesa, porque viveu em Portugal desde 1991, teve dificuldade em expressar a sua discordância perante a elaboração do auto de notícia respeitante à contra-ordenação relativa à violação do disposto nos artigos 5 nº 2 - d) e 30 nº 2 do C.I.V.A.

d) No entanto, de modo a evitar processos judiciais ou fiscais, optou por pagar as respectivas multas nos cinco primeiros processos.

e) O arguido já não tinha recursos financeiros para proceder à contra-ordenação referida em 13.

f) A factualidade descrita em 15., encontra-se prevista no artigo 314 nº 1 do Código Penal Francês.

g) Do auto de notícia de fls. 2 consta que o arguido não exercia actividade em Portugal.»

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal.

Antes de mais, consigna-se que toda a matéria alegada que não foi elencada entre os factos provados ou entre os factos não provados, e a que não se responde, é irrelevante para o conhecimento do objecto dos autos, tem carácter supérfluo e repetitivo, é meramente conclusiva (contestação), ou contém conceitos de direito.

Com efeito, apenas os factos com relevo para a decisão da causa a lei manda enunciar na sentença, procedendo-se, se necessário, e na extensão tida por necessária, ao aparo ou corte do que porventura em contrário e com carácter supérfluo seja alegado – cfr. Ac. STJ 02.06.2005, P. 05P1441, in www.dgsi.pt.

Desconsideram-se, assim, dos factos provados os pontos da contestação que, ainda que por palavras diferentes, reproduzam ideia ou alegação anterior, sendo mera repetição das primeiras, bem como todas aquelas que nenhuma relevância têm na apreciação do objecto dos presentes autos, de que se referem a título de exemplo, o facto de o arguido ter apresentado queixa-crime contra o Director da Alfândega de Peniche, já que nenhuma consequência do desfecho de tal processo poderá retirar-se que tenha influência na apreciação dos presentes autos.

Do mesmo modo se desatendeu concretizadamente, ao teor da documentação junta aos autos pelo arguido de fls. 86, 87 a 92, 93 e 95 uma vez que aquela documentação, independentemente de se encontrar redigida em língua francesa, que o tribunal não considerou necessária a sua tradução, por se verificar que a mesma respeita a factualidade confessada pelo arguido.

A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada alicerçou-se nas declarações prestadas pelo arguido, o qual confessou a autoria material dos factos que lhe são imputados.

Na verdade, o arguido confessou no essencial a prática do crime que lhe é imputado, questionando, no entanto, a factualidade subjacente ao levantamento do auto de contra-ordenação que está na origem da sua nomeação como fiel depositário do veículo automóvel de matrícula (...) AQQ (...) .

Ora, a tal respeito cumpre desde logo referir que o objecto processual dos presentes autos, como tal definido e delimitado pela acusação deduzida, não respeita à regularidade do processo contra-ordenacional no âmbito do qual foi imposta ao arguido a sua condição de fiel depositário do veículo automóvel identificado na acusação, não relevando a argumentação expendida pelo arguido àquele respeito, mas antes e só do incumprimento, por parte do arguido das obrigações que aquela qualidade lhe impunham. Aliás, o próprio arguido confessa na contestação apresentada ter conhecimento das obrigações decorrentes da sua qualidade de fiel depositário do veículo automóvel apreendido, confessando ainda que violou aquelas obrigações, com consciência das consequências dela decorrentes, a fim de dar cumprimento à ordem que lhe foi imposta pelas autoridades judiciárias francesas.

No apuramento da factualidade provada relevou ainda a documentação junta aos autos, designadamente, a cópia certificada do auto de notícia nº 2/2013.7DAAPNI, e a declaração do ISS de fls. 97.

Como tal, foram considerados provados os factos constantes da acusação, com a rectificação quanto à data de autuação do arguido e sua constituição como fiel depositário, uma vez que confrontada a acusação e o auto de notícia cuja cópia se encontra junta a fls. 16, se verifica que padece de lapso, já que os factos a terem ocorrido a 19.04.2010, tal como indicado na acusação, nunca poderia o auto ser registado e autuado a 14.04.2010.

No que tange aos antecedentes criminais e às condições económicas e sociais do arguido, o tribunal socorreu-se, respectivamente, do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 183 a 185 e das declarações daquele.

O elenco dos factos não provados resulta da circunstância de nenhuma prova ter sido produzida acerca dos mesmos, ou de se ter apurado facto de sinal contrário.»

                                          *

2. Apreciando

2.1. Questão prévia

O ponto 1 dos factos provados da sentença tem a seguinte redacção:

- No dia 19 de Abril de 2010, pelas 12:00 horas, em Caldas da Rainha, foi levantado pela Direcção-Geral as Alfândegas e dos Impostos Especiais Sobre o Consumo o auto de notícia a relatar que o arguido era proprietário do veículo de matrícula (...) AQQ (...) , Peugeot 807, sendo simultaneamente residente e exercendo profissão remunerada em Portugal.

A referência à data «19 de Abril de 2010» enferma de manifesto lapso de escrita, já que a correcta será o dia 14 de Abril de 2010, aliás, em conformidade com o documento de fls. 16, mencionado na motivação de facto da sentença como formador da convicção do tribunal, e bem assim em consonância com a alteração não substancial dos factos descritos na acusação comunicada a fls. 207.

Assim, nos termos do artigo 380.º, nºs 1, b) e 2 do Código de Processo Penal, corrige-se o lapso verificado pelo que, no ponto 1 dos factos provados, onde se lê «19 de Abril de 2010» deverá ler-se «14 de Abril de 2010».

Consigna-se que a correcção já foi feita na transcrição dos factos provados que antecede.

2.2. Passemos, então, a conhecer do recurso interposto pelo arguido A...

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1])que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- impugnação da matéria de facto;

- conflito de deveres.

2.2.1. Da impugnação da matéria de facto

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([4]).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([5]).

Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)([6]).

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.

Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.

À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([7]).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([8]).

Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, torna-se evidente que estes não foram observados como se constata da leitura quer da motivação, quer das conclusões do recurso.

Na verdade, o recorrente manifestou discordância da decisão proferida sobre a matéria de facto na 1ª instância mas não indicou os concretos pontos de facto da sentença recorrida que considera incorrectamente julgados, limitando-se a afirmar que foram indevidamente valoradas as provas constantes dos documentos 2 e 5 juntos aos autos.

Ao impugnar a matéria de facto exige-se que o recorrente, sustentando que um determinado ponto de facto foi incorrectamente julgado, o indique expressamente, mencionando a prova que confirme ou demonstre a sua posição na medida em que a delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante para a definição do objecto do recurso em matéria de facto e não um ónus meramente formal.

A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença([9]).

O cumprimento desta exigência condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto([10]).

Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Julho de 2006 “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Terá, pois, de se ir para uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos”([11]).

No caso concreto, o recorrente não indicou os factos individualizados que constam da sentença recorrida que considera incorrectamente julgados em observância do disposto no artigo 412.º, n.º 3, a), limitando-se a afirmar que o tribunal a quo não valorou devidamente as provas constantes dos documentos nºs 2 e 5 que foram juntos com o requerimento de abertura de instrução.

O recorrente manifestou discordância sobre a decisão de facto proferida na 1ª instância e ter a intenção de a impugnar mas, para esse efeito, deveria ter dado cumprimento ao ónus de impugnação especificada nos termos do artigo 412.º, nºs 3, a), o que manifestamente não fez.

O que bem se compreende pois o recurso não é um novo julgamento mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada.

Conforme tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância([12]) ([13]).

A apreciação da prova no julgamento realizado em primeira instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.

Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.

Assim, sendo certo que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, refira-se que tal omissão não dá lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso já que as deficiências afectam o próprio corpo da motivação, ou seja, não estamos perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiência substanciais da própria motivação.

Neste caso, quando o corpo das motivações não contém as especificações exigidas por lei, já não encontramos insuficiência das conclusões mas sim insuficiência do recurso com a cominação de não poder a parte afectada ser conhecida([14]).

A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso»([15]).

Neste sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 259/2002, ao referir “quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 4l2º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.”([16]).

De acordo com o disposto no artigo 431.º, b), havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do artigo 412.º, n.º 3, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.

Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção([17]), não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que implica que se tenha a mesma por assente.

Improcede, portanto, a impugnação ampla da matéria de facto.

2.2.2. Do conflito de deveres

Sustenta o recorrente que estamos perante uma verdadeira neutralização da ilicitude da sua conduta por intervenção da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres, tal como prevista no artigo 36.º do Código Penal.

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal, «não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.».

Esta norma consagra uma causa de exclusão da ilicitude de uma conduta que sendo antijurídica ainda assim ela é conforme à ordem jurídica, fazendo prevalecer um bem jurídico superior (bem hierarquicamente superior) em detrimento de outro bem jurídico inferior, ou na impossibilidade de satisfazer dois bens jurídicos de igual valor, teve de optar por satisfazer um deles (colisão de deveres de igual valor), sendo que para que exista a causa de justificação excluidora da ilicitude por conflito de deveres é necessário que ocorra a impossibilidade de cumprir os dois (ou mais) deveres, o cumprimento do dever jurídico superior (quando os deveres em conflito forem de hierarquia diferente), ou o cumprimento de qualquer um dos deveres (quando forem da mesma hierarquia).

A fundamentação ou justificação da acção lesiva, nestas condições, decorre da impossibilidade de cumprir os dois deveres em conflito. Não se exige que os interesses a salvaguardar sejam superiores aos interesses sacrificados e, por isso, nos casos em que a Ordem Jurídica não ofereça qualquer critério de escolha, fica ao critério do agente a escolha do dever a cumprir([18]).

Segundo Taipa de Carvalho, são pressupostos da justificação (exclusão da ilicitude) por conflito de deveres:

- a impossibilidade de cumprir os dois (ou mais) deveres jurídicos e o

- cumprimento do dever jurídico superior (quando os deveres em conflito forem de hierarquia diferente), ou o cumprimento de qualquer um dos deveres (quando os deveres em conflito forem da mesma hierarquia)([19]).

No caso dos autos, os deveres em causa são de hierarquia jurídica diversa: o dever de entrega do veículo, atento o incumprimento do contrato de mútuo celebrado para a sua aquisição, tem uma génese contratual enquanto os deveres inerentes ao cargo de fiel depositário do veículo têm uma génese legal.

Os deveres são assim de hierarquia diferente, devendo o dever de base contratual ceder perante o dever legal.

O “conflito de deveres” pressupõe ainda que o agente se veja na impossibilidade de alternativa. O fundamento da justificação da ilicitude radica, como ficou dito, “na impossibilidade de cumprir os dois deveres”, o que pressupõe a impossibilidade de encontrar uma terceira via através da qual o agente não tenha que violar qualquer dever…

Ora, também esse pressuposto se não verifica no caso dos autos. O recorrente, em face do contrato de mútuo celebrado para a aquisição do veículo, no qual estava incluída uma cláusula de reserva de propriedade, podia proceder ao pagamento da quantia em dívida e deixar de estar vinculado ao dever de entrega do veículo.

É certo que esta solução exigia meios financeiros mas existia e evitava a alternativa de o recorrente ter que proceder à entrega do veículo ou infringir a lei, sendo que os factos provados evidenciam tão só a insolvência da empresa da qual o arguido foi sócio-gerente, a qual foi declarada em 2005.

Improcede, portanto, esta questão.

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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Coimbra, 4 de Maio de 2016

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2]- Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ªedição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3]- Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4]- Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[5]- Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[6]- Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.
[7]- Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[8] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9]- Acórdão da Relação de Coimbra de 22/10/2008, Processo n.º 1121/03.3TACBR.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.
[10]- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10/3, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[11]- Processo n.º 06P120, disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[12]- Cfr. Germano Marques da Silva, Código de Processo Penal, vol. II, Lisboa 1999, pág. 65; Cunha Rodrigues, Recursos, in O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1989, pág. 393; José Manuel Damião da Cunha, A estrutura dos recursos na proposta de Revisão do CPP - Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260; Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, págs. 848-849; na jurisprudência, os Acórdãos do TC n.º 59/2006, 677/99, 322/93, 124/90, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e, entre outros,os Acórdãos do STJ de 11-11-2004, Proc.º n.º 04P3182, de 17-2-2005, Proc.º n.º 04P4324, de 17-3-2005, Proc.º n.º 05P129, 15/12/2005, Proc. 2951/05, de 23-3-2006, Proc.º n.º 06P547, de 20-7-2006, Proc.º n.º 06P2316, de 10/1/2007, Proc. 06P3518, de 31-5-2007, Proc.º n.º 07P1412, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e de 18-10-2006, in CJ, ACSTJ, ano XIV, tomo 3, pág. 210.
[13]- «(…) O julgamento em 2ª instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas)» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18/01/2006.
[14]- Acórdão da Relação de Coimbra de 25/6/2008, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.
[15]- Acórdão do STJ de 31/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[16]- Acórdão de 18/6/2002, publicado no D.R., II Série, de 13/12/2002.
[17]- Um ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento como pressuposto de obtenção de determinada vantagem, que até pode cifrar-se em evitar a perda de um benefício ou faculdade, no caso, a de viabilizar o recurso sobre a matéria de facto.
[18]- Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral II, Teoria Geral do Crime, pág. 256.
[19]- Ob. cit. pág. 245.